Bavinck alerta: sem o cristianismo, o racismo e o nacionalismo prosperariam

O teólogo holandês argumentou que a visão de mundo bíblica é fundamentalmente incompatível com o etnocentrismo.

Christianity Today July 11, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye

Não é segredo para ninguém que o teólogo holandês Herman Bavinck tem passado por um renascimento nos últimos anos, como também já apontou James Eglinton, em um artigo anterior para a CT.

Desde que a tradução para o inglês da obra seminal de Bavinck, Dogmática Reformada, foi lançada em 2008, tem havido uma constante avalanche de releituras sobre sua vida e seu pensamento. Mais recentemente, novas traduções de textos menos conhecidos, mas não menos importantes, incluem obras suas como Cosmovisão Cristã, Cristianismo e Ciência e Manual de Instrução na Religião Cristã; além disso, foram publicadas novas edições de Filosofia da Revelação, baseada em suas Palestras Stone de 1908, e As Maravilhosas Obras de Deus.

Teólogos como eu também estão redescobrindo a tradição neocalvinista moldada por Bavinck e seu colega Abraham Kuyper, outro teólogo holandês, e analisando como esses pensadores podem se envolver com questões culturais de hoje, entre as quais está o confronto da nossa nação com o racismo. E, ao mesmo tempo que muitos recentemente (e com razão) criticaram o legado controverso de Kuyper nesta questão, também negligenciaram com frequência as contribuições de Bavinck sobre o assunto, que muitos estudiosos consideram um avanço em relação a Kuyper.

A avaliação de Bavinck traz lições duradouras para os cristãos que vivem em um clima político polarizado. Semelhante ao próprio contexto de Bavinck, na Europa do século 19, quem vive hoje nos EUA e em outros países enfrenta os desafios de viver em uma cultura cada vez mais pós-cristã. Isso tem levado a debates acalorados sobre a identidade da América, o nacionalismo cristão e como todos podemos encontrar um denominador comum em meio às nossas diferenças substanciais.

A cosmovisão cristã neocalvinista de Bavinck e de Kuyper, por exemplo, afirmava a diversidade da realidade, mas via essa diversidade como algo que refletia uma unidade maior. Como observaram, uma vez que o Criador é Triúno, o mundo frequentemente se conforma a padrões de unidade na diversidade. No entanto, Bavinck acreditava que essa questão tinha implicações adicionais para a própria humanidade.

Como já mostrei em outro oportunidade, Bavinck argumentava que a imagem de Deus (a imago Dei) se refere não apenas a nós como indivíduos, mas à humanidade como um todo. Como escreve o teólogo Richard Mouw, Bavinck articula como essa imagem de Deus se desdobra “na rica diversidade da humanidade espalhada por muitos lugares e tempos”, à medida que a raça humana se dispersa pelo globo e desenvolve culturas, idiomas e contextos organicamente diferenciados. Essas diferenças não são petrificadas nem estáticas, mas se entrelaçam de maneiras belas e surpreendentes, por meio da união do reino de Deus forjada pelo Espírito.

Resumidamente, Bavinck acreditava que a glória de Deus se revela de forma mais clara por meio da diversidade humana, e que essa diversidade se mantém coesa pela confissão comum de Jesus como Senhor. A igreja global é um povo composto por uma coletividade de todas as tribos e línguas — uma humanidade restaurada que está cumprindo seu telos sob o senhorio de Cristo.

No entanto, Bavinck combinou essa visão positiva com severos avisos contra o racismo e o nacionalismo. Em dois de seus textos, Cosmovisão Cristã e Filosofia da Revelação, Bavinck antecipou o surgimento do nacionalismo eurocêntrico. Em meu livro mais recente, exploro como Bavinck detectou esses desdobramentos na filosofia alemã do início do século 20 — que mais tarde vieram a preparar o terreno para o regime de Hitler, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto.

Bavinck atribuiu essas mudanças ideológicas ao declínio da fé cristã na Europa. Quando os seres humanos deixam de adorar a Deus, substituem o divino por realidades criadas (Romanos 1.25). Portanto, segundo ele, qualquer sociedade que se afaste da fé cristã naturalmente irá nutrir o racismo e o nacionalismo.

Se Deus não é a fonte para definir o que é verdadeiro, bom e belo, então, a moralidade deve se fundamentar na humanidade. E se a humanidade não é “genérica” ou “universal”, mas diversa e algo que está em constante evolução, então, deve-se decidir qual humanidade em qual momento da história se torna o padrão para a avaliação moral. No contexto de Bavinck, esse referencial era o nacionalismo ariano (ao qual ele se referia como “pangermanismo, pan-eslavismo, e assim por diante”), que via a raça ariana como o ápice da humanidade universal e, portanto, a encarnação da normatividade.

