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Um monumento teológico à unidade em meio à diversidade

Cinquenta anos atrás, a solução do Pacto de Lausanne para a divisão desenfreada nas alas evangélicas não foi uniformidade.

Christianity Today August 12, 2024
Illustration by Ibrahim Rayintakath

No filme Memento [Amnésia, no Brasil], lançado em 2000, o protagonista Leonard Shelby tem uma lesão cerebral específica que o impede de formar novas memórias de longo prazo. Ele consegue se lembrar de informações por 30 segundos a um minuto, no máximo, mas depois se esquece de tudo.

A desconexão de Leonard com seu passado o deixa em um estado perpétuo de perplexidade sobre como ele chegou a esse dilema atual: De qual inimigo estou fugindo — e por quê? Por que estou segurando uma arma? Sua confusão é decorrente da amnésia, da incapacidade de se lembrar da própria história. Se Leonard pudesse reaprender e se lembrar das partes importantes do seu passado, ele poderia finalmente voltar a ter uma existência estável, com uma compreensão íntegra de si mesmo e das pessoas ao seu redor.

Ser evangélico hoje é muito parecido com isso. Nós também estamos desconectados do nosso passado, embora por razões bem mais reversíveis do que uma lesão cerebral. Em decorrência disso, os evangélicos estão mais divididos do que nunca, com muitos de nós combatendo inimigos que antes eram amigos.

Mas, e se fizéssemos uma pausa para nos lembrar da nossa história? Não só nos lembraríamos de quem somos e de como chegamos até aqui, mas poderíamos até mesmo redescobrir o melhor do que o evangelicalismo foi, é e pode vir a ser novamente.

Evidentemente, um dos maiores problemas que temos hoje é que parece não haver quase nenhum consenso sobre o que a palavra evangélico¹ significa. Quem dera os evangélicos de todo o mundo pudessem ao menos concordar com os parâmetros básicos para o evangelicalismo — com algo que fosse minimamente suficiente para encorajar uma diversidade saudável, mas substancialmente suficiente para garantir a integridade doutrinária.

E se algo assim já existisse?

Cinquenta anos atrás, em julho de 1974, cerca de 2.700 líderes cristãos de 150 países viajaram para Lausanne, na Suíça, a convite do evangelista americano Billy Graham e do teólogo britânico John Stott.

A conferência foi oficialmente intitulada “Primeiro Congresso Internacional de Evangelização Mundial”, mas veio a ser conhecida como o primeiro encontro de Lausanne de 74. E embora tenha incluído apenas parte da igreja global, a revista Time noticiou na época que o congresso foi “possivelmente o maior e mais abrangente encontro de cristãos já realizado”.

Foto superior: Participantes chegam ao Palais de Beaulieu, em Lausanne, Suíça, em 1974. Foto inferior: Nas cabines, as sessões plenárias de Lausanne são traduzidas para os seis idiomas oficiais do congresso.Courtesy of Billy Graham Evangelistic Association
Foto superior: Participantes chegam ao Palais de Beaulieu, em Lausanne, Suíça, em 1974. Foto inferior: Nas cabines, as sessões plenárias de Lausanne são traduzidas para os seis idiomas oficiais do congresso.

Talvez o resultado mais importante e duradouro desse encontro tenha sido o Pacto de Lausanne, que com o tempo se tornaria um dos documentos mais influentes do evangelicalismo moderno. O propósito do documento era responder a uma pergunta-chave: o quanto devemos concordar uns com os outros para sermos parceiros na tarefa de missões mundiais?

Na época, assim como agora, o evangelicalismo estava sentindo os efeitos da controvérsia fundamentalista-modernista, que causou divisões hediondas em quase todas as principais instituições e denominações cristãs. A abordagem fundamentalista às diferenças envolvia discussões rigorosas sobre o que realmente era aceitável e sobre rigidez doutrinária. A perspectiva progressista evitava estabelecer quaisquer limites doutrinários, arriscando-se a afastamentos substantivos do cristianismo histórico.

Mas os evangélicos tomaram outro rumo.

