O Advento celebra a notícia mais feliz do mundo, a qual, no entanto, pode parecer desvalorizada diante da forte comercialização das festas de fim de ano e do ritmo frenético da época. É por esse motivo que, todo ano, além da própria Bíblia, leio também um livro que atravessa o fino verniz da espiritualidade cultural e me faz ir mais fundo no verdadeiro significado do Natal.
Um pequeno, porém famoso livro, intitulado Sobre a encarnação — que desvenda a pessoa e a obra de Cristo — foi escrito há 1.700 anos, por Atanásio de Alexandria, um bispo egípcio que moldou profundamente a igreja primitiva. Acredito que seus escritos possam renovar a igreja contemporânea também.
Embora muitos concordem que a Encarnação é algo central para a fé cristã, a maioria dos cristãos a associa apenas com o nascimento de Cristo. Para Atanásio, no entanto, a doutrina da Encarnação abrange toda a obra de Cristo, inclusive o fato de ele ter assumido a natureza humana, bem como sua vida, morte e ressurreição. Em síntese, Atanásio nos ensina a sondar as profundezas do Natal, refletindo sobre Cristo em sua totalidade, trazendo salvação para toda a criação e renovação para todas as áreas da nossa vida.
Antes de nos deixarmos conduzir por Atanásio até o cerne da história do Natal, vamos nos familiarizar um pouco com o nosso guia e com o modo como ele entrou em cena pela primeira vez na história da igreja.
Quando jovem, Atanásio participou do Concílio de Niceia, em 325 d.C., no qual centenas de líderes da igreja local se reuniram para abordar a questão do ensinamento ariano, cada vez mais difundido, de que Jesus nem sempre existiu como Deus. O concílio afirmou a divindade eterna de Jesus — conforme é sintetizado no Credo Niceno, que diz que Jesus é “verdadeiro Deus de verdadeiro Deus: gerado, não feito, de uma só substância com o Pai”.
No entanto, esse consenso se desfez logo depois, e a divindade de Cristo se tornou uma doutrina contestada durante os 50 anos seguintes.
O cristianismo fiel precisava de um defensor, e Atanásio se destacou na ocasião, tendo dedicado sua vida a ver aquela verdade estabelecida em Niceia sendo aplicada na vida da igreja, por todo o mundo cristão.
Após o concílio, Atanásio retornou à África, lugar em que nasceu e foi criado, e se tornou bispo de Alexandria — numa época em que, como disse certa vez Gregório de Nazianzo, pai da igreja amigo de Atanásio, “o bispo de Alexandria era o bispo do mundo inteiro”.
Por 45 anos, Atanásio permaneceu inabalável em seu compromisso com Cristo e a igreja. No entanto, sua vida não era estável. Seus inimigos o apelidaram de “anão negro”, pelo fato de ter baixa estatura e pele escura; também foi exilado cinco vezes, por um total de 17 anos, em razão de questões políticas e teológicas. Foi durante esses anos, muitas vezes passados no deserto, que Atanásio escreveu grande parte das suas obras.
O que nós, cristãos de hoje, podemos aprender com este bispo africano, um dos pais da igreja, que enfrentou um mundo cristão que resvalava em uma grave heresia?
Primeiro, para proclamar Cristo em sua totalidade, Atanásio se concentrou na divindade de Cristo. Embora essa doutrina possa parecer elementar para a maioria dos cristãos de hoje, sua ênfase pode ser necessária com uma urgência maior do que imaginamos.
Uma pesquisa de 2022 mostrou que 43% dos evangélicos dos EUA concordam com a afirmação: “Jesus foi um grande mestre, mas não era Deus”. Atanásio estaria se revirando no túmulo, se ouvisse isso. E o apóstolo João gostaria de conversar francamente com esses 43% — lembrando-os de que “no princípio era o Verbo [Jesus], e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1.1, ARA).
A plena humanidade e a plena divindade de Jesus são essenciais para o cristianismo bíblico. Para Atanásio, porém, defender a divindade de Cristo não era meramente defender a sã doutrina em prol da ortodoxia bíblica. Suas crenças sobre a pessoa de Cristo estavam sempre a serviço da obra de Cristo. Em outras palavras, sem a divindade e a humanidade plenas de Jesus, segundo ele argumentava, o evangelho é impotente para salvar: [torna-se] um anúncio vazio.
Como, então, o Filho de Deus ter se tornado Filho do homem traz salvação à humanidade?
Para Atanásio, a lógica da salvação começa com Deus criando a humanidade para compartilhar de sua vida incorruptível e cultivar sua bela criação. Quando o pecado entrou no mundo, no entanto, a morte começou a reinar, e um processo de “descriação” desencaminhou os bons propósitos de Deus.
De acordo com Atanásio, Deus tinha um dilema: deixar o pecado impune contrariava o seu caráter; também seria descabido criar a humanidade apenas para vê-la cair em corrupção. “O que, então, Deus, sendo bom, deveria fazer?”, perguntou Atanásio. A única maneira de Deus resgatar a humanidade e manter seu caráter era enviando seu Filho, como um ser humano, para assumir os pecados do mundo. Deus deve se tornar homem. Então, em solidariedade à humanidade, o Filho divino assumiu a natureza humana.
Tornar-se humano, no entanto, não era o suficiente: Jesus veio para morrer. Como diz Atanásio, Cristo “assumiu, portanto, um corpo capaz de morrer [mortal], para que [esse corpo], por pertencer ao Verbo, que está acima de tudo, pudesse se tornar, ao morrer, uma troca suficiente por todos”. Como Deus-homem, quando Jesus encontrou a morte, sua humanidade lhe deu a capacidade de morrer, mas sua divindade lhe deu o poder de superar a morte. Dessa forma, sua crucificação pagou a dívida da morte para que pudéssemos ter vida eterna.
