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O Quarto Congresso de Lausanne acolhe líderes mais jovens, cristãos do ‘mercado’ e tecnologia

Mais de 5.000 evangélicos de mais de 200 países se reúnem na Coreia do Sul para celebrar e elaborar estratégias para o evangelismo.

Em 24 de setembro de 2024, participantes dos painéis falam sobre a influência que o Movimento de Lausanne teve em seus ministérios.

Christianity Today September 25, 2024
GOY

Steve Oh pode traçar a herança cristã de sua família até a chegada de missionários protestantes à Coreia, nos anos 1800.

“Minha família foi abençoada pelo movimento missionário global”, disse Oh, um pastor coreano-australiano que lidera a Sydney Living Hope Community Church.

Esta semana, Oh é um dos 5.200 cristãos de mais de 200 países que estão em Incheon, Coreia do Sul, para o Quarto Congresso de Lausanne. O encontro acontece como um “momento em que se completa um círculo”, pois comemora os frutos, tanto pessoais quanto coletivos, do evangelismo global nos últimos 50 anos.

Cinquenta anos depois que Billy Graham e John Stott fizeram história, reunindo 2.700 evangélicos de 150 países, os líderes do movimento acreditam que essa colaboração pode ir ainda mais longe.

“As quatro palavras mais perigosas para a igreja global de hoje são: ‘Eu não preciso de você’”, disse o diretor-executivo global e CEO do Movimento de Lausanne, Michael Oh (que não tem parentesco com Steve Oh). Colega da diáspora coreana, Oh usava um hanbok [tradicional traje coreano] durante sua fala de abertura, no domingo.

Nesses 15 anos desde que Lausanne convocou seu último congresso, na Cidade do Cabo, África do Sul, o movimento buscou ampliar o perfil de quem ele inclui como parceiros essenciais na Grande Comissão. Foram organizados eventos para líderes com menos de 40 anos, na cidade de Jacarta, em 2016, e para cristãos do “mercado”, ou seja, aqueles que não trabalham no ministério profissional, na cidade de Manila, em 2019.

Desde seu evento inaugural, em 1974, Lausanne aprofundou a cooperação entre evangélicos ao redor do mundo, segundo disseram os líderes que a CT entrevistou no local, durante Lausanne 4. Como o movimento presta atenção ao desenvolvimento de líderes mais jovens e à expansão de suas redes, foram lançados um enorme Relatório de Status da Grande Comissão e a Declaração de Seul, dois documentos que reafirmam o compromisso do movimento em servir como líder na reflexão sobre evangelismo e teologia.

Na preparação para o evento, Lausanne começou a desafiar igrejas locais a adotarem uma postura de cooperação.

Muitas congregações coreanas têm historicamente lutado para corresponder nesse sentido; em 2014, a Aliança Evangélica Mundial cancelou sua assembleia geral, programada para acontecer na capital sul-coreana, por causa de divisões entre os evangélicos do país.

No início do processo de planejamento para o Congresso de Lausanne deste ano, a Igreja Onnuri, uma das maiores congregações presbiterianas da Coreia, reuniu mais de 430 igrejas para orar. Cerca de 200 congregações começaram a pregar coletivamente sobre o livro de Atos. Muitas levantaram fundos para cobrir os custos da conferência. Cerca de 4.000 cristãos locais estão orando pelo evento.

A igreja coreana fez uma contribuição financeira significativa para custos como o centro de convenções, refeições, transporte e outros custos de produção.

Forjar esse elo de confiança entre líderes cristãos coreanos não tem sido fácil, de acordo com Yoo Kisung, um organizador local que lidera a Igreja Bom Pastor, em Seul. Mas ele reconhece essa preparação como uma oportunidade para fazer uma reflexão e para inspirar a próxima geração: “Os jovens que trabalharam com Lausanne são os futuros líderes da igreja coreana.”

Líderes de Lausanne que viajaram para o evento, como Menchit Wong, que é membro do conselho e veio das Filipinas, também enfatizaram o impacto geracional.

“Agora que já sou bem mais sênior, minha tarefa é ver líderes cada vez mais jovens assumirem seu lugar em levar filhos a Jesus”, disse ela.

O Congresso de Seul apresenta uma porcentagem histórica e recorde de delegadas mulheres (29%) e de delegados com menos de 40 anos (16%). Mais de 1.450 participantes trabalham em áreas que não são ligadas ao ministério de tempo integral. Na terça-feira, foi realizado um jantar para líderes mais jovens que lotaram um enorme salão de baile do centro de convenções e, no final desta semana, Lausanne terá uma cerimônia de comissionamento específica para os participantes que são cristãos “do mercado” (28%).

Embora os organizadores do Lausanne 4 tenham buscado, a princípio, que os norte-americanos constituíssem cerca de 5% do grupo geral de delegados presenciais, os delegados que vivem nos EUA representaram, no final, 25,5% do total de participantes. (As estatísticas de Lausanne são baseadas no local de residência do delegado.) Junto com os europeus (13%), os ocidentais compõem 38,5% do total de delegados.

Cerca de um terço (36,9%) dos delegados residem em países asiáticos, em comparação com 12,8% que vivem na África e 7,7%, na América Latina. Representantes que vivem na Oceania compõem 3% e os que vivem no Caribe compõem 1,1%.

Passar a semana com essa audiência tão diversa e heterogênea lembra ao ganês Casely B. Essamuah, secretário do Fórum Cristão Global que atualmente mora nos EUA, que “a igreja é mais grandiosa, maior e mais abrangente do que qualquer uma de nossas denominações ou do que qualquer um de nossos redutos”.

“Quem vem aqui não tem como deixar de sair inspirado por ver o que Deus está fazendo ao redor do mundo”, ele disse. “Também ficamos com o coração partido pela perseguição que outros estão sofrendo, e isso informa a nossa vida de oração. Vemos pessoas e somos capazes de nos conectar com elas, pelo bem maior da igreja global”.

Ouvir, em primeira mão, cristãos do mundo inteiro contando histórias sobre a perseguição e sobre a graça de Deus é uma experiência sem igual, diz Christian Maureira, diretor e professor do Seminário Martin Bucer no Chile. “Ouvir o que Deus está fazendo em lugares como Paquistão, Malásia, Europa ou o mundo muçulmano […] é muito impactante.”

Para Claudia Charlot, reitora da área de business da Université Emmaüs, em Cap-Haïtien, no Haiti, a conferência possibilitou que ela se conectasse com missionários asiáticos da One Mission Society, a organização que fundou a escola em que ela trabalha.

“Eu jamais teria conhecido essas pessoas se não fosse neste evento de Lausanne”, ela disse.

Todos os congressos de Lausanne anteriores lançaram um documento evangélico histórico: o Pacto de Lausanne (1974), o Manifesto de Manila (1989) e o Compromisso da Cidade do Cabo (2010). Mantendo a tradição, Lausanne anunciou, no domingo, que havia lançado a Declaração de Seul, um tratado com sete partes que afirma publicamente posições teológicas sobre o evangelho, a Bíblia, a igreja, a “pessoa humana”, o discipulado, a “família das nações” e a tecnologia.

A Declaração de Seul “foi elaborada para preencher algumas lacunas, para ser um complemento em sete tópicos-chave sobre os quais não pensamos o suficiente, ou não refletimos ou não escrevemos o bastante dentro do Movimento de Lausanne”, disse David Bennett, diretor-associado global de Lausanne.

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“Não estávamos tentando criar um quarto documento que substituiria ou tornaria obsoletos aqueles três documentos anteriores”, ele acrescentou.

A declaração — um texto com 97 pontos e 13.000 palavras — foi apresentada no domingo. Sua divulgação surpreendeu alguns delegados, cuja expectativa era de que teriam chance de oferecer suas contribuições, já que nos congressos anteriores as declarações haviam sido elaboradas coletivamente, ao longo da semana.

“Baseada em uma história rica e diversa, esta declaração do @LausanneMovement tem muita coisa boa, e sou grato por sua clareza teológica para este momento”, escreveu no Instagram Ed Stetzer, diretor regional de Lausanne para a América do Norte. “No entanto, gostaria que tivesse um chamado maior para priorizar o evangelismo.”

Ao menos um grupo, o Korean Evangelicals Embracing Integral Mission (KEEIM, Evangélicos coreanos que abraçam a missão integral ), organizou uma reunião, na terça-feira, para que os delegados compilassem suas preocupações.

Partes da Declaração de Seul sobre o tópico da homossexualidade foram alteradas após sua divulgação, segundo observou uma matéria do Christian Daily International.

Líderes cristãos coreanos manifestaram objeções às versões originais, particularmente pelo modo como elas podem ter colocado que “muitas igrejas locais e comunidades cristãs agiram errado, embora a maioria das igrejas locais e das comunidades cristãs não tenham agido assim”.

No parágrafo 69, em vez de descrever como os cristãos que são atraídos por pessoas do mesmo sexo enfrentam desafios “em muitas igrejas locais, devido à ignorância e ao preconceito”, o texto do documento agora afirma que isso ocorre “mesmo em comunidades cristãs”. Em vez de dizer que a igreja se arrepende de suas “falhas”, o texto agora diz que ela se arrepende de “nossa falta de amor”.

A palavra “fieis”, que fora usada para descrever crentes que sentem atração por pessoas do mesmo sexo, também foi cortada no parágrafo subsequente. O plano era que essas edições tivessem sido feitas antes da publicação da Declaração de Seul, disse o porta-voz de Lausanne, na terça-feira.

Ivor Poobalan, diretor do Seminário Teológico de Colombo, no Sri Lanka, e Victor Nakah, diretor internacional da Mission to the World para a África Subsaariana, lideraram conjuntamente o grupo de trabalho de teologia de Lausanne, que passou cerca de 18 meses trabalhando nessa declaração.

Segundo Bennett, as pessoas que redigiram o documento estavam se perguntando:

• O que precisa ser feito?

• Existem áreas do pleno desejo de Deus para as nações, de seu desejo para a igreja, áreas em que não ouvimos com atenção suficiente, ou nas quais nosso mundo em transformação está levantando novas questões, que não foram respondidas por completo e a contento em nossos três documentos fundacionais anteriores?

Este documento veio na esteira do relatório do Status da Grande Comissão, lançado há algumas semanas. O relatório de 500 páginas explorou o status atual da evangelização mundial por meio de dados e pesquisas, e sugeriu ideias e oportunidades para líderes continuarem ministrando com eficácia em várias regiões.

“Existem centenas de milhares de congregações de igrejas com centenas de milhões de seguidores de Jesus Cristo”, escreveram na introdução Poobalan e Nakah, que também trabalharam neste relatório. “Mas, para executar com sucesso a Grande Comissão, precisamos de uma igreja que esteja à altura, que combine corações e mentes voltados para a Grande Comissão.”

Esse compromisso com o trabalho teológico profundo atrai Tom Lin, presidente do braço da InterVarsity Christian Fellowship sediado nos EUA.

“Pode ser apenas um conceito, que sai de um encontro de Lausanne e vai se espalhando, ao longo de muitos anos, para muitos lugares ao redor do mundo”, ele disse.

Kim Jongho, da KEEIM, tomou conhecimento dos documentos de Lausanne quando ainda era um calouro na faculdade. “O compromisso deles com a missão integral me inspirou a ser um cristão responsável na sociedade”, disse ele. “Eles foram um sinal de esperança para mim.”

Embora Lausanne tenha demonstrado essa extensa influência no mundo evangélico, durante 50 anos, um movimento como esse tem que ter cuidado para não viver apenas de sua história, de seu passado, diz Ruslan Maliuta, estrategista de rede da OneHope, na Ucrânia.

“Nos anos 70, reunir [milhares de] pessoas de todo o mundo, foi, por si só, uma façanha incrível e imensa”, disse ele. “Ainda é uma façanha, mas uma rede de megaigrejas pode fazer o mesmo. Embora ainda seja um grande esforço, não é algo que se destaque.”

Em vez disso, neste mundo em transformação, as organizações com esse nível de capacidade para reunir pessoas devem refletir sobre o tipo de reuniões que organizam.

 “Todo grupo global de expressão, incluindo Lausanne, precisa ser muito intencional no que diz respeito a se reinventar neste tempo e nesta era”, disse Maliuta.

Para esse fim, Lausanne criou um Digital Discovery Center [Centro de Descoberta Digital], uma série de exibições interativas para ajudar os participantes a aprenderem mais sobre onde o evangelismo e a tecnologia estão colidindo. As sessões vespertinas tratam de tópicos como inteligência artificial e transumanismo.

Durante seu discurso de terça-feira à noite, que comemorou o 50º aniversário de Lausanne, Michael Oh lembrou aos delegados que o movimento estava “apaixonadamente comprometido com três Ds: fazer discípulos no mundo, amadurecer discípulos da igreja e com o digital”.

“Estamos em um momento decisivo para o corpo de Cristo”, disse Paul Okumu, do Kenya Center for Biblical Transformation. “Por um lado, há muito entusiasmo e muita comemoração pelo que Deus está fazendo. Mas, por outro lado, há uma preocupação excepcional por causa da perseguição e da intolerância religiosa que estão surgindo”.

 “Estou aqui para me solidarizar com a igreja evangélica global — abraçando tanto sua beleza e resiliência, quanto suas imperfeições e seu lado caótico”, disse Lisman Komaladi, que serve em Cingapura como secretário regional da IFES para a Ásia Oriental. “Acredito que, todos juntos, possamos nos tornar uma testemunha mais fiel de Cristo para o mundo, onde quer que estejamos.”

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Os evangélicos brasileiros estão divididos sobre o legado de Lausanne

Cristãos da América Latina desenvolveram a teologia da missão integral. Agora não sabem o que fazer com ela.

Christianity Today September 21, 2024
Ingo Roesler / Getty

Por anos, a missão integral — corrente teológica que vê o evangelismo e a justiça social como componentes indissociáveis ​​da vida cristã, ou como as “duas asas de um avião”, conforme escreveu certa vez o teólogo equatoriano René Padilla — tem sido um legado do Movimento de Lausanne no Brasil. Desenvolvido na década de 1970, por membros da Fraternidade Teológica Latino-americana, esse conceito motivou os evangélicos brasileiros a combaterem a violência nas ruas do Rio, o abuso de álcool em reservas indígenas e a livrarem moradores de rua do vício em drogas, entre muitas outras conquistas.

Recentemente, no entanto, o legado da teologia da missão integral (TMI) tem sido alvo de escrutínio no Brasil, por fatores geracionais, demográficos e teológicos.

Em junho, o movimento de Lausanne realizou uma conferência em São Paulo para apresentar seu relatório da Grande Comissão, uma pesquisa exaustiva de tendências que afetam os esforços de missões em nível global. Antes do encontro, evangélicos debatiam nas mídias sociais se o evento se tornaria uma espécie de “funeral da TMI”.

A maioria dos preletores da conferência era jovem e tinha aderido ao movimento nos últimos anos. E ninguém sequer mencionou algo sobre “missão integral” no palco principal.

Essa realidade não escapou à observação dos líderes de longa data de Lausanne, cujos olhos estão voltados para o 50º aniversário da conferência inaugural. A data certamente será lembrada na conferência deste ano, que começa na próxima semana em Incheon, Coreia do Sul.