A abordagem do evangelicalismo à diversidade, exemplificada em Lausanne, caracteriza-se igualmente por: (1) negociação cuidadosa de uma unidade em meio às diferenças, a qual se fundamenta em confissões comuns do cristianismo histórico; (2) celebração da diversidade em si como bem intrínseco e até mesmo como evidência de expressão do plano pretendido por Deus para a igreja global e universal de todos os crentes.

O Pacto de Lausanne forneceu uma definição teológica de evangélico e evitou intencionalmente associar quaisquer elementos sociopolíticos ao movimento. Também não demarcou posições sobre uma série de questões importantes, porém secundárias, relacionadas a teologia, doutrina e práxis. Por exemplo, não há no documento discussão sobre batismo, papéis de gênero no ministério ou idade da Terra e evolução.

Ao evitar questões desse tipo, o Pacto de Lausanne incluiu cristãos de ambos os lados que divergiam e que, não fosse essa postura adotada, estariam divididos. Em vez de divisão, os líderes do congresso buscaram criar uma comunidade de aliança para além dessas diferenças e a serviço de uma missão compartilhada para que “a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo”.

Em certo sentido, o pacto é uma declaração de fé coletiva, composta de 15 artigos, uma introdução e uma conclusão. Com pouco mais de 3.300 palavras, o documento é suficientemente curto para caber nos dois lados de uma única página. Stott, presidente da comissão de redação, explicou o pensamento por trás de cada artigo em sua exposição — apêndice de leitura obrigatória para o pacto.

Seria um erro ver este documento como uma mera declaração de fé, uma vez que ele foi concebido como um pacto, escreve Stott — como um “contrato vinculante” em que seus signatários se comprometem com um propósito e uma parceria comuns. Após 10 dias de debates, discussões e negociações, a maioria dos participantes (2.300) assinou o documento em conjunto. Como o próprio Stott explicou: “Não queríamos apenas declarar algo, mas fazer algo — comprometer-nos com a tarefa da evangelização mundial”.

Mesmo agora, a intenção é que o pacto deva ser assinado por aqueles que o leem e concordam com ele — e, ao fazê-lo, nos comprometemos a cooperar uns com os outros na missão de Deus.

Como a maioria dos evangélicos, eu nunca tinha ouvido falar do Pacto de Lausanne quando era mais jovem, e só me pediram para assiná-lo quando eu já era adulto. Sou um indiano de pele escura que nasceu no sul da Califórnia, em 1978, filho de imigrantes de primeira geração que eram ambos cristãos — meu pai, inclusive, estudou na Universidade Biola.

E, muito embora alunos de instituições cristãs às vezes tivessem contato com o Pacto de Lausanne, eu frequentei uma escola pública no ensino médio e uma universidade estadual secular. As igrejas que frequentei enquanto crescia eram não denominacionais, o que tinha seus pontos fortes, mas também gerou alguma amnésia sobre a história cristã.

Eu soube da existência do pacto pela primeira vez no final de 2000, 24 anos atrás, quando eu era aluno de pós-graduação e estava estudando para ser um médico pesquisador. Eu me inscrevi e fui aceito para a Harvey Fellowship — uma bolsa de estudos oferecida a cristãos que estão entrando em campos com baixa representatividade de cristãos —, e todos os candidatos eram obrigados a assinar o Pacto de Lausanne. No verão seguinte, fui para Washington, D.C., para participar de um evento de uma semana e me encontrar com um pequeno grupo de outros novos bolsistas da Harvey.

Este evento ampliou substancialmente minha experiência em termos de diversidade evangélica. Ben Sasse, um historiador de Yale e presbiteriano reformado, foi o primeiro cristão que conheci a defender um argumento plausível para o batismo infantil, embora ele e eu discordássemos sobre essa questão. Mac Alford, um botânico de Cornell, foi o primeiro cristão que conheci que defendia a evolução — alg o que eu rejeitava na época.

E embora essas divergências fossem incômodas, pelo menos para mim, todos nós somos signatários do Pacto de Lausanne (que não assume posição sobre nenhuma dessas questões) e, portanto, já tínhamos nos comprometido a cooperar.

