Theology

O legado de Eva não é só o pecado, também é a redenção

A primeira mulher tentou ficar livre de Deus. Mas, quando se alinhou aos propósitos divinos, tornou-se “mãe de toda a humanidade”.

Christianity Today November 21, 2024
Illustration by Karlotta Freier

Quem tiver a felicidade de crescer e ser educado pela própria mãe com certeza aprenderá muito com ela. Nas coisas boas ou não, observamos a maneira como ela administra a vida e muitas vezes a imitamos, mesmo sem querer. O que podemos, então, aprender com a primeira mãe da Bíblia, Eva, que nas Escrituras é chamada “mãe de toda a humanidade” (Gênesis 3.20)? Embora nossa confiança na orientação de Eva seja significativamente prejudicada por sua decisão de desobedecer a Deus, o que ela ainda pode nos ensinar a respeito de como viver bem no mundo criado por Deus?

Eva aparece em quatro cenas de Gênesis: na cena em que foi criada; na cena em que pecou; na cena em que dá à luz e nomeia Caim e seu irmão Abel; na cena em que dá à luz e nomeia Sete. Mais adiante na Bíblia, ela é descrita como tendo sido enganada (1Timóteo 2.14), e, na visão de João, uma mulher muito parecida com Eva ou Maria dá à luz, enquanto um dragão está à espera para devorar seu filho (Apocalipse 12).

A história de Eva se ampliou ao longo do tempo, de modo que a avaliação ressabiada que fazemos dela frequentemente se baseia mais na tradição do que nas próprias Escrituras. Em The Gospel According to Eve [O Evangelho segundo Eva], Amanda W. Benckhuysen observa que “a maioria dos primeiros intérpretes concluiu que Eva era uma criação inferior e secundária que tinha a responsabilidade primária por mergulhar o mundo no pecado e na contenda”. Tomás de Aquino, por exemplo, apresentou Eva como a maior das pecadoras, alguém que, sendo mulher, era “cheia de defeitos e desvirtuada”. No entanto, a Bíblia não a apresenta como uma sedutora, uma mulher atraente e fútil ou como alguém que tragicamente se perdeu — nem a retrata como uma mãe que devemos repudiar.

A vida de Eva começa com uma celebração, e sua é chegada anunciada pelo primeiro homem da Bíblia. Embora não seja o responsável por criá-la, ele próprio a recebe, proclamando que ela era “osso dos meus ossos e carne da minha carne”, e reconhecendo que eles pertencem um ao outro (Gênesis 2.23).

No ritmo mais lento da narrativa de Gênesis 2 sobre as origens do ser humano, Deus realiza um procedimento cirúrgico enquanto o homem dorme, removendo não apenas a costela de Adão, mas — em uma tradução mais precisa — o próprio “lado” dele. Como o narrador nos conta, Deus divide o ser humano ao meio, fornecendo o material necessário para redundar em um macho e uma fêmea.

Além disso, a palavra inglesa “helper” [ajudadora, auxiliadora] não faz justiça a como a palavra hebraica ezer descreve o papel de Eva (v. 18). Em vez de uma serva, Deus cria uma aliada que corresponda ao homem, que possa compartilhar de suas tarefas de cultivo e cuidado do jardim.

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Imagino que os primeiros dias de Adão e Eva foram dedicados à prazerosa descoberta do generoso jardim de Deus. Eles colhiam e comiam frutas, podavam videiras, arrancavam ervas daninhas, cuidavam dos animais e aprendiam a trabalhar o solo. Parte da descrição de seu trabalho, em Gênesis 2.15, era “cuidar” ou “cultivar” o jardim. O papel deles era ativo, não passivo. Juntos, eles assumiram lado a lado a responsabilidade, que deve ter envolvido solução de problemas e colaboração.

Juntos, eles poderiam desfrutar da provisão de Deus e evitar o que estava fora dos limites. Só que não o fizeram. Eva se tornou uma figura trágica em pouco tempo. Não sabemos quanto tempo se passou entre sua criação e a rebelião humana; contudo, no tempo da narrativa, foi um mero piscar de olhos.