“Alguns de nós estão indo para Lausanne 4 com esta pergunta em mente: o que será da missão integral?”, disse Valdir Steuernagel, um dos nomes mais proeminentes do evangelicalismo brasileiro e consultor-executivo sênior do Movimento de Lausanne.

Embora a controvérsia sobre esse conceito possa ter se acirrado no Brasil, ela remonta a décadas.

Quando a missão integral foi inicialmente concebida, na década de 1970, tendo emergido do primeiro congresso de Lausanne, em 1974, alguns evangélicos expressaram preocupação sobre as implicações de um evangelho que abordava as necessidades materiais e espirituais das pessoas. Os evangélicos favoráveis ​​a Lausanne eram frequentemente acusados ​​de serem influenciados pelo pensamento marxista ou de estarem meramente adotando uma versão protestante da teologia da libertação.

Essas críticas se mantiveram ao longo do tempo. Em um vídeo de 2015, o reverendo Augustus Nicodemus, antigo líder de alto escalão da Igreja Presbiteriana do Brasil, descreveu a missão integral como “uma leitura corrompida ou, no mínimo, incompleta da realidade”. Com o tempo, a divisão sobre a teologia da missão integral surgiu também dentro da própria rede nacional do movimento de Lausanne.

E o crescente tribalismo dentro da política doméstica brasileira intensificou os conflitos.

Em abril de 2018, o pastor Ariovaldo Ramos compareceu a um comício político, no qual orou pelo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que na época estava no centro de uma crise política. Pouco depois disso, o líder de esquerda foi preso por acusações de corrupção.

No mesmo dia, Yago Martins, um YouTuber e podcaster influente na área da teologia, lamentou no Facebook a presença de Ramos nesse evento, aproveitando a situação para criticar a missão integral. Em suas palavras, essa teologia “é nada mais que missiologia marxista e esquerdismo teológico”.

Dezoito meses depois, Lula foi solto e voltou à presidência nas eleições de 2022. O impacto da presença de Ramos naquele evento de 2018, no entanto, continua a repercutir na igreja brasileira e no Movimento de Lausanne.

Ramos — ex-presidente da Visão Mundial no Brasil e fundador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, a qual se descreve como um movimento cristão que promove a justiça social e os direitos humanos — há tempos é um dos principais nomes da missão integral no Brasil. Aos olhos dos oponentes da missão integral, o apoio de Ramos a Lula foi visto como evidência de que essa teologia era um movimento político de esquerda, uma afirmação que Ramos rejeita.

“A teologia da missão integral não tinha compromisso partidário, em hipótese alguma”, disse ele. “Quando eu fui àquele evento, eu o fiz pelas minhas convicções como cidadão. E quando eu visitei o presidente Lula na cadeia, foi porque eu fui convidado para uma visita pastoral. Nenhum pastor pode negar uma visita a alguém que está preso.”

Nos anos seguintes, a polarização política piorou entre os evangélicos, exacerbada pelas contenciosas eleições presidenciais de 2018 e 2022. Críticos da direita observaram adeptos da missão integral defendendo abertamente um presidente (Lula) que estava sendo acusado de haver infringido a lei. Adeptos da esquerda perguntavam por que os evangélicos estavam apoiando um candidato (Jair Bolsonaro, eleito em 2018) que, na visão deles, fazia comentários misóginos e preconceituosos.

“Essa foi uma época muito difícil. Deixou feridas que ainda não foram curadas”, disse o líder de uma organização cristã de serviços sociais, que pediu para não ser identificado, a fim de não impedir a capacidade de seu grupo de colaborar com outros ministérios. “Pessoas excelentes, incluindo teólogos e missiologistas, deixaram de conversar uns com os outros e até trocaram acusações por causa de paixões políticas.”

Essa polarização teve consequências inacreditáveis.

 “Hoje, poucos são os pregadores que usam o termo missão integral. Podem até tratar do tema, mas não usam essas palavras para não serem cancelados, rotulados, excluídos,” disse Ramos.

Embora a força-tarefa da missão integral do movimento de Lausanne Brasil ainda exista, e a rede nacional de Lausanne não tenha sofrido nenhuma renúncia de membros de alta projeção, Ziel Machado, que participou do segundo encontro global de Lausanne, realizado em Manila, em 1989, e que atualmente atua como vice-chanceler do Seminário Servo de Cristo em São Paulo, reconhece que a situação política divisiva no Brasil minou uma comunidade que antes se caracterizava pela cooperação e pelo companheirismo.

“O nome ‘missão integral’ está manchado e agora faz parte do conflito”, disse ele. “Lausanne nos ensina a pensar em reconciliação. Mas não podemos aplicar esse princípio, se não lidamos com os nossos problemas. Precisamos entender quais são as áreas afetadas e quais são as reconciliações que precisam ser feitas.”

Cerca de um ano atrás, o diretor de Lausanne para a América Latina, Daniel Bianchi, perguntou se não era hora de aposentar o termo. “Neste momento, é necessário reconhecer que o termo ‘missão integral’ se tornou uma espécie de clichê e tem sido usado para muitas coisas, a ponto de quase perder seu significado”, escreveu Bianchi, que vive na Argentina e assumiu seu papel no movimento de Lausanne em 2017.

Fernando Costa, coordenador do comitê executivo do Lausanne Brasil e diretor-executivo do Centro Evangélico de Missões, disse que a missão integral enfraqueceu, após a morte de muitos de seus pioneiros, como Padilla e o porto-riquenho Orlando Costas. “Isso virou algo como um palavrão. Tudo o que não é muito saudável para a igreja é rotulado como missão integral”, disse Costa. “É injusto com a missão integral, mas ninguém vai meter a cara para defendê-la.”

Essas tensões em torno do conceito de missão integral e no âmbito de Lausanne ocorreram concomitantemente com o crescimento explosivo de evangélicos no país. De acordo com o censo de 1970, o Brasil tinha 4,8 milhões de evangélicos, o que representava 5,2% da população. Hoje, há 3,5 milhões de evangélicos apenas em São Paulo. No geral, 63 milhões de brasileiros, ou seja, 31% da população total, são evangélicos, de acordo com uma pesquisa do Datafolha.

A maioria deles são convertidos — apenas 7% dos evangélicos disseram ao Datafolha que frequentavam a igreja desde que nasceram. Em contraste com os evangélicos da década de 1970, esses recém-chegados estão se juntando a um movimento que desfruta de crescente influência na cultura pop e na política.

Muitos desses novos convertidos são pentecostais, os quais representam cerca de 65% dos evangélicos no país. Esses grupos foram sub-representados no Movimento de Lausanne, em parte porque não tinham seus próprios seminários ou faculdades, e, em vez disso, confiam em estruturas menos formais para treinar seus pastores e missionários ou usam para isso instituições operadas por outros grupos, como batistas, presbiterianos e luteranos. Essa carência de acadêmicos, por sua vez, significou que as posições pentecostais sobre teologia e missiologia ficaram menos visíveis.

De fato, a maior denominação evangélica do país, as Assembleias de Deus, era, até alguns anos atrás, avessa à erudição teológica e resistente a ambientes acadêmicos. Mais recentemente, muitos membros das Assembleias de Deus buscaram treinamento teológico. “Isso os aproximou de grupos como Lausanne”, disse Marcos Amado, que liderou o Movimento de Lausanne na América Latina de 2011 a 2016. Mas também criou o desafio de integrar um tipo diferente de tradição teológica em um ambiente de cooperação.

Muitos pentecostais compareceram ao evento da Grande Comissão de Lausanne, em junho. “O que eu vi foi uma galera jovem muito interessada em servir a Jesus. Querem fazer muita coisa, pôr nas redes sociais, transmitir para o maior número possível de pessoas”, disse Amado.

Costa disse que muitos líderes que estão fortemente envolvidos no trabalho missionário tinham conhecimento limitado da história de Lausanne. “Estamos trabalhando com essas pessoas que estão fazendo o movimento missionário brasileiro, para aproximá-las do conhecimento teórico-teológico da missão”, explicou. “Eles estão descobrindo o que é Lausanne no caminho.” Para fazer isso, eles contam com a orientação de um grupo de missiologistas experientes, que têm parceria com Lausanne há décadas — participantes mais velhos e experientes como Valdir Steuernagel, que compareceu ao evento global de Lausanne, em 1989, realizado em Manila.

Mas será que há alguma chance de restaurar a imagem da missão integral em Lausanne, no Brasil ou em qualquer outro lugar?

“A injúria que a teologia da missão integral sofreu só será tratada se houver arrependimento. Pode ser que venha.”, disse Ramos. “Eu acredito no poder do Espírito Santo para convencer as pessoas do pecado, da justiça e do juízo.”

Para Steuernagel, esse conflito faz parte do processo de amadurecimento do Movimento de Lausanne: “Sempre há tensão nesses encontros. Se tirar a tensão, acho que você também mata o espírito de Lausanne.”

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Theology

Sim, o carisma importa, mas não é tudo

Não se pode confundir a capacidade de cativar pessoas com o chamado.

Christianity Today September 20, 2024
Ilustração de Tim McDonagh

O carisma tem passado por momentos difíceis na igreja. Ou alguns de nós, ao menos, começaram a olhá-lo com suspeita. As rachaduras em sua superfície já são visíveis há algum tempo. Nove anos atrás, muito antes de a Oxford University Press [Imprensa da Universidade de Oxford] coroar o termo rizz (uma gíria para designar o tipo de carisma que inspira a atração romântica) como sua palavra do ano, em 2023, Rick Warren observou: “Carisma não tem absolutamente nada a ver com liderança”.

Mas todos nós sabemos que tem, sim, não é mesmo?

Gostamos de líderes com personalidades dinâmicas. Somos atraídos por eles, na igreja e na política. Para o bem ou para o mal, o carisma é levado em consideração. O líder carismático é uma característica em comum nas histórias de como nasceram muitas organizações e denominações cristãs (e não cristãs). Muitos movimentos têm seus primórdios ligados a uma grande figura humana com uma grande ambição por Deus, e cuja eficácia parece dever-se tanto à sua personalidade quanto ao chamado de Deus.

Por exemplo, a Escritura diz que Saul, o primeiro rei de Israel, era um “jovem de boa aparência, sem igual entre os israelitas; os mais altos batiam nos seus ombros.” (1Samuel 9.2). A impressão causada pela aparência física de Saul sugeria que ele seria um rei ideal.

A experiência subsequente provou o contrário. Quando o profeta Samuel procurou o sucessor de Saul entre os filhos de Jessé, o Senhor o alertou para não se deixar levar por tais coisas. “O Senhor não vê como o homem”, ele disse. “O homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Samuel 16.7).

No entanto, quando Davi foi trazido diante dele, o texto de 1Samuel 16.12 observa que ele era “corado de saúde e tinha uma bela aparência e belas feições” (NIV).

O carisma, assim como a beleza, está nos olhos de quem vê. Portanto, há uma dimensão cultural no carisma. Uma razão pela qual 1Samuel enfatizou a aparência física de Saul e Davi é porque o rei também era um guerreiro. As pessoas viam o rei como um libertador (1Samuel 8.19-20). A altura de Saul e a aparência saudável de Davi contribuíram para suas proezas na batalha e fizeram com que eles parecessem ser da realeza.

No entanto, as Escrituras são claras: qualquer sucesso que eles tiveram foi devido a mais do que seus dons naturais. Foi, em última análise, em função do carisma no mais verdadeiro sentido teológico. Eles tiveram sucesso porque o Espírito Santo veio sobre eles em poder (1Samuel 10.10; 11.6; 16.13).

E então, ambos pecaram, de forma bastante notória. Falhas semelhantes de líderes carismáticos de hoje foram parar nas manchetes dos jornais e se tornaram fonte de suprimento para podcasts e documentários. Suas histórias são um lembrete contundente de que, às vezes, o carisma, assim como a beleza, é algo apenas superficial.

Mas a trajetória familiar de suas histórias também prova que o carisma confere à pessoa uma espécie de poder, quer queiramos, quer não. Só não temos certeza de qual tipo de poder. É uma autoridade que vem de Deus? Ou é meramente uma obra da carne?

Líderes carismáticos têm marcado presença ao longo da história. Mas o ideal do líder carismático ganhou evidência pelas mãos de Max Weber, sociólogo do século 20.

Baseando-se na ideia bíblica de liderança como um dom de Deus (Romanos 12.8), Weber definiu carisma como “certa qualidade da personalidade do indivíduo, em virtude da qual ele é separado dos homens comuns e tratado como alguém dotado de poderes ou de qualidades sobrenaturais, super-humanos ou, ao menos, especificamente excepcionais”. Para Weber, a essência do carisma era a personalidade forte do líder, que compelia os outros a segui-lo.

Uma personalidade forte, no entanto, não era a única coisa que tornava esses líderes carismáticos, de acordo com Weber. O carisma é resultante de uma porção de características, entre elas, a santidade de caráter. Pela definição de Weber, a combinação que compõe o carisma é rara.

Se por uma definição sociológica o carisma é “poder por meio da personalidade”, o conceito bíblico de carisma situa o poder em outro lugar. Carisma, segundo as Escrituras sugerem, é o poder do Espírito Santo concedido pela graça de Cristo. Esse poder dado por Deus é exibido por meio da personalidade (e, algumas vezes, apesar dela). Por essa definição bíblica, a personalidade é um meio através do qual o poder de Deus é exibido, não é a fonte desse poder.

Nesse aspecto, toda liderança é carismática porque liderança é um dom de Deus (a etimologia do termo carisma denota um dom de Deus). A capacidade de exercer liderança não só é um dom concedido a certos indivíduos, mas os indivíduos em si são dons dados à igreja (Efésios 4.7-13).

Esse carisma espiritual não é apenas para um punhado de pessoas na igreja. Deus dá o Espírito “a cada um […] visando ao bem comum” (1Coríntios 12.7). Sim, a igreja tem líderes, mas sua saúde e seu êxito não dependem somente deles.

Os líderes da igreja — aqueles que exercem dons espirituais em seu meio, bem como aqueles que desempenham as funções e tarefas necessárias que capacitam a igreja a cumprir sua missão — todos contribuem para a liderança carismática do Espírito Santo sobre a igreja.

O fracasso público de muitos líderes dinâmicos é um lembrete do perigo de confiarmos demais em qualquer indivíduo que seja — incluindo nós mesmos.

Quando o sogro de Moisés, Jetro, viu seu genro cercado pelo povo, enquanto julgava seus litígios de manhã até a noite, ele rapidamente percebeu a insanidade daquele modelo de liderança. “O que você está fazendo não é bom”, disse Jetro.

“Você e o seu povo ficarão esgotados, pois esta tarefa lhe é pesada demais. Você não pode executá-la sozinho” (Êxodo 18.17-18). A solução de Jetro foi distribuir a carga, compartilhando a responsabilidade de julgamento com outros.

Deus parece ter confirmado o conselho de Jetro com uma dispersão semelhante do Espírito Santo, quando tomou “parte do poder do Espírito” que estava sobre Moisés e o colocou sobre os anciãos de Israel (Números 11.17).