O Pacto de Lausanne oferece um arrazoado teológico de nossas diferenças — com base na crença subjacente de que essas diferenças podem ser intrinsecamente valiosas. Os líderes do congresso estavam insatisfeitos com uma comunidade pequena em concordância, e buscavam, em vez disso, uma comunidade maior que fosse capaz de transpor nossas diferenças.

O pacto explica, usando o que Stott chamou de “uma tradução literal de Efésios 3.10”, que nossas diferentes visões sobre as Escrituras são um mecanismo por meio do qual a sabedoria de Deus é revelada a nós:

A revelação de Deus em Cristo e nas Escrituras é imutável. Por meio dela, o Espírito Santo ainda fala hoje. Ele ilumina as mentes do povo de Deus em todas as culturas para que percebam a sua verdade de uma forma nova, através de seus próprios olhos e, então, revela a toda a igreja cada vez mais da multiforme sabedoria de Deus.

Em vez de minimizar os limites doutrinários para alcançar uma paz falsa, o convite evangélico é para que possamos ler juntos nossas Bíblias, entender nossas diferenças e negociar — e essas disposições estavam claramente presentes na forma como o Pacto de Lausanne veio a existir.

Embora a conferência em si tenha durado apenas 10 dias, o processo de elaboração do pacto levou meses de diálogo e negociação. Mas com 2.700 delegados na conferência, quanta cooperação foi possível? Muita, como se vê. Na avaliação de Stott, “pode-se dizer verdadeiramente, então, que o Pacto de Lausanne expressa um consenso da mente e do espírito do Congresso de Lausanne”.

A elaboração do documento foi atribuída a uma pequena comissão que incluía Stott; o então presidente do Wheaton College, Hudson Armerding; e Samuel Escobar, um teólogo peruano da InterVarsity Christian Fellowship.

Meses antes da reunião de julho, os participantes receberam artigos escritos de todos os palestrantes e lhes foi solicitado que enviassem um feedback por escrito. Um esboço preliminar escrito na época por J. D. Douglas, editor da Christianity Today, baseou-se nos principais temas e insights desses artigos.

Em sua exposição, Stott explica: “Já podíamos dizer que aquele documento verdadeiramente saiu do Congresso (embora o Congresso ainda não tivesse se reunido), porque refletia as contribuições dos principais palestrantes, cujos artigos haviam sido publicados com antecedência.”

Antes da conferência, uma versão inicial foi enviada a vários consultores, cujos comentários foram usados ​​para orientar a primeira revisão do documento. Então, uma segunda revisão foi supervisionada pela comissão.

Mas os redatores também queriam se envolver com os próprios participantes, ouvi-los e aprender com eles. Então, no meio da reunião de julho, cada participante recebeu uma cópia da terceira versão do pacto e lhes foi solicitado que enviassem seus feedbacks e discutissem o conteúdo em pequenos grupos que eram organizados a cada dia.

A partir desses feedbacks, quaisquer objeções e emendas sugeridas eram enviadas à consideração da comissão de redação. De acordo com Stott, o congresso

respondeu com grande diligência. Muitas centenas de respostas foram recebidas (nas línguas oficiais), traduzidas para o inglês, classificadas e estudadas. Algumas emendas propostas cancelavam-se mutuamente, mas a comissão de redação incorporou tudo o que pôde.

No fim, essa negociação impactou substancialmente o documento final em torno de três temas principais. Primeiro, uma declaração cuidadosamente negociada sobre a inerrância bíblica foi acrescentada. Segundo, a declaração do pacto sobre responsabilidade social foi reforçada. Terceiro, várias mudanças foram feitas para refletir as preocupações e a sabedoria da igreja global de fora do mundo ocidental. Esses três temas, acredito eu, resumem as lições de Lausanne para o nosso momento atual.

I. O artigo sobre a autoridade das Escrituras foi fortalecido de modo a incluir uma declaração cuidadosamente negociada sobre inerrância, declaração essa que foi influenciada pela contribuição de Francis Schaeffer e de outros, e dizia que a Bíblia é “sem erro em tudo o que ela afirma”. Essa mudança específica foi muito contestada, criando um desafio significativo para a comissão de redação.