A história da desobediência de Eva, em Gênesis 3, é tentadora, e deixa muitas possibilidades em aberto. A versão que ela cria do mandamento de Deus é mais rigorosa do que o próprio mandamento original, e inclui um aviso para sequer tocar na árvore. O texto de 1Timóteo 2.14 é frequentemente tomado como uma acusação a Eva, por sua credulidade, embora a intenção de Paulo possa ter sido o contrário: o exemplo de Eva pode mostrar que as mulheres devem ser meticulosamente ensinadas, e não serem afastadas do bom conhecimento. Será que Adão exagerou ao contar para ela sobre a ordem de Deus? Ou será que Eva estava tentando ser cautelosa, acrescentando restrições?

O fato é que a serpente convenceu Eva de que a ordem de Deus não era confiável — que Deus estava escondendo alguma coisa dela, ao impedir-lhe acesso a algo que a beneficiaria, e que aquilo resultaria na própria deificação do ser humano, e não em morte.

E aqui está o problema: a árvore do conhecimento do bem e do mal representava a busca desse conhecimento de forma independente de Deus. Adão e Eva já tinham acesso àquele que iria ensiná-los a diferenciar o bem do mal, enquanto caminhavam com ele pelo jardim. Comer da árvore proibida era uma tentativa de obter conhecimento fora desse relacionamento com Deus — a fim de se tornarem eles próprios os árbitros da verdade.

Após a desobediência fatídica ao ensinamento divino, Deus procura os seres humanos. Ele se dirige a Adão primeiro, provavelmente porque foi para Adão que ele deu a ordem.

Em seguida, Deus se dirige diretamente a Eva. Vale a pena destacar que Deus não responsabiliza Adão pelo pecado de Eva; ela possui dignidade própria como agente moral. A pergunta de Deus lhe dá uma oportunidade de confessar: “A serpente me enganou, e eu comi” (Gênesis 3.13). Katharine Bushnell, médica e estudiosa da Bíblia que morreu em 1946, reformula essa cena para nós. Em God’s Word to Women [A Palavra de Deus para mulheres], Bushnell sugere que a resposta de Eva para Deus foi melhor do que a de Adão. Adão calunia Deus por lhe ter dado Eva, referindo-se a ela como “a mulher que me deste” (v. 12). Também é fácil para nós apontarmos o dedo para Eva, culpando-a pelo predicamento humano, o caminho do pecado que todos nós escolhemos. Eva, em vez disso, corretamente identifica a serpente como a responsável pela tentação e a si mesma como a responsável pela escolha feita.

Called the Anastasis, or the Resurrection, this fresco in Chora Church, Istanbul, depicts Christ pulling Eve and Adam out of their tombs.
Chamado de Anástase, ou Ressurreição, este afresco da Igreja em Cora, Istambul, retrata Cristo levantando Eva e Adão de seus túmulos.

Em resposta, Deus amaldiçoa a serpente, relegando-a à mais baixa das posições. Ele também lhes diz que as dificuldades serão o fruto dos seus pecados.

Então, ouvimos uma clara nota de esperança: Deus promete que a mulher dará à luz um filho que ferirá a cabeça da serpente, mesmo enquanto a serpente tenta ferir o calcanhar do libertador (v. 15). No fim, a criatura por meio da qual o mal ganhou força será esmagada por um pé humano e destruída.

A inimizade que surge entre Eva e a serpente é um bom sinal. Com os olhos bem abertos, Eva e sua descendência estão determinadas a submeter a criação ao comando de Deus.

De forma clara e inequívoca, Eva fez a escolha errada no jardim, com pleno conhecimento e participação de seu marido. Ela pretendia desobedecer. Ela pensou ter encontrado uma fonte mais confiável de sabedoria. Embora eles não tenham experimentado de forma imediata a morte física, os relacionamentos de Adão e Eva são fragmentados em todos os níveis. Eles se escondem de Deus, culpam um ao outro e perdem o acesso ao jardim de Deus, onde há abundância. Eva sabia que tinha sido enganada.

Por essas razões, Eva não é exatamente aclamada como uma heroína da Bíblia. Sua reputação de pessoa rebelde é bem merecida. Temos convivido com as consequências de sua transgressão desde o Éden. Será que não poderíamos até ficar ressentidos com ela?