Essa ação não apenas antecipou o fardo compartilhado da liderança que encontramos na igreja do Novo Testamento; ela também prenunciou o derramamento mais amplo do Espírito, no Dia do Pentecostes. Nem todos na igreja são chamados a ser um líder. Mas todos recebemos o dom do Espírito que habita em nós (Romanos 8.9).

Se o poder de liderar é, em última análise, atribuído ao Espírito Santo, qual é, então, o papel da personalidade? Ela é um trunfo ou um estorvo?

Uma visão comum afirma que o melhor estilo de liderança é aquele em que a personalidade desaparece. Como escrevi no Preaching Today, ouvimos ecos dessa ressalva em uma oração que já ouvi muitas vezes ser proferida antes de um sermão. É mais ou menos assim: “Que minhas palavras sejam esquecidas, para que somente o que vem de ti seja lembrado.” Orações como essa são bem-intencionadas, mas não percebem o mais importante, sobretudo porque dificilmente precisamos de um ato de Deus para esquecermos o que um pregador diz.

Em uma série de palestras proferidas para alunos em Yale, Phillips Brooks, o mestre do púlpito do século 19, definiu a pregação como a comunicação da “verdade por meio da personalidade”. Brooks entendia a personalidade como algo mais do que estilo pessoal. Ela inclui o caráter, as afeições, o intelecto e o ser moral do pregador. É uma questão de Deus trabalhando por meio da pessoa inteira.

A liderança é mediada da mesma forma. As qualificações para a liderança, descritas em 1Timóteo 3 e em Tito 1, concentram-se mais no tipo de pessoa que está sendo considerada do que nas tarefas que esta deve desempenhar.

A personalidade importa na liderança. Um estudo sobre as maiores igrejas dos Estados Unidos, feito por Warren Bird e Scott Thumma, afirma que, “em geral, os pastores de megaigrejas são servos de longa data de suas igrejas” — e não os abusadores ou criminosos que manchetes atuais nos condicionaram a observar. “Tendo um propósito claro e vivendo essa missão, eles mantêm o foco da igreja na vitalidade espiritual.”

A maioria dessas igrejas experimentou um crescimento significativo por meio do ministério de um pastor carismático, que serviu a igreja por uma média de 22 anos.

Outras pesquisas sugerem que certos fatores da personalidade — capacidade de inspirar, assertividade e amabilidade — aprimoram o trabalho de plantação de igrejas.

Deus trabalha por meio da natureza das pessoas, assim como trabalha por meio dos processos naturais. Ele pode enviar pão do céu, mas fornece comida principalmente através do plantio e do cultivo. Ele pode curar instantaneamente através de um milagre, mas com mais frequência ele cura através do tratamento de médicos e remédios. Cristo proveu a igreja de personalidades com dons, as quais ensinam, lideram e administram, e esta é a maneira como ele habitualmente trabalha.

No entanto, não se pode negar que o carisma pessoal pode ser uma desvantagem assim como uma vantagem. Um estudo de 2018 mostrou que quanto mais carisma os líderes possuem, mais são vistos como eficientes por seus seguidores. Mas isso só é verdade até certo ponto. A dificuldade está em determinar a partir de que ponto o carisma passa a ser excessivo.

Como os líderes podem saber quando passaram da autoconfiança para o excesso de confiança? Infelizmente, essa parece ser uma lição que geralmente se aprende por meio de fracassos.

Personalidades carismáticas podem ser egoístas e narcisistas. No entanto, nenhuma igreja que procura um pastor diz: “Vamos contratar um idiota presunçoso!” Da mesma forma, ninguém procura uma igreja pensando: Onde posso encontrar um pastor abusivo hoje? Somos atraídos por líderes narcisistas porque eles são atraentes.

Líderes narcisistas têm presença. Eles são entusiasmantes. Eles prometem grandes coisas. Muitos produzem resultados impressionantes, ao menos por um tempo. Igrejas que esperam ter um líder messiânico podem achar atrativo esse estilo narcisista que frequentemente acompanha a liderança carismática. E toleram abuso, na esperança de que o pastor os guie até a terra prometida do sucesso ministerial.

Como acontece em todo relacionamento de codependência, este também é construído sobre um sistema disfuncional de recompensas. As congregações permitem o comportamento narcisista porque recebem algo em troca dos líderes. Talvez seja a descarga de adrenalina de uma personalidade inflada, expressada por meio da pregação. Frequentemente, é uma habilidade de atrair multidões.

Igrejas que toleram abusos de líderes narcisistas geralmente temem que ninguém mais consiga produzir resultados semelhantes. Ou demonstram a preocupação de que a saída do pastor possa prejudicar a frequência dos membros. Quanto maior a igreja, mais difícil pode ser se libertar [dessa codependência], porque parece haver muita coisa em jogo. Esses líderes frequentemente também acabam por desenvolver sistemas sociais que reforçam o abuso.

Os narcisistas se cercam de pessoas que os fazem se sentir especiais. Esse círculo interno sente uma emoção vicária por se associar ao líder. Essa associação geralmente vem com privilégios ou tratamento especial, mesmo que tudo isso seja apenas o acesso a alguém que é tido como uma celebridade. O resultado é um ciclo de codependência que cega aqueles que deveriam responsabilizar o narcisista, levando-os a serem cúmplices do abuso.

Os líderes narcisistas geralmente são intimidadores. Desenvolvem culturas organizacionais marcadas por medo e punição. Eles usam o poder de sua posição espiritual para calar qualquer um que os desafie. Criam uma cultura que silencia objeções e penaliza opositores.

Sempre há um preço a pagar para aqueles que desafiam os líderes narcisistas. Membros da igreja que questionam suas agendas ou suas práticas são acusados ​​de serem divisivos e minar o plano de Deus. Em uma aplicação distorcida de 1Samuel 26.9 e 11, alguns alertam aqueles que criticam o pastor para não “levantar a mão contra o ungido do Senhor”. Ameaças e retaliações são explicadas como “disciplina da igreja”.

Weber descreveu o processo desta forma: “As pessoas escolhem um líder em quem confiam. Então, o líder escolhido diz: ‘Agora, calem a boca e me obedeçam.’” Essa abordagem soa incomodamente parecida com a filosofia de muitos líderes de igreja famosos, cujas personalidades fortes os tornaram proeminentes, mas cujo estilo intimidador posteriormente os levou à desgraça.

Onde, então, devemos procurar, para encontrarmos a personalidade ideal de liderança? Esta parece uma daquelas perguntas da escola dominical cuja resposta é sempre “Jesus”. Embora a Bíblia descreva padrões de caráter para líderes da igreja, nela não encontramos um único tipo de personalidade sequer que seja considerado o ideal, quer seja nos exemplos de sua narrativa, quer seja em comandos explícitos.

As representações bíblicas de grandes líderes (ainda que evidentemente falhos, imperfeitos) oferecem um retrato bastante variado. Moisés não é como Davi, que, por sua vez, não é como Paulo. Não se tem a sensação de que o Espírito molda aqueles que Deus usa como líderes segundo um único tipo de personalidade. Extrovertidos, introvertidos, planejadores detalhistas, pessoas que reagem de forma mais intuitiva, personalidades dinâmicas e tipos retraídos, todos parecem ter seu lugar.

De forma semelhante, a escolha dos apóstolos por Jesus dificilmente revela um único tipo apostólico. Tomados em conjunto, seus discípulos parecem um grupo improvável, proveniente de origens radicalmente diferentes, com valores e ideais conflitantes — exceto, talvez, por uma propensão comum de não perceber o que de fato importava. Eles eram pescadores, zelotes, separatistas e colaboradores do governo romano. Isso desmente a uniformidade que frequentemente vemos em perfis que descrevem a personalidade de liderança ideal.

Mesmo que exista um perfil de personalidade comum para líderes carismáticos, a maioria dos líderes na Bíblia não se enquadra nessa categoria.

Considere Paulo e Apolo. Hoje, conhecemos muito melhor o trabalho de Paulo do que o de Apolo. Mas, quando ambos estavam vivos, o poder de celebridade parece ter estado do lado de Apolo. Por todos os relatos, deduzimos ele tinha carisma. Natural da grande cidade de Alexandria, Apolo era um “homem culto e tinha profundo conhecimento das Escrituras”, bem como alguém que “falava com grande fervor” (Atos 18.24-25). Essas características renderam a Apolo seguidores na igreja de Corinto (1Coríntios 3.4).

Paulo também tinha seguidores em Corinto. Mas, para alguns daquela igreja, o carisma de Paulo estava limitado às suas cartas. De acordo com 2Coríntios 10.10, eles reclamavam: “Suas cartas são duras e fortes, mas ele pessoalmente não impressiona e a sua palavra é desprezível.”

Aqueles que são chamados para uma mesma tarefa podem não executá-la da mesma maneira. Os exemplos de líderes como Moisés, Pedro e Paulo indicam que Deus prepara as personalidades distintas dos líderes para as tarefas às quais são chamados. Estou convencido de que essa preparação inclui os pontos fracos e também os pontos fortes. Deus chama os tolos, os fracos, os impetuosos e os tímidos (1Coríntios 1.26-29).

A liderança bem-sucedida depende do carisma em seu sentido bíblico e mais amplo da palavra. É um dom que Deus concede por meio de seu Espírito. As habilidades de liderança, assim como os próprios líderes, são hoje dados por Deus, assim como eram na Bíblia. Eles são tão diversificados em termos de personalidade quanto quaisquer dos líderes sobre os quais lemos na Bíblia, e igualmente imperfeitos.

Provavelmente preferiríamos ter somente Jesus como nosso líder. Minha impressão é que ansiamos por um movimento cujo único ímpeto venha do Espírito, em vez de vir em resposta à personalidade de alguém.

Tal coisa certamente é possível, mas não é a norma. Na maioria das vezes, Deus trabalha por meio de pessoas. Onde há pessoas, a personalidade é sempre um fator. O Verbo que “não abominou o ventre da Virgem”, como declara o antigo hino, não hesita em se revelar por meio da personalidade de seus servos.

O fracasso espetacular de tantos líderes de alto nível deveria fazer nós, cristãos, sermos cautelosos em dar muito crédito à personalidade de qualquer indivíduo. Na igreja não há espaço para cultos à personalidade. Há apenas um Messias para o povo de Deus, e seu nome é Jesus.

Mas isso não deveria nos deixar com medo da personalidade em si. A personalidade das pessoas pode ser distorcida pelo pecado, mas também é o principal meio que Deus usa para refletir sua imagem em nossas vidas. A personalidade não é uma desvantagem na liderança. Ela é o rosto da alma.

John Koessler é escritor, podcaster e professor emérito aposentado do Moody Bible Institute [Instituto Bíblico Moody]. Seu livro mais recente, When God Is Silent [Quando Deus está em silêncio], foi publicado pela Lexham Press.

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Church Life

Uma nova arquitetura para igrejas chinesas: além dos muros

Em uma China em rápida urbanização, algumas congregações veem na arquitetura a oportunidade de falar sobre o evangelho e a tradição local.

Shikai / INUCE

O átrio da Igreja Julong.

Christianity Today September 17, 2024

Uma torre de sinos em forma de pergaminho. Um átrio imponente em formato de arca. Um órgão de tubos que remete às igrejas metodistas da América do Norte do século 19.

Esses são alguns dos elementos mais marcantes nas igrejas do Movimento Patriótico das Três Autonomias, que o arquiteto germano-brasileiro Dirk U. Moench projetou na China. Moench, que é luterano, fundou o escritório de design INUCE em 2011, com sedes em Fuzhou, na China, e Münsterlingen, na Suíça, onde atualmente reside.

Moench projetou quatro igrejas na China. Duas igrejas, uma em Fuzhou e outra em Luoyuan, foram concluídas em 2018 e 2021, respectivamente, enquanto uma em Julong foi finalizada neste ano. Outro projeto em andamento em Jinshan atraiu atenção nacional e recebeu dezenas de milhares de curtidas em plataformas de mídia social, como Weibo e Xiaohongshu [que significa Pequeno Livro Vermelho], segundo Moench.

A CT entrevistou Moench para discutir sobre como o design de igrejas na China se conecta com os princípios arquitetônicos ocidentais e como a estrutura física de uma igreja pode interagir e participar do rápido desenvolvimento urbano do país.

Quando você foi convidado para projetar uma igreja no distrito de Jinshan, em Fuzhou, autoridades e políticos chineses disseram que queriam “uma igreja moderna para uma China moderna”. Como você interpretou isso?

Em muitos sentidos, essa é uma frase política. Você precisa dar-lhe significado como arquiteto e como cristão. Os arquitetos gostam de se referir ao termo em latim genius loci, ou o “espírito do lugar”, no sentido de que um edifício é uma reação ao respectivo ambiente construído imediato, como edifícios históricos, estradas específicas, características da paisagem e também a tradição arquitetônica — a percepção filtrada e amplificada de um arquiteto sobre a essência de um lugar.

Desde as reformas empreendidas pelo líder comunista chinês Deng Xiaoping, em 1979, o país foi transformado, e as cidades de hoje não têm muitas tradições como lugar. Construídos ao longo de vias modernas, temos edifícios modernos, como empreendimentos residenciais, escritórios, fábricas, e assim por diante. Não há um “espírito do lugar”, por assim dizer, ao qual você possa reagir.

Mas o que sempre foi muito importante para mim é entender o espírito de uma comunidade, o espírito da congregação individual. Aprendi que os cristãos chineses estão se fazendo grandes perguntas: Como esse novo edifício vai expressar quem somos? Como ele vai se relacionar com este lugar e atender às nossas necessidades?

As tradições arquitetônicas chinesa e ocidental muitas vezes dialogam entre si nos meus projetos, e eu procuro criar uma síntese artística entre elas. Isso não ocorre em escala universal, mas em termos mais específicos, como: Qual é o ambiente físico em que essa igreja vai crescer? Quais são as preocupações da comunidade local? Quais são os interesses que eles têm em elementos europeus e ocidentais do cristianismo, se é que têm?

Alguns anos atrás, autoridades removeram cruzes de prédios de igrejas na China. Como as igrejas que você projetou incorporam a cruz?

A China é um país vasto, praticamente um continente. É difícil dizer que o que acontece em uma área ocorrerá em outra parte do país. A cultura local, a política religiosa e a relação entre as igrejas cristãs e o Bureau Religioso [secretaria governamental para assuntos religiosos] podem variar muito de um lugar para outro.

Ouvi dizer que existem regiões onde a relação entre as autoridades e as congregações cristãs é mais difícil. Mas nunca precisei considerar ou comprometer minhas atividades artísticas e arquitetônicas.

As cruzes que projetei envolvem considerações estéticas e situacionais. Por exemplo, a cruz da igreja de Jinshan tem 70 metros de altura e parece uma simples cruz de proporções clássicas. A surpresa para os cristãos chineses está em sua cor.

Quase todas as igrejas protestantes de hoje têm uma cruz vermelha no topo da torre — geralmente bem robusta e feita de plástico para ser iluminada à noite. Para os ocidentais, essa imagem pode remeter à Cruz Vermelha ou a placas de hospitais. Então, optei por não usar essa cor nem a iluminação com neon; no meu projeto, propus que a cruz fosse branca para complementar a pureza do edifício da igreja abaixo dela.