Por um lado, as razões para incluir uma declaração sobre inerrância eram fortes. Uma visão diferente das Escrituras era a raiz de muitas divergências profundas entre evangélicos e cristãos progressistas. A alegação modernista, motivada pela alta crítica, dizia que a Bíblia era “autoritativa”, mas que sua mensagem estava sempre sujeita a mudanças, devido a seus muitos erros.

Lado a lado com essa afirmação, muitos cristãos liberais rejeitaram a crença na ressurreição, no nascimento virginal e na historicidade de Adão e Eva. E embora essas três alegações clássicas do cristianismo não sejam de igual importância, rejeitar qualquer uma delas é uma revisão importante com consequências de longo alcance.

Esclarecer a natureza dessa discordância sobre as Escrituras era algo que estava em primeiro plano na mente dos organizadores da conferência. Por um bom motivo, os evangélicos não podiam facilmente celebrar parcerias em missões mundiais com pessoas cuja compreensão do evangelho não incluísse, por exemplo, a ressurreição corpórea de Jesus — pois isso seria outro evangelho totalmente (Gálatas 1.6-9). Como disse o apóstolo Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, inútil é fé que vocês têm” (1Coríntios 15.17).

Mas também, no contexto imediato, a conferência de Lausanne foi uma resposta à Conferência de Bangkok sobre a Salvação Hoje, convocada no ano anterior (1973) pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI; em inglês, World Council of Churches, WCC). Até mesmo o local foi escolhido, em parte, por causa da proximidade entre Lausanne e Genebra, onde o CMI está sediado.

A Conferência de Bangkok incluiu delegados evangélicos, bem como cristãos liberais e de igrejas históricas mais tradicionais, muitos dos quais tinham se afastado da ortodoxia. E embora seu relatório final inclua uma concessão aos evangélicos, quando afirma com Atos 4.12 que “não há nenhum outro nome [somente o nome de Jesus] dado aos homens pelo qual devamos ser salvos”, outros pedidos para fortalecer a teologia do evangelho — ecoando a Declaração de Frankfurt, de 1970, na qual os cristãos alemães se opuseram à “virada humanista” das missões no CMI — foram rejeitados como contribuições ocidentais que não falavam por todos.

Além disso, o relatório de Bangkok incluiu declarações que rotulavam qualquer libertação da opressão social como uma forma de salvação, entre elas “a paz do povo no Vietnã, a independência em Angola, a justiça e a reconciliação na Irlanda do Norte e a libertação do cativeiro do poder”. Peter Beyerhaus escreveu para a Christianity Today:

Aqui, sob uma capa aparentemente bíblica, o conceito de salvação foi tão ampliado e destituído de sua qualidade distintamente cristã que qualquer experiência libertadora pode ser chamada de “salvação”. Por consequência, qualquer participação em esforços libertadores seria chamada de “missão”.

Beyerhaus acrescentou que a conferência também apresentou o maoísmo — o comunismo da China — como uma alternativa aceitável ao cristianismo. Da mesma forma, a igreja do profeta Simon Kimbangu — que alegava ser a manifestação encarnada de Deus Pai e que seu filho era a segunda encarnação de Jesus — foi apresentada como um exemplo louvável de um ministério autóctone.

Mais do que comentários improvisados, esses foram apelos intencionais da liderança do CMI às igrejas asiáticas e africanas, e quaisquer objeções teológicas foram descartadas como tentativas inúteis de assimilar igrejas autóctones ao pensamento ocidental.

Embora ninguém possa ditar quem tem permissão para se autoidentificar com o termo cristão ou mesmo evangélico, o Pacto de Lausanne fundamenta a unidade cristã em uma missão compartilhada de proclamar “o evangelho integral ao mundo todo”. Essa missão é o motivo pelo qual nos juntamos a essa comunidade muitas vezes incômoda e conhecida como igreja, a despeito de nossas diferenças.