No entanto, como acontece com qualquer personagem da Bíblia, o momento do fracasso de Eva não é o que a define por completo. Pelo contrário, podemos encontrar um grande encorajamento na história de Eva. A resposta de Deus à sua decisão pecaminosa abre caminho para entrarmos no reino de Deus. Ele poderia ter descartado a criação e começado tudo de novo. Mas não foi isso que Deus fez.

Em vez disso, Deus anunciou uma solução para dar continuidade a seus planos para a criação, por meio da descendência de Eva. No final da história, Deus apresenta Eva não como aquela através de quem o mal entrou no mundo, mas como aquela através de quem virá a salvação. Sua gravidez, por mais difícil que fosse, resultaria na restauração de tudo o que dera errado no jardim. Nesse sentido, ela seria veículo de salvação.

Todos os seres humanos — homens e mulheres — foram feitos à imagem de Deus e designados para governar a criação em nome de Deus (Gênesis 1.26-28). Juntos, fomos incumbidos de “encher a terra e subjugá-la”. O fracasso de Eva em subjugar a serpente e o fracasso de Adão em apoiá-la nessa tarefa essencial levaram à ruína deles. Realinhar-se com os propósitos de Deus coloca Eva em desacordo com os inimigos de Deus. E esse é exatamente o lugar que ela deveria ocupar.

Talvez a declaração que Deus fez, decretando a inimizade entre Eva e a serpente, seja o que inspira Adão a chamá-la de Eva (em hebraico, Hava), termo que soa semelhante à palavra usada para vida. Adão a admira porque ela se tornará “mãe de toda a humanidade” (3.20), dando vida às gerações seguintes. Ela e Adão — nossa mãe e nosso pai — também foram os primeiros de nós a repudiar a tentação e o pecado e a confiar na promessa de Deus.

Deus compassivamente veste os dois e os manda embora do jardim, impedindo o acesso à árvore da vida. A vida sem fim virá, no futuro; mas primeiro a serpente precisa ser esmagada.

Fora do Éden, em Gênesis 4.1, testemunhamos a alegria de Eva pelo nascimento de seu primeiro filho. Ela sabe que esse nascimento é o caminho para o cumprimento daquilo que Deus anunciara no jardim. A versão New English Translation traduz a exclamação de Eva como “Eu criei um homem assim como fez o Senhor!”.

A palavra hebraica para criei soa como Caim — um jogo de palavras apropriado para o primeiro nascimento na Bíblia. É um momento significativo da narrativa, dada a declaração de Deus de que a descendência de Eva esmagaria a cabeça da serpente. Ela reconheceu de forma correta que o milagre de dar à luz é um milagre da criação. Será que este seria o filho, o responsável por esmagar a serpente?

Não é ele. Nem é seu segundo filho. Em vez de esmagar a tentação — que é retratada em 4.7 como um animal que está à espreita, à porta de Caim, pronto para atacar —, Caim coopera com o pecado assassinando o próprio irmão.

The First Mourning by William-Adolphe Bouguereau (1888)
O Primeiro Luto, de William-Adolphe Bouguereau (1888)

O texto não nos diz como Eva reagiu, ou se ela se agarrou à esperança na promessa de Deus, apesar da perda de seus dois filhos, um para a morte e o outro para o exílio. Imagino que Eva carregou o fardo dessa perda como mãe até o seu leito de morte. Eva dá à luz outro filho, em Gênesis 4.25, dizendo que ele substituiria Abel. Embora não ouçamos falar de nenhum desentendimento entre Sete e a serpente, Sete é citado como ancestral direto de Jesus, em Lucas 3.38.

Pelo restante do Antigo Testamento, aguardamos o descendente de Eva que esmagará a serpente. Os ecos da promessa de Deus no jardim reverberam.

Por exemplo, testemunhamos essa centralidade da promessa de Deus a Eva nos salmos imprecatórios. Em Cursing with God: The Imprecatory Psalms and the Ethics of Christian Prayer [Amaldiçoando com Deus: os Salmos imprecatórios e a ética da oração cristã], Trevor Laurence investiga como esses salmos participam da história bíblica mais ampla, clamando a Deus para pôr fim à maldade e estabelecer seu reino.