Gregório de Nazianzo reiterou a importância do sacrifício divino-humano de Cristo, escrevendo que Jesus teve de assumir a carne [encarnar] para salvar nossa carne: “Aquilo que Ele não assumiu, Ele não curou, mas o que está unido à Sua Divindade também está salvo”.
Além disso, de acordo com Atanásio, a Ressurreição é uma garantia da vitória da cruz, pois revela e inaugura a salvação de Cristo. Na verdade, a ressurreição de Jesus fornece os fundamentos para a nossa ressurreição, para que possamos experimentar a vida eterna e incorruptível de Deus — à qual perdemos o acesso, no Jardim do Éden.
Assim, neste Natal, que possamos refletir sobre a glória paradoxal do nosso Rei que se tornou um servo, do infinito que se tornou um frágil bebê. Mas que também possamos lembrar que a história não acaba na manjedoura. O rei nascido cresceria e inauguraria seu reino pelo meio contraintuitivo do amor sacrificial na cruz — e, então, escancaria os portões da vida eterna, ao ressuscitar dos mortos.
Durante o Natal, celebramos a noite em que Cristo nasceu. Para muitos cristãos, porém, a salvação se tornou uma ideia abstrata e espiritual, como se Jesus tivesse vindo apenas para salvar nossas almas, perdoar nossos pecados e nos prometer uma eternidade no céu. Atanásio diria que essa ideia está correta, mas não completa. Jesus veio para resgatar nossas almas, mas veio também para restaurar o mundo.
Atanásio defendeu esse argumento apelando para dois extremos do enredo das Escrituras: a criação e a recriação. Assim como o mundo foi criado por meio do Verbo, o mundo também será recriado pelo Verbo. E, ao salvar essa terra caída da corrupção do pecado — que desencaminha os propósitos de Deus, ao colocar o mundo em uma trajetória de descriação e morte —, Jesus pega o que está quebrado e, em amor, traz restauração.
A igreja, como corpo de Cristo, também encontra seu lugar dentro da história do grande projeto de recriação de Deus. Somos conduzidos à presença de Deus, convidados a nos deleitar em sua bondade, e chamados a participar de sua obra de restauração. Agora mesmo, nesse instante, Deus está recriando o mundo pela graça — e assim ele fará, até que Cristo volte para renovar completa e eternamente todas as coisas.
Esta mensagem é revigorante, especialmente em um contexto ocidental no qual a nossa compreensão da obra de Cristo tem sido com frequência marcada por um reducionismo oscilante — como se Cristo tivesse vindo [apenas] para perdoar nossos pecados e vencer o Diabo. E embora Atanásio priorize a restauração da vida incorruptível (2Timóteo 1.10), sendo renovados à imagem de Deus (Colossenses 3.10) e participando da natureza de Deus (2 Pedro 1.4), ele abraça uma compreensão abrangente da obra de Cristo em nosso favor. Assim como ele, podemos celebrar as muitas facetas da salvação — como a vitória, o perdão e a reconciliação — dentro da estrutura mais ampla de um Deus que recria o mundo por meio de Cristo.
Para Atanásio, a visão bíblica da salvação de Cristo começa no coração humano e um dia alcançará os confins da criação, tocando todos os aspectos da vida entre esses dois pontos. “Tantas são as realizações do Salvador derivadas de Sua Encarnação”, escreve Atanásio, “que tentar enumerá-las é como olhar para o mar aberto e tentar contar as ondas”.
Assim como Deus está restaurando a criação por meio de seu Filho, a vida cristã é vida de renovação à imagem de Cristo, pelo Espírito e para a glória do Pai: “Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!” (2Coríntios 5.17). Recebemos um novo coração, um novo espírito (Ezequiel 36.26), uma nova mente (Romanos 12.2), uma nova identidade, uma nova família (Marcos 3.31-35) e a esperança de viver em um novo mundo (Mateus 19.28).
Atanásio era teólogo, mas também era um pastor que amava as pessoas tanto quanto amava a verdade. Ele acreditava que a nossa teologia do evangelho se aplica não apenas à nossa “espiritualidade” ou ao tempo que passamos na igreja, mas também à nossa vida diária. Assim como o apóstolo Paulo disse a Timóteo para atentar bem de perto para a doutrina e para a sua própria vida (1Timóteo 4.16), Atanásio conclui seu livro exortando os leitores de que a verdade bíblica deve andar de mãos dadas com uma vida piedosa.
O Natal é uma época em que recebemos presentes imerecidos e que são um reflexo do maior presente imerecido de todos — a graça de Deus em Cristo Jesus. No entanto, o Natal também é um lembrete de que o evangelho nos salva e nos impulsiona a uma vida de erradicação do pecado, confrontação da injustiça e busca pelo reino de Deus. Atanásio nos ajuda a entender que, dentro da narrativa maior das Escrituras, a salvação de Cristo não significa fuga da criação, mas sim renovação da criação.
Atanásio nos desafia a romper a superfície dessa espiritualidade simplista do Natal e experimentar a profundidade multifacetada de seu significado. O bispo de Alexandria nos suplica que abracemos Cristo em sua totalidade, esse Cristo que veio trazer salvação a toda a criação e renovação para nossa vida toda. Neste Natal, quando clamarmos “Ó céus e criação, cantem!”, que possamos nos lembrar de que ambos estão sendo renovados e reunidos por nosso Rei Salvador.
Jeremy Treat é pastor de pregação e visão na Reality LA, em Los Angeles, e professor adjunto de teologia na Biola University. É autor de Renewal in Christ: Athanasius on the ChristianLife [Renovação em Cristo: Atanásio sobre a vida cristã] e The Atonement [A expiação].