Bavinck cita alguns dos “eloquentes” primeiros líderes do pensamento cuja emergente ideologia racista influenciou seus contemporâneos — e cujas ideias eventualmente levaram à reconfiguração do próprio Jesus como o símbolo supremo da raça ariana.

Uma vez que cada religião olha para uma figura histórica como fonte de sua revelação, o novo nacionalismo alemão precisava reformular Jesus, transformando-o no “tipo mais puro da raça ariana ou germânica” para “manter” sua autoridade. “Jesus não veio de Israel, mas dos arianos”, segundo eles determinaram, pois todas as outras culturas passadas são primitivas, incluindo os judeus. “Quão tolo é aquele que acredita que Jesus não era judeu, que ele era ariano”, escreve Bavinck, “e que a Bíblia, na qual cada herético encontra seu texto-prova, dá a evidência dessa questão”.

Esse “renascimento da consciência racial” foi ainda mais reforçado, segundo Bavinck, pela visão histórica que muitos filósofos sustentavam em seu tempo: a de que cada estágio da história humana foi ascendendo sucessivamente até a era atual, a qual (convenientemente) era retratada como a mais evoluída e culta de todas. Assim, a linhagem ariana é vista como a raça dominante e superior, à qual todas as maiores realizações da Europa (e, portanto, do mundo) poderiam ser creditadas.

O resultado, observou Bavinck, foi que a “chamada visão puramente histórica se transforma na mais tendenciosa construção da história”. Ao situar a ética no âmbito de sua própria história e ao projetar sua cultura como se fosse a norma absoluta, os alemães se colocaram na posição de árbitros e pináculos da história, eclipsando todas as outras nações e grupos étnicos. Eles libertaram sua “raça superior” de prestar contas perante uma revelação transcendente de Deus, o que lhes permitiu impor coerção opressiva a todas as raças “inferiores” e rejeitar qualquer outra cultura como fonte de correção.

Essas ideias foram combinadas com a emergente prática da eugenia — na qual a teoria da evolução e as ciências naturais foram aplicadas à noção de criar uma raça super-humana (Übermensch). E se, por exemplo, o processo de seleção natural, por meio da “sobrevivência do mais apto”, pudesse ser acelerado pela eliminação de fraquezas genéticas, a fim de “purificar e aperfeiçoar” a raça humana? Assim, filósofos, cientistas e psicólogos se uniram em torno do objetivo de livrar a humanidade de seus infortúnios — ou, como Bavinck colocou, de “melhorar os atributos raciais da humanidade de maneira artificial”.

Bavinck conecta essas teorias em voga na época com as aspirações dos filósofos alemães de se apresentarem como os portadores de alguma forma de salvação escatológica para o mundo. Ele observa que esses pensadores não rejeitam o cristianismo apenas porque o veem como falso, mas porque é visto como prejudicial para o desenvolvimento futuro: “Se a cultura moderna pretende avançar, ela deve rejeitar totalmente a influência do cristianismo e romper por completo com a antiga visão de mundo”.

Por quê? Como Bavinck explica, enquanto a esperança humana moderna era considerada como algo que é inteiramente “deste mundo”, o cristianismo era visto por seus contemporâneos europeus como algo “indiferente a esta vida”, uma vez que sua esperança repousa, em última instância, no reino que não é deste mundo, na eternidade, no céu e em Deus. Em outras palavras, a esperança em realizações humanas tangíveis é mais segura do que a esperança em realidades divinas intangíveis.

Ver uma sociedade humana ou uma nação em particular como a portadora primária da civilização ética, segundo Bavinck argumenta, preenche o vácuo escatológico deixado pela remoção da esperança cristã da sociedade moderna. Se a lei moral não se encontra no transcendente, mas sim no imanente, então, o mesmo acontece com o céu. Neste caso, uma sociedade utópica é moldada pela nacionalidade que representar o “ponto alto” da humanidade.

Esses desdobramentos ideológicos, que estavam todos em voga na época, pintam um cenário verdadeiramente sombrio. Qual foi a resposta de Bavinck a isso — e que alternativa ele propôs?

Em sua obra Filosofia da Revelação, Bavinck aponta os problemas insuperáveis ​​de se transpor os princípios científicos da evolução naturalista para a história social da humanidade. Esse instinto reflete uma forma de monismo que, segundo ele argumentava, reduz a rica diversidade da vida criada a uma uniformidade singular — como se uma explicação que funciona bem em uma esfera pudesse ser usada para todas as áreas da vida.

Ele argumentou ainda que as tentativas de elaborar uma narrativa histórica grandiosa muitas vezes privilegiam uma nação ou um grupo de pessoas em relação a outros, e ignoram a unidade da raça humana ao longo do tempo e do espaço. Mais do que isso, alegar que cada século é intrínseca e holisticamente melhor do que o anterior é cometer uma falha em reconhecer que existiu “alta civilização” na Antiguidade, até mais avançada do que nós em alguns aspectos, e que os mesmos vícios dos tempos antigos ainda afligem nossas culturas contemporâneas.