Sérias discordâncias sobre a natureza do evangelho podem com frequência remontar a duas maneiras fundamentalmente diferentes de entender as Escrituras. Todos neste debate podiam concordar que as Escrituras eram “autoritativas”; mas e quanto a seus ensinamentos: estavam sempre mudando e eram repletos de erros?

Por outro lado, mesmo para muitos cristãos ortodoxos, o termo inerrância ainda era o ponto de discórdia. Inerrância era um termo que já trazia consigo certa carga, pois estava sendo usado por alguns fundamentalistas como um teste doutrinário decisivo. Para agravar o problema, o termo foi mal definido, pois ainda se passaram anos antes que as declarações de Chicago sobre inerrância e hermenêutica fossem escritas, em 1978 e 1982, respectivamente. Não deveria ser surpresa, então, o fato de que muitos participantes se opuseram veementemente ao uso que o pacto fazia do termo inerrância, em sua declaração sobre as Escrituras.

A solução de Stott para esse impasse foi forjada no processo de negociação e foi sábia. Em vez de exigir o uso da palavra inerrância, ele a substituiu por uma definição concisa e destacada do termo, dizendo que a Escritura é “sem erro em tudo o que ela afirma”. Evangélicos que se opunham ao termo inerrância poderiam afirmar isso, mas muitos progressistas não o fariam.

II. O congresso também reforçou o artigo do pacto sobre responsabilidade social. Neste ponto, mais uma vez, os redatores estavam se distinguindo tanto dos progressistas no WCC quanto da reação exagerada dos fundamentalistas ao evangelho social do liberalismo.

Traçar o caminho do próprio Billy Graham na questão da justiça social nos fornece algum contexto instrutivo. Em 1953, rompendo com sua criação sulista, Graham começou a insistir que sua audiência fosse integrada, tendo negros e brancos sentados lado a lado.

Em 1960, Billy Graham falou em encontros de avivamento de amplo alcance em vários países da África — pregando o evangelho para multidões gigantescas em estádios lotados — mas ele não estava disposto a pregar o evangelho para multidões segregadas pelo apartheid sul-africano.

As ações deliberadas de Billy Graham eram declarações sociopolíticas claras sobre a integração racial na igreja — e enfureceram muitos fundamentalistas, incluindo os de sua própria denominação, os batistas do Sul.

Uma semana após Billy Graham se recusar a pregar na África do Sul, Bob Jones Sr., evangelista fundamentalista e apresentador, respondeu a isso em uma mensagem de Páscoa na rádio, intitulada “A segregação é bíblica?”. Argumentando a partir de uma leitura enviesada de Atos 17.26, Jones ensinou que a resposta era sim [ou seja, que a segregação racial é bíblica]. Os esforços para integrar as raças e acabar com a segregação, segundo ele argumentou, trabalhavam contra a ordem criada por Deus e desviavam da tarefa de compartilhar o evangelho. Nesse aspecto, Jones repercutia as opiniões de muitos cristãos do Sul.

Embora o apartheid tenha continuado até a década de 1990, Billy Graham finalmente pregou na África do Sul em 1973, apenas um ano antes de Lausanne — talvez em um dos primeiros grandes ajuntamentos no país a reunir pessoas negras, brancas e pardas sentadas lado a lado. Para uma multidão integrada por 100.000 pessoas, o pregador sulista bradou: “O cristianismo não é uma religião do homem branco […] Cristo pertence a todas as pessoas.”

Acima, à esquerda: A. Jack Dain e Billy Graham assinam o Pacto de Lausanne na cerimônia de encerramento de Lausanne, em 1974. Abaixo, à esquerda: Líderes do congresso de Lausanne durante uma coletiva de imprensa, em 1974. À direita: Martin Luther King Jr. e Billy Graham.Courtesy of Billy Graham Evangelistic Association
Acima, à esquerda: A. Jack Dain e Billy Graham assinam o Pacto de Lausanne na cerimônia de encerramento de Lausanne, em 1974. Abaixo, à esquerda: Líderes do congresso de Lausanne durante uma coletiva de imprensa, em 1974. À direita: Martin Luther King Jr. e Billy Graham.