O mundo desordenado que resultou da rebelião conjunta de Eva e Adão somente poderia ser restaurado por meio da parceria de seus descendentes com Deus, para subjugar aqueles que se opõem ao governo divino.

Laurence observa que os salmos imprecatórios evocam repetidamente a narrativa do Éden. Eles com frequência se referem a inimigos como “serpentes” ou enganadores cuja “cabeça” precisa ser esmagada, e se referem à “semente” dos justos cujo “calcanhar” está sendo vigiado por seus inimigos (Salmos 58.4-6; 56.6). O efeito cumulativo é uma sensação de que os propósitos de Deus, expressos na história do jardim do Éden, ainda estão sendo trabalhados, à medida que o povo de Deus ora pela derrota daqueles que se opõem ao governo de Deus.

Vale a pena ressaltar que não estamos falando apenas de serpentes em sentido literal aqui. Somente aqueles seres humanos que se alinham aos comandos de Deus são considerados a “semente da mulher”, enquanto as pessoas que se opõem ao governo divino são a “semente da serpente”.

A proclamação do Evangelho, então, faz um convite para reconhecer o senhorio de Jesus Cristo. Ele é a semente da mulher. Ele derrotou Satanás de uma vez por todas e é a semente de Abraão que recebe as promessas da aliança. Todos aqueles que seguem a Cristo são considerados filhos de Deus e semente de Abraão, independentemente de etnia, gênero ou status social (Gálatas 3.26-29).

A visão apocalíptica de João, no livro do Apocalipse, inclui uma cena em que uma mulher grávida sofre dores de parto, enquanto um dragão espera para devorar sua prole (12.1-17). Embora a visão inclua um pastiche de imagens simbólicas que aparecem em vários textos apocalípticos, na raiz de todos eles está o anúncio que Deus faz a Eva de que sua semente esmagaria a cabeça da serpente. Para onde mais João teria se voltado para entender essa cena impressionante?

Na época da visão de João, a mulher representa o Israel coletivo, que traz à luz o Messias sob as dores da dominação estrangeira. E a serpente passou por uma metamorfose, transformando-se em um dragão de sete cabeças, uma combinação de impérios malignos que se opõem ao governo de Deus e ao povo de Deus.

João se assegura de não perdermos essa conexão temática, quando interpreta o dragão para nós como “a antiga serpente chamada Diabo ou Satanás, que engana o mundo todo” (v. 9). Embora Gênesis não revele a identidade da serpente, a visão de João interpreta a cena primordial em retrospectiva.

O antagonismo entre o fiel povo de Deus, à espera do governo do Messias, e o dragão atinge um ponto crítico. Mas Satanás não tem a última palavra. O filho é “arrebatado para junto de Deus e do seu trono”, onde toma seu lugar como governante das nações (v. 5). Satanás é preso por mil anos (20.2-3) e encontra seu fim definitivo no lago de fogo (v. 10).

A visão de João em Apocalipse atinge seu clímax com a cena vívida de um jardim restaurado na Nova Jerusalém, onde os seres humanos podem viver novamente na presença de Deus (22.1-2). As intenções de Deus para a criação são realizadas, por fim e completamente, na gloriosa visão de João.

Quando voltamos ao início, é impressionante o fato de que Deus anuncia a promessa de redenção a Eva, e não a Adão. A “mãe de toda a humanidade” é aquela por meio de quem a semente prometida virá. Como Bushnell escreve, “A Bíblia, desde seus capítulos iniciais, retrata a mulher como aliada de Deus na futura salvação do mundo.”

Embora Eva tenha sido, de forma parcial e ativa, responsável pela rebelião humana no jardim, o seu fracasso, junto com o de seu marido, não é a última palavra. Eva não é um modelo de inocência, mas também não é uma cortesã empenhada em seduzir.

Pelo contrário, a Bíblia a apresenta como paradigma para a participação essencial das mulheres na obra redentora de Deus e como uma pessoa complexa com uma história trágica. E ela é família — é nossa mãe, na esperança e também na ancestralidade. Por mais falha e humana que Eva fosse, nas palavras de Bushnell, “Deus a elevou à posição honrosa de inimiga de Satanás e progenitora do Messias vindouro.”