Dirk U. Moench
Dirk U. Moench

Quais foram alguns dos princípios arquitetônicos orientais e ocidentais que influenciaram as igrejas que você projetou?

Uma das grandes ideias que tento transmitir é a noção bastante europeia de que a igreja é uma peça da infraestrutura pública. Ela faz parte da cidade, e está lá para servi-la tanto do ponto de vista visual quanto espacial e funcional. Embora o cristianismo seja uma religião minoritária na China, o edifício de uma igreja ainda pode ser admirado por um público mais amplo. Essa ideia foi muito bem recebida pelas congregações locais.

No Ocidente, pensamos em belos telhados curvos como um ícone da arquitetura chinesa. Mas o que é mais genuíno e central para a ideia de organização espacial na China é o muro.

Tradicionalmente, a cidade chinesa é composta por casas com pátios, que são totalmente cercadas por um muro. Há um portão principal, geralmente no centro da faceta sul do muro, que possui características decorativas e um pequeno telhado individual, cuja função é representar essa unidade, essa casa, essa família, para o mundo exterior. O muro não é [colocado por] uma questão de segurança; é uma tradição milenar.

Quando os missionários que vieram para a China começaram a construir igrejas lá, muitas vezes adquiriam terrenos no meio de uma cidade chinesa, onde antes ficava uma casa com pátio. Então, a ideia de um muro ou de um tapume ao redor de uma igreja “ocidental” não é completamente estranha, e esse princípio foi mantido.

Por isso, as primeiras igrejas contemporâneas que temos na China estão todas atrás de muros e também têm portões. A lógica espacial é bem chinesa, enquanto a igreja em si é mais inspirada no Ocidente.

Hoje quero desafiar isso, porque as comunidades cristãs chinesas com as quais conversei não se veem mais como uma minoria que precisa de proteção. Elas se veem como um elemento vital da sociedade, capaz de contribuir e ajudar a construir uma cidade melhor, não apenas por meio de obras de caridade, mas também fazendo parte da vida pública e urbana.

Como você traduziu para a realidade essa nova compreensão da comunidade cristã?

A igreja Hua Xiang, em Fuzhou, é um exemplo. As pessoas a chamam de “a igreja rosa” de Fuzhou. Ela está cercada por arranha-céus e shoppings, e fica ao lado de uma antiga igreja construída por missionários metodistas, na década de 1930.

Entrada principal da Igreja Hua Xiang.
Entrada principal da Igreja Hua Xiang.

Eu não fui o primeiro arquiteto que a comunidade consultou para este projeto. Já havia vários designs — uma igreja gótica com duas torres de pináculo e outra com um visual mais de basílica românica. A congregação não ficou muito satisfeita com essas ideias, porque pareciam “perdidas” e não tinham uma relação harmoniosa com a cidade. Ao mesmo tempo, eles se perguntavam sobre sua missão e se o novo edifício deveria atender aos membros mais antigos ou atrair os jovens. O que eu disse foi que a resposta não é uma coisa ou outra; é ambas as coisas. Para atrair os jovens, você precisa dar a eles um senso de profundidade histórica. Eles precisam conhecer a fundação sobre a qual estão construindo.

Tivemos que abandonar a ideia de um ideal de igreja inspirado na Europa, como uma igreja em formato de cruz com uma torre, e, em vez disso, buscar inspiração na situação heterogênea e caótica da cidade. Talvez essa nova igreja pudesse ajudar a criar relações positivas com o horizonte da cidade ou estar em continuidade com a temática do telhado inclinado, característico da arquitetura chinesa.

Em vez de muros altos e portões de entrada formais, como na arquitetura tradicional chinesa, instalamos barreiras retráteis nos pontos de acesso à igreja, que são quase invisíveis e permanecem abertas até tarde da noite. Há bastante área verde proporcionando sombra e assentos ao ar livre para fiéis e turistas.

Seus outros projetos de igreja também se inspiram no ambiente ao redor. Por que isso é importante para você, como cristão e como arquiteto?

Nas cidades chinesas, você vê lojas abrindo e fechando, fachadas sendo redecoradas para parecerem mais sofisticadas, mais chamativas e mais atraentes do que as dos vizinhos. Mas o design de uma igreja é mais atemporal e estável. É um mediador arquitetônico que pode ajudar a harmonizar desequilíbrios no ambiente construído ou trazer a beleza do lugar à tona.

Dessa forma, um edifício de igreja tem uma relação dialética com seu ambiente: ele se destaca e se integra.

Por exemplo, Julong é uma cidade recém-criada que fica nos arredores de Quanzhou, uma cidade portuária na província sulista de Fujian. As pessoas que moram lá vieram de toda parte do país. Transformar a igreja de Julong em uma arca ou um refúgio, inspirada na ideia de Pedro como a rocha sobre a qual Jesus construirá sua igreja (Mateus 16.18), envia uma mensagem de estabilidade em meio às tormentas de um mundo em [constante] mudança.

Sua localização ao pé da montanha de Julong também permite não só que as pessoas contemplem a beleza da natureza; é uma referência visual ao Sermão do Monte, no qual Jesus subiu em um monte para pregar e ensinar.

Você acha que a beleza arquitetônica das igrejas contribui para práticas espirituais como o culto ou a oração? Ou é uma distração?

Essa é a velha questão protestante: A beleza formal inspira e aproxima a pessoa de Deus ou a distrai? Essa questão precisa ser respondida pela congregação. Como arquiteto, você não pode criar um lugar de culto que se adeque às suas inclinações ou crenças pessoais. Você tem que ouvir o que a comunidade deseja.

O interior da igreja Hua Xiang é um espaço branco muito simples, com galerias superiores levemente onduladas, um teto plano e um número reduzido de luminárias. É uma concepção muito clássica, quase reformada, de como um espaço litúrgico deve ser.

Mas um grande órgão de tubos, popular nas igrejas norte-americanas na segunda metade do século 19, funciona como o principal elemento do palco. Esse foi um desejo da própria congregação, que queria um elemento que desse continuidade à sua herança metodista.

Esse órgão de tubos inspira o sermão ou inspira a oração? Eu não sei. Mas acredito que a música que ele cria restabelece laços com as formas cristãs de convivência. A igreja aprecia o fato de se sentir mais próxima de sua própria tradição por meio dele.

Há algo que você espera que as pessoas que visitam essas igrejas aprendam sobre Deus e sobre o cristianismo chinês?

Como arquiteto, não me imponho no que diz respeito ao que as pessoas devem pensar sobre Deus. Não estou aqui para proteger uma compreensão específica ou única de Deus. Eu planejo e projeto a igreja física, mas a verdadeira igreja são as pessoas dentro dela, os pastores e os irmãos e as irmãs que pregam, projetam e ensinam o cristianismo.

Se eles acham que minha arquitetura os ajuda a fazer tudo isso, então, fico feliz. Não acho que seja apropriado eu pensar algo que vá além disso.

Ideas

Um brinde à indústria de casamentos

Apesar de todos os seus defeitos, nossos rituais de casamento apresentam a família e a manutenção de promessas como algo belo, desejável e que vale o esforço.

Christianity Today September 16, 2024
Elisabeth Arnold / Unsplash / Edições pela CT

É verão, e para um professor de uma universidade cristã — apenas mais uma instituição evangélica no Sul dos Estados Unidos [região conhecida por ser o celeiro evangélico do país] — isso [claramente] significa que é temporada de casamentos. No meu campus, ainda são comuns as piadas sobre ficar “noivos até a primavera” [ideia de que os alunos, quando se formam, devem assumir esse compromisso até a chegada da primavera].

Não há exemplo melhor de contracultura. Poucas coisas estão menos em sintonia com o espírito da época. Os americanos estão se casando e tendo filhos mais tarde do que nunca. E, mesmo em contextos evangélicos, muitos pais, pastores e professores estão aconselhando os jovens a se casarem mais tarde: Concentre-se primeiro no diploma, em se firmar na carreira, em economizar algum dinheiro. Preocupe-se com um parceiro mais perto dos 30 do que dos 20 anos — e, claro, não engravide! Essas coisas se resolverão com o tempo.

Esse conselho é bem-intencionado, talvez até autobiográfico. Muitos cristãos das gerações mais velhas se lembram do velho estigma da solteirice aos 30 e poucos anos e o rejeitam. Eles próprios podem ter se casado jovens e depois se arrependido — ou podem se preocupar que os jovens, especialmente as jovens mulheres, acabem seguindo o roteiro do casamento e da maternidade precoces, e depois se lamentem por isso.

Há também uma certa sabedoria genuína aqui: não se case apenas porque parece ser o próximo passo em uma lista de tarefas. Além disso, não faça promessas que não pode cumprir. Leve o casamento a sério, mesmo que isso signifique esperar alguns anos.

O risco, no entanto, é que pode não haver um cônjuge à sua espera. Casar-se e ter filhos não são fatos que apenas estão acontecendo mais tarde; cada vez mais eles sequer chegam a acontecer. Do meu ponto de vista, o problema não é que muitos dos meus alunos queiram se casar muito jovens. É justamente o oposto. Eles já entenderam o recado de suas famílias, igrejas e da cultura secular em geral. Eles estão cientes das probabilidades e da dor de um divórcio. Também sabem que bebês exigem muita dedicação e custam caro. E que a cultura pop faz pouco caso da monogamia. Ninguém precisa lembrá-los dessas coisas.

Mas algo que poucos de nós podem cogitar fazer — e que eu certamente faço — é dizer a eles o quanto o casamento é bom. Como é maravilhoso ter filhos. Que começar a formar uma família aos 20 e poucos anos é algo perfeitamente razoável. E, como o dinheiro sempre será uma preocupação, então, por que não compartilhar esse fardo? E que orar e dar um passo de confiança não é loucura, embora certamente seja arriscado.

Na verdade, há uma parte da cultura mais ampla que não trabalha contra essa mensagem. E, no entanto, esse fenômeno também é, na minha experiência, alvo frequente de críticas e preocupações por parte dos cristãos. Estou falando da indústria do casamento.

Duvido que eu precise lhe esclarecer sobre esse assunto. Sobre os bilhões gastos anualmente. Os orçamentos exorbitantes. A influência do Pinterest e do Instagram. O casamento de conto de fadas que segue a trama da comédia romântica, desde o encontro fofo até o “felizes para sempre”.

Há muito o que criticar aqui, não nego. Já se foram os dias em que as pessoas optavam por uma cerimônia simples com a sua congregação, acompanhada de bolo, refrigerante e decorações arranjadas pelas mesmas senhoras da igreja que trocaram suas fraldas tantos anos atrás. Hoje, a expectativa é que a cerimônia seja pitoresca, fotografada e gravada por profissionais — que seja a festa do ano. (Afinal, os convidados têm expectativas, sabe?) Os pais se endividam. Um momento que já é estressante por si só desmorona sob o próprio peso. E o objetivo de tudo isso corre o risco de ser esquecido: isto é, o fato de duas pessoas estarem se unindo em santo matrimônio.

No entanto, mesmo que não possamos aplaudir a indústria do casamento, ainda posso lhe fazer um modesto brinde. Até onde posso perceber, ela é uma das poucas instituições culturais restantes que exerce algum tipo de pressão positiva sobre os jovens para que se casem.

Apesar de todos os seus defeitos, nosso elaborado ritual de casamentos apresenta o casamento, a família, as promessas e o próprio amor como algo belo. Desejável, até. A indústria do casamento oferece a permissão para as pessoas quererem se casar e começarem essa jornada em grande estilo.

Essa indústria também mantém uma conexão com a fé que a maior parte de nossa vida em sociedade já perdeu. Mesmo pessoas não religiosas querem ser casadas por um ministro religioso; as igrejas continuam sendo locais populares para cerimônias de casamento; Deus muitas vezes é mencionado mais do que nominalmente; as Escrituras ou a santa Ceia, ou ambas, são elementos da cerimônia. A tradição reina soberana. Como nos funerais, os casamentos são uma das poucas ocasiões restantes em que seguimos roteiros sapienciais, escritos muito antes de nascermos. E nos pegamos, às vezes para nossa própria surpresa, dispostos a seguir pelos caminhos que eles nos levarem.

Um desses caminhos por onde eles continuam a nos conduzir é o ritual em que fazemos uma promessa. Há três décadas, o teólogo Robert Jenson comentou que, em uma época em que nossa cultura perdeu a fé na manutenção das promessas feitas, a igreja poderia ser um lugar em que promessas são feitas e cumpridas. Jenson estava certo. A cada ano que passa, perdemos os motivos para confiar nas promessas que fazemos em público, incluindo as promessas do casamento.

No entanto, também persiste uma fome insaciável tanto de testemunhar essas promessas quanto de se vincular por meio delas. Continuo a me maravilhar com a sinceridade obstinada das cerimônias de casamento supostamente seculares, em que noivos e noivas simplesmente se recusam a deixar de fazer votos um ao outro. Eles fazem isso na frente de pessoas que não deixarão com que se esqueçam desses votos, e os noivos insistem em invocar o nome do Senhor.

Não sou tão tolo a ponto de pensar que essa insistência cerimonial reflita uma fé duradoura ou mitigue o escândalo dos divórcios, sejam eles de cristãos ou não. Mas também não sou tão cínico a ponto de ver nisso apenas fórmulas vazias e tradições rotineiras. E acho que devemos celebrar o fato de que, contra todas as probabilidades, as pessoas continuam a ver o casamento como uma festa sagrada que vale o dinheiro que se gasta, o tempo que lhe é dedicado e a dor de cabeça.

Neste verão, oficiei meu primeiro casamento, e tenho outro no próximo mês. Minha esposa me deu uma regra prática: se pessoas que amo ou alunos que ensinei me honrarem com esse convite, eu não posso recusá-lo. E ela está certa. Quero ver mais casamentos, não menos. Sim, eu sou o maluco do campus que fica dizendo a esses jovens loucos para irem em frente.

Se isso significa dar uma trégua para revistas e tradições de casamento, e até mesmo para o Instagram, que assim seja! O mundo pode não ter a melhor das intenções [para o casamento] , mas Deus tem. E, talvez, até a tradição de ficar “noivos até a primavera” não seja uma piada, afinal.

Brad East é professor associado de teologia na Abilene Christian University. Ele é autor de quatro livros, entre eles The Church: A Guide to the People of God [A Igreja: Um guia para o povo de Deus] e Letters to a Future Saint: Foundations of Faith for the Spiritually Hungry [Cartas para um futuro santo: Fundamentos da fé para quem tem fome espiritual].

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Church Life

Deus nos chama a dar com generosidade. Mas existe alguma prioridade? 

Um missionário reflete sobre quando devemos ajudar e quando devemos dizer “não” a um pedido de ajuda.

Christianity Today September 16, 2024
Ilustração de Mallory Rentsch Tlapek / Fonte da imagem: Getty

Há alguns anos, uma viúva procurou uma igreja em Uganda para pedir ajuda. Após discutir a situação dela, o conselho da igreja recomendou que lhe dessem alimentos. O pastor, no entanto, incentivou os líderes a primeiro descobrirem mais sobre a situação familiar dela.

Depois de conversar com os parentes, o conselho descobriu que os filhos da viúva estavam bem financeiramente, mas se recusavam a cuidar dela por causa de uma briga familiar. Então, o pastor organizou um encontro para tentar uma reconciliação. Os filhos perdoaram a mãe e decidiram cuidar dela novamente.

Se a igreja tivesse se apressado em ajudar, sem antes considerar a responsabilidade da família, a viúva poderia ter continuado a recorrer à igreja em busca de apoio constante, e a família talvez nunca tivesse feito as pazes.

Como missionário em Uganda, histórias como essa influenciaram profundamente minha abordagem em relação a ajudar os necessitados ao meu redor. Muitas vezes, eu me debati com questões como: “Com pedidos de ajuda financeira surgindo diariamente, a quem devo ajudar? Quando é aceitável dizer não?”

Uma prioridade óbvia é doar para onde for maior a necessidade. Todos concordamos com isso. Mas nosso mundo está cada vez mais interconectado. Posso simplesmente clicar em um botão para ajudar pessoas de quase qualquer lugar do mundo. Se a única orientação fosse a necessidade, eu me veria paralisado pela indecisão.

Mas as Escrituras me conduzem para além de simplesmente olhar para as maiores necessidades e me mostram que Deus me deu responsabilidade maior sobre pessoas específicas. Proponho olharmos para a ajuda financeira através de um conceito que chamo de “círculos de prioridade.” Ou seja, quando se trata de generosidade financeira, devo priorizar pessoas e comunidades que estão mais próximas de mim.

Acredito que o Novo Testamento revela que minha primeira preocupação deve ser cuidar da minha família ou daqueles com quem tenho uma relação de parentesco próxima. Como Paulo escreve em 1Timóteo 5.8: “Se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente.”

Circles of Priority

Em seguida, em Gálatas 6.10, aprendemos que devemos priorizar também aqueles de quem estamos espiritualmente próximos. Paulo escreve: “Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé”. Isso deixa claro que, embora devamos amar todas as pessoas, temos uma responsabilidade especial de ajudar nossos irmãos e irmãs em Cristo.

Por fim, consideremos a parábola do bom samaritano, em Lucas 10.25-37. Nesta passagem, três pessoas veem um homem espancado à beira da estrada. O surpreendente é que o sacerdote e o levita não param para ajudar, mas o samaritano sim. Amar o próximo não significa amar apenas aqueles que são parecidos conosco. O samaritano fez exatamente o que todas as pessoas deveriam fazer: ajudar a pessoa que vê sofrendo fisicamente bem diante de seus olhos. Portanto, há também uma prioridade em cuidar das pessoas que estão geograficamente próximas a nós, aquelas com quem nos deparamos em nossa vida cotidiana.

Todos os cristãos ao redor do mundo devem priorizar ajudar aqueles que são próximos deles em termos relacionais, espirituais ou geográficos, além de dar clara prioridade a ajudar aquelas pessoas que tiverem as maiores necessidades.

Nossa responsabilidade diminui à medida que os círculos se afastam [de nós]. Mas, à medida que tivermos tempo e recursos, podemos, e de fato devemos tentar ajudar pessoas dos círculos mais distantes também. Por exemplo, no Novo Testamento, Paulo pede às igrejas que levantem uma oferta voluntária para cristãos necessitados que estavam distantes, em Jerusalém (1Coríntios 16.1-4).

Os círculos de prioridade me levaram a dar prioridade para ajudar os nossos amigos, vizinhos e à nossa igreja local, embora ocasionalmente eu ainda ajude pessoas com necessidades urgentes em lugares distantes de Uganda, por meio de doações a organizações internacionais. Essa estratégia me aliviou de um grande fardo. Não sou atormentado pela culpa por não ajudar os outros 47 milhões de ugandenses. Eu não sou Deus. Não tenho recursos nem tempo ilimitados. Ao contrário, posso ajudar com alegria e generosidade, sabendo que Deus usa cada um de nós de pequenas maneiras para que, juntos, tenhamos um grande impacto.

Por exemplo, quando uma pessoa que nunca conheci liga e diz: “Pastor, por favor, preciso que pague as mensalidades escolares dos meus filhos”, eu geralmente digo não, por causa de minhas limitações. Seguindo os princípios dos círculos de prioridade, quero priorizar a doação no contexto dos relacionamentos próximos, o que me permite entender as reais necessidades da pessoa, de modo que eu possa caminhar com ela por um longo período, ajudando periodicamente e incentivando-a, à medida que ela fizer determinadas mudanças. Isso não me impede de doar para organizações que trabalham com os pobres, pois muitas dessas organizações também priorizam relacionamentos de longo prazo.

Os círculos também orientam o ministério da igreja. Vejamos o exemplo da Covenant Reformed Church, em Soroti, Uganda. Esta igreja recebe cerca de 3 dólares por semana em ofertas e cerca de 1 dólar por semana para a cesta de caridade, a qual usam para ajudar pessoas pobres em sua igreja ou pessoas com deficiência. Esta igreja não deve se sentir culpada por não ajudar órfãos em outros países. Deus a está usando para cuidar das pessoas que estão próximas a eles.

Uma igreja americana com muitos recursos provavelmente pode ajudar pessoas em sua própria congregação, enquanto também apoia financeiramente organizações que ajudam os pobres em outros países. Ao mesmo tempo, esse princípio pode corrigir uma igreja que se concentrou apenas em doar para pessoas em outros países, enquanto ignora em grande parte os pobres que vivem na mesma cidade ou membros que estão passando por dificuldades financeiras.

Mas seguir esses círculos não elimina todas as decisões difíceis. Às vezes, será necessário eu me abster de atender necessidades menores em minha própria família ou comunidade para ajudar pessoas distantes que enfrentam situações de vida ou morte. É preciso sabedoria para discernir quando uma grande necessidade supera a proximidade relacional, espiritual ou geográfica.

Ao seguirmos os círculos de prioridade, devemos tomar cuidado para não abusar deles. É fácil para cristãos abastados justificarem, para si mesmos, que estão fazendo o suficiente porque estão focando em cuidar das necessidades dos seus círculos internos — suas famílias, sua igreja local e sua comunidade. Mas lembrem-se do que Jesus disse em Lucas 12.48: “A quem muito foi dado, muito será exigido”. No caso daqueles de nós que vêm de nações exorbitantemente ricas, somos mais do que capazes de doar generosamente para ajudar pessoas em extrema pobreza ao redor do mundo e, ao mesmo tempo, também cuidarmos das pessoas em nossos círculos internos mais próximos.

É possível também que cristãos abastados abusem desse conceito dos círculos de prioridade controlando quem eles admitem em seus círculos mais próximos. Por exemplo, podemos nos mudar para bairros de luxo, onde não teremos vizinhos materialmente pobres, ou escolher rotas para ir para o trabalho que evitem locais onde pessoas pedem esmolas. Também podemos escolher frequentar uma igreja local repleta de cristãos ricos, que nos fazem sentir confortáveis com a nossa riqueza. Muitos de nós, que somos cristãos mais ricos, devemos considerar como podemos trazer pessoas em situação de pobreza para nossos círculos mais próximos, ou como podemos escolher de forma mais intencional a comunidade em que vivemos e a igreja à qual pertencemos.

Os círculos de prioridade não apenas nos guiam na hora de discernir sobre a quem ajudar, mas também sobre como ajudar. Devo oferecer assistência de uma maneira que não destrua a responsabilidade, a mordomia ou administração [financeira] ou a generosidade dos outros. Devo intervir e oferecer ajuda quando a pessoa necessitada não puder ser devidamente assistida por seus círculos mais próximos. Foi exatamente isso que o pastor ugandense fez, quando verificou se a família da viúva estava disposta a cuidar dela.

De forma semelhante, esse princípio também se aplica às atividades de igrejas e organizações que buscam aliviar a pobreza. Elas precisam considerar os círculos da pessoa ou da comunidade que desejam ajudar.

No leste de Uganda, as pessoas da região de Karamoja costumavam atacar violentamente e roubar gado da tribo Iteso. Felizmente, a paz foi finalmente alcançada, após muitos anos de iniciativas do governo e da igreja. Logo depois, houve uma fome em Karamoja. Algumas igrejas da tribo Iteso se uniram para levar um caminhão de alimentos para Karamoja, como demonstração de perdão e amor.

No entanto, quando chegaram lá, ficaram chocados ao descobrir que os Estados Unidos já havia enviado muitas toneladas de alimentos de emergência. O esforço da igreja local ugandense tornou-se redundante e desnecessário, o que deixou esses cristãos profundamente decepcionados.

Embora os americanos possam genuinamente ter tido a melhor das intenções, eles não consideraram o que as pessoas mais próximas da área poderiam ter feito primeiro. E, sem querer, roubaram a bênção da generosidade da igreja ugandense, e minaram essa oportunidade de aprofundar a reconciliação entre as duas tribos.

As organizações devem ter o cuidado de permitir que os círculos mais próximos da pessoa ou da comunidade que necessita de ajuda sejam os primeiros a oferecer assistência. Na maioria das vezes, as pessoas mais próximas da situação são as que mais sabem sobre quais intervenções serão apropriadas. Mas um benefício adicional de incentivar a responsabilidade dos círculos mais próximos é a melhoria da capacidade e da administração das instituições que estão nesses círculos — de famílias, igrejas, escolas, organizações locais e estruturas governamentais. Isso resultará em um impacto duradouro na comunidade.

Pela minha observação como missionário em atuação na África, ignorar esse princípio é um dos erros mais comuns cometidos por igrejas e organizações internacionais. O resultado é a dependência.

Por exemplo, considere como algumas organizações podem se apressar em criar um orfanato em uma comunidade, mas sem antes considerar se os parentes dos órfãos poderiam adotar as crianças e cuidar delas com uma ajuda financeira extra. Ou pense em programas de apadrinhamento infantil, nos quais os custos escolares das crianças são totalmente cobertos, além de receberem doações como roupas ou creme dental. O resultado é que não é incomum, em Uganda, ouvir pais se dirigirem à organização que ajuda e patrocina seus filhos e dizerem: “Seu filho está doente, você precisa cuidar do seu filho” [como se a criança pertencesse à organização e não à família].

Em vez disso, a ajuda deveria ser dada de uma maneira que fortalecesse a responsabilidade dos pais de enviar seus filhos à escola. Seria melhor ajudar os pais a melhorar seus empregos e rendimentos, para que pudessem eles mesmos pagar as mensalidades escolares — ou descobrir primeiro o pouco que os pais podem pagar, de que maneira as igrejas locais também estão dispostas a ajudar e, só então, complementar seus esforços. Se, como resultado desse processo, a organização acabar tendo que dar menos dinheiro a cada família, então, ela poderá usar os recursos que sobraram para apoiar um número ainda maior de famílias e de outras comunidades. Não se trata de dar ou de ajudar menos. Trata-se de praticar a generosidade com sabedoria.

Antes de ajudar uma pessoa ou uma comunidade, sempre comece ouvindo. O que o governo local está fazendo para atender a essa necessidade? Há outras igrejas procurando ajudar as mesmas pessoas? Informe-se sobre os esforços das instituições locais, fazendo parcerias com elas, em vez de substituí-las no papel que Deus lhes deu. Há alegria e bênção no ato de dar; não devemos guardar toda a bênção só para nós!

Para finalizar, reflita sobre esta história do Níger. Em 2010, quase metade da população desse país da África Ocidental enfrentava um problema de insegurança alimentar. Uma organização cristã internacional doou grãos e trabalhou com um grupo cristão local para lhe vender, a um preço com desconto, esses grãos que seriam doados a pessoas necessitadas de várias comunidades.

No passado, a organização internacional havia fornecido grãos para indivíduos com deficiência ou doenças crônicas. Mas, desta vez, a equipe internacional desafiou o grupo local a considerar a possibilidade de arrecadar fundos localmente, a partir de suas próprias igrejas, para comprar os grãos que, então, seriam distribuídos gratuitamente.

A princípio, os membros do grupo estavam céticos, pois não conseguiam imaginar que houvesse algo que as igrejas pobres pudessem fazer por conta própria para ajudar as pessoas. Mas as igrejas doaram com generosidade e conseguiram comprar grãos para 98 pessoas dessas comunidades que tinham mais necessidade. No final, o grupo local agradeceu à organização por encorajar suas igrejas locais a participarem da doação.

“Foi um tremendo privilégio ajudar, saber que não estávamos apenas distribuindo a doação de outra pessoa, mas sim uma doação que veio dos nossos próprios bolsos e dos nossos próprios corações,” disse um membro da comunidade. “Todos na aldeia sabiam aquela ajuda veio de nós.”

Anthony Sytsma trabalha para a Resonate Global Mission em Uganda, onde orienta e ensina pastores e atua como facilitador no programa Helping Without Hurting in Africa [Ajudando sem ferir na África].

News

Morre Daniel Bourdanné, líder da IFES que trabalhou pela unidade na diversidade

O chadiano era líder do ministério estudantil e passou seus últimos anos fomentando publicações na África.

Christianity Today September 13, 2024
International Fellowship of Evangelical Students / Edições de Rick Szuecs

Morreu em 6 de setembro, aos 64 anos, em decorrência de um câncer, Daniel Bourdanné, cientista do Chade, país localizado na porção central da África. Ele inspirou jovens evangélicos ao redor do mundo inteiro como secretário-geral da IFES e foi um histórico defensor da publicação de livros cristãos na África.

Após anos de ministério com estudantes, Bourdanné se tornou secretário-geral da IFES (International Fellowship of Evangelical Students) em 2007, tendo servido nessa função até 2019. Um leitor ávido (e às vezes escritor), de 2018 até sua morte Bourdanné trabalhou com a Africa Speaks para fomentar a publicação de livros cristãos em todo o continente.

Bourdanné passou grande parte da vida em nações francófonas, entre elas Togo, Camarões e Costa do Marfim, antes de se mudar para Oxford, Inglaterra, quando se tornou secretário-geral da IFES. Na época de sua morte, ele estava morando em Swindon, Inglaterra.

“Deus me enviou ao mundo a partir deste continente, e para este mesmo continente ele me traz de volta, com o mundo, para que eu possa completar meu papel como missionário da igreja africana”, disse Bourdanné em seu discurso de despedida na África do Sul, em 2019, na Assembleia Mundial da IFES.

 “Daniel tinha orgulho de ser africano”, disse Tiémoko Coulibaly, secretário-geral da filial nacional da IFES no Mali. “Embora vivesse no Ocidente, seu coração permaneceu na África, o continente em que nasceu e do qual ele nunca desistiu.”

Filho de pastor, Bourdanné nasceu em 18 de outubro de 1959, em Pala, Mayo-Kebbi Ouest, no Chade. Aos 10 anos, ele perdeu o pai, cuja morte forçou Bourdanné a começar a trabalhar no campo, cortando lenha e cultivando hortaliças para sua mãe vender. Essas responsabilidades ficaram ainda mais pesadas por causa de uma guerra civil, que durou de 1965 a 1979 e tirou a vida de milhares.

Poucos meses antes do fim da guerra, Bourdanné ganhou uma bolsa para estudar ecologia animal na Université du Tchad. Ele, então, conquistou um diploma de bacharel em ciências naturais na Université de Lomé, Togo (antiga Université du Bénin).

Em 1983, Bourdanné mudou-se para Abidjan, na Costa do Marfim, para fazer um doutorado em ecologia animal. Em 1990, ele defendeu sua tese sobre milípedes, tornando-se posteriormente membro da International Society of Myriapodologists.

Enquanto estudava, Bourdanné começou a trabalhar como professor de biologia no ensino médio. No entanto, sua paixão por compartilhar o evangelho com estudantes havia sido despertada muito antes. “Aos 14 anos, em um estudo bíblico sobre Apocalipse 1, eu senti pela primeira vez a visão e a paixão de ver estudantes sendo salvos para o Senhor”, ele disse uma vez.

“Direta ou indiretamente, as universidades influenciam e guiam profundamente o futuro das sociedades humanas”, ele escreveu em um artigo sobre evangelismo estudantil, publicado no Dictionnaire de théologie pratique, em 2011. “Os estudantes estão frequentemente na vanguarda da mudança social ao redor do mundo. De fato, quando eles se movem juntos, motivados por sua energia, vitalidade, determinação, paixão, imaginação e criatividade, eles têm o poder de mover a sociedade.”

Em 1990, Bourdanné começou a trabalhar com a IFES como secretário itinerante; foi nomeado secretário regional da IFES Francophone Africa (GBUAF) em 1996.

Quando ele se tornou secretário-geral em 2007, sucedendo Lindsay Brown, que ocupava o cargo desde 1991, o movimento IFES tinha 60 anos e estava estabelecido em mais de 150 países. Ainda assim, durante seus 12 anos de mandato, o movimento cresceu significativamente, em especial na diversidade de sua liderança.

Sob Bourdanné, a IFES deu mais espaço a teólogos do Sul Global. Em 2007, ele nomeou Christy Jutare, das Filipinas, como a primeira secretária regional feminina da IFES a liderar a região da Eurásia. Em 2011, ele nomeou os dois primeiros representantes estudantis para o conselho diretivo da IFES. Em 2016, ele trouxe de volta um periódico global de reflexão teológica e missiológica (Word and World).

Quando perguntado sobre os destaques de sua gestão, Bourdanné respondeu que, entre eles, estavam ter testemunhado Deus “seguir o caminho incomum”, convidando pessoas inesperadas para se juntarem à caminhada com ele, bem como a alegria de ver Deus abrindo portas em contextos difíceis.

Ele também destacou um desafio fundamental. “Celebramos nossa unidade”, escreveu ele em seu e-mail de despedida para a IFES, “mas somos humanos; por isso, não é surpreendente que às vezes alguém tente promover sua agenda ou suas preferências pessoais. […] Por ter crescido em um contexto de guerra e conflito tribal, eu talvez fosse mais sensível a como isso poderia se tornar uma ameaça à unidade da IFES.”

Uma das maiores paixões de Bourdanné era possibilitar que a igreja global ouvisse mais os cristãos africanos. E fazia isso encorajando-os a não seguirem uma única escola de pensamento, mas a se tornarem vozes proeminentes no campo teológico.

“Alguns de nós podem ficar do lado de Billy Graham”, ele declarou no mesmo discurso de 2019. “Outros [alinham-se] com John Stott, ou com John Piper, e essas diferenças nos enriquecem mais do que nos dividem.” Mas ele acrescentou: “Entre esses três nomes, não há nenhum africano. Nem há ninguém da América Latina ou da Ásia.”

O amor de Bourdanné pelos estudantes só era rivalizado por seu amor pelos livros. O cientista possuía centenas, senão milhares deles, cuidadosamente guardados em três bibliotecas diferentes — uma, em sua casa, na Inglaterra; outra, em seu escritório, em Oxford; e a terceira, em uma residência na Costa do Marfim.

A certa altura, a paixão de Bourdanné pela palavra escrita o levou a começar uma revista. Ele e quatro amigos juntaram seus recursos para financiar a primeira edição e investir na publicação. A revista funcionou sem dívidas até o grupo se desfazer, e, exceto por uma doação única de 80 dólares de alguns missionários, eles nunca dependeram de ajuda externa.

Em 1995, Bourdanné se tornou o diretor da Presses bibliques africaines (Imprensa Bíblica Africana). Em 2018, ele se juntou ao conselho da Africa Speaks, onde continuou a servir até sua morte, trabalhando para promover o crescimento da indústria editorial cristã na África, encorajando escritores cristãos africanos a escreverem e a publicarem e divulgando seus livros.

Bourdanné acreditava que, para os cristãos africanos, os livros poderiam ser catalisadores para uma transformação. “A África não experimentará sua revolução editorial até que vençamos a batalha pelo amor aos livros”, ele escreveu. Por sua vez, essa paixão “contaminaria” a África positivamente, de dentro para fora, dizia ele, em uma metáfora inspirada pelas palavras de Jesus em Marcos 7 de que o que contamina (ou torna impura) uma pessoa é o que sai de dentro para fora.

Bourdanné tinha firme convicção de que a África precisava se preparar para seu próprio progresso, o que exigia, em sua opinião, uma mudança de mentalidade acompanhada de colaborações produtivas com o Ocidente.

“Qual é a utilidade do fervor dominical da África, se os demônios da corrupção, do conflito e do genocídio ressurgem na segunda-feira?”, pregou Bourdanné em Genebra, em 2006, para uma audiência de líderes evangélicos, principalmente europeus. “Qual é o sentido de nosso culto e de nossas orações na Europa, se nossas vidas ainda são movidas pela busca do maior lucro e se nossas igrejas continuam divididas?”

Ele convocou os cristãos europeus a lutarem por mudanças: “Nossas ações falam mais alto do que nossas palavras. As vítimas da injustiça devem ver o compromisso dos cristãos ocidentais nessa área.”

Embora estivesse mais envolvido em promover a literatura cristã na África do que em escrevê-la, foi autor de Ces évangéliques d’Afrique, qui sont-ils? (Quem são os evangélicos africanos?, 1998) e L’Évangile de la prospérité, une menace pour l’Église en Afrique (O evangelho da prosperidade, uma ameaça à igreja africana, 1999), entre outros.

Em 2018, a Calvin University concedeu a ele o Prêmio Abraham Kuyper de Excelência em Teologia Reformada e Vida Pública, destacando seu trabalho na área de publicação cristã francófona e seu ministério com a IFES.

“Há vinte e cinco anos, Daniel viu a necessidade de que estudantes cristãos fossem orientados, a partir de uma cosmovisão cristã, sobre vários tópicos que eram uma grande preocupação para eles; então, Daniel entrou em ação”, disse Jul Medenblik, presidente do Calvin Theological Seminary.

Timothée Joset, professor de missiologia na Faculté libre de théologie évangélique (FLTE), na França, e membro da IFES Global Resource Ministries, disse que seu amigo Bourdanné o apresentou a questões complexas enfrentadas pela África francófona e também pelas relações globais Norte-Sul.

 “Algo que também me impressionava era a sua resiliência. Ele nunca ficou ressentido, mesmo tendo sofrido muito racismo”, disse Joset, destacando um exemplo tão flagrante que o teólogo N.T. Wright até o mencionou em um sermão de Páscoa.

Depois que a IFES o nomeou para a função de secretário-geral, “o Alto Comissariado Britânico em Accra demorou para se manifestar sobre o pedido de residência de Daniel, e, em seguida, recusou-o com uma explicação sucinta”, disse Wright. “Daniel, então, pediu permissão para viajar para o Reino Unido com seu visto atual de visitante, e foi informado de que poderia. Mas, quando ele chegou, ficou detido por 22 horas, seus celulares foram apreendidos e ele foi despachado de volta para a África.”

Apesar desses incidentes, Bourdanné inspirava seus colegas com sua cortesia e humildade. Um de seus alunos lembra com carinho que Bourdanné lhe enviava livros pessoalmente, depois de o sistema postal inglês continuar confundindo seu endereço com um endereço de outro país. Outro colega internacional lembrou que ele se prontificava a sentar no chão, durante as conferências, para que outros tivessem uma cadeira para sentar.

Essa modéstia nunca impediu Bourdanné de desafiar seus colegas cristãos sobre questões com as quais ele se importava profundamente, como o evangelismo. Ele serviu ao Movimento de Lausanne como Diretor Adjunto Internacional para a África de Língua Francesa (21 países) até a conferência de Lausanne de 2010, na Cidade do Cabo, África do Sul. Quando deixou essa posição, foi nomeado para o conselho do Movimento de Lausanne.

“Podemos ter credibilidade, se proclamarmos um evangelho que ignora a exploração dos fracos pelos fortes? Podemos continuar a nos importar apenas com a salvação das almas africanas, enquanto fechamos os olhos para a sua situação social?”, ele perguntou em 2016. “De que forma o evangelho é boa-nova para comunidades que lutam para satisfazer suas necessidades básicas? Como podemos permanecer em silêncio diante das crescentes desigualdades sociais na África ou das questões ambientais? Proclamação e ação devem caminhar de mãos dadas.”

Bourdanné também é lembrado com carinho pelo pastor Ziel Machado, amigo e companheiro de ministério por muitos anos na IFES: “Meu coração está em um misto de tristeza, profunda gratidão e paz. […] Daniel partiu, se antecipou a mim, foi ao encontro do nosso amigo eterno. Deixou comigo este sentido de profunda reverência do lugar sagrado que é a amizade. Lugar no qual discernimos um espaço seguro para as decisões mais importantes que venhamos a tomar. Por um tempo, agora, nosso lugar de encontro será a minha memória, até o momento em que nosso reencontro será marcado pela eternidade”.

Daniel Bourdanné deixa a esposa Halymah, natural do Níger, e quatro filhos.

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Books

Nicarágua passa a tributar dízimos depois de fechar 1,5 mil igrejas

Centenas de ministérios evangélicos perdem seu status legal, enquanto o regime de Ortega confisca bens e impõe tributação de até 30% sobre as ofertas.

Apoiadores do presidente nicaraguense Daniel Ortega e da vice-presidente Rosario Murillo carregam cartazes com fotos de ambos durante uma marcha.

Christianity Today September 13, 2024
Oswaldo Rivas / Getty

6 de setembro, 2024
Pastores e líderes debatem sobre os impactos das ações do governo para fechar igrejas

Apenas algumas semanas após fechar 1.500 organizações e igrejas, o governo da Nicarágua suspendeu o status legal de mais 169 entidades, sendo 86 delas cristãs. Entre as entidades afetadas estão a Aliança Evangélica Nicaraguense, denominações como a Igreja Episcopal e a Igreja da Morávia, e congregações locais, incluindo a Primeira Igreja Batista de Manágua.

Em seu anúncio de 29 de agosto, o governo chamou as suspensões de necessárias devido à falta de apresentação de relatórios financeiros e às falhas das organizações em relatar informações sobre sua liderança. O governo também diz que as medidas são um esforço para combater a lavagem de dinheiro por parte de organizações sem fins lucrativos.

A suspensão do status legal não resultará no fechamento imediato das igrejas. Em uma declaração emitida em 31 de agosto, dois dias após as suspensões, o conselho provincial da Igreja da Morávia admitiu falhas em sua documentação financeira, culpando por isso uma mudança feita em 2019 nos regulamentos internos da igreja. No entanto, o conselho garantiu aos congregantes que as atividades religiosas “serão mantidas normalmente, sem quaisquer restrições por ninguém”. A denominação também disse que seus líderes se encontraram com autoridades regionais em 31 de agosto, para discutir o assunto. “Eles nos disseram que não havia intenção de suspender as atividades das congregações, nem os ativos da igreja seriam tocados”, afirmou.

A maioria das organizações afetadas são pequenas e não têm apoio formal de contadores profissionais, disse um pastor nicaraguense que pediu para permanecer anônimo.

Alguns cristãos continuam a apoiar a posição do governo. Sergio Tinoco, presidente da Federação Nicaraguense de Igrejas Evangélicas, que afirma representar mais de 10.000 congregações no país, disse que “a alegação de que as igrejas estão sendo fechadas é uma mentira”.

Ele acredita que o governo está apenas implementando “uma mudança no arcabouço legal para melhor auxiliar as igrejas”. Em sua opinião, o governo está cancelando esses registros porque as igrejas afetadas não mais serão registradas no Ministério do Interior.

Em vez disso, segundo Tinoco, o governo quer que as igrejas que administram escolas trabalhem com o Ministério da Educação, que as que administram um hospital denominacional se registrem no Ministério da Saúde e que as que administram orfanatos se registrem no Ministério da Família.

“Não haverá fechamentos [de igrejas]. [O propósito] é obter novos registros para trabalhar sob um novo modelo”, ele afirmou.

No entanto, o decreto provocou reações preocupadas de organizações que promovem a liberdade religiosa. A Christian Solidarity Worldwide (CSW; Solidariedade Cristã no Mundo), sediada no Reino Unido, condenou o cancelamento do status legal das organizações sem fins lucrativos e apelou à comunidade internacional que fizesse o mesmo.

“O cancelamento arbitrário de associações religiosas históricas e diversas está, em muitos casos, deixando seus membros sem ter onde se reunir para fins religiosos”, disse Anna Lee Stangl da CSW em uma declaração. A CSW também está “bastante preocupada” com o efeito que os fechamentos terão em escolas e hospitais administrados por essas organizações.

Em outro local, um acordo negociado entre os governos dos EUA e da Nicarágua levou à libertação de 135 presos políticos, entre os quais estão 11 pastores do ministério Mountain Gateway, sediado no Texas, que foram presos em dezembro do ano passado sob alegações de lavagem de dinheiro. Em março, o governo os condenou a 12 a 15 anos de prisão e multou cada um em 80 milhões de dólares.

Como condição para sua libertação, o governo enviou os presos libertados para a Guatemala. “Os Estados Unidos e nossos parceiros humanitários fornecerão temporariamente aos indivíduos comida, hospedagem e assistência médica, incluindo apoio psicológico, para ajudá-los a se recuperarem e a começarem o difícil trabalho de reconstruir suas vidas”, disseram os governos dos Estados Unidos e da Guatemala em uma declaração conjunta.

23 de agosto, 2024
nicarágua passa a tributar dízimos

Uma série de políticas recentemente implementadas pelo governo nicaraguense impactará significativamente as atividades de igrejas e ministérios que operam no país.

Vistas por especialistas em liberdade religiosa como uma tentativa de aumentar o controle estatal sobre as instituições religiosas, as medidas impõem tributos sobre dízimos e ofertas, ao mesmo tempo em que exigem que as organizações façam parcerias formais com o governo nicaraguense, para a implementação de projetos no país. O jornal local La Prensa estima que a tributação sobre dízimos possam chegar a 30%.

O presidente Daniel Ortega apresentou o projeto de lei, que foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Nacional, no dia 20 de agosto. O partido de Ortega, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, que começou nos anos 1970 como um grupo guerrilheiro, controla o legislativo.

As mudanças na lei favorecerão “o desenvolvimento de projetos de interesse para famílias e comunidades, dentro de um cenário de solidariedade e de adesão às leis nacionais”, disse a vice-presidente Rosario Murillo, esposa de Ortega.

O escopo da nova regulamentação legal tem sido vago. Tanto Murillo quanto uma declaração da Assembleia Nacional sobre o projeto de lei descreveram a legislação como algo “que visa fortalecer a transparência, a segurança jurídica, o respeito e a harmonia”. Uma consequência provável é que igrejas que recebem dinheiro do exterior — inclusive fundos enviados por suas próprias denominações — serão obrigadas a entrar em uma “alianza de asociación” (“aliança de parceria”) para acessar seus recursos.

No mesmo dia em que a legislação foi aprovada, o governo cancelou o status legal de 1,5 mil organizações, citando a falta de apresentação de relatórios financeiros adequados. Pela primeira vez, desde que o governo Ortega começou a reprimir as organizações sem fins lucrativos, quase metade das instituições afetadas inclui entidades com conexões evangélicas.

Isso abrange um grande número de ministérios e igrejas pentecostais, bem como aqueles que são administrados por batistas, metodistas, luteranos e presbiterianos. Embora poucas das instituições afetadas trabalhassem em âmbito nacional, muitas eram igrejas de bairro com menos de 100 membros.

A maioria dos outros grupos afetados é ligada à Igreja Católica. (O restante tinha seu foco voltado para as áreas do esporte ou da cultura). Como parte do decreto governamental, os bens dessas organizações serão transferidos para o governo nicaraguense.

“Igrejas, especialmente as menores, são lugares onde o senso de comunidade e a participação são muito fortes”, disse um porta-voz do Observatório da Liberdade Religiosa na América Latina (OLIRE), com sede na Holanda, que pediu para permanecer anônimo por razões de segurança. “O governo quer diminuir a importância dessa contribuição, para que apenas o Estado se destaque.”

No ano passado, esses requisitos de prestação de contas com relatórios financeiros levaram ao fechamento de dez igrejas pertencentes a um ministério com base no Texas, Mountain Gateway, e à prisão de 11 de seus pastores que serviam na Nicarágua. Semanas antes, o grupo havia liderado um evento evangelístico e de ajuda humanitária de dois dias, que reuniu mais de 300.000 pessoas.

No entanto, várias leis aprovadas nos últimos anos criaram padrões complexos para os relatórios financeiros das organizações não-governamentais, resultando em dificuldades de atender e se adequar a essas normas, de acordo com o The New York Times. Até mesmo a Igreja Católica enfrentou dificuldades.

Desde 2018, o governo nicaraguense fechou 3.390 organizações (10% delas estrangeiras) sob a acusação de “lavagem de dinheiro”, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em 2022, o governo fechou 20 igrejas evangélicas com base em acusações semelhantes.

A Christianity Today (CT) tentou entrar em contato com representantes de várias organizações cristãs na Nicarágua, incluindo algumas das que tiveram seu status cancelado. Quase todas se recusaram a comentar. Uma fonte descreveu a situação como “muito delicada”.

“Podemos até ser presos ou perder a cidadania por comentários críticos”, disse a pessoa.

No ano passado, o governo nicaraguense proibiu procissões e cultos ao ar livre, citando preocupações com a segurança após os protestos de 2018, que resultaram em tumultos e prisões. O governo também proibiu a exibição de símbolos, como cruzes ou a Estrela de Davi, em frente a residências particulares.

Os evangélicos representam quase 40% dos 7 milhões de habitantes da Nicarágua, o que faz do país o terceiro mais evangélico da América Latina. Muitos não veem problemas nas ações de Ortega.

“Isso não é exatamente perseguição”, disse Ismael Jara, pastor da Igreja Batista Sendero de Luz, em Ciudad Sandino. “Não estamos proibidos de sair às ruas e fazer evangelismo… Apenas grandes aglomerações não são permitidas devido à [instabilidade política que se seguiu aos protestos de 2018].”

Jara explicou que as regras mais rígidas para eventos fora das igrejas forçarão as congregações a serem mais organizadas ao planejar eventos. Ele também sugeriu que a perda dos registros das organizações pode até ser positiva para algumas igrejas, incentivando-as a se tornarem mais transparentes financeiramente, para atender às exigências de prestação de contas ao governo.

Além disso, Jara acredita que será saudável para os fiéis manterem uma distância maior da política. “Precisamos aprender a ser neutros e a respeitar as autoridades”, disse ele.

Em abril, após um grupo de especialistas apresentar um relatório sobre violações de direitos religiosos nas Nações Unidas, seis organizações evangélicas — entre elas três associações de igrejas, dois grupos denominacionais e um centro de estudos teológicos — publicaram cartas abertas reafirmando a existência de liberdade de culto no país. O bispo Aldolfo Sequeira, presidente do Centro Intereclesial de Estudos Teológicos e Sociais, assinou uma das cartas, declarando que o governo “respeita a liberdade de culto e as expressões de fé do povo cristão, permitindo que cada pessoa pratique a religião de sua escolha em todo o país.”

Na mesma época, a Convenção Batista da Nicarágua publicou uma declaração de apoio a Ortega e Murillo, que “sempre apoiaram nosso trabalho evangelístico e foram favoráveis a todas as nossas atividades.”

Mas os que estão fora do país estão menos convencidos disso.

Como esses fechamentos são “respaldados por um arcabouço legislativo”, a ameaça do governo à liberdade religiosa é “mais evidente e mais escandalosa” do que a repressão aos grupos religiosos pelos sandinistas, na década de 1980, disse o porta-voz da OLIRE.

Ao revogar registros e confiscar bens de organizações religiosas, o governo está forçando esses ministérios a se alinharem com grupos maiores, que estão dispostos a se submeter às condições impostas pelo governo, explicou um representante do poder legislativo que pediu para permanecer anônimo por razões de segurança. Sem um registro legal, elas não podem comprar terrenos nem construir igrejas.

Além disso, de acordo com a OLIRE, o governo impõe suas metas e políticas às organizações cristãs na tentativa de “eliminar qualquer presença de instituições que não comunguem da mesma orientação política”.

Em sua justificativa para a legislação aprovada, Ortega argumentou que as atividades das organizações não-governamentais resultaram em “uso discricionário de [programas e projetos] que não está ligado aos planos, estratégias e políticas nacionais, promovidos pelo nosso bom governo na luta contra a pobreza e pela segurança de nossa população.”

Em junho, a Comissão dos EUA sobre Liberdade Religiosa Internacional (USCIRF) publicou um relatório destacando “condições de liberdade religiosa gravemente deterioradas na Nicarágua”. “O presidente Daniel Ortega e a vice-presidente Rosario Murillo estão usando leis sobre crimes cibernéticos, crimes financeiros, o registro legal para organizações sem fins lucrativos, a soberania e a autodeterminação para perseguir comunidades religiosas e defensores da liberdade religiosa”, afirmou o relatório.

A USCIRF recomendou que os EUA designassem a Nicarágua como um país de preocupação particular “por engajar-se em violações sistemáticas, contínuas e flagrantes da liberdade religiosa”, e sugeriu a imposição de sanções a agências e representantes do governo nicaraguense.

Até agora, a principal fonte de tensão entre os sandinistas e o setor religioso tem sido com a Igreja Católica. Em fevereiro do ano passado, o bispo de Matagalpa, Rolando Álvarez, foi preso sob a acusação de conspiração e teve sua cidadania nicaraguense revogada, devido a sermões considerados contrários ao governo.

Álvarez ficou detido até janeiro deste ano, quando o governo o exilou para o Vaticano. A tentativa do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva de negociar sua libertação levou a um esfriamento nas relações entre Brasil e Nicarágua, culminando na expulsão dos embaixadores de ambos os países, no início de agosto.

Em agosto de 2023, a pedido do governo, a justiça nicaraguense ordenou o fechamento e o confisco dos bens da Universidade Centroamericana, uma instituição de ensino superior em Manágua que é administrada por jesuítas. As autoridades acusaram a universidade de abrigar atividades criminosas durante os protestos de 2018. A ação gerou protestos na comunidade acadêmica e no Vaticano.

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Uma geração de mães e pais ansiosos

Embora Jesus diga para não andarmos ansiosos, a cultura impõe aos pais outro padrão. E isso está prejudicando nossos filhos.

Christianity Today August 21, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty / Pexels

Enquanto minha filha se balançava 3 metros acima do chão, com as pernas em volta do tronco grosso e liso de uma videira, no meio da selva de Belize, lá estava eu, olhando para cima e calculando o quão longe ela estava do solo firme, de uma estrada asfaltada e do hospital mais próximo.

Nem preciso dizer que isso não estava na minha agenda do dia. Estávamos visitando uma pequena vila, em uma viagem missionária ao oeste de Belize, com amigos da nossa igreja que vêm todo ano para esse mesmo lugar há mais de uma década. Nossa tarefa era ajudar na escola da vila, dar apoio a projetos de desenvolvimento comunitário, compartilhar o amor de Jesus e aprofundar a amizade com pessoas que vivem em um contexto cultural totalmente diferente do nosso.

Foi essa última parte que colocou minha filha lá em cima daquela árvore. Fizemos uma caminhada matinal para ver algumas ruínas maias pouco conhecidas, mas fizemos um desvio de percurso para uma aventura na selva, sem cintos de segurança, liderados por um guia que estava de Crocs, Julio, nosso amigo local que claramente não achava preocupante deixar uma criança escalar livremente uma árvore.

De volta aos Estados Unidos, vivemos constantemente preocupados com nossos filhos. É fartamente documentado e geralmente aceito que smartphones, mídias sociais e a falta de independência e de brincar livremente na infância contribuem para criar o que o psicólogo social Jonathan Haidt apelidou de “geração ansiosa”. Mas, em meio a toda essa preocupação coletiva, tendemos a ignorar um problema intimamente relacionado e igualmente difundido: a ansiedade parental — que corre solta, descontrolada e é socialmente normalizada — e o estilo parental sufocante que ela gera.

Não há nada de novo debaixo do sol, e, até certo ponto, tenho certeza de que isso é verdade em relação às preocupações de todos os pais. Ao longo dos tempos, pais e mães temem perder seus filhos por causa de doenças, acidentes ou violência. Agora mesmo, enquanto me preocupo com os testes do time de vôlei e o nervosismo do primeiro dia de aula, há mães ao redor do mundo que se preocupam com bombas, balas, fome e frentes de batalha.

O problema dos pais que desfrutam de relativo conforto, como nós, parece ser o que fazemos com nossas preocupações. Nossas estratégias como pais acalmam com sucesso nossos próprios medos, mas isso não significa que elas atendam às necessidades de desenvolvimento de nossos filhos. Nós desempoderamos nossos filhos, em vez de ajudá-los a se tornarem adultos competentes e confiantes. Nós chamamos o excesso de preocupação de prova de amor e tratamos nossa busca por segurança e tranquilidade como chantilly em chocolate quente: se um pouco é bom, certamente quanto mais, melhor.

Dentre todas as divisões políticas e sociais, por exemplo, os pais estão entre os mais ferozes oponentes à proibição de smartphones nas escolas, apesar da montanha de evidências que nos diz que estes estão atrapalhando a educação. A justificativa dos pais? Segurança e tranquilidade. Os smartphones nos dão a capacidade antes inimaginável de saber onde nossos filhos estão a cada instante. Nós nos imaginamos resgatando-os de um tiroteio na escola — ou, de algo mais realista, como resgatá-los das consequências da lancheira que esqueceram.

E o problema não para nos celulares. Nós empilhamos precaução sobre precaução: uvas cortadas ao meio e cintos de cinco pontos dão lugar a rastreamento por AirTag e à verificação compulsiva de notas escolares. E com toda essa nossa mania de ficar em volta dos nossos filhos, consertando as coisas e nos preocupando, acidentalmente estamos dizendo a eles que o mundo é um lugar cheio de perigos com os quais eles não estão preparados para lidar sem a nossa ajuda onipresente.

Mas estamos errados sobre essa busca por segurança. Mais não é melhor. Temos uma geração de crianças ansiosas, em parte, porque somos uma geração de pais ansiosos. Por melhores que sejam as nossas intenções, prejudicamos essa geração porque nossos calibradores de risco estão quebrados. Nós lutamos para protegê-los de perigos raros e prestamos pouca atenção à cascata de consequências terríveis e muito mais prováveis ​​que a própria maneira como criamos nossos filhos gerou.

Em alguns casos, corrigir isso pode exigir ajuda profissional para controlar nossa própria ansiedade. Mas, para além do reino clínico, existe uma ansiedade mais comum, uma espécie de preocupação crônica que todos os pais modernos já viram, seja em nós mesmos ou em nossos pares. E, nesse aspecto, a maioria dos cristãos ocidentais não parece muito diferente do mundo.

Somos tão ansiosos quanto nossos vizinhos que não são cristãos, e a maneira como criamos nossos filhos é tão excessivamente cautelosa quanto a deles. Essa realidade deveria nos fazer parar para pensar em tudo o que Jesus disse sobre as aves do céu e os lírios do campo (Mateus 6.25-34). O que chamamos de cautela, Deus pode chamar de pecado: esse clamor por controle e essa recusa em confiar a Deus os filhos que ele mesmo nos confiou.

Essa questão também é diferente para os cristãos porque podemos reconhecer o que outros pais não conseguem: que, em sua essência, o desafio que enfrentamos é muito mais espiritual e existencial do que prático e de caráter procedimental.

Eu sei disso em primeira mão. Minha filha mais velha começou a oitava série em uma escola pública de ensino fundamental, este mês. Recebo e-mails sobre procedimentos de segurança da escola dela [em caso de ataques]. Todas as manhãs, eu a observo entrar na escola ao lado de todas aquelas crianças carregando em suas mochilas fardos invisíveis e sabe lá Deus mais o quê, e tenho que engolir meu medo. Tenho que espantar os pensamentos que invadem minha mente, sugerindo que esta pode ser a última vez que a verei.

À medida que minhas meninas crescem e suas vidas giram cada vez mais para fora da minha órbita, e para um mundo de desordem e caos, às vezes acordo no meio da noite com o coração disparado, sentindo como se eu estivesse à beira de um precipício, segurando as mãos das minhas filhas para que elas não caiam. Sob a luz racional do dia, sei perfeitamente que não há como planejar uma saída de emergência para todas as maneiras pelas quais a tragédia ou a adversidade pode alcançar nossa família. No entanto, nos momentos mais profundos dessas noites, parece que não consigo parar de tentar encontrar essas saídas.

E há duas coisas que podem ser verdade ao mesmo tempo: essas ansiedades que me atrapalham o sono são reais, profundas e, como cristãos, não precisamos ser consumidos por elas.

Nós — eu, na verdade — devo começar com uma confissão. A ilusão do controle é o mais encantador dos elixires, mas nunca irá me satisfazer. Devemos admitir que sabemos que isso é verdade, mas buscamos o controle de qualquer maneira. Talvez essa honestidade nos deixe mais prontos para nos voltarmos para Jesus.

“Neste mundo vocês terão aflições” (João 16.33). Em seu último sermão neste mundo, Jesus fez esta promessa a seus discípulos. Ela também vale para nós. Este não é o tipo de versículo que estampamos nas placas vendidas na livraria cristã local, mas talvez devesse ser. É por nossa conta e risco que desconsideramos as promessas de Deus sobre choro, luto e tristeza neste mundo.

Gastar tanto tempo e tanta preocupação tentando evitar problemas não é apenas uma atitude não realista; é uma rejeição do convite de Cristo para confiarmos na esperança que ele oferece, não importam as nossas circunstâncias. É uma rejeição do descanso [que encontramos] neste mesmo versículo: “Tenham bom ânimo!” Jesus ordena. “Eu venci o mundo.”

Mas como confiar e ter coragem? Devemos associar nossa confissão a um arrependimento real. Devemos nos render e encarar cada dia, todos os dias, aconteça o que acontecer, com a confiança dos pequeninos que sabem que seu Pai dá boas dádivas (Lucas 11.13).

Esta é a primeira lição sobre criação de filhos na vida de Jesus, que nos é dada na oração que Maria fez, ao ouvir que ela daria à luz o Filho de Deus: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lucas 1.38, NRSV). Esta é uma “verdadeira oração de indiferença”, diz a pastora e escritora Ruth Haley Barton, na qual Maria demonstra uma “profunda prontidão para deixar de lado suas preocupações pessoais, a fim de participar da vontade de Deus segundo esta se desenrolava na história humana”.

Esse tipo de santa indiferença não significa um falta de cuidado indiferente, mas sim uma disposição para aceitar a vontade de Deus em nossa vida. O termo remonta a Inácio de Loyola, teólogo do século 16, mas o conceito tem profundas raízes bíblicas. Nós o vemos na renúncia de Ana ao filho Samuel, no templo (1Samuel 1.28) e em Jesus, no Jardim do Getsêmani (Mateus 26.39). Como Barton aconselha, às vezes uma oração de indiferença deve começar com uma oração por indiferença, pedindo a Deus que nos ajude a afrouxar nosso controle sobre o que queremos segurar com tanta força.

Em Belize, ouvi a voz calma de Júlio, enquanto ele guiava a descida da minha filha pelo tronco da videira. “Solte”, ele disse, encorajando-a a deslizar pela videira, embora ela ainda não conseguisse ver onde pousaria os pés. Foi como se eu tivesse sido subitamente despertada pelas palavras dele. Solte. Solte. Solte.

Não foi Júlio quem expôs minha filha a riscos e preocupações desmedidos. Fui eu — ao dar a ela uma vida de experiências selecionadas e de responsabilidades limitadas, ao trocar suas aventuras da vida real por aventuras online, ao criar o hábito de ficar em volta dela todos os dias com minha ajuda maternal e meus lembretes quase constantes para ela ter cuidado. Querido Jesus, ajuda-me a soltá-la.

Observando aqueles dois, percebi que a melhor coisa que eu poderia fazer no momento era controlar minha própria energia nervosa. E quando comparo aquele momento com a vida em casa, fico cada vez mais convencida de que é isso que nossos filhos precisam de nós. Pois, quando minha filha estava de novo com os pés firmemente plantados no chão, vi algo novo brilhar em seus olhos. Foi uma centelha de realização e de confiança, pensei comigo mesma, depois que ela colocou em prática a confiança que estou orando tanto para aprender.

Carrie McKean é uma escritora que mora no oeste do Texas, cujo trabalho apareceu no The New York Times, The Atlantic e na revista Texas Monthly. Você pode encontrá-la em carriemckean.com.

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N.T. Wright: O que Jesus diria aos poderosos hoje?

Como seu novo livro, escrito em coautoria com Michael F. Bird, chama os cristãos a atuarem na esfera política.

Christianity Today August 20, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty / Wikimedia Commons

Em um ano em que mais de 50 países estão indo às urnas — e em que metade dessas votações podem alterar significativamente a geopolítica — o lançamento de Jesus and the Powers [Jesus e os poderes] não foi mero acaso.

Há alguns anos, N. T. Wright (autor de Surprised by Hope [Surpreendido pela esperança]) e Michael F. Bird (autor de Jesus Among the Gods [Jesus entre os deuses]) — que já haviam trabalhado em colaboração na obra The New Testament in Its World [O Novo Testamento em seu próprio mundo] — perceberam que faltava para os cristãos uma orientação bíblica clara sobre como devem se engajar na política, e decidiram fazer algo a respeito.

“Nós dois tínhamos a sensação de que não foi de fato ensinada uma visão cristã da política para a maioria dos cristãos hoje em dia”, disse Wright. “Até o século 18, havia muito pensamento político cristão, algo que ignoramos nos últimos 200 a 300 anos — e é hora de trazermos isso de volta.”

A “porta de entrada” para a teologia política, segundo Wright, é a ideia de que, até a volta de Cristo, “Deus quer que os seres humanos estejam no comando”. E embora, de acordo com as Escrituras, todos os poderes políticos tenham de certo modo sido “ordenados por Deus”, ele afirma que os cristãos são chamados a “assumir a liderança” em cobrar e responsabilizar aqueles que estão no poder.

“A igreja foi projetada para ser o modelo funcional em pequena escala da nova criação, para apresentar ao mundo um símbolo — um sinal eficaz do que Deus prometeu fazer pelo mundo. Assim, a igreja deve encorajar o mundo a dizer: ‘Olha, é assim que a comunidade humana deve ser. É assim que se faz.’”

E, à medida que a igreja global se torna “uma comunidade que adora o único Deus e pratica a justiça e a misericórdia no mundo”, isso é um “sinal para os césares do mundo de que Jesus é o Senhor, e não eles” e um “sinal para os principados e potestades de que esta é a maneira [correta] de ser humano”.

Em uma entrevista à Christianity Today, Wright discute questões como a necessidade de mais colaboração teológica em torno das questões políticas; a escatologia distorcida por trás da abdicação da esfera política por parte dos cristãos; e como a igreja global deve se engajar com as várias formas de império que estão à solta no mundo hoje.

No outono passado, na conferência da Evangelical Theological Society (ETS, Sociedade Teológica Evangélica), ouvi de algumas pessoas que não há muitos estudiosos trabalhando com teologia política no momento. Você concorda com isso?

Sim, deixe-me dar um exemplo. Quando a situação na Ucrânia surgiu, há dois anos, escrevi para dois ou três pensadores cristãos importantes nos EUA e disse: “Ok, pessoal, vocês trabalham nessa área mais do que eu. O que devemos pensar sobre isso? Se pudéssemos falar com o presidente Volodymyr Zelensky, ou quem sabe até mesmo com Vladimir Putin, o que deveríamos dizer a eles?” Pelas respostas deles ficou bastante claro que há muita cautela — que essa é uma área extremamente difícil, e não temos certeza de como abordar essas questões.

Acho que isso reflete o fato de que, mesmo entre aqueles que escreveram livros sobre teologia política, quando ocorre uma crise, não estou certo de que algum de nós tenha um roteiro claro sobre como abordar a situação. Meu ponto é que nossa reflexão sobre esses temas e a iniciativa de estruturar a política com sabedoria ainda são questões embrionárias.

Foi dito a muitos cristãos, com todas as letras, que a política é um jogo sujo. Deixamos a política para os políticos e assistentes sociais, enquanto ensinamos as pessoas a orar e a ir para o céu — e uma coisa nunca se mistura com a outra. Acho que chegamos ao ponto em que a maioria dos cristãos percebe que essa separação simplesmente não reflete a Bíblia em geral nem o testemunho cristão. Especialmente quando você começa a pensar no que Jesus quis dizer com o reino de Deus “assim na terra como no céu”.

No final do Evangelho de Mateus, quando Jesus diz “Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra”, o que isso nos faz pensar sobre a autoridade de Jesus na terra? Parece, no Novo Testamento, que Jesus está delegando tarefas por meio do Espírito Santo à igreja. Não que a igreja deva governar o mundo, mas ela tem o papel vital de dizer a verdade para quem está no poder — de segurar um espelho para que os poderosos se vejam, e de ser um modelo de como a nova criação de Deus deve ser.

Em sua introdução, você mencionou que obras anteriores suas e de Mike inspiraram parcialmente este livro. Mas eu gostaria de saber se você poderia falar mais sobre os fundamentos bíblicos ou teológicos dessa obra.

Uma das coisas que realmente tem chamado a minha atenção nas últimas duas décadas é o papel dos seres humanos dentro da boa criação de Deus. A ideia em Gênesis 1 da criação dos seres humanos à imagem de Deus significa que Deus está comprometido em trabalhar no mundo através dos seres humanos.

Na teologia ocidental, muitas vezes lemos Gênesis 1–2 como se Deus estivesse preparando os seres humanos para passarem por um teste moral, no qual eles falham. Isso coloca toda a história no caminho errado, quando, em vez disso, a questão é: como Deus governará sabiamente o seu mundo através de seres humanos obedientes e sensíveis a ele, se estes erraram e estão adorando ídolos? A resposta é que ele os resgatou de sua idolatria, para que eles possam governar o mundo como seus vice-regentes, da maneira que Deus deseja.

Para mim, João 19 é um dos textos-chave que me chamou a atenção, quando comecei a trabalhar nesse livro. Nessa passagem, Jesus diz a Pôncio Pilatos: “Não terias nenhuma autoridade sobre mim, se esta não te fosse dada de cima”. Com isso, Jesus reconhece que esse governador romano de segunda categoria tem uma autoridade que lhe foi dada por Deus.

Em outras palavras, sim, os governantes têm uma autoridade dada por Deus, e Deus os responsabilizará pelo que fazem com ela. […] Tanto a igreja primitiva como os judeus achavam que era sua responsabilidade criticar os governantes. É como vemos no testemunho profético de João Batista dizendo a Herodes “Você está pisando fora de linha nisso aqui”, ou no próprio Jesus dizendo aos governantes e autoridades quando estavam errando.

Engajamento cristão fiel na política não é dizer aos líderes políticos: “Vocês não têm autoridade dada por Deus”. É dizer: “Vamos ser seus críticos no que diz respeito a como vocês estão usando essa autoridade que lhes foi dada por Deus”. Suspeito que a maioria das pessoas na maioria das igrejas no mundo ocidental — para não dizer em qualquer outro lugar — nunca sequer começou a conceber a questão dessa forma. Mas, até que o façamos, não entenderemos qual deve ser a responsabilidade da igreja.

Como os cristãos devem cobrar que o governo preste contas e devem garantir que os servidores públicos usem seus poderes de maneira responsável? E como você enxerga isso acontecendo em uma sociedade pluralista, onde as pessoas têm diferentes visões religiosas e podem ter padrões diferentes de justiça?

Leia, por exemplo, o Salmo 72 — ao qual volto repetidamente, o grande salmo messiânico. Algumas pessoas criticam os “salmos reais” porque “estão a serviço do império”. Mas, na verdade, se você olhar para o Salmo 72, ele diz: “Senhor, concede a tua justiça ao rei, para que ele cuide das viúvas, dos órfãos e dos estrangeiros,” etc., e esse pedido se repete várias vezes. No final, diz: “E assim a terra, toda a terra se encherá da tua glória”. É assim que Deus quer ser glorificado.

Há algo que poderíamos chamar de uma espécie de teologia natural da ética global. A maioria das tradições diria que cuidar dos fracos e vulneráveis parece uma boa ideia. Mas, infelizmente, interesses pessoais entram em jogo, porque, se esses fracos e vulneráveis forem migrantes que estão entrando no seu país, e você não quiser mais pessoas no seu país, então, diz: “Não, mande-os embora, eles que vão para outro lugar!” Contudo, também precisamos de políticas sábias e bem pensadas sobre migração, pois nem todos os países conseguem dar suporte aos milhares de pessoas que querem viver lá.

A igreja precisa treinar as pessoas para pensarem de maneira sábia sobre todas essas questões relevantes. Não devemos deixar isso apenas para economistas profissionais — ou, pelo menos, precisamos de economistas profissionais cristãos. Precisamos de cristãos que analisem questões de desenvolvimento, migração ou os enormes desafios que enfrentamos globalmente e que aconselhem a igreja de forma sábia, para que a igreja possa falar com verdade. Não apenas em frases de efeito, como estou fazendo agora, é claro, mas com profundidade e autoridade reais sobre questões sérias.

O que você diria aos cristãos que pensam “Bem, este mundo vai de mal a pior mesmo” — e àqueles que não se envolvem no governo porque acham que “a igreja é separada — é uma fortaleza afastada do mundo”?

Certo, isso é muito interessante. A transição ocorreu no início do século 18. Tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos, havia quase um triunfalismo no sentido de que “Agora estamos dominando o mundo, e o evangelho vai governar” — e coisas como O Messias de Handel, “Ele reinará para sempre e sempre” —, o que soava maravilhoso na década de 1740. Mas, curiosamente, na década de 1790, algo mudou, e o epicurismo venceu — a Revolução Francesa aconteceu, as pessoas ficaram assustadas e se perguntando o que estava acontecendo.

Acredito que isso remonta ao Iluminismo, onde ocorre a separação entre religião e política. O epicurismo dos séculos 17 e 18 basicamente separou o céu e a terra, colocando entre eles uma enorme distância. Isso deixa as pessoas livres para governar a terra da maneira que desejarem — o que geralmente significa que a governarão para seu próprio benefício, mantendo qualquer coisa que seja religiosa fora da equação. E isso foi um desastre.

Depois, temos o movimento dispensacionalista, especialmente nos Estados Unidos, e outros movimentos semelhantes com uma escatologia muito negativa — no sentido de que a única maneira de algo acontecer é se Deus abandonar completamente este projeto [de mundo] e começar de novo do zero. Assim, muitos cristãos se voltaram a Platão para dizer: “Bem, na verdade, temos almas que vão escapar deste lugar de qualquer maneira e ir para outro”. Mas, como nunca me canso de dizer aos alunos, a palavra céu no Novo Testamento nunca é usada para designar o lugar de nosso destino final. E a palavra alma nunca é usada para designar os seres que seremos em nosso destino final.

As pessoas chegaram à suposição de que a história bíblica trata de como as almas humanas podem encontrar seu caminho até a visão beatífica no céu. Enquanto isso, toda a narrativa bíblica vai na direção oposta — e trata de como Deus vem habitar com os seres humanos na terra. A temática de Apocalipse 21 não é que os seres humanos habitam com Deus — e sim que Deus habita com os seres humanos.

Quanto mais envelheço, mais percebo que Atos 2, a descida do Espírito enchendo toda a casa, é uma cena de templo; ela remete diretamente a 1Reis 8 ou a Êxodo 14. É uma maneira de dizer: “Isso é o que Deus sempre pretendeu fazer. Deus, o Espírito Santo, sempre pretendeu viver com os seres humanos, nos seres humanos — e operar através deles. E, vejam só, isso está realmente acontecendo”. Essa é uma maneira totalmente diferente de fazer teologia.

A ideia arcaica de que Deus jogaria fora a criação presente — e, portanto, por que nos incomodaríamos em consertá-la? — simplesmente não faz justiça [ao que lemos na Bíblia]. Precisamos urgentemente, como comunidade global, pensar de forma mais cristã e mais bíblica sobre todo esse cenário.

N.T. Wright é professor emérito de Novo Testamento e Cristianismo Primitivo no St. Mary’s College, na Universidade de St Andrews, e Senior Research Fellow no Wycliffe Hall, Oxford. Seu livro mais recente, escrito em coautoria com Michael F. Bird, é Jesus and the Powers: Christian Political Witness in an Age of Totalitarian Terror and Dysfunctional Democracies [Jesus e os Poderes: Testemunho Político Cristão em uma Era de Terror Totalitário e Democracias Disfuncionais].

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