Billy Graham era amigo de Martin Luther King Jr., e às vezes um aliado público da causa de King; seu desejo de ver justiça racial ainda no curso de sua vida continuava a crescer. Mas ele se questionava se já tinha feito o suficiente e, em 2005, Billy Graham expressou arrependimento por não ter feito mais pressão pelos direitos civis, desejando ter protestado com King nas ruas.

Este contexto dá vida à versão final do texto do pacto, que distingue a tarefa de proclamar o evangelho — centrando a mensagem de Deus para nós especificamente na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo — da tarefa de [buscar a] justiça social:

Aqui também expressamos arrependimento tanto por nossa negligência quanto por termos às vezes considerado evangelismo e preocupação social como coisas mutuamente excludentes. Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, e ação social não seja evangelismo, e libertação política não seja salvação, ainda assim, afirmamos que evangelismo e envolvimento sociopolítico são ambos parte de nosso dever cristão.

Em resposta à Conferência de Bangkok, o Pacto de Lausanne deixa claro que a libertação da opressão não é sinônimo do conceito bíblico de salvação. No entanto, o pacto também evitou o erro fundamentalista de negligenciar a justiça social, e até mesmo chamou os evangélicos ao arrependimento por dissociar o cristianismo de sua preocupação legítima com a ordem social.

Essas são lições críticas para nós nos dias de hoje. Nossas dificuldades atuais, quando falamos e pensamos sobre raça, diversidade e justiça social, não são novas. O debate teológico sobre o evangelho e a justiça social é ao menos tão antigo quanto a controvérsia modernista-fundamentalista. Os evangélicos rejeitaram corretamente o evangelho social e formas particulares da teologia da libertação que levavam a um afastamento do ensino cristão histórico. No entanto, muitas vezes fomos demasiadamente complacentes — e demasiadamente despreocupados com essa complacência — em nossa busca por justiça.

Hoje, uma batalha contenciosa se desenrola sobre a teoria crítica da raça (TCR) e iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). Existem muitas maneiras de definir e implementar a TCR e as iniciativas de DEI, algumas das quais se aproximam de versões secularizadas da teologia da libertação. Mas o desejo motivador de incluir e encorajar a diversidade na sociedade é admirável e, em última análise, reflete um anseio pelo reino de Deus. É por isso que muitos apelos cristãos por justiça racial são motivados pela linguagem e por preocupações das Escrituras e até mesmo fundamentados na pessoa de Jesus Cristo.

Pelo menos em alto nível, os objetivos declarados da teoria crítica da raça e das iniciativas de diversidade, equidade e inclusão não são o problema, mesmo que temamos que muitas das abordagens comuns para esses fins sejam equivocadas ou destrutivas. Para aqueles de nós que estão preocupados com versões antibíblicas da TCR, o melhor antídoto pode ser seguir o exemplo do Pacto de Lausanne. Que possamos articular uma teologia robusta de justiça e seguir adiante em nossas ações — e que possamos ser penitentes por nossas falhas no passado em buscar justiça.

III. Ao estudar o Movimento de Lausanne, sempre fico impressionado com o orgulho, a alegria e o amor de seus participantes pela diversidade da igreja global não ocidental e com seu desejo de dar-lhe mais voz. A conferência é estruturada para incluir pessoas dos países mais remotos, com baixa representatividade e poucos recursos. Ela oferece taxas de inscrição variáveis ​​para garantir que os participantes com menos recursos possam comparecer. Mesmo que os organizadores reúnam o grupo mais diverso e global de cristãos da história a cada reunião, eles sempre expressam tristeza por aqueles rincões da igreja que não conseguem comparecer.

Dito isso, o compromisso de Lausanne com a participação global enfrentou vários obstáculos já no início de sua história — a começar por seu primeiro encontro, no qual mais de 1.000 dos 2.700 participantes vieram de países em desenvolvimento.

Antes de Lausanne, alguns líderes africanos propuseram uma “moratória” [do engajamento] de missionários ocidentais na África e de quaisquer recursos financeiros arrecadados por meio de suas organizações. Isso ocorreu, em parte, porque muitos se opuseram aos padrões paternalistas que viam nas missões, geralmente nutridos por grandes desigualdades de riqueza.