O que isso significa para nós, como descendentes de Eva? Como o mandamento de Deus para honrarmos pai e mãe (Êxodo 20.12) se aplica à “mãe de toda a humanidade” cuja escolha levou a este mundo de dores?

Nosso dever aqui não é tentar apagar o pecado que ela própria confessou a Deus. Nem é necessariamente honrar Eva pela imitação, embora o cultivo e a maternidade sejam em geral bons e muitas de nós sejamos chamadas para ambos [ainda que em sentido espiritual]. A melhor maneira para todos nós, homens ou mulheres, honrarmos Eva é mantendo-nos hostis em relação a qualquer coisa que se coloque em oposição ao reino de Deus. Aprendemos com Eva a cultivar uma sabedoria fundamentada naquilo que Deus, em sua Palavra, afirma ser bom. E celebramos a semente de Eva, o nosso Messias, Jesus, que esmagou a Serpente e que nos convida a anunciar a redenção disponível a todos.

Deus primeiro apresenta Eva a Adão como uma companheira na tarefa de cuidar da criação e atender ao mandamento de Deus. Quando eles deixam o jardim, Eva é a última esperança de Adão para reverter a maldição sobre a criação. O pecado da “mãe de toda a humanidade” não apagou a possibilidade da participação futura das mulheres na redenção. Gerações depois, a submissão voluntária de Maria ao convite de Deus para gerar o Messias reverte os efeitos do grave erro de Eva. Aquele que foi ferido por nossa causa amarrou Satanás e o esmagará de uma vez por todas.

Carmen Joy Imes é professora associada de Antigo Testamento na Biola University e autora. Sua obra mais recente é Being God’s Image: Why Creation Still Matters [À Imagem de Deus: Por que a criação ainda importa; junho de 2023].

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News

Rina Seixas: Um pouco da vida e da obra do icônico pastor fundador da Bola de Neve

A igreja atraiu celebridades e fundou 500 congregações em seis continentes. Nos últimos tempos, Rina enfrentou acusações feitas por familiares e uma ex-funcionária.

Rina Seixas
Christianity Today November 21, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Image: Courtesy of Bola de Neve Church

Rinaldo Seixas Pereira, o polêmico fundador da Igreja Bola de Neve, que se tornou um movimento com 500 congregações ao redor do mundo, morreu em um acidente de moto em Campinas, no domingo, 17 de novembro. Ele tinha 52 anos.

O apóstolo Rina, como era conhecido por muitos cristãos, estava voltando para casa, na tarde de domingo, após ter falado no Pregadores do Asfalto, um estudo bíblico da sua igreja direcionado para motociclistas, quando caiu da moto e sofreu fraturas múltiplas. Ele morreu no hospital, horas mais tarde, na noite daquele mesmo dia.

Em 1999, a Igreja Bola de Neve começa sua trajetória em uma sala, que ficava no andar de cima de uma loja de surfe chamada Hawaiian Dreams, em São Paulo. Embora a igreja tenha tido um crescimento exponencial nos 25 anos seguintes, o apóstolo Rina era alvo de escândalos pessoais e de controvérsias. Recentemente, ele enfrentava na justiça acusações de violência doméstica, as quais levaram os anciãos da igreja a removê-lo do cargo de presidente do conselho, em junho. Após as denúncias, sua esposa, Denise Seixas, conseguiu na justiça uma medida protetiva contra ele, depois que ela e o filho (enteado de Rina) relataram que ele havia agido com violência contra eles.

No entanto, Rina é lembrado como “um revolucionário, que ganhou muitas vidas improváveis ​​para Jesus, que mobilizou a juventude cristã do Brasil”, escreveu no Threads Fred Arrais, um cantor cristão e pastor da igreja batista Igreja Angelim, no estado do Piauí.

“Você foi uma pessoa que transformava o mundo e, de muitas maneiras, você mudou nosso mundo e ajudou a tornar possível alcançarmos centenas de milhares de pessoas no