Em vez de uma história linear de desenvolvimento progressivo, que culmina em uma nação ou em uma filosofia superior, Bavinck acreditava que a história é pluriforme, é um labirinto rico e multifacetado, e que ela narra uma humanidade unida — ao longo de todas as suas particularidades, seus lugares e seus períodos de tempo.

E para evitar o instinto supremacista de elevar uma nação ou uma fase da história, Bavinck argumentou que as ciências históricas devem estar enraizadas no teísmo cristão. Isso porque os historiadores precisam de uma “revelação” única, divina, para afirmar que “todas as criaturas […] são abraçadas e se mantêm juntas por um pensamento principal, pelo conselho de Deus”. Acreditar na unidade da humanidade, que é o “pressuposto de toda a história”, é uma alegação que “conhecemos somente através do cristianismo”.

Em vez de ver uma cultura ou etnia como a expressão universal da verdadeira humanidade, o cristianismo para Bavinck ensina que “a unidade da humanidade não exclui, pelo contrário, inclui a diferenciação da humanidade em raças, em caráter, em conquistas, em chamado e em muitas outras coisas”.

Bavinck escreve que esta “variedade foi destruída pelo pecado e transmutou-se em todas as formas de oposição” desde que “a unidade da humanidade dissolveu-se em uma multiplicidade de povos e nações”. Mas, em vez de buscar a “falsa unidade” de um monismo mundano, preservar a rica diferenciação da humanidade requer que a “unidade de toda a criação não seja buscada nas coisas em si, mas transcendentalmente […] em um ser divino, em sua sabedoria e seu poder, em sua vontade e conselho”.

Em outras palavras, reafirmar o cristianismo significa rejeitar uniformidades forjadas pelo ser humano e abraçar a diversidade que é divinamente ordenada. Somente a salvação em Cristo e a comunhão no seu Espírito, a revelação divina e a redenção podem restaurar e alcançar o ideal de uma verdadeira unidade orgânica da humanidade na diversidade.

Como seres humanos, nossa unidade e diferenciação, identidade e dignidade são todas, em última instância, asseguradas em Cristo — a quem Bavinck chama de “cerne” que revelou o “plano, o progresso e o objetivo” da história, e esvaziou nossa tendência pecaminosa de exaltarmos a nós mesmos como o ideal histórico. Em outras palavras, o centro, o objetivo, o progresso e o fim último da história não se encontram na humanidade, mas em Cristo.

A única cosmovisão que “responde à diversidade e à riqueza do mundo”, escreve Bavinck, é aquela que insiste no ponto de que a história é governada pela vontade divina. E não apenas isso, mas devemos acreditar que Deus, de forma voluntária, veio ao mundo “historicamente”, na pessoa de Jesus Cristo, para exaltá-lo “até as alturas” do “reino dos céus”.

A utopia celestial que buscamos, portanto, não é resultado do progresso histórico da humanidade, mas sim uma obra divina de Deus: “Se quisermos que algum dia exista uma humanidade unida de coração e alma, então, ela deve nascer da volta ao único Deus vivo e verdadeiro.”

Nesta era cada vez mais polarizada de hoje, a mensagem de Bavinck sobre a diversidade unificada da humanidade é mais necessária do que nunca. Em vez de assumir que a nossa visão de mundo é a última palavra ou é superior à de outros contextos, Bavinck nos lembra do testemunho profético da mensagem universal de reconciliação de Deus, encarnada em Jesus Cristo.

As reflexões antropológicas de Bavinck certamente não são perfeitas. Ele continua sendo um homem do século 19 e, às vezes, retrata análises ou uma linguagem que os leitores do século 21 rejeitariam (por exemplo, quando fala de culturas “superiores” e “inferiores”). Mas é notável que, no início do século 20, Bavinck tenha antecipado os perigos emergentes da eugenia, do racismo e do nacionalismo na filosofia alemã — coisas que estavam em voga na época, até mesmo entre cristãos.

Nos séculos que antecederam aos horrores da Segunda Guerra Mundial, quando se acreditava que “o espírito alemão curaria o mundo”, Bavinck apresentou uma visão escatológica transcendente — que é levada adiante não por mãos humanas, mas iniciada pela vontade divina, pela vontade de Deus. Em uma era pós-cristã, tanto a daquela época quanto a de agora, Bavinck nos lembra que as raízes nefastas do racismo e do nacionalismo remontam a uma rejeição das reivindicações cristãs — que alicerçam nossa dignidade, nossa moralidade e nossa esperança última em Deus.

N. Gray Sutanto é professor associado de teologia sistemática no Seminário Teológico Reformado em Washington, DC. Ele é autor, editor e tradutor de vários livros, entre eles Deus e Humanidade: Herman Bavinck e Antropologia Teológica e Manual T&T Clark sobre Neocalvinismo.

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