As missões ocidentais, mesmo quando bem-intencionadas, às vezes eram exploradoras e falhavam em criar relacionamentos saudáveis ​​e colaborativos que bem servissem aos países não ocidentais. E, com certeza, a associação do movimento missionário da cultura ocidental com o cristianismo distorceu o evangelho e, muitas vezes, foi um obstáculo para o resto do mundo.

Os organizadores de Lausanne convidaram cristãos de todos os lados deste debate para o congresso, entre eles o teólogo queniano John Gatu, o autor da moratória. No congresso, o grupo East Africa National Strategy, composto de cerca de 60 africanos, abordou a questão desta solicitação. Um debate robusto e razoável ocorreu entre Gatu, que defendia a moratória, e Festo Kivengere, um bispo anglicano de Uganda que argumentava contra ela. Ao fim de uma semana, ambos os lados entenderam suas diferenças o suficiente para oferecer uma declaração de consenso ao congresso:

A ideia por trás da moratória é a preocupação com a dependência excessiva de recursos estrangeiros, tanto humanos quanto financeiros, o que às vezes dificulta a iniciativa e o desenvolvimento da responsabilidade local. [Nosso] grupo sentiu que a aplicação do conceito por trás da moratória poderia ser considerada para situações específicas, e não de forma geral.

Com a decretação de uma moratória em larga escala efetivamente retirada, o restante do congresso — e a comissão de redação amplamente ocidental — poderia ter respondido de forma triunfante, evitando a questão por completo. Mas, em vez disso, a comissão reconheceu a legitimidade das preocupações dos africanos e alterou o documento, a fim de declarar: “Também reconhecemos que algumas de nossas missões têm sido muito lentas em equipar e encorajar os líderes nacionais a assumirem suas responsabilidades legítimas”.

Em outro ponto, em seu artigo sobre “Evangelismo e Cultura”, o pacto também inclui um reconhecimento de que, embora o “evangelho não pressup[onha] a superioridade de uma cultura sobre a outra” , as missões globais “muitas vezes têm exportado, juntamente com o evangelho, uma cultura estranha”.

O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.
O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.
O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.
O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.

Nessas declarações, a igreja não ocidental corrigiu com razão a igreja ocidental, e o Ocidente respondeu com arrependimento. Mais uma vez, a “ multiforme sabedoria de Deus”, para relembrar a frase usada no pacto, surgiu por causa de discordâncias que precisavam ser resolvidas, e não apesar delas.

Na raiz dessa questão estava o desejo comum dos cristãos não ocidentais de serem recebidos como iguais. E o Pacto de Lausanne saúda abertamente a beleza dessa visão:

Regozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era missionária. O papel dominante das missões ocidentais está desaparecendo rapidamente […], demonstrando assim que a responsabilidade de evangelizar pertence a todo o corpo de Cristo.

Cinquenta anos atrás, os evangélicos estavam se conscientizando de como as igrejas não ocidentais sofriam quando o evangelho era intimamente vinculado a culturas e países ocidentais. Em nossos dias atuais, estamos vendo em primeira mão os perigos e danos que essa ligação causou às igrejas ocidentais também.

Sempre que identificamos o cristianismo com o Ocidente, com os Estados Unidos ou com qualquer outra entidade sociopolítica, nosso testemunho e nossa compreensão do evangelho são distorcidos. E quando ignoramos a plena diversidade de vozes na igreja global, negligenciamos a “multiforme sabedoria de Deus”.

Acima, à esquerda: Festo Kivengere. Acima, à direita: John Stott. Abaixo: Participantes de Lausanne II, em 1989.Courtesy of Wheaton Archives &amp
Acima, à esquerda: Festo Kivengere. Acima, à direita: John Stott. Abaixo: Participantes de Lausanne II, em 1989.

O Pacto de Lausanne criou um estranho tipo de movimento — uma rede de cristãos de várias denominações e organizações ao redor do mundo. E, embora o congresso em si fosse composto exclusivamente por protestantes, o pacto que eles adotaram estava intencionalmente alinhado com outros ramos do cristianismo. Pelo menos entre os bolsistas da Harvey Fellowship, muitos católicos e cristãos ortodoxos também assinaram o pacto.

Um cristão da China me contou, certa vez, que lhe pediram para assinar o pacto, o que lhe inspirou medo e preocupação reais. Na China, as assinaturas eram evidências físicas que o governo usava para identificar cristãos e persegui-los; por isso, ele fora ensinado a nunca assinar algo que lhe trouxesse implicações tão cabais. Ainda assim, após muita deliberação, ele decidiu assinar o pacto — a única declaração de fé que ele já assinou na vida. Muitos de nós nunca enfrentaremos uma perseguição como a dele, mas, ao assinar o pacto, estamos nos unindo em solidariedade a ele e a tantos outros como ele.

Particularmente fora dos Estados Unidos, a comunidade de Lausanne tem continuado a crescer e, embora continue repleta de discordâncias, manteve clara visão da missão daquele que é maior do que todas as nossas diferenças.

Acima: Participantes discutem o programa em Lausanne II, 1989. Abaixo: Uma das sessões principais, durante Lausanne II.Courtesy of Wheaton Archives & Special Collections, Wheaton College, IL
Acima: Participantes discutem o programa em Lausanne II, 1989. Abaixo: Uma das sessões principais, durante Lausanne II.

A comunidade de Lausanne continua a reunir novas gerações de líderes. Quinze anos após o congresso de 1974, em 1989, a Segunda Conferência Internacional para Evangelismo Mundial foi realizada em Manila, e ficou conhecida como Lausanne II. Este congresso teve 4.300 delegados de 173 países, incluindo a União Soviética. Em 2010, 21 anos depois, o Terceiro Congresso de Lausanne se reuniu na Cidade do Cabo, África do Sul. Desta vez, 4.000 delegados de 198 países se reuniram presencialmente, mas muitos outros participaram virtualmente.

Em setembro, o quarto congresso será realizado em Seul, onde 5.000 delegados — entre os quais eu me incluo — participarão presencialmente e outros 5.000 participarão virtualmente. Dezenas de milhares a mais comparecerão a reuniões-satélites pelo mundo todo.

Muita coisa mudou desde o último encontro em 2010. Novas guerras estão acontecendo ao redor do mundo, e rumores de guerra pairam até mesmo na Coreia, onde nos encontraremos. Os Estados Unidos estão se preparando para outra eleição presidencial contenciosa, junto com muitos outros países, e várias convenções denominacionais continuam a se dividir por causa de tensões entre fundamentalismo e progressismo.

Ainda assim, minha esperança é que os evangélicos tenham, mais uma vez, a oportunidade de lembrar quem somos, de onde viemos e por que é vital para nós trabalharmos as nossas diferenças, em vez de ignorá-las, reprimi-las ou nos dividirmos por causa delas. E talvez, ao nos reorientarmos para o trabalho da missão global de Deus, possamos recuperar a melhor versão do que já significou ser um evangélico.

Ao olharmos para Seul este ano, peço a todos os que creem — evangélicos ou não — que leiam, discutam e considerem assinar o Pacto de Lausanne. Que os líderes da igreja ensinem esse pacto do púlpito, para que as congregações possam refletir seriamente sobre o que ele exige de nós. Que ele nos lembre da bela e amada comunidade de diferenças e discordâncias para a qual somos chamados.

Vamos fazer esse pacto juntos, mais uma vez, o pacto de assumir a grande tarefa das missões mundiais, para que “a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo”.

S. Joshua Swamidass é um médico pesquisador, professor associado de medicina laboratorial e genômica na Universidade de Washington em St. Louis, fundador da Peaceful Science e autor de The Genealogical Adam and Eve [Adão e Eva Genealógicos].

¹Neste artigo, o termo “evangélico” abrange todas as tradições cristãs surgidas como desdobramento das Reformas protestantes, incluindo pentecostais, neopentecostais e independentes.

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