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A criação de filhos hoje é menos rígida, mas ainda deve levar o pecado a sério

Livro alinha abordagens modernas para criar filhos com a sabedoria ancestral da Palavra de Deus.

Christianity Today November 29, 2024

Meu marido e eu descobrimos que estávamos esperando nosso primeiro filho no verão de 2020. Os lockdowns contínuos da pandemia na Califórnia me deram tempo de sobra para ler livros sobre criação de filhos e pesquisar produtos para bebês.

Fui criada à sombra do evangelicalismo fundamentalista, na virada do século 21. Meus pais e seus amigos eram guiados por especialistas em criação de filhos com um viés mais autoritário, como James Dobson, e Michael e Debi Pearl. Eu estava ansiosa para estabelecer bases diferentes para nossa própria filosofia de criação de filhos; também estava interessada em incentivar desde cedo a independência em meu filho, uma vez que eu estava me aproximando da maternidade enquanto enfrentava uma série de doenças crônicas.

Essas motivações levaram meu marido e eu a explorarmos o mundo do “gentle parenting” [no Brasil, essa abordagem é conhecida como “parentalidade positiva” ou “educação parental positiva”]. Lemos vários livros best-sellers sobre o método Montessori para a educação infantil e descobrimos uma organização conhecida como RIE, Resources for Infant Educarers [Recursos para Educadores Infantis]. À medida que líamos todos os livros, passamos a reconhecer neles muitos ecos de valores do reino: os autores e especialistas viam uma criança como um ser humano pleno, com direitos próprios, e não esperavam que ela tivesse um comportamento que estivesse além da sua capacidade de desenvolvimento.

Eu sabia, ao ler esses livros, que eles não me forneceriam uma fórmula pronta para a criação de filhos. Mas, nos últimos quatro anos, tentamos transferir grandes quantidades de conhecimento da mente para o coração, e passar da teoria para a prática. Durante esse tempo, ocasionalmente lutei para harmonizar diferentes fontes de conselhos sobre criação de filhos com o meu entendimento das Escrituras, a fim de chegar a um planejamento consistente que promovesse a ordem e a paz em meio ao caos que é a criação de filhos pequenos.

Por isso, fiquei entusiasmada por encontrar um novo livro, escrito por pais cristãos, que faz conexões explícitas entre algumas dessas abordagens mais recentes sobre criação de filhos e as verdades ancestrais da Palavra de Deus. Na obra The Flourishing Family: A Jesus-Centered Guide to Parenting with Peace and Purpose [A família que floresce: um guia centrado em Jesus para criar filhos com paz e propósito], David e Amanda Erickson apresentam uma visão cristã para a criação de filhos que é fundamentada nas Escrituras e informada por conhecimentos modernos de neurociência e desenvolvimento infantil.

“Nosso objetivo”, escrevem os autores, “é alinhar nossa abordagem para a criação de filhos com os ensinamentos de Jesus, e manter nosso foco e nossa identidade Nele.” O livro cumpre esse objetivo, desafiando os pais a lidarem com seus medos e frustrações, primeiro examinando o próprio coração e, então, trabalhando para cultivar a paz interior necessária para criar seus filhos com uma postura de confiança. Os Ericksons visam fornecer ferramentas táticas e responder a perguntas práticas que permitirão que pais de crianças pequenas comecem a estabelecer novos padrões, à medida que respondem a desafios comuns da criação dos filhos.

Um momento importante da cultura

David Erickson é atualmente o presidente do Jacksonville College, uma faculdade cristã particular no leste do Texas. Amanda, sua esposa e coautora, tem uma paixão pela neurociência que foi despertada por sua luta pessoal com a ansiedade e a irritabilidade pós-parto, que apareceram após o nascimento de seus dois filhos.

A obra Flourishing Family (e o ministério que os Ericksons começaram em 2019, Flourishing Homes and Families [Famílias e Lares que Florescem]) chega em um momento importante da cultura no que diz respeito à criação dos filhos. Na sociedade em geral, e entre os pais cristãos em particular, vemos uma mudança de paradigma inconfundível das abordagens mais autoritárias para uma mentalidade mais flexível e tranquila.

Muitos pais da geração Y [os nativos digitais ou millennials, nascidos entre 1982 e 1994], que foram criados com uma “autoridade” equivocada (e às vezes totalmente abusiva) de autores como Dobson e os Pearls, estão compreensivelmente ansiosos para não repetir esses padrões com os próprios filhos. Outros pais, que tiveram experiências mais brandas com formas autoritárias de disciplina e essencialmente “chegaram à vida adulta sem grandes traumas”, esperam levar adiante esse legado, como uma espécie de proteção contra a frouxidão e a permissividade perceptíveis na parentalidade positiva. Outros ainda adotaram roteiros de aceitação da criação moderna (coisas como dizer “não tem problema ficar chateado”), mas, ao mesmo tempo, apegam-se às expectativas comportamentais com as quais cresceram (“mas você precisa parar de fazer cara feia”).

Mas, muito embora a obra The Flourishing Family chegue em um momento cultural peculiar, os Ericksons evitaram atrelar seu trabalho a esse momento. Eles usam comentários laterais ocasionais nas páginas do livro, para responder brevemente a objeções comuns — coisas como “E o temor do Senhor?” —, mas tentam se manter distantes de controvérsias maiores. E embora eles dediquem um capítulo inteiro ao tópico da punição física (e interpretem corretamente os versículos em Provérbios que se referem à “vara”), eles enfatizam uma visão cristã holística para a criação de filhos, que é fundamentada nas Escrituras e apoiada pela neurociência moderna. O resultado é um livro que, embora oportuno para os nossos dias, deve resisir ao teste do tempo e se tornar um recurso atemporal para pais cristãos.

Embora os Ericksons se proponham a apresentar uma visão coesa da criação de filhos cristã, estou feliz que o resultado seja menos um manual abrangente e mais um guia facilitador — um ponto de partida para discussões mais profundas e para jornadas mais longas em busca do que está no coração de Deus para as famílias cristãs. Essa intenção fica evidente pelo uso que fazem de histórias para transmitir suas experiências e convicções, sem serem rígidos ou prescritivos.

E os autores incluem perguntas de reflexão muito úteis no final de cada capítulo. Elas não são uma reflexão que não estava no planejamento e só lhes ocorreu depois, como acontece em tantos livros. Em vez disso, eles convidam os leitores a irem mais fundo na reflexão sobre seus objetivos e esperanças para seus filhos e a se aproximarem de Cristo, enquanto buscam discipulá-los bem.

Restringindo o pecado

Os autores distinguem claramente a abordagem mais pacífica que eles adotam dos mantras populares da parentalidade positiva, coisas como “Não existe criança má” e “Todo comportamento é comunicação”. Eles são diretos e não fazem rodeios para nomear a realidade do pecado no nosso coração e no coração de nossos filhos.

Eles também pedem aos pais (e creio que o fazem corretamente) que se concentrem mais em trabalhar no próprio crescimento espiritual do que em erradicar cada indício de pecado em seus filhos, por meio de um excesso de zelo com modificações comportamentais. Gostaria, no entanto, que eles tivessem dado um passo a mais, reconhecendo que nós [os pais] às vezes precisamos estabelecer limites mais estreitos como forma de restringir nossas próprias tendências pecaminosas.

Embora reconhecessem os efeitos do pecado original em seus filhos, os pais do meu marido o criaram com olhar atento para os efeitos do pecado original neles mesmos. Isso levou meu marido a manter um ceticismo saudável em relação à sua própria capacidade de ser um pai calmo e paciente, enquanto eu tenho a tendência de superestimar minha capacidade de manter a calma em meio a conflitos com crianças pequenas e toda a confusão do dia a dia. Ele tenta antecipar os perigos de seus próprios ressentimentos, e preventivamente diz não a algum projeto de arte para as crianças, ao final de um dia de trabalho frustrante, embora ele normalmente teria dito sim. Em contraste, meus ressentimentos vêm à tona de forma tão avassaladora que todos nós acabamos literalmente chorando sobre o leite derramado.

“O que Jesus faria?” é a pergunta que, embora nunca seja dita explicitamente, parece sustentar a filosofia parental dos Ericksons. No entanto, os pais, dentro de quem a carne e o Espírito ainda estão em conflito um com o outro (Gálatas 5.17), provavelmente precisam juntar a essa pergunta essencial uma outra: “Quais são minhas limitações hoje para agir como Jesus?”

Uma pergunta incômoda

No início do livro, os Ericksons observam brevemente que seu sistema para a criação de filhos contraria muitas tendências dominantes em nossa sociedade.

Técnicas de criação de filhos baseadas no medo são onipresentes na cultura ocidental moderna […] E acabam chegando nas creches e salas de aula. Desde a nossa resposta ao primeiro sinal de desafio em uma criança pequena até um denso trecho sobre disciplina em um manual para estudantes universitários, nosso mundo está todo configurado para ter crianças controladas, manipuladas e administradas principalmente através do medo.

Mas, mesmo que apresentem uma visão cristã para a criação de filhos que esteja enraizada na paz e modele a graça, e não em punição e modificação comportamental, os Ericksons nunca abordam por completo as tensões que podem se desenvolver entre o ambiente que promovemos dentro de nossas casas e as expectativas que nossos filhos podem enfrentar fora delas. Enquanto eu lia, uma pergunta incômoda começou a se infiltrar no fundo da minha mente: esse paradigma para a criação de filhos funcionaria para todas as famílias cristãs? Quais considerações, advertências ou ferramentas podem estar faltando para os pais daquelas crianças que não se parecem com as minhas [crianças]?

Cito um exemplo do livro que pode ajudar a dar um pouco de substância à minha pergunta. Em um dos capítulos, os Ericksons abordam um ditado sobre disciplina que ouvi com frequência enquanto crescia: “Obediência tardia é desobediência”. Eles demonstram que esse ditado não tem apoio nas Escrituras (veja a parábola dos dois filhos, em Mateus 21) e argumentam em favor de dar às crianças pequenas mais espaço para aprender e escolher livremente a obediência, em vez de focar na imediata submissão.

Essa discussão me lembrou um vídeo curto a que assisti há alguns anos. Uma mãe está brincando com o filho de um jogo clássico, Simon Says [uma brincadeira tradicional norte-americana que se parece com a brincadeira “Simão Mandou”, na qual uma pessoa dá ordens enquanto outras obedecem]. A criança não tinha mais de cinco ou seis anos e era negra. O tom da mãe, que estava por trás da câmera, é brincalhão, suas ordens são frequentemente pontuadas por risadas. Mas, conforme o jogo prossegue, o espectador percebe que as ordens que “Simon” dá são assustadoramente semelhantes aos comandos que um policial daria a um adolescente negro. A mãe está usando uma brincadeira pré-escolar para ensinar submissão, porque, embora ela possa não acreditar que “obediência tardia é desobediência” em sua própria casa, ela entende a sóbria realidade de que obediência tardia em outros lugares pode significar morte.

Os lares repletos apenas de expansividade da graça e da escolha conseguem preparar crianças negras para a total falta de graça que elas encontrarão nas ruas, quando forem adolescentes? A visão dos Ericksons para uma criação de filhos pacífica funciona para famílias cristãs de todos os contextos e de qualquer classe social? Não tenho uma resposta para essas perguntas, e não espero que os Ericksons necessariamente a tenham também. Eu só queria que eles tivessem se questionado mais sobre isso.

Paz e confiança

A obra The Flourishing Family aplica repetidamente, e de novas maneiras, as Escrituras à criação de filhos, ao mesmo tempo em que toma muito cuidado para permanecer fiel à Bíblia. Ela se baseia no campo avançado da neurociência moderna, mas não como uma autoridade infalível, e sim como uma fonte de revelação natural e de graça comum que os pais cristãos fariam bem em levar em conta. E, ao mesmo tempo em que dão aos pais conselhos práticos para as exaustivas experiências cotidianas de criar filhos pequenos, os Ericksons continuamente direcionam o foco da atenção para o único que fornece descanso verdadeiro e paz duradoura.

“A criação pacífica de filhos tem a ver, em última análise, com confiança”, escrevem os Ericksons no final do livro.

É a personificação do conhecimento que eles têm de Cristo e a esperança na confiabilidade de Cristo. É se agarrar à fidelidade dele, em vez de se esforçar para permanecer fiel a algum paradigma específico de criação de filhos. É descansar na verdade de que os planos dele para seus filhos são bons, e que ele completará a boa obra que começou neles.

A criação de filhos para mim, para muitos de nós, já foi um dia uma ideia gestada (como meu primeiro bebê) em mistério e antecipação. Hoje, é uma das minhas identidades — não a realidade máxima da minha vida, mas ainda assim uma realidade sempre presente. Como tal, sou chamada a vivê-la dia após dia, quer eu me sinta pronta e descansada ou não. Como é libertador ser lembrada de que posso explorar novos estilos de parentalidade, enquanto deixo meus filhos no lugar exato a que eles pertencem, nos braços fiéis de Jesus.

Tabitha McDuffee é escritora e editora; mora no sul da Califórnia. Ela faz a curadoria de textos cristãos no BeautifulDiscipleship.com.

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Church Life

O horizonte de eventos do Advento

A época do Natal nos mostra nosso passado redimido e nosso futuro de esperança.

Christianity Today November 28, 2024
Illustration by Sandra Rilova

Leia Salmo 110

CERTA VEZ, OUVI ALGUÉM DIZER que se você pudesse entrar em um buraco negro e chegar até o horizonte de eventos, você veria o passado e o futuro simultaneamente. Minhas tentativas de entender isso ainda não foram bem-sucedidas. Mas, embora eu não seja formado em física, entendo bem o que é contemplar meu passado ou tentar ver meu futuro.

Normalmente, isso causa problemas. Olhar para o passado em geral leva a arrependimento, vergonha ou depressão, por causa de coisas que aconteceram e não podem ser mudadas. Olhar para o futuro em geral leva a preocupação, medo ou ansiedade sobre o que pode vir a acontecer. Acho que a razão para isso é que meu olhar está focado somente em mim mesmo. Em contraste, Cristo nos chama para olharmos para fora de nós mesmos, para olharmos para ele. Durante esse período do Advento, somos convidados a olhar para o passado, para o que Cristo fez, assim como olhar para a esperança futura do que ele fará, quando voltar.

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Davi tinha seus olhos postos em Cristo, quando compôs o Salmo 110. Nas primeiras linhas do salmo, Deus está falando com alguém que Davi chama de “meu senhor”. Em outras palavras, Deus está falando com o Rei do rei Davi. Este Rei dos reis é o nosso Salvador, Jesus Cristo (Atos 2.34-36). O salmo pinta um retrato de Cristo como vencedor sobre os inimigos de Deus, governante das nações, poderoso, vibrante e justo. E como se essa imagem já não fosse suficientemente magnífica, o salmo lhe acrescenta mais uma camada: Cristo também é sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque. O autor de Hebreus explica por que isso é significativo: “[Melquisedeque é alguém] Sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem princípio de dias nem fim de vida, feito semelhante ao Filho de Deus, ele permanece sacerdote para sempre” (Hebreus 7.3). Diferentemente dos sacerdotes levitas do Antigo Testamento, Cristo é um sacerdote eterno, o mediador, intercessor e advogado perfeito e constante entre Deus e seu povo.

Neste poema, Davi nos convida a concentrar nossos pensamentos, nossas afeições e nossos desejos em uma visão do rei-sacerdote Jesus Cristo. Ao olharmos para o passado e contemplarmos o nascimento, a vida, o sofrimento, a crucificação, a ressurreição e a ascensão de Cristo, somos arrancados de nosso arrependimento, vergonha e depressão. Cristo é rei; ele tem o poder para garantir que não há nada que tenha acontecido conosco, ou que tenhamos feito, que Deus não use para o bem (Romanos 8.28). Cristo é nosso sacerdote; toda a nossa vergonha e a nossa culpa foram resolvidas na cruz. Mais do que isso, Cristo venceu a morte, e o Espírito Santo que trouxe Cristo à vida habita em nós, dando-nos nova vida e esperança para o futuro. Nossas preocupações, nossos medos e nossas ansiedades são colocados na perspectiva adequada, quando olhamos para Cristo e lembramos que, assim como ele veio uma vez, virá novamente para destruir o mal, defender a justiça e salvar seu povo.

Para um salmo tão cheio de imagens violentas — inimigos transformados em estrado para os pés, reis esmagados, cadáveres amontoando-se nas nações — Davi termina com uma nota de surpreendente calma. Em meio ao julgamento das nações, o rei-sacerdote para e faz uma pausa. O retrato final que Davi pinta para nós é de Cristo parando para tomar um gole d’água fria e refrescante de um ribeiro, e, então, levantando a cabeça (v. 7). Sua pausa indica que o fim de todas as coisas ainda não está sobre nós. Estamos em nosso momento presente — em nosso horizonte de eventos, se você preferir — entre a primeira e a segunda vinda de Cristo. Em vez de ficarmos olhando obsessivamente para o nosso próprio passado ou para o futuro, por meio deste salmo, Cristo nos convida a olhar para ele, a fim de encontrarmos perdão, identidade, paz, segurança e esperança naquilo que ele fez por nós no passado e naquilo que ele fará, quando voltar no futuro para estabelecer seu reino como sacerdote e rei para sempre.

Andrew Menkis é professor de teologia, e tem seus textos de poesia e de prosa publicados por Modern Reformation, Ekstasis, The Gospel Coalition e Core Christianity.

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Church Life

Leituras devocionais do Advento 2024 da Christianity Today

Todas as leituras devocionais do Advento 2024 em um só lugar.

Christianity Today November 28, 2024

Clique aqui para fazer o download gratuito do devocional completo.

A estação do Natal pode parecer um momento estranho para nos voltarmos para o livro de Eclesiastes em nossa Bíblia. Quando dezembro chega, não temos tempo para refletir sobre o caráter efêmero da vida — afinal, precisamos organizar a casa! Precisamos preparar as guloseimas de Natal! Precisamos providenciar os presentes! Precisamos receber a família! Mas, talvez, nessa época do ano em que parecemos ter menos tempo livre, seja o momento exato para refletirmos sobre a natureza fugaz de nossa vida.

Comumente, nós nos envolvemos com uma ampla variedade de experiências durante esta temporada sem igual do ano. Eclesiastes dá testemunho de que há um tempo específico para tudo na realidade — tempo para plantar e semear; tempo para chorar e rir; tempo para lamentar e celebrar. E onde quer que a estação do Natal venha a encontrá-lo este ano, você pode se animar com o fato de que Deus ordena a realidade de acordo com as estações e os ritmos da vida, que às vezes são sombrios e às vezes, iluminados; que às vezes são pesados ​​e às vezes, repletos de leveza.

Neste Devocional de Natal da Christianity Today, você encontrará cinco devocionais por semana, que poderão ser lidos no seu ritmo. A última semana contém 5 devocionais e o devocional do dia do Natal. Nesses devocionais passamos pelos ciclos da manhã, da tarde e da noite, cada qual com sua própria tonalidade e sua realidade específica a imprimir. À medida que avançarmos pelas semanas do Advento, este devocional nos guiará ao longo de uma jornada por tempos de renovação, provação, revelação e, finalmente, por um tempo de maravilhar-nos pelo grande presente que recebemos no Natal: a encarnação de Cristo na Terra, o fato de que ele se fez carne por amor e para nossa salvação. Mergulhe nesse devocional, encontre tempo para testemunhar esses dias do Advento através de olhos que se maravilham, e junte-se a nós para adorarmos juntos. 

Semana 1

Semana 2

Semana 3

Semana 4

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Theology

Neste Natal, vamos recordar as mulheres da linhagem materna de Jesus

A narrativa do Livro de Rute nos lembra o quanto o papel feminino também é vital no plano de salvação de Deus.

Christianity Today November 28, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: WikiMedia Commons

Cresci no Japão, em uma família na qual minha mãe era seguidora de Jesus, mas meu pai não era crente. Minha mãe levava os filhos à igreja toda semana, e desempenhou um papel central na formação da minha fé. Consequentemente, ela está presente na maioria das minhas memórias de Natal, em coisas como comparecer aos cultos natalinos, atuar em peças sobre o Natal e compartilhar sobre Jesus e o “significado” do Natal com outras pessoas. Dentro da minha família, minha mãe foi meu primeiro e principal exemplo cristão, e desempenhou um papel indispensável na formação da minha fé.

Muitos cristãos são capazes de se conectar com minha história, especialmente aqueles que cresceram em uma família na qual a mãe era a única figura adulta que seguia Jesus. De fato, um estudo do Barna Research Center de 2019 sobre lares cristãos nos Estados Unidos aponta para o papel proeminente das mães na fé de seus filhos. Os adolescentes consistentemente identificaram as mães como as principais figuras que oram e conversam com eles sobre assuntos relacionados à Bíblia e à fé. “Repetidamente, este estudo fala sobre o impacto duradouro que têm as mães — no diálogo, no companheirismo, na disciplina e, principalmente, no desenvolvimento espiritual”, concluiu a pesquisadora Alyce Youngblood. Para muitos crentes, a fé em Jesus não teria sido uma realidade sem o papel e o legado das matriarcas da família em sua vida.

A temporada do Advento oferece uma oportunidade de meditar sobre o amor de Cristo, mas também nos dá a chance de apreciar sua linhagem materna, particularmente de sua grande ancestral Rute. Proponho que a história de Rute sirva como história de Advento do Antigo Testamento. Para os cristãos, o Advento carrega uma conotação específica da “vinda de Cristo na encarnação”. Mas o termo também tem um significado amplo de “chegada de um evento, de uma pessoa ou de uma invenção importante”. Nesse aspecto, o Livro de Rute aguarda o advento ou a vinda do rei Davi e de Jesus. A conexão entre Rute, Davi e Jesus fica especialmente evidente na genealogia de Mateus, que inclui Rute, bem como outras quatro mulheres: Tamar, Raabe, Bate-Seba e Maria (Mateus 1.3, 5–6, 16).

Faça o download gratuito do nosso devocional de Natal.

O amor e o caráter de Deus são manifestados por meio das personagens femininas no desenrolar da narrativa de Rute — um lembrete de que a salvação de Deus é realizada não somente por meio de homens “heróicos”, mas também de mulheres que desempenham um papel vital na história da redenção que Deus escreve. Ler o Livro de Rute como uma história de Advento nos fornece oportunidade para refletir sobre os atributos de Deus especialmente expressos por meio das mulheres, tanto na Bíblia quanto em nossa vida pessoal.

Provisão e inclusão divinas

A história do Livro de Rute se passa durante uma crise espiritual e material em que os israelitas repetidamente cometiam “o mal aos olhos do Senhor” (Juízes 2.11). Como história de Advento do Antigo Testamento, o Livro de Rute constrói a expectativa da vinda de um salvador e comunica a mensagem de fé aos gentios.

A provisão de Deus para as necessidades materiais e espirituais das pessoas, por meio de um paradigma de carência e satisfação, destaca-se neste livro. Noemi, que não tem comida, recebe sustento em Belém. Ela perde o marido e os filhos, mas ganha um “filho” por meio de Rute. Rute, que é viúva, encontra um marido. Acima de tudo, durante um período em que o povo não tinha um rei terreno, Deus deu início a um plano de Advento, para prover o futuro rei de Israel.

O advento do nascimento de Obede (e, um dia, o de Jesus) depende não apenas da chesed (“bondade”) de Deus, mas também da chesed que os personagens humanos demonstram em relação uns aos outros na história. Por exemplo, Noemi abençoa Boaz por não abandonar ela mesma e Rute, e Boaz elogia a busca de Rute por ele como um retrato do amor inabalável de Deus.

A história de Rute afirma que esse amor também acolhe os gentios. Ao longo do livro, o autor se refere a Rute como uma “moabita”. A identidade moabita de Rute choca a audiência original, pois os moabitas consistentemente representam uma ameaça física e espiritual a Israel. Por exemplo, Balaque, rei de Moabe, tenta amaldiçoar Israel (Números 22–24); também foram os moabitas que levaram os israelitas a adorarem os deuses de Moabe (Números 25.1–3; Juízes 10.6).

Em contraste com esses retratos negativos dos moabitas, Rute, a moabita, desfruta da inclusão na comunidade israelita. Ela se casa com um israelita e imigra para Israel. E promete a Noemi: “Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus!” (Rute 1.16). Os anciãos de Israel até mesmo oram para que Deus faça Rute semelhante a Raquel e Lia, as matriarcas de Israel.

O compromisso de Rute com Deus, Noemi e Boaz resulta em sua inclusão na comunidade israelita — apesar de sua identidade moabita — e no privilégio de dar à luz um filho, algo que leva ao nascimento do rei Davi e, finalmente, ao nascimento de Jesus.

Assim, ao longo do livro, Deus e as pessoas — sejam elas israelitas ou gentias — fazem e recebem bondade. Portanto, como uma história de Advento, o livro de Rute pinta um belo quadro de inclusão na comunidade de Deus — algo que não é estritamente hereditário, mas está aberto a todos que acreditam no Deus de Israel e se comprometem com ele.

Amor de mãe

Além de abrir uma janela para a inclusão do plano de salvação de Deus, o Livro de Rute também aponta para o amor fiel de Deus, expresso por meio das ações exemplares de mulheres. Especialmente digna de nota é a disposição da personagem de suportar o sofrimento, que desempenha um papel essencial na história do Advento.

O autor cristão japonês Shusaku Endo acredita que o aspecto maternal de Jesus atrai os japoneses que não são cristãos. Em seu livro A Life of Jesus [Uma biografia de Jesus], Endo afirma:

Os japoneses tendem a buscar em seus deuses e budas uma mãe amorosa… Com isso sempre em mente, tentei não descrever Deus tanto com a imagem paterna que tende a ser característica do cristianismo, mas sim descrever o aspecto maternal bondoso de Deus, que nos é revelado na personalidade de Jesus.

O que Endo chama de “aspecto maternal de Deus” consiste na disposição de Jesus de se submeter ao sofrimento.

Uma das passagens do Antigo Testamento repetidas com mais frequência, Êxodo 34.6, diz: “Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade”. O termo hebraico rachum, frequentemente traduzido como “compassivo”, está relacionado ao substantivo rechem, que significa “útero” e, portanto, implica em como Deus expressa uma natureza maternal. Como essa característica de Deus é frequentemente mencionada em contextos que lidam com o pecado e a rebelião de Israel, a compaixão de Deus naturalmente envolve suportar a infidelidade humana.

Embora o termo rachum não apareça no Livro de Rute, a história, no entanto, exemplifica como Rute suporta o sofrimento lado a lado com sua sogra. Noemi sofre muita angústia com a perda do marido e dos dois filhos. Em agonia, ela afirma que a mão de YHWH “voltou-se contra mim” e que o Todo-poderoso “me trouxe desgraça” (Rute 1.13, 21). Ela até mesmo avisa suas noras que não pode se casar novamente e que não será capaz de prover futuros maridos para elas. Ela, então, instrui suas noras a voltarem cada uma para a “casa de sua mãe”.

Apesar dos alertas de Noemi, Rute decide acompanhar Noemi e se juntar a ela em seu sofrimento. É dito que Rute se “apegou” a Noemi. O termo hebraico para “apegar” (davaq) é o mesmo termo usado para expressar o profundo compromisso de um marido para com sua esposa, bem como o apego que as pessoas devem ter a Deus. Embora Noemi tenha alertado Rute sobre a “mão” de Deus em seu infortúnio, a confissão de Rute, “que YHWH me castigue”, reflete sua determinação de compartilhar do sofrimento de Noemi até a morte. O amor implacável de Rute por Noemi é mais tarde descrito como melhor do que o amor de “sete filhos”.

Assim como Rute deixou sua terra natal, “apegou-se” a Noemi e suportou dificuldades, Maria também deu à luz e acompanhou Jesus na ida para o Egito e na volta de lá, apesar de todas as dificuldades. Jesus, por meio da Encarnação, fez-se homem para suportar nosso sofrimento, como uma mãe suportaria por seu filho.

Aguardando o Prometido

Assim como os Evangelhos relatam o nascimento de Jesus, o Livro de Rute aguarda o nascimento do rei Davi (Rute 4.17-22) e conta como Deus providenciou o nascimento de um rei durante um tempo de violência e pecado desenfreados. Ambas as histórias compartilham de um cenário semelhante: um tempo de desastre nacional que destaca a necessidade que o mundo tem de um salvador. Ambas também compartilham de um enredo semelhante, que inclui casamento, o nascimento de uma criança e uma figura feminina que viaja para Belém. Ambas servem para comunicar como Deus trabalha por meio das vidas e das ações de pessoas comuns e contrasta a fidelidade delas com os padrões pecaminosos do mundo. A natureza exemplar desses personagens humanos antecipam Cristo, o paradigma de fé e de conduta cristãs.

Que neste Advento os cristãos ao redor do mundo celebrem o amor maternal de Deus que nos busca implacavelmente, que voluntariamente suporta o sofrimento ao nosso lado e aceita graciosamente todos os que se arrependem e creem. Espero que a história do Advento em Rute incentive as mães a reacenderem seu compromisso de “apegar-se” a Deus e a seus filhos. Que os cristãos estendam o amor de Deus àqueles que estão sofrendo nesta época do ano e caminhem com eles. E para aqueles que estão pessoalmente passando por dificuldades, que vocês encontrem encorajamento em um Deus que graciosamente sofre por nós, até o ponto de enviar seu Filho unigênito à Terra para nos salvar.

Kaz Hayashi (PhD, Baylor University) é professor associado de Antigo Testamento no Bethel Seminary/University, em Minnesota. Ele nasceu e foi criado no Japão, cursou o ensino médio na Malásia e hoje mora em Minnesota com a família. É membro do Every Voice: A Center for Kingdom Diversity in Christian Theological Education [Toda voz: Um Centro para a Diversidade do Reino na Educação Teológica Cristã].

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Culture

Filme sobre Bonhoeffer é pouco fiel à realidade

Visando construir um argumento político, o novo filme biográfico da Angel Studios distorce a vida e o pensamento do teólogo.

A still from the movie depicting Bonhoeffer sitting and thinking at his desk.
Christianity Today November 26, 2024
Copyright © 2024 by Angel Studios, All Rights Reserved

Quinze anos atrás, o acadêmico Stephen Haynes mapeou as muitas interpretações da vida do teólogo alemão do século 20, Dietrich Bonhoeffer. Ele era um conservador que buscou restaurar a Alemanha — ou, talvez ,fosse um progressista que quisesse superar o dogmatismo obsoleto. Bonhoeffer era um anabatista enrustido, que se preocupava primeiro com as questões que envolviam a igreja, e só depois delas, com as questões sociais. Ou, talvez, ele fosse um modelo de teólogo que se importava principalmente com a ação social aqui e agora.

Figuras tão complexas quanto Bonhoeffer são notoriamente difíceis de serem bem interpretadas. Bonhoeffer deixou incontáveis monografias, sermões, correspondências e escritos teológicos e, desde sua morte, muito já foi escrito sobre as lembranças que amigos e colegas têm dele. Tudo isso cria uma figura complexa e às vezes evasiva, difícil de classificar dentro dos movimentos ideológicos contemporâneos. Se não tomarmos cuidado, situar Bonhoeffer em nosso momento histórico pode se tornar um mero exercício de realização de desejos.

Essa é a armadilha em que cai o novo filme sobre o teólogo [A Redenção: a história real de Bonhoeffer]. Na mais recente produção da Angel Studios, a história de Dietrich Bonhoeffer é um recipiente vazio, no qual são despejados nossos próprios desejos — neste caso, o desejo por uma fé que sirva a fins políticos.

Em certo sentido, o filme A Redenção é pura e simplesmente uma biografia, e deve ser elogiado por nos apresentar a grupos que foram influentes na vida do teólogo, mas que são frequentemente subestimados no imaginário popular: sua família, seus amigos nos Estados Unidos e seus contatos em órgãos eclesiásticos por toda a Europa.

Vemos Bonhoeffer sendo educado nas melhores universidades alemãs e se tornando um homem profundamente preocupado com o rumo político que o país tomava. Ele leciona em um seminário independente, em Finkenwalde, em meio à ascensão da influência nazista na igreja alemã. Após o fechamento do seminário, ele se junta à Abwehr, uma agência de inteligência militar alemã. Os espectadores também são apresentados ao seu cunhado, também envolvido na Abwehr, que participou de um plano para assassinar Hitler. Vemos Bonhoeffer na prisão, morrendo no campo de concentração de Flossenbürg, apenas dias antes de os prisioneiros de lá serem libertados pelos Aliados.

Em relação a esses fatos não há controvérsia. Mas o filme é mais especulativo do que sério. Sobre essa estrutura familiar da vida do teólogo, o filme constrói a história de um homem que, desde a infância, parece ter sido destinado a trocar a oração pela conspiração, o ensino bíblico pela espionagem política e a teologia pelo ativismo.

Em vez de retratar um homem de profundas convicções teológicas e intelecto refinado, o filme conta a história de uma pessoa para quem as convicções morais são uma ferramenta flexível e útil, um homem cujas ações são determinadas não por preocupações com o testemunho da igreja, mas sim pela necessidade histórica percebida.

O filme conta a história de um Bonhoeffer disposto a fazer qualquer coisa — inclusive repudiar os ensinamentos de Jesus conforme ele os entendia — para assassinar Adolf Hitler.

Precisamos reconhecer que qualquer filme biográfico toma certas liberdades em relação à figura central que retrata. Os roteiristas preenchem lacunas com conversas e encontros imaginários não apenas para fazer um bom filme, mas também para demonstrar o caráter do indivíduo.

Nesse aspecto, A redenção é um filme típico do gênero — ainda que as liberdades que ele tome sejam um pouco fantasiosas. Por exemplo, Bonhoeffer, quando jovem, passou um ano em Nova York, no Union Theological Seminary [Seminário Teológico da União], onde conheceu de perto o racismo americano e frequentou a histórica Abyssinian Baptist Church [uma das mais antigas igrejas batistas afro-americanas dos Estados Unidos, que se destaca historicamente pela preocupação com causas de justiça social e é referência na história da música gospel estadunidense].

O filme aumenta esses fatos, e retrata Bonhoeffer liderando seu próprio grupo de jazz em uma boate do Harlem, sendo espancado em um confronto com o dono de um hotel que é racista e se tornando um defensor apaixonado dos direitos dos afro-americanos. Esses acréscimos, por mais divertidos que sejam, não são mostrados apenas para preencher espaços no tempo de exibição do filme; eles são mostrados principalmente para retratar Bonhoeffer como um militante, como alguém que estava desenvolvendo um apetite por justiça.

O Bonhoeffer teólogo é ainda mais eclipsado pelo Bonhoeffer agente político conforme o filme vai se desenrolando. À medida que os nazistas ascendem ao poder, ele diz coisas como: “Não posso fingir que orar e ensinar é o suficiente” e “Minhas mãos sujas são tudo o que me resta a oferecer”. Seu célebre seminário clandestino subterrâneo em Finkenwalde não é tratado como um lugar para instruir fielmente candidatos à ordenação da Igreja Confessante, mas sim como uma plataforma de lançamento para um contra-ataque político aos nazistas. Perto do fim de sua vida, ele faz um sermão no qual sua famosa citação [“Quando Cristo chama um homem, ele o chama para vir e morrer”] é intercalada com imagens que mostram um conspirador plantando uma bomba.

Em uma cena horrível, Bonhoeffer nega seu próprio ensinamento pacifista na obra Discipulado, ao insistir:  “Eu estava certo… antes de Hitler”. Seu amigo e aluno Eberhard Bethge imediatamente desafia o professor, perguntando se Hitler foi o primeiro líder maligno desde que as Escrituras foram escritas. Bonhoeffer responde em tom ameaçador: “Não. Mas ele é o primeiro que posso deter”.

Essa cena poderia tranquilamente ter sido incluída em um filme de espionagem, se contasse com efeitos especiais e uma montagem de Dietrich fazendo exercícios físicos em preparação para o que enfrentaria nas semanas seguintes.

No cerne do filme, encontra-se um retrato excessivamente confiante do teólogo como um aspirante a assassino. Sabemos que Bonhoeffer foi preso a princípio não por um plano de assassinato (como o filme descreve), mas por seu envolvimento na Operação 7, um esquema para contrabandear judeus para a vizinha Suíça. Sabemos que a principal intriga em que ele estava envolvido, através da Abwehr, era passar informações sobre os nazistas para seus contatos ecumênicos na igreja da Inglaterra e em outros lugares — e não por tentar convencer os ingleses a fornecer uma bomba para matar um ditador, como mostra o filme.

E, finalmente, embora Bonhoeffer sem dúvida soubesse dos planos (que incluíam membros da família) para assassinar Hitler, as evidências sobre seu envolvimento direto permanecem obscuras e contestadas.

Entre os historiadores, a relação do teólogo com uma tentativa de assassinato é uma questão muito debatida — e é menos uma questão do que disse o próprio Bonhoeffer e mais uma conjectura baseada no que ele sabia das atividades de seu cunhado. Contudo, para o filme A redenção, não existe esse debate: Dietrich Bonhoeffer não só sabia de uma conspiração para matar Hitler, como também estava intimamente envolvido [nela], sendo que suas convicções iniciais sobre como entender os ensinamentos de Cristo tornaram-se irrelevantes com a ascensão dos nazistas.

As palavras de Bonhoeffer na vida real complicam essa narrativa. “Confessar e testemunhar a verdade como ela é em Jesus, e, ao mesmo tempo, amar os inimigos dessa verdade, que são inimigos dele [de Cristo] e nossos, e amá-los com o amor infinito de Jesus Cristo, é de fato um caminho estreito”, ele escreveu em Discipulado. Anos depois, enquanto aguardava sua execução, ele aumentou a aposta: “Hoje eu consigo enxergar os perigos daquele livro [Discipulado], embora eu ainda defenda o que escrevi.”

É provável que Bonhoeffer soubesse de uma conspiração para matar Hitler. Mas, com base em seus escritos, também parece que suas formas pessoais de resistência cristã — isto é, passar informações para contatos internacionais, auxiliar no envio de judeus para a Suíça — eram congruentes com suas convicções de longa data.

Enfraquecer os nazistas com papeladas burocráticas e diplomacia é muito menos cinematográfico do que enfraquecê-los com explosivos, e os criadores do filme podem ter trocado a visão de mundo do personagem principal por mera questão de efeito dramático. Mas a motivação ideológica do filme parece muito exagerada para ser justificada apenas como drama. Que tipo de conexão o filme está fazendo, ao sugerir que Bonhoeffer mudou de ideia quanto ao que seria o “caminho estreito”?

Talvez o filme esteja sugerindo que o público também devesse abandonar sua ingenuidade política e pegar em armas. Talvez esteja sugerindo que o caminho de Jesus é muito suave para as duras realidades do conflito moderno, e deve ser substituído por uma abordagem mais “realista”. Ironicamente, essa é a abordagem adotada pelos próprios nazistas: substituir cruzes por suásticas e Bíblias por cópias de Mein Kampf [Minha Luta, manifesto escrito por Hitler], recorrendo a uma versão mais parruda de igreja, na qual os velhos costumes, governados pelas Escrituras e pelos sacramentos, não mais atendem aos requisitos.

As primeiras reações ao filme, particularmente por parte da família Bonhoeffer, identificaram um legado distorcido. A fonte de algumas dessas distorções parece fácil de identificar. O título em inglês do filme — Bonhoeffer: Pastor. Spy. Assassin [Bonhoeffer: Pastor. Espião. Assassino] — brinca com o título de uma biografia de Bonhoeffer lançada em 2011, escrita por Eric Metaxas, apresentador de rádio conservador dos EUA. (O site do Metaxas faz referência ao filme no contexto de planos futuros para uma série de streaming sobre o teólogo alemão, os quais são promovidos por ele no X).

A semelhança entre esta representação da vida de Bonhoeffer e a própria trajetória de Metaxas é reveladora. Embora a Angel Studios tenha minimizado qualquer conexão entre Metaxas e este projeto, preste atenção nas semelhanças (além do título do filme em inglês, que é bem semelhante ao título da obra de Metaxas: Bonhoeffer: Pastor, Martyr, Prophet, Spy [Bonhoeffer: Pastor, Mártir, Profeta, Espião]). Tanto o Bonhoeffer [do filme] quanto o Bonhoeffer de Metaxas começam como um pensador religioso, passam a se preocupar primordialmente com a vida política e, por fim, envolvem-se com o uso da força a serviço de seus ideais.

No início do filme, um amigo de Bonhoeffer que é do Harlem diz que, às vezes, um soco é necessário; em 2020, Eric Metaxas virou notícia quando deu um soco em um manifestante na capital estadunidense. O paralelo é preciso demais para ser mera coincidência. Em seu livro mais recente, Metaxas continua a conduzir a obra de Bonhoeffer na direção de seu projeto, que vê a política como o fim último da teologia. Sua retórica inflamada consistentemente iguala a esquerda americana aos nazistas.

O retrato oferecido no filme não condiz com o homem que — mesmo em meio ao colapso da Igreja Confessante — falava do batismo como a maneira de Deus criar um novo reino, que desejava que “as tarefas de resistência da igreja fossem palavra e discipulado”. Em A redenção, vemos um Bonhoeffer preso que recorre à pregação sobre o sacrifício de Cristo e toma a Comunhão somente depois de suas próprias tentativas [de salvar a alma da Alemanha] terem falhado.

Talvez o julgamento da mensagem do filme deva vir da boca do próprio Bonhoeffer. Da sua obra Ética:

O radicalismo sempre surge de um ódio consciente ou inconsciente por aquilo que está posto. O radicalismo cristão, não importa se ele consiste em se retirar do mundo ou em aprimorar o mundo, surge do ódio à criação… Em ambos os casos é uma recusa da fé na criação. Mas é por Belzebu que os demônios devem ser expulsos.

Em outras palavras, não se pode expulsar o mal com o mal. Qualquer tentativa de subjugar o mundo por meios malignos é, na verdade, recusar-se a crer que Deus é, em última análise, Deus, mesmo na era de Hitler.

O fracasso final do filme não está apenas na questão de que ele contém equívocos históricos. Ele também não consegue entender como a vida de Bonhoeffer em si já era um exemplo extraordinário de coragem cristã.

Especialmente após duas tentativas de assassinato de um ex-presidente, não precisamos de argumentos teológicos para derrubar governos; não precisamos de mais justificativas para a violência política. O que precisávamos era de um filme que mostrasse um homem preocupado em como Deus possa estar chamando a igreja para que se mantenha firme diante da tentação de moldarmos nossa fé segundo nossa ideologia política.

Myles Werntz é autor de From Isolation to Community: A Renewed Vision for Christian Life Together [Do isolamento à comunidade: uma visão renovada para vivermos uma vida cristã juntos]. Ele escreve em Christian Ethics in the Wild [Ética Cristã na Selva] e leciona na Abilene Christian University [Universidade Cristã Abilene].

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Ideas

Fake Lewis: foi C. S. Lewis mesmo quem disse isso?

Dar crédito às pessoas por coisas que nunca disseram diz mais sobre nós mesmos do que podemos imaginar.

A silhouette with a question mark in the middle and an image of C.S. Lewis showing faintly through.
Christianity Today November 23, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty, Wikimedia Commons

“Humildade não é pensar menos de si mesmo; é pensar menos em si mesmo.”

Este ditado conciso, atribuído a C. S. Lewis, famoso escritor britânico, circulou amplamente pela Internet na última década. O único problema é que ele nunca disse isso. O ditado apareceu em The Purpose Driven Life [Uma vida com propósitos], obra de Rick Warren; outra versão dele surgiu alguns anos antes, em This Was Your Life! Preparing to Meet God Face to Face [Esta era a sua vida! Preparando-se para ver Deus face a face], de Rick Howard e Jamie Lash. “A verdadeira humildade não é pensar menos de nós mesmos; é pensar menos em nós mesmos”, escreveram Howard e Lash, citando Lewis em seguida sobre o tópico.

O resumo de Howard e Lash sobre o pensamento de Lewis, e a leve reformulação de Rick Warren se tornaram algumas das citações mais comuns erroneamente atribuídas a Lewis.

Várias citações que são erroneamente atribuídas a Lewis se tornaram virais nos últimos anos, graças ao poder de alcance das mídias sociais. Muitas são especificamente aplicáveis ​​ao atual momento cultural. Durante a pandemia da COVID-19, uma carta que supostamente pertencia à obra The Screwtape Letters [Uma carta do diabo ao seu aprendiz] lotou os feeds do Facebook. Na carta falsa [pois não pertencia à obra de Lewis], um demônio afirma: “O mundo se transformou em um campo de concentração, sem nada que force as pessoas a entrarem no cativeiro”. Em campanhas eleitorais recentes, outra carta falsamente atribuída ao mesmo livro circulou por aí, parabenizando o demônio aprendiz por manter uma pessoa “completamente fixada em política”.

Outras citações falsamente atribuídas a Lewis podem até fazer com que ele pareça defender alegações teologicamente discutíveis, como a desta citação, referenciada por líderes de renome e repetida com regularidade: “Você não tem uma alma. Você é uma alma que tem um corpo”. Esta citação continua sendo uma das mais controversas.

Algumas citações populares falsamente atribuídas a Lewis estão ainda mais distantes de suas palavras reais. Frases motivacionais do tipo “Você nunca está velho demais para definir outra meta ou para sonhar um novo sonho” são frequentemente creditadas ao autor britânico. Segundo William O’Flaherty, autor de The Misquotable C. S. Lewis [C.S. Lewis, uma vítima de falsas citações], uma das falsas atribuições recentes mais bizarras é esta: “Seja esquisito. Seja aleatório. Seja quem você é. Porque nunca se sabe quem amaria a pessoa que você esconde [dentro de si].”

O’Flaherty se tornou sinônimo de alguém que desmascara citações falsas de C. S. Lewis desde que começou a corrigi-las em seu blog e nas redes sociais. Sua primeira experiência com uma citação falsamente atribuída a Lewis, no entanto, foi com uma citação feita por ele mesmo.

“Apesar de, àquela altura da vida, eu já ter lido quase todas as obras dele, eu frequentemente fazia o que as pessoas fazem hoje”, disse O’Flaherty. “Eu via uma citação creditada a Lewis, gostava do que ela dizia e a compartilhava, sem sequer ponderar se ele de fato era ou não o autor dela.”

Em 2010, um estudioso de Lewis entrou em contato com O’Flaherty, para falar sobre uma das citações inspiradoras que ele compartilhou em seu blog. A citação, na verdade, não era de Lewis. “Por isso, acho que posso dizer que comecei a notar o problema das citações falsamente atribuídas a Lewis a princípio como alguém que praticava esse crime”.

Hoje, O’Flaherty trabalha para corrigir citações falsamente atribuídas a C. S. Lewis e citações dele que estão fora de contexto, um papel que cada vez mais parece não ter fim, uma vez que Lewis rapidamente se tornou um dos escritores mais citados incorretamente. Parece que a única coisa que as mídias sociais e as buscas na Internet amam mais do que uma citação de C. S. Lewis é uma citação falsamente atribuída a C. S. Lewis.

Michael Ward, estudioso de C. S. Lewis da Universidade de Oxford e autor de Planet Narnia [Planeta Nárnia], disse que parte da razão pela qual Lewis tem tantas citações que lhe são falsamente atribuídas é por ele ser um autor cujas obras são tão propícias à citação. 

“Ele é um grande escritor que expressa seus pensamentos de forma concisa e memorável”, disse Ward. “Assim que alguém passa a ser reconhecido como um autor ‘citável’, são atribuídas a ele todos os tipos de citações de coisas que ele nunca disse, e que talvez ninguém nunca tenha dito, mas que um orador gostaria que alguém tivesse dito.”

Lewis escreveu tanto e sobre tantas coisas que muita gente simplesmente presume que qualquer citação atribuída a ele poderia ser dele de fato. Ward alega que citações falsamente atribuídas podem ser fruto de preguiça, ignorância ou mera suposição [a pessoa presume que é do autor]. E as citações amplamente atribuídas a Lewis podem variar, indo desde paráfrases de algo que ele realmente escreveu, até palavras de outras pessoas que, de alguma forma, acabaram ficando vinculadas a ele ou citações que são criadas para parecer que são dele.

A imagem que fazemos desse problema das citações falsamente atribuídas a Lewis pode se limitar a posts que vemos no X ou a citações acompanhadas de uma foto dele e estampadas no Instagram. No entanto, o problema não começou nas redes sociais. E, infelizmente, também não está limitado a elas.

Antes de se tornar um autor amplamente citado e incorretamente citado, Lewis já havia sido exposto ao problema da atribuição incorreta. Ward observou que, em sua autobiografia, Surprised by Joy [Surpreendido pela alegria], Lewis menciona ter ouvido seu pai irlandês contar anedotas sobre um acadêmico irlandês. Mais tarde, em Oxford, ele ouviu essas mesmas histórias serem associadas a um acadêmico britânico.

Quando Lewis começou sua carreira de escritor e palestrante, as críticas ao seu trabalho ocasionalmente se transformavam em descaracterização, segundo Harry Lee Poe, autor de uma trilogia de biografias de C. S. Lewis. “O problema da deturpação surgia de tempos em tempos e vinha daqueles que o atacavam”, disse Poe, “e ele regularmente respondia ao erro na mesma hora ou escrevia um artigo para falar sobre o assunto”.

Esse foi o caso quando Lewis atraiu a ira de Norman Pittenger, um teólogo anglicano progressista e professor de apologética no General Theological Seminary, em Nova York. Na edição de outubro de 1958 da revista Christian Century, Pittenger escreveu um artigo atacando a abordagem de Lewis à apologética e à teologia.

O editor da revista enviou o artigo a Lewis e se ofereceu para publicar sua resposta a ele. Em sua réplica, Lewis concordou com um punhado de pequenas reclamações de Pittenger, mas contestou a maior parte do que este tinha escrito. Particularmente, Lewis escreveu que o professor americano o havia citado incorretamente e entendido mal o que Lewis havia dito na obra Milagres.

O professor Clyde Kilby, do Wheaton College, escreveu um artigo em defesa de Lewis, na edição de dezembro de 1958 da Christianity Today, e enviou o texto para o autor. Em suas cartas para Kilby e outros, Lewis foi muito mais contundente em suas críticas a Pittenger. Em uma delas, Lewis escreveu que achava “difícil engolir o fato de que, embora contrariasse praticamente todos os pontos do Credo, [Pittenger] continuava a receber dinheiro como professor de apologética cristã”. Em outro lugar, ele disse: “Embora se possa respeitar alguém que abertamente afirma ser ateu, é difícil não odiar um homem que recebe dinheiro para defender o cristianismo e passa todo o seu tempo atacando-o”.

As citações incorretas de Lewis podem ter começado com seus oponentes ideológicos, mas se espalharam até chegar a seus supostos admiradores, antes mesmo do surgimento das mídias sociais. Quando O’Flaherty começou a pesquisar citações falsamente atribuídas, ele rastreou a origem de muitas delas a fontes da era pré-internet. “Descobri que parte do problema se originou de livros e artigos”, disse ele.

O problema das citações falsas permaneceu relativamente contido com o texto impresso. No entanto, as citações incorretas de C. S. Lewis cresceram exponencialmente com a explosão das mídias sociais, no início dos anos 2000.

Pouco depois de compartilhar sua própria citação falsa de Lewis, O’Flaherty disse que começou a fazer uma lista das citações que eram atribuídas a Lewis incorretamente. “Passaram de cinco para dez bem rápido, e o número continuava crescendo”, disse ele. No final de 2012, ele percebeu que essas citações falsas estavam se tornando um problema. E escreveu um artigo desmascarando algumas das citações incorretas mais populares. Em 2016, a confusão em torno do que Lewis realmente tinha dito só havia aumentado, levando O’Flaherty a escrever seu livro.

Esse problema ficou ainda mais complicado nos últimos dois anos. Assim como, no início dos anos 2000, o surgimento das mídias sociais permitiu que se espalhassem [pela rede] mais citações apartadas de sua fonte correta, nos dias de hoje, o advento da inteligência artificial generativa agora tornou possível que citações falsas sejam simuladas na própria voz de Lewis. Esses vídeos deepfake fornecem novos caminhos para a confusão e a fraude.

Não há vídeos conhecidos de Lewis, e restam apenas algumas gravações de áudio dele. No entanto, nos últimos dois anos, foram produzidos vários vídeos modernos que parecem retratar clipes estendidos de Lewis dando conselhos motivacionais de autoajuda. A descrição de um vídeo diz: “Aceite o conselho de C.S. Lewis e ‘aprenda a agir como se nada o incomodasse’ — uma habilidade que pode desbloquear um nível mais profundo de paz, alegria e realização em sua vida”.

No entanto, alguns parágrafos mais abaixo na própria descrição, o canal revela que o vídeo foi “criado usando uma voz sintetizada que não pertence a ele [Lewis]”. Canais inteiros do YouTube são dedicados a produzir conteúdo gerado por computador com vozes simuladas de pensadores famosos como Lewis.

À medida que os cristãos navegam por esse mar crescente de citações falsas, é importante lembrar, antes de tudo, o motivo pelo qual Lewis se tornou um autor tão popularmente citado. Seu desejo era comunicar a verdade, e não tentar ser memorável. “Mesmo na literatura e na arte, ninguém que se preocupe com a originalidade jamais será original”, ele escreveu em Cristianismo puro e simples, “ao passo que, se você só se preocupar em dizer a verdade (sem se importar com quantas vezes ela já foi dita antes), é altamente provável que se torne original sem sequer perceber.”

Parte do sucesso de Lewis em ser original e memorável na forma como comunicava a verdade vinha de uma área de sua vida que poderia ser considerada um fracasso. “Lewis sonhava em ser poeta”, disse Poe, “mas a sua poesia tendia a ser bem elaborada do ponto de vista da técnica, mas não era exatamente o que ele considerava uma poesia de excelência. No entanto, a prosa de Lewis tem uma qualidade poética notável que faz com que fique acima da média.”

Enquanto as pessoas citam Lewis, correta e incorretamente, Ward diz que pode ver nisso um elogio indireto. “Este é o destino quase previsível de qualquer figura que atinja certa estatura: servir como um conveniente ímã para histórias ou citações que outras pessoas querem perpetuar, mesmo que imprecisamente”, disse ele. “Como um historiador que respeitava o material de origem, porém, Lewis também preferiria que as pessoas se preocupassem mais com a precisão.”

Aos olhos de O’Flaherty, a tentação de citar Lewis incorretamente ou de compartilhar citações sem verificar sua atribuição em geral vem de um desejo de usar o prestígio de alguém respeitado só para conseguir afirmação pessoal. “Francamente falando, muitas pessoas têm um span de atenção do tamanho dessas frases de para-choque de caminhão”, escreveu O’Flaherty em seu livro. “E normalmente elas amam citações porque funcionam como um bordão ou um slogan que confirma algo em que já acreditam.”

As formas modernas de mídia para comunicação, como mídia social e vídeos do YouTube, nos fornecem ampla oportunidade para confirmação e afirmação de crenças. “Hoje, quando uma pessoa compartilha uma citação falsamente atribuída a Lewis, pode conseguir milhares de curtidas e de compartilhamentos em menos de um dia”, disse O’Flaherty. “Citações falsas se espalham como fogo.”

Quer as pessoas sejam intencionalmente enganosas ao atribuir falsamente a Lewis uma citação, quer elas façam isso inconscientemente, por preguiça [de verificar a fonte], o próprio Lewis diria que a busca pela verdade sempre vale o esforço extra.

Como ele mesmo escreveu em Cristianismo puro e simples: “Se você procurar a verdade, poderá encontrar conforto no final: se você procurar conforto, não alcançará nem conforto, nem verdade — conseguirá apenas bajulação e pensamento positivo, no começo, e desespero, no final.” (Isso está no Livro I, Capítulo 5 — “Temos motivos para ficarmos inquietos” — na página 39 da minha edição, se você quiser verificar.)

Então, da próxima vez que você ouvir alguém dizer: “Como disse C. S. Lewis certa vez”, certifique-se de pedir a essa pessoa para fornecer os dados da fonte dessa citação.

Aaron Earls escreve sobre fé, cultura e C. S. Lewis no The Wardrobe Door [A porta do guarda-roupa]. Ele também é redator sênior da Lifeway Research.

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Theology

O legado de Eva não é só o pecado, também é a redenção

A primeira mulher tentou ficar livre de Deus. Mas, quando se alinhou aos propósitos divinos, tornou-se “mãe de toda a humanidade”.

Christianity Today November 21, 2024
Illustration by Karlotta Freier

Quem tiver a felicidade de crescer e ser educado pela própria mãe com certeza aprenderá muito com ela. Nas coisas boas ou não, observamos a maneira como ela administra a vida e muitas vezes a imitamos, mesmo sem querer. O que podemos, então, aprender com a primeira mãe da Bíblia, Eva, que nas Escrituras é chamada “mãe de toda a humanidade” (Gênesis 3.20)? Embora nossa confiança na orientação de Eva seja significativamente prejudicada por sua decisão de desobedecer a Deus, o que ela ainda pode nos ensinar a respeito de como viver bem no mundo criado por Deus?

Eva aparece em quatro cenas de Gênesis: na cena em que foi criada; na cena em que pecou; na cena em que dá à luz e nomeia Caim e seu irmão Abel; na cena em que dá à luz e nomeia Sete. Mais adiante na Bíblia, ela é descrita como tendo sido enganada (1Timóteo 2.14), e, na visão de João, uma mulher muito parecida com Eva ou Maria dá à luz, enquanto um dragão está à espera para devorar seu filho (Apocalipse 12).

A história de Eva se ampliou ao longo do tempo, de modo que a avaliação ressabiada que fazemos dela frequentemente se baseia mais na tradição do que nas próprias Escrituras. Em The Gospel According to Eve [O Evangelho segundo Eva], Amanda W. Benckhuysen observa que “a maioria dos primeiros intérpretes concluiu que Eva era uma criação inferior e secundária que tinha a responsabilidade primária por mergulhar o mundo no pecado e na contenda”. Tomás de Aquino, por exemplo, apresentou Eva como a maior das pecadoras, alguém que, sendo mulher, era “cheia de defeitos e desvirtuada”. No entanto, a Bíblia não a apresenta como uma sedutora, uma mulher atraente e fútil ou como alguém que tragicamente se perdeu — nem a retrata como uma mãe que devemos repudiar.

A vida de Eva começa com uma celebração, e sua é chegada anunciada pelo primeiro homem da Bíblia. Embora não seja o responsável por criá-la, ele próprio a recebe, proclamando que ela era “osso dos meus ossos e carne da minha carne”, e reconhecendo que eles pertencem um ao outro (Gênesis 2.23).

No ritmo mais lento da narrativa de Gênesis 2 sobre as origens do ser humano, Deus realiza um procedimento cirúrgico enquanto o homem dorme, removendo não apenas a costela de Adão, mas — em uma tradução mais precisa — o próprio “lado” dele. Como o narrador nos conta, Deus divide o ser humano ao meio, fornecendo o material necessário para redundar em um macho e uma fêmea.

Além disso, a palavra inglesa “helper” [ajudadora, auxiliadora] não faz justiça a como a palavra hebraica ezer descreve o papel de Eva (v. 18). Em vez de uma serva, Deus cria uma aliada que corresponda ao homem, que possa compartilhar de suas tarefas de cultivo e cuidado do jardim.

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Imagino que os primeiros dias de Adão e Eva foram dedicados à prazerosa descoberta do generoso jardim de Deus. Eles colhiam e comiam frutas, podavam videiras, arrancavam ervas daninhas, cuidavam dos animais e aprendiam a trabalhar o solo. Parte da descrição de seu trabalho, em Gênesis 2.15, era “cuidar” ou “cultivar” o jardim. O papel deles era ativo, não passivo. Juntos, eles assumiram lado a lado a responsabilidade, que deve ter envolvido solução de problemas e colaboração.

Juntos, eles poderiam desfrutar da provisão de Deus e evitar o que estava fora dos limites. Só que não o fizeram. Eva se tornou uma figura trágica em pouco tempo. Não sabemos quanto tempo se passou entre sua criação e a rebelião humana; contudo, no tempo da narrativa, foi um mero piscar de olhos.

A história da desobediência de Eva, em Gênesis 3, é tentadora, e deixa muitas possibilidades em aberto. A versão que ela cria do mandamento de Deus é mais rigorosa do que o próprio mandamento original, e inclui um aviso para sequer tocar na árvore. O texto de 1Timóteo 2.14 é frequentemente tomado como uma acusação a Eva, por sua credulidade, embora a intenção de Paulo possa ter sido o contrário: o exemplo de Eva pode mostrar que as mulheres devem ser meticulosamente ensinadas, e não serem afastadas do bom conhecimento. Será que Adão exagerou ao contar para ela sobre a ordem de Deus? Ou será que Eva estava tentando ser cautelosa, acrescentando restrições?

O fato é que a serpente convenceu Eva de que a ordem de Deus não era confiável — que Deus estava escondendo alguma coisa dela, ao impedir-lhe acesso a algo que a beneficiaria, e que aquilo resultaria na própria deificação do ser humano, e não em morte.

E aqui está o problema: a árvore do conhecimento do bem e do mal representava a busca desse conhecimento de forma independente de Deus. Adão e Eva já tinham acesso àquele que iria ensiná-los a diferenciar o bem do mal, enquanto caminhavam com ele pelo jardim. Comer da árvore proibida era uma tentativa de obter conhecimento fora desse relacionamento com Deus — a fim de se tornarem eles próprios os árbitros da verdade.

Após a desobediência fatídica ao ensinamento divino, Deus procura os seres humanos. Ele se dirige a Adão primeiro, provavelmente porque foi para Adão que ele deu a ordem.

Em seguida, Deus se dirige diretamente a Eva. Vale a pena destacar que Deus não responsabiliza Adão pelo pecado de Eva; ela possui dignidade própria como agente moral. A pergunta de Deus lhe dá uma oportunidade de confessar: “A serpente me enganou, e eu comi” (Gênesis 3.13). Katharine Bushnell, médica e estudiosa da Bíblia que morreu em 1946, reformula essa cena para nós. Em God’s Word to Women [A Palavra de Deus para mulheres], Bushnell sugere que a resposta de Eva para Deus foi melhor do que a de Adão. Adão calunia Deus por lhe ter dado Eva, referindo-se a ela como “a mulher que me deste” (v. 12). Também é fácil para nós apontarmos o dedo para Eva, culpando-a pelo predicamento humano, o caminho do pecado que todos nós escolhemos. Eva, em vez disso, corretamente identifica a serpente como a responsável pela tentação e a si mesma como a responsável pela escolha feita.

Called the Anastasis, or the Resurrection, this fresco in Chora Church, Istanbul, depicts Christ pulling Eve and Adam out of their tombs.
Chamado de Anástase, ou Ressurreição, este afresco da Igreja em Cora, Istambul, retrata Cristo levantando Eva e Adão de seus túmulos.

Em resposta, Deus amaldiçoa a serpente, relegando-a à mais baixa das posições. Ele também lhes diz que as dificuldades serão o fruto dos seus pecados.

Então, ouvimos uma clara nota de esperança: Deus promete que a mulher dará à luz um filho que ferirá a cabeça da serpente, mesmo enquanto a serpente tenta ferir o calcanhar do libertador (v. 15). No fim, a criatura por meio da qual o mal ganhou força será esmagada por um pé humano e destruída.

A inimizade que surge entre Eva e a serpente é um bom sinal. Com os olhos bem abertos, Eva e sua descendência estão determinadas a submeter a criação ao comando de Deus.

De forma clara e inequívoca, Eva fez a escolha errada no jardim, com pleno conhecimento e participação de seu marido. Ela pretendia desobedecer. Ela pensou ter encontrado uma fonte mais confiável de sabedoria. Embora eles não tenham experimentado de forma imediata a morte física, os relacionamentos de Adão e Eva são fragmentados em todos os níveis. Eles se escondem de Deus, culpam um ao outro e perdem o acesso ao jardim de Deus, onde há abundância. Eva sabia que tinha sido enganada.

Por essas razões, Eva não é exatamente aclamada como uma heroína da Bíblia. Sua reputação de pessoa rebelde é bem merecida. Temos convivido com as consequências de sua transgressão desde o Éden. Será que não poderíamos até ficar ressentidos com ela?

No entanto, como acontece com qualquer personagem da Bíblia, o momento do fracasso de Eva não é o que a define por completo. Pelo contrário, podemos encontrar um grande encorajamento na história de Eva. A resposta de Deus à sua decisão pecaminosa abre caminho para entrarmos no reino de Deus. Ele poderia ter descartado a criação e começado tudo de novo. Mas não foi isso que Deus fez.

Em vez disso, Deus anunciou uma solução para dar continuidade a seus planos para a criação, por meio da descendência de Eva. No final da história, Deus apresenta Eva não como aquela através de quem o mal entrou no mundo, mas como aquela através de quem virá a salvação. Sua gravidez, por mais difícil que fosse, resultaria na restauração de tudo o que dera errado no jardim. Nesse sentido, ela seria veículo de salvação.

Todos os seres humanos — homens e mulheres — foram feitos à imagem de Deus e designados para governar a criação em nome de Deus (Gênesis 1.26-28). Juntos, fomos incumbidos de “encher a terra e subjugá-la”. O fracasso de Eva em subjugar a serpente e o fracasso de Adão em apoiá-la nessa tarefa essencial levaram à ruína deles. Realinhar-se com os propósitos de Deus coloca Eva em desacordo com os inimigos de Deus. E esse é exatamente o lugar que ela deveria ocupar.

Talvez a declaração que Deus fez, decretando a inimizade entre Eva e a serpente, seja o que inspira Adão a chamá-la de Eva (em hebraico, Hava), termo que soa semelhante à palavra usada para vida. Adão a admira porque ela se tornará “mãe de toda a humanidade” (3.20), dando vida às gerações seguintes. Ela e Adão — nossa mãe e nosso pai — também foram os primeiros de nós a repudiar a tentação e o pecado e a confiar na promessa de Deus.

Deus compassivamente veste os dois e os manda embora do jardim, impedindo o acesso à árvore da vida. A vida sem fim virá, no futuro; mas primeiro a serpente precisa ser esmagada.

Fora do Éden, em Gênesis 4.1, testemunhamos a alegria de Eva pelo nascimento de seu primeiro filho. Ela sabe que esse nascimento é o caminho para o cumprimento daquilo que Deus anunciara no jardim. A versão New English Translation traduz a exclamação de Eva como “Eu criei um homem assim como fez o Senhor!”.

A palavra hebraica para criei soa como Caim — um jogo de palavras apropriado para o primeiro nascimento na Bíblia. É um momento significativo da narrativa, dada a declaração de Deus de que a descendência de Eva esmagaria a cabeça da serpente. Ela reconheceu de forma correta que o milagre de dar à luz é um milagre da criação. Será que este seria o filho, o responsável por esmagar a serpente?

Não é ele. Nem é seu segundo filho. Em vez de esmagar a tentação — que é retratada em 4.7 como um animal que está à espreita, à porta de Caim, pronto para atacar —, Caim coopera com o pecado assassinando o próprio irmão.

The First Mourning by William-Adolphe Bouguereau (1888)
O Primeiro Luto, de William-Adolphe Bouguereau (1888)

O texto não nos diz como Eva reagiu, ou se ela se agarrou à esperança na promessa de Deus, apesar da perda de seus dois filhos, um para a morte e o outro para o exílio. Imagino que Eva carregou o fardo dessa perda como mãe até o seu leito de morte. Eva dá à luz outro filho, em Gênesis 4.25, dizendo que ele substituiria Abel. Embora não ouçamos falar de nenhum desentendimento entre Sete e a serpente, Sete é citado como ancestral direto de Jesus, em Lucas 3.38.

Pelo restante do Antigo Testamento, aguardamos o descendente de Eva que esmagará a serpente. Os ecos da promessa de Deus no jardim reverberam.

Por exemplo, testemunhamos essa centralidade da promessa de Deus a Eva nos salmos imprecatórios. Em Cursing with God: The Imprecatory Psalms and the Ethics of Christian Prayer [Amaldiçoando com Deus: os Salmos imprecatórios e a ética da oração cristã], Trevor Laurence investiga como esses salmos participam da história bíblica mais ampla, clamando a Deus para pôr fim à maldade e estabelecer seu reino.

O mundo desordenado que resultou da rebelião conjunta de Eva e Adão somente poderia ser restaurado por meio da parceria de seus descendentes com Deus, para subjugar aqueles que se opõem ao governo divino.

Laurence observa que os salmos imprecatórios evocam repetidamente a narrativa do Éden. Eles com frequência se referem a inimigos como “serpentes” ou enganadores cuja “cabeça” precisa ser esmagada, e se referem à “semente” dos justos cujo “calcanhar” está sendo vigiado por seus inimigos (Salmos 58.4-6; 56.6). O efeito cumulativo é uma sensação de que os propósitos de Deus, expressos na história do jardim do Éden, ainda estão sendo trabalhados, à medida que o povo de Deus ora pela derrota daqueles que se opõem ao governo de Deus.

Vale a pena ressaltar que não estamos falando apenas de serpentes em sentido literal aqui. Somente aqueles seres humanos que se alinham aos comandos de Deus são considerados a “semente da mulher”, enquanto as pessoas que se opõem ao governo divino são a “semente da serpente”.

A proclamação do Evangelho, então, faz um convite para reconhecer o senhorio de Jesus Cristo. Ele é a semente da mulher. Ele derrotou Satanás de uma vez por todas e é a semente de Abraão que recebe as promessas da aliança. Todos aqueles que seguem a Cristo são considerados filhos de Deus e semente de Abraão, independentemente de etnia, gênero ou status social (Gálatas 3.26-29).

A visão apocalíptica de João, no livro do Apocalipse, inclui uma cena em que uma mulher grávida sofre dores de parto, enquanto um dragão espera para devorar sua prole (12.1-17). Embora a visão inclua um pastiche de imagens simbólicas que aparecem em vários textos apocalípticos, na raiz de todos eles está o anúncio que Deus faz a Eva de que sua semente esmagaria a cabeça da serpente. Para onde mais João teria se voltado para entender essa cena impressionante?

Na época da visão de João, a mulher representa o Israel coletivo, que traz à luz o Messias sob as dores da dominação estrangeira. E a serpente passou por uma metamorfose, transformando-se em um dragão de sete cabeças, uma combinação de impérios malignos que se opõem ao governo de Deus e ao povo de Deus.

João se assegura de não perdermos essa conexão temática, quando interpreta o dragão para nós como “a antiga serpente chamada Diabo ou Satanás, que engana o mundo todo” (v. 9). Embora Gênesis não revele a identidade da serpente, a visão de João interpreta a cena primordial em retrospectiva.

O antagonismo entre o fiel povo de Deus, à espera do governo do Messias, e o dragão atinge um ponto crítico. Mas Satanás não tem a última palavra. O filho é “arrebatado para junto de Deus e do seu trono”, onde toma seu lugar como governante das nações (v. 5). Satanás é preso por mil anos (20.2-3) e encontra seu fim definitivo no lago de fogo (v. 10).

A visão de João em Apocalipse atinge seu clímax com a cena vívida de um jardim restaurado na Nova Jerusalém, onde os seres humanos podem viver novamente na presença de Deus (22.1-2). As intenções de Deus para a criação são realizadas, por fim e completamente, na gloriosa visão de João.

Quando voltamos ao início, é impressionante o fato de que Deus anuncia a promessa de redenção a Eva, e não a Adão. A “mãe de toda a humanidade” é aquela por meio de quem a semente prometida virá. Como Bushnell escreve, “A Bíblia, desde seus capítulos iniciais, retrata a mulher como aliada de Deus na futura salvação do mundo.”

Embora Eva tenha sido, de forma parcial e ativa, responsável pela rebelião humana no jardim, o seu fracasso, junto com o de seu marido, não é a última palavra. Eva não é um modelo de inocência, mas também não é uma cortesã empenhada em seduzir.

Pelo contrário, a Bíblia a apresenta como paradigma para a participação essencial das mulheres na obra redentora de Deus e como uma pessoa complexa com uma história trágica. E ela é família — é nossa mãe, na esperança e também na ancestralidade. Por mais falha e humana que Eva fosse, nas palavras de Bushnell, “Deus a elevou à posição honrosa de inimiga de Satanás e progenitora do Messias vindouro.”

O que isso significa para nós, como descendentes de Eva? Como o mandamento de Deus para honrarmos pai e mãe (Êxodo 20.12) se aplica à “mãe de toda a humanidade” cuja escolha levou a este mundo de dores?

Nosso dever aqui não é tentar apagar o pecado que ela própria confessou a Deus. Nem é necessariamente honrar Eva pela imitação, embora o cultivo e a maternidade sejam em geral bons e muitas de nós sejamos chamadas para ambos [ainda que em sentido espiritual]. A melhor maneira para todos nós, homens ou mulheres, honrarmos Eva é mantendo-nos hostis em relação a qualquer coisa que se coloque em oposição ao reino de Deus. Aprendemos com Eva a cultivar uma sabedoria fundamentada naquilo que Deus, em sua Palavra, afirma ser bom. E celebramos a semente de Eva, o nosso Messias, Jesus, que esmagou a Serpente e que nos convida a anunciar a redenção disponível a todos.

Deus primeiro apresenta Eva a Adão como uma companheira na tarefa de cuidar da criação e atender ao mandamento de Deus. Quando eles deixam o jardim, Eva é a última esperança de Adão para reverter a maldição sobre a criação. O pecado da “mãe de toda a humanidade” não apagou a possibilidade da participação futura das mulheres na redenção. Gerações depois, a submissão voluntária de Maria ao convite de Deus para gerar o Messias reverte os efeitos do grave erro de Eva. Aquele que foi ferido por nossa causa amarrou Satanás e o esmagará de uma vez por todas.

Carmen Joy Imes é professora associada de Antigo Testamento na Biola University e autora. Sua obra mais recente é Being God’s Image: Why Creation Still Matters [À Imagem de Deus: Por que a criação ainda importa; junho de 2023].

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News

Rina Seixas: Um pouco da vida e da obra do icônico pastor fundador da Bola de Neve

A igreja atraiu celebridades e fundou 500 congregações em seis continentes. Nos últimos tempos, Rina enfrentou acusações feitas por familiares e uma ex-funcionária.

Rina Seixas
Christianity Today November 21, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Image: Courtesy of Bola de Neve Church

Rinaldo Seixas Pereira, o polêmico fundador da Igreja Bola de Neve, que se tornou um movimento com 500 congregações ao redor do mundo, morreu em um acidente de moto em Campinas, no domingo, 17 de novembro. Ele tinha 52 anos.

O apóstolo Rina, como era conhecido por muitos cristãos, estava voltando para casa, na tarde de domingo, após ter falado no Pregadores do Asfalto, um estudo bíblico da sua igreja direcionado para motociclistas, quando caiu da moto e sofreu fraturas múltiplas. Ele morreu no hospital, horas mais tarde, na noite daquele mesmo dia.

Em 1999, a Igreja Bola de Neve começa sua trajetória em uma sala, que ficava no andar de cima de uma loja de surfe chamada Hawaiian Dreams, em São Paulo. Embora a igreja tenha tido um crescimento exponencial nos 25 anos seguintes, o apóstolo Rina era alvo de escândalos pessoais e de controvérsias. Recentemente, ele enfrentava na justiça acusações de violência doméstica, as quais levaram os anciãos da igreja a removê-lo do cargo de presidente do conselho, em junho. Após as denúncias, sua esposa, Denise Seixas, conseguiu na justiça uma medida protetiva contra ele, depois que ela e o filho (enteado de Rina) relataram que ele havia agido com violência contra eles.

No entanto, Rina é lembrado como “um revolucionário, que ganhou muitas vidas improváveis ​​para Jesus, que mobilizou a juventude cristã do Brasil”, escreveu no Threads Fred Arrais, um cantor cristão e pastor da igreja batista Igreja Angelim, no estado do Piauí.

“Você foi uma pessoa que transformava o mundo e, de muitas maneiras, você mudou nosso mundo e ajudou a tornar possível alcançarmos centenas de milhares de pessoas no Brasil”, escreveu Mark Mohr, vocalista da banda de reggae cristã Christafari, no Instagram. “Você foi um plantador de igrejas com centenas de congregações em mais de 30 países.”

Rina nasceu em São Paulo, em 15 de abril de 1972. Ele era o filho mais velho de um casal batista, Lídia Colomietz e Rinaldo Pereira. Ele nasceu após um parto complicado, e os médicos tiveram de retirá-lo com fórceps do útero da mãe. Rina tinha duas irmãs, Daniela e Priscila, que se tornaram pastoras na Bola de Neve.

Na infância, ele frequentou o Colégio Batista Brasileiro e, depois, estudou publicidade, acumulando aprendizados que um dia usaria como pastor de uma megaigreja. Na juventude, porém, Rina se afastou do cristianismo: aos 20 anos era dependente de drogas e tinha contraído hepatite. Ele se reconectou com a sua fé depois de um encontro que, mais tarde, ele descreveu como uma “sensação de morte”.

Logo após essa experiência, Rina começou a frequentar a Renascer em Cristo, em São Paulo, congregação ligada ao movimento neopentecostal que começou a se desenvolver na década de 1970, conhecida por pregar o evangelho da prosperidade e batalha espiritual, bem como por transmitir essas mensagens através de seus próprios meios de comunicação de massa.

Depois de servir por vários anos como líder do ministério de evangelismo dessa igreja, em 1999, Rina começou sua própria igreja com a bênção de Estevam Hernandes, o fundador da Renascer em Cristo. A nova comunidade seria fortemente influenciada pelo que Rina tinha visto em sua antiga igreja, mas, ao mesmo tempo, seria um ambiente acolhedor para os jovens.

Surfista de longa data, Rina perguntou a seus amigos, os donos da Hawaiian Dreams, se ele poderia começar uma igreja em sua loja. Quando eles concordaram, pelo menos 130 pessoas compareceram à primeira reunião. Em uma história que Rina contaria inúmeras vezes depois, o espaço não tinha um púlpito ou sequer uma mesa onde ele pudesse colocar a Bíblia. Ele, então, improvisou: tomou emprestado um longboard (uma prancha de surf) e colocou-o sobre duas cadeiras, numa disposição que se tornou uma característica marcante da comunidade.

A cultura do surf na igreja não era a única coisa que intrigava os novatos. A Renascer em Cristo foi uma das primeiras a abraçar a música contemporânea como forma de se envolver e se conectar com os jovens. A Bola de Neve foi mais longe, realizando cultos com música alta e luzes estroboscópicas, em bares e casas de shows. Nas paredes, painéis iluminados exibiam frases de efeito em inglês, como “In Jesus we trust” [Em Jesus nós confiamos].

O nome da igreja veio de uma visão sobre seu crescimento — “uma bola de neve que, começando pequena, virava uma avalanche”, como Rina descreveu no site da igreja. Em contraste com muitas igrejas evangélicas do início do século 21, a Bola de Neve atendia diretamente o público jovem por meio de sua ênfase em adoração contemporânea, uso de linguagem informal na pregação, aceitação de tatuagens e um código de vestimenta mais casual. (O sucesso da Bola de Neve, por sua vez, influenciou muitas congregações evangélicas a empregarem estratégias semelhantes para atrair os jovens).

Desde o início, a Bola de Neve atraiu artistas, atletas e outras celebridades, e manteve ao longo do tempo a reputação de igreja descolada. Gabriel Medina, Sasha Meneghel, e as atrizes Fernanda Vasconcellos e Danielle Winits estão entre seus frequentadores mais famosos. Muitas das igrejas locais da Bola de Neve também organizam um “ministério de lutas”, nos quais os congregantes frequentam aulas de jiu-jitsu e, às vezes, participam de competições patrocinadas pela igreja.

A pregação de Rina frequentemente invocava imagens da vida cotidiana e gírias. “Na casa de Deus não tem leite derramado, nem feijão queimado, nem arroz grudado, amém?”, foi o que o surfista-pastor certa vez pregou do púlpito, conforme relata Eduardo Maranhão, em seu livro A Grande Onda Vai te Pegar.

Por trás desse estilo coloquial estava uma tentativa de ajudar os cristãos a responderem com eficácia à cultura contemporânea. “Jesus usava uma linguagem peculiar e inovadora”, escreveu Rina. “Ao mesmo tempo em que pregava o conteúdo das escrituras com grande propriedade, expunha os ensinos bíblicos com uma roupagem nova e instigante, através de parábolas, comparações e metáforas.”

Para ele, o cristianismo contemporâneo havia se tornado morno e conformista. “Um dos maiores problemas da Igreja hoje é a perda de sua essência de contracultura”, escreveu ele em seu site. “Se não for baseada na confiança em Deus, a busca pelo Senhor pode nos levar a destinos estranhos e perigosos.”

Embora a igreja nunca tenha anunciado uma estratégia intencional de plantação de igrejas internacionais, a diáspora brasileira organizou e abriu igrejas Bola de Neve locais (com púlpitos de pranchas de surfe) em países tão diversos quanto Estados Unidos, Moçambique, Espanha, Índia, Japão e Austrália, o que lhe permitia alegar que tinha congregações em todos os continentes.

À medida que crescia, a Bola de Neve conseguiu se manter distante de grande parte da cobertura negativa da imprensa que caracterizava muitas congregações neopentecostais. Mas isso mudou este ano.

Em maio, ex-membros de uma congregação do estado de Santa Catarina acusaram a igreja de administrar mal as doações dos fiéis para um projeto destinado a apoiar mulheres empreendedoras. (Na justiça, a igreja negou quaisquer irregularidades).

Dias depois, o cantor cristão Rodolfo Abrantes divulgou um vídeo no qual disse que ele e sua esposa sofreram abuso ​​emocional, no tempo em que ambos foram membros da mesma congregação Bola de Neve, e que os líderes o acusaram de dever dinheiro à gravadora da igreja, a Bola Music.

Rina não comentou publicamente essas acusações.

As acusações começaram a chegar mais perto do líder-fundador. No mesmo mês, Nathan Gouvea, enteado de Rina, disse que fora espancado pelo padrasto e o citou como responsável direto pelas práticas de gestão abusivas que foram denunciadas em Santa Catarina. Ele também alegou que a Bola de Neve era uma seita. “Todo mundo morre de medo do apóstolo”, disse ele.

Em junho, a esposa de Rina, Denise Seixas, pastora da Bola de Neve e cantora cristã, obteve uma medida protetiva na justiça contra Rina, acusando-o de violência física e psicológica.

Em seu depoimento à polícia, ela disse que Rina havia lhe dado um soco no nariz. Gravações de áudio e vídeos vazados nas redes sociais na época mostravam Rina xingando e acusando a esposa de “ouvir demônios”.

Na mesma semana, os anciãos destituíram Rina e Denise da presidência e vice-presidência, respectivamente, da Bola de Neve. O conselho também anunciou a criação de um canal de ouvidoria (um endereço de e-mail para onde as pessoas poderiam enviar reclamações e denúncias) para tratar de “possíveis falhas e má conduta”, além da criação de um conselho de ética para investigar e deliberar sobre irregularidades.

Em junho, uma ex-funcionária da igreja foi à polícia para acusar Rina por importunação sexual. Em seu depoimento, ela relatou várias situações de comportamento inapropriado que ocorreram entre 2012 e 2017, que culminaram em uma tentativa de Rina de agarrá-la. Quando ela saiu do local, disse que tinha hematomas visíveis no braço resultantes do “embate”.

Após essas denúncias, em julho, um tribunal em São Paulo ordenou que Rina entregasse à polícia todas as armas que possuía, em um prazo de 48 horas. Ele informou que as armas estavam guardadas em um clube de tiro e permitiu que a polícia tivesse acesso a elas.

Com a morte de Rina, ainda não está claro como as autoridades e a liderança da igreja abordarão as acusações de má administração, abuso e agressão. Na declaração que anunciou seu falecimento, a Igreja Bola de Neve disse apenas que “Neste momento de grande tristeza, nos colocamos em oração por sua família, amigos e toda a igreja que foi tão abençoada por seu ministério, deixando um legado que jamais será esquecido”.

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Ideas

Chamado e trabalho são coisas diferentes

Frequentemente confundimos nossa vocação com o propósito de Deus para nossa vida. Isso é bíblico?

A small woman pushing a briefcase with papers and paperclips flying out of it.
Christianity Today November 20, 2024
Illustration by Simone Noronha

Quando os cristãos falam sobre trabalho, grande parte da conversa gira em torno de discernir o plano de Deus para a sua vida. Como alguém que se formou em uma universidade cristã, percebo que escolas confessionais e igrejas frequentemente pedem que os jovens reflitam sobre questões como: “qual é a vontade de Deus para a sua carreira?”

Sim, essa é uma questão importante — discernir o chamado de alguém para um caminho vocacional específico e segui-lo de todo o coração pode levar a um senso de realização e de sentido no trabalho. Presumivelmente, também faz parte do processo de fazer boas obras, as quais Deus de antemão preparou para nós as praticarmos (Efésios 2.10). Mas, muitas vezes, quando discernimos um chamado vocacional, presumimos que tudo o que precisamos para cumpri-lo é decifrar o plano de Deus e encontrar um emprego que se encaixe nisso.

Essa suposição é enganosa, na melhor das hipóteses, e talvez até prejudicial. Por quê? A seguir aponto alguns problemas comuns relativos a ela que encontrei em minha pesquisa.

Uma jovem universitária vê a música como sua vocação. Depois de anos tocando em bares pequenos, sem perspectiva de ter um emprego sustentável de longo prazo, ela desiste. E consegue um emprego estável como gerente de um restaurante. Mas, para ela, o trabalho parece algo aquém de suas expectativas, como se fosse um desperdício dos talentos que Deus lhe deu. Supostamente, sua grande chance na música deveria ter sido o primeiro passo para a carreira certa.

Outro jovem se sente chamado para trabalhar com jovens problemáticos, mas seus pais insistem para que ele arrume um emprego estável, a fim de pagar seus estudos. A cada manhã, quando vai para o escritório, ele sente que está se vendendo, em vez de fazer o que Deus claramente lhe disse para fazer.

Ou pense em uma família de dedicados missionários. Depois de passar por uma série de problemas que estão fora de seu controle com o pedido de visto, eles retornam ao seu país de origem, sentindo que falharam com Deus e com a missão que receberam.

Ou pode ser que você já tenha sentido algumas das primeiras alegrias de ir atrás do seu chamado, com todo o seu coração, e talvez até encontrado um emprego que se encaixasse perfeitamente nele. Mas, às vezes, um chamado — especialmente quando não se realiza — de alguma forma gera sentimentos de esgotamento, estresse, fracasso e insatisfação.

Se o chamado vocacional é algo tão bom e tão nobre de se buscar, por que às vezes — ou até mesmo muitas vezes — ele leva a tantos questionamentos e dores de cabeça?

Acredito que nossa compreensão do chamado vocacional precisa passar por uma atualização — que o desvincule das visões modernas de sucesso profissional e amplie a compreensão que temos de trabalho e de tempo. Se fizermos isso, pode ser que encontremos uma abordagem mais saudável para discernir e ir atrás do nosso chamado.

Em meus estudos de PhD na área de psicologia vocacional, tive contato com décadas de pesquisa sobre a noção de chamado e seus efeitos positivos. Grande parte desses estudos aponta para uma correlação entre um senso de chamado e sentimentos de satisfação, eficácia e senso de sentido. O chamado pode melhorar até o desempenho profissional.

Mas nem sempre o cenário é tão otimista. A pesquisa acadêmica começou a destacar um “lado ruim” de se ir atrás de um chamado.

Quando não falamos com precisão do chamado vocacional, tendemos a fazer falsas inferências, particularmente no que se refere à necessidade e ao controle sobre os resultados alcançados. Em geral, presumimos que devemos identificar o chamado vocacional ou que, uma vez que o identificamos, devemos encontrar um emprego que realize esse chamado.

E isso nem sempre é verdade. Todo cristão pode glorificar a Deus e ouvir seu chamado em outros aspectos de sua vida, mesmo sem ter identificado um chamado vocacional específico.

Nós não deveríamos dizer uns aos outros que discernir um chamado — e muito menos cumpri-lo — é requisito para ser um cristão piedoso. Em vez disso, podemos enfatizar que esse discernimento é uma meta desejável e valiosa, que depende das circunstâncias certas. É mais como ter uma casa (algo bom de se ter) do que exercer hospitalidade (uma virtude cristã).

Mesmo que alguém tenha identificado alguma vocação, pode ser que simplesmente não haja oportunidades de emprego suficientes na área desejada, ou que outra força externa possa impedir essa pessoa de entrar ou de permanecer naquele campo, independentemente de quanto ela se empenhe para isso. Isso pode levar a pessoa a sentir uma pressão avassaladora, que parte de expectativas irracionais para construir uma carreira.

Muitas pessoas sentem arrependimento, estresse ou decepção quando reconhecem uma vocação que não se realiza. Em um estudo com 378 membros do corpo docente de faculdades americanas, aqueles que sentiam que sua vocação não se realizava por meio de seu trabalho atual relataram piores resultados em áreas como vida, trabalho e saúde do que aqueles que não sentiam ter vocação alguma. Os pesquisadores concluíram que “ter uma vocação é algo benéfico apenas se esta se realizar, mas pode ser prejudicial quando não se realizar, se comparado a não ter vocação alguma”.

Outro estudo entrevistou 450 músicos, ao longo de 11 anos, e descobriu que aqueles que sentiam fortemente uma vocação para a música eram mais propensos a seguir a carreira musical profissionalmente. Isso a despeito de, ironicamente, “um padrão intrigante, segundo o qual a experiência vocacional inicialmente mais forte levava a uma percepção maior da habilidade que não se refletia em maior habilidade concreta”. Em outras palavras, o senso de vocação dos participantes da pesquisa não se alinhava com seu nível de talento.

Enquanto tentam entrar no campo em que acreditam que deveriam estar, as pessoas podem se deparar, como alguns pesquisadores colocam, com “estados desagradáveis ​​de arrependimento por não terem insistido em sua vocação, e estresse devido a dificuldades de ir atrás de sua vocação não realizada”.

Além disso, mesmo quando as pessoas encontram empregos que atendem à sua vocação, elas geralmente ficam suscetíveis a comportamentos laborais que levam a burnout e a um equilíbrio ruim entre vida pessoal e profissional.

Um dos primeiros relatos desse lado obscuro do chamado vocacional veio de um estudo de 2009 focado em cuidadores de animais de zoológicos, nos EUA. Os pesquisadores descobriram que os trabalhadores que tinham um forte senso de chamado se beneficiavam de um senso mais amplo de sentido e importância de seu trabalho, mas também sofriam por abrir mão de salários justos, tempo e conforto. Em seu estudo de 2023 sobre educadores luteranos, Krista E. Hughes, professora do Newberry College, chamou isso de “imposto da paixão” que se tornou “assustadoramente alto”.

Permitir que nosso senso de chamado supere outras necessidades reais parece ser um caminho particularmente escorregadio, quando alguém tem um chamado voltado para ocupações de baixa renda, alta carga de trabalho e alto nível de estresse com poucos limites entre trabalho e vida pessoal, como, por exemplo, o trabalho pastoral. Não é incomum ouvir falar de pastores que trabalham por muitas horas, voluntariamente, nunca pedem um aumento justo de salário e, acabam  se esgotando e deixando o ministério.

Quero encorajar a todos, jovens e velhos, a pensarem com cuidado sobre o que acreditam que Deus os chamou a fazer. Podemos orar: “Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, ensina-me as tuas veredas” (Salmos 25.4). Podemos pedir a Deus: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que o nosso coração alcance sabedoria” e “consolida a obra de nossas mãos” (Salmos 90.12, 17). Sabemos que Deus nos convida a participar da sua vontade na terra e no seu reino, e pedimos que nos capacite de maneiras que nos permitam realizar essa vontade (Hebreus 13.20-21).

Meus colegas e eu publicamos um artigo de pesquisa, no ano passado, que defende uma nova conceituação de chamado. Acredito que esse material seja especialmente importante para os cristãos.

O primeiro passo para isso pode ser desvencilhar nossa compreensão de chamado das visões modernas de sucesso na carreira. Quando dizemos que determinado trabalho é nosso chamado, parece que colocamos sobre ele a expectativa adicional de que devemos “ter sucesso” naquele trabalho. Talvez não uma expectativa financeira — especialmente se for um chamado para o ministério —, mas ao menos expectativas de outros tipos, e muitas vezes olhamos para maneiras de medir o sucesso como uma forma de validar que estamos de fato cumprindo o nosso chamado. Quer seja uma promoção, influência cultural ou o crescimento da igreja, vemos isso como evidência de que estamos fazendo a vontade de Deus com eficácia, e esperamos ver resultados, se de fato estivermos em uma função para a qual fomos chamados.

Só para esclarecer, os sinais de sucesso por si só não são ruins. Mas eles podem ser facilmente transformados em ídolos, que, por sua vez, transformam objetivos nobres em orgulho e expectativas irracionais. Além disso, muitas vezes eles colocam nosso foco no mundo, e não em Deus. John Piper escreve em seu livro A Hunger for God [Fome de Deus]: “O maior adversário do amor a Deus não são os inimigos de Deus, mas os seus dons…Pois quando estes [dons] substituem nosso apetite pelo próprio Deus, a idolatria torna-se algo difícil de reconhecer e quase incurável.”

A jornada de cada um para discernir e ir atrás de seu chamado é diferente e tem resultados diferentes. Perceber isso nos liberta de viver segundo um padrão do que seja um “chamado cumprido” e nos permite explorar, pela fé, o que Deus tem reservado para cada um de nós.

A partir disso, precisamos ampliar nossa compreensão do trabalho e do chamado. O “trabalho” pode abranger muito mais do que apenas um emprego remunerado. O escopo do nosso chamado pode ser cumprido não por meio de um único emprego estritamente definido, mas por um amplo espectro de atividades, as quais podem ou não pertencer ao domínio do emprego remunerado.

Talvez você seja chamado para ser um escritor. Isso não significa que você precisa ser um escritor profissional, cuja única fonte de renda venha de lançar livros que façam sucesso. Seu chamado pode ser cumprido por meio dos contos que você escreve para os recursos educacionais da sua igreja ou dos livros que você lança de vez em quando para abençoar a vida de alguns leitores.

Sua ocupação principal e seu chamado podem ser buscados simultaneamente, quando não coincidirem. Veja Paulo, que foi chamado diretamente por Deus, na estrada para Damasco, com o intuito de servir como um catalisador para o crescimento da igreja primitiva (Atos 9). Ele também parece ter continuado com seu trabalho diário como fabricante de tendas, uma função que ele usava para se sustentar e promover o reino de Deus por meio de suas atividades (Atos 18.2-3; 1Tessalonicenses 2.9).

Também precisamos ampliar nossa compreensão do período de tempo de um chamado. Quando começamos a buscar a vontade de Deus para a nossa vida por meio de um chamado, parecemos presumir que é uma busca imediata. Na realidade, porém, o chamado pode levar um tempo para se concretizar. Em outras palavras, podemos discernir o chamado de Deus bem cedo na vida, mas o caminho que ele estabeleceu para nós pode nos levar por uma série de reviravoltas, durante muitos anos, antes de encontrarmos uma ocupação por meio da qual possamos cumprir nosso chamado.

Esse tempo não deve ser considerado um desvio de rota ou um tempo perdido. Ele é um importante trampolim que Deus está usando para nos moldar e formar, preparando-nos para o futuro. Tomemos, por exemplo, os sonhos de José sobre seu futuro, relatados pela primeira vez em Gênesis 37. Eles só se realizaram anos depois — após inúmeras provações e adversidades.

Da mesma forma, depois de encontrar um trabalho que cumpra nosso chamado, precisamos lembrar que ele não dura para sempre. Alguns chamados podem durar apenas alguns anos, enquanto outros podem durar a vida inteira. Quando seu trabalho muda, devido a fatores como uma demissão, as necessidades de sua família ou o surgimento de uma nova tecnologia, isso não significa que você perdeu seu chamado. Talvez você tenha cumprido esse chamado vocacional, e Deus esteja lhe apontando na direção de um novo chamado ou de uma pausa temporária.

O campo do aconselhamento de carreira já está mudando sua abordagem quanto a ideia de chamado. Antes, alguns conselheiros relutavam em ajudar estudantes a discernirem um chamado, acreditando que essa iniciativa poderia sair pela culatra, se as circunstâncias do estudante estivessem levando a um emprego que ficasse fora da sua percepção de chamado. Então, um estudo de 2020 sugeriu que os conselheiros de carreira podem ajudar os jovens a discernirem uma vocação sem ter a preocupação de que suas vidas serão afetadas negativamente se não a seguirem.

Os benefícios de tentar identificar o chamado de um jovem ficaram especialmente claros quando os conselheiros encorajaram os indivíduos a serem flexíveis em relação ao que seu chamado e sua ocupação podem se parecer na vida real. Isso também pode mitigar efeitos adversos, como burnout, equilíbrio ruim entre vida pessoal e profissional e estresse prejudicial à saúde.

Mas ainda há motivos para cautela. Um estudo com músicos amadores apontou uma preocupação digna de nota: aqueles com um senso mais forte de chamado tendiam a ser mais dispostos a ignorar conselhos relacionados à carreira dados por um mentor confiável, se tais conselhos estivessem em desacordo com a percepção que tinham de seu chamado profissional.

Tomados em conjunto, esses fatores me levam a concluir que devemos investir em mais estudos e recursos voltados para aconselhamento de carreira.

Os cristãos precisam discernir e ir atrás de seus chamados vocacionais. No entanto, fazer isso com foco no propósito mais amplo de servir no reino de Deus pode mudar a forma como percebemos o chamado, e aumentar nosso deleite a respeito das variadas formas e aspectos do chamado de Deus para a nossa vida — algo que vai muito além de um emprego. Talvez, possamos trocar as perguntas que fazemos por perguntas melhores como estas:

Será que só posso cumprir meu chamado por meio de um trabalho específico de tempo integral?

Um trabalho que se alinha com meu chamado está disponível para mim agora, ou terei que esperar mais?

Estou pressupondo que meu chamado durará por todos os meus anos de trabalho, ou ele pode mudar com o tempo?

Para todos que buscam a melhor forma de usar os dons que Deus lhes deu, eu digo: Orem ativamente e busquem conselhos sábios, sabendo que sua carreira e seu chamado não são a mesma coisa. Podemos encontrar realização nos lugares mais improváveis.

Steven Zhou tem um PhD em psicologia organizacional pela George Mason University, onde agora leciona como membro adjunto do corpo docente; ele também atua como diretor de operações de sua igreja.

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Theology

O Advento também é para os que estão tristes e solitários

O que esse tempo em que antecipamos o Natal tem a ver com o deserto?

Christianity Today November 15, 2024
KariHoglund / Getty Images

Normalmente as pessoas possuem opiniões diferentes sobre o Natal. Alguns esperam por essa época do ano com intensa antecipação e entusiasmo, enquanto outros prefeririam evitar a data.

Normalmente, eu faria parte do primeiro grupo. Mas já tive algumas estações do Advento [esse período que antece o Natal] em que me vi tentando evitar o clima natalino e seus festejos, pois eu me sentia estranhamente vazia e exausta com toda essa agitação característica da época. Assim foram os primeiros Natais depois que meu pai morreu. E embora eu tenha tido a sorte de ter crianças bastante animadas com o Natal em casa, que me arrastaram de volta para as festividades, pude entender esse gostinho da tristeza que é comum nessa época para algumas pessoas.

Uma temporada que tem tudo a ver com família pode ser um momento desesperadamente solitário para pessoas que estão vivendo isoladas, sofrendo a perda de um ente querido ou tentando lidar com algum estresse na família. E para aqueles de nós que seguem o calendário litúrgico, se o Advento chegar em um momento em que espiritualmente estivermos em um lugar estéril, o chamado para abrirmos nosso coração para a temporada pode intensificar nossa sensação de incerteza ou de alienação.

Sem dúvida, algumas pessoas este ano simplesmente não estão “no clima” para pensar em Advento, devido a alguma circunstância pessoal. Talvez a estação encontre você em um momento extremo de tristeza ou em um deserto de distanciamento espiritual. Se for esse o caso, é importante lembrar que o Advento é uma estação que também fala de anseio, vazio e espera. É um tempo que separamos para nos ajudar a perceber que precisamos ser libertos de nossa condição atual.

Coincidentemente, existem duas passagens muito significativas que se passam no deserto e que são sempre lembradas no Advento: Isaías 40 e Marcos 1.

Em Isaías 40, os israelitas estão vivendo em um extremo de exílio político e desolação espiritual. Depois de vários capítulos de exortações e julgamento, Deus começa a falar de esperança por meio de seu profeta.

“Consolem, consolem o meu povo”, ele começa. “Encoragem a Jerusalém” (v. 1). E então uma voz clama: “No deserto preparem o caminho para o Senhor; façam no deserto um caminho reto para o nosso Deus” (v. 3).

Esta metáfora, que fala de uma espécie de via expressa que atravessa o deserto, é dos temas favoritos de Isaías. Ele pede que o ouvinte imagine uma terra ressequida e inóspita, quase intransitável, a leste de Jerusalém, sendo transformada em um caminho largo e acolhedor. Tal metáfora tem ao menos duas camadas de sentido.

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Primeiro, para os israelitas que estavam há muito exilados, ela é uma promessa da tão esperada volta ao lar. Esta passagem está reverberando um assunto citado anteriormente, em Isaías 35, onde o profeta promete aos israelitas que eles um dia voltarão a Sião, com cânticos de alegria enquanto caminham. Ele os assegura de que chegarão lá por uma grande estrada, um caminho de santidade, no qual não haverá leão algum nem outros animais ferozes. Em outras palavras, um caminho livre de ameaças e perigos se abrirá para eles.

Mas a metáfora também tem outro sentido.

Pois, sempre que um rei estava chegando a uma cidade, um arauto era enviado à frente, para anunciar a chegada iminente e para garantir que a cidade anfitriã iria estender o tapete vermelho e preparar o caminho para receber o rei. Então, para os ouvidos de um israelita, a voz de alguém que clamava para que preparassem um caminho no deserto significava não apenas que eles iriam voltar para casa, mas também que o próprio Senhor está a caminho.

Isaías lembra seus ouvintes que tudo muda quando o rei chega à cidade. Ele promete que “Todos os vales serão levantados, todos os montes e colinas serão aplanados; os terrenos acidentados se tornarão planos; as escarpas serão niveladas.” (40.4).

Essa ideia de vales sendo levantados e de montes sendo aplanados me chama a atenção. Percebo que eu mesma sou uma mescla de montes e vales, de lugares altos e baixos — uma mistura curiosa de arrogâncias e inseguranças. Muitas vezes acabo pensando em mim mesma, se me permite parafrasear Anne Lamott, “como o pedaço de lixo em torno do qual o mundo gira”. Mas Isaías pede que eu permita que meus lugares de arrogância sejam nivelados para chegar à humildade adequada, e minhas zonas de desespero sejam levantadas até alcançar a coragem e a esperança.

Além do mais, como essa tarefa de preparar o caminho no deserto é dada à toda a comunidade, há uma implicação inegável de que a disparidade entre os “que têm” posses e os “que não têm” deve ser nivelada, chegando em uma equidade para todos. Então, Isaías nos clama no deserto e nos convida para uma jornada rumo à santidade pessoal e à mobilização, à transformação social.

E não é só Isaías que nos chama a preparar um caminho. Na leitura do Novo Testamento para o Advento, os versículos de abertura do Evangelho de Marcos incluem uma citação direta de Isaías 40. Marcos nos diz que agora a “voz do que clama no deserto” é João Batista, que chegou à cena como um cumprimento direto da profecia de Isaías. E o único foco de João Batista é anunciar a vinda do rei — de Jesus — que é o cumprimento direto de todas as promessas já feitas ao povo de Deus.

É importante notar que João Batista não é apenas uma voz que clama para o deserto — ele é uma voz que clama no deserto, do deserto. Ele é um morador do deserto, e seu ministério está acontecendo nos lugares áridos que ficam a leste de Jerusalém.

João Batista cresceu sabendo que tinha um chamado especial em sua vida. Ele era filho de Zacarias e Isabel — um casal que já havia suportado uma vida inteira de infertilidade, e que teve seu primeiro filho quando já eram idosos. Seu nascimento foi um milagre inegável, o qual havia sido anunciado por um anjo em um discurso que também deixou claro que João tinha um papel incrível a desempenhar na história da salvação.

Mas, então, por que João optou por viver no deserto? Você pensaria que um jovem com uma linhagem espiritual como essa se colocaria na vitrine da sinagoga mais influente da região — ou melhor ainda, do templo — e esperaria que os líderes religiosos reconhecessem sua autoridade. Em vez disso, porém, João escolheu ir para as colinas. O que ele sabia sobre o deserto que nós não sabemos?

Talvez João tenha optado por viver no deserto porque já tinha ouvido o suficiente da história de Israel para saber que Deus é especialista em fazer coisas boas surgirem de lugares pouco promissores.

Afinal, Deus havia trabalhado na história da salvação por meio de casais sem filhos, irmãos rivais, líderes gagos, reis rebeldes e, agora, por meio de Jesus, um jovem de paternidade questionável, nascido e criado em algumas cidadezinhas do interior. “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?”, perguntou incrédulo um discípulo em potencial, quando soube de onde Jesus era.

João sabia que, quando Deus está envolvido, algo de bom poderia, sim, vir até mesmo de uma cidade de reputação questionável como Nazaré. E algo de bom poderia vir do deserto também.

Marcos nos conta que, mais tarde, Jesus se juntou a João no deserto e insistiu para que João o batizasse. Assim que Jesus saiu da água, o espírito de Deus desceu visivelmente sobre ele na forma de uma pomba, e uma voz vinda do céu afirmou publicamente a identidade de Jesus como o filho amado do próprio Javé. Você poderia pensar que, depois de uma afirmação tão incrível, Jesus passaria diretamente para seu ministério público; porém, não foi isso que aconteceu. O mesmo Espírito que desceu sobre ele como uma pomba o compeliu a entrar ainda mais fundo no deserto.

Jonathan Martin argumenta que a jornada de Jesus no deserto, por 40 dias e 40 noites, foi tanto uma dádiva quanto uma provação.

Embora a experiência de Jesus no deserto não tenha sido fácil — ele jejuou por quarenta dias e quarenta noites, e foi confrontado pelo diabo — o diabo não foi o único que ele encontrou por lá. O espírito enviou ao deserto um Jesus revigorado pela afirmação de sua identidade aos olhos de Deus, e permitiu que ele se afastasse de sua vida cotidiana, até que o barulho e a pressa do mundo ao seu redor fossem reduzidos a um ponto em que ele pudesse facilmente distinguir a voz do acusador da voz do Pai. O mesmo pode ser verdade para nós.

Então, se você se encontra em uma terra árida neste Advento, considere a possibilidade de estar, na verdade, recebendo as dádivas do deserto. O Advento é um tempo de espera, e o deserto é um lugar tão bom quanto qualquer outro para esperar — talvez até o melhor lugar de todos. Se você está se sentindo um pouco vazio, talvez isso seja uma coisa boa. Afinal, há uma voz clamando no deserto, e ela está nos pedindo para preparar um lugar para Jesus em nossos corações.

Carolyn Arends é diretora de educação no Renovaré Institute for Christian Spiritual Formation. Ela também é artista, palestrante, autora e instrutora universitária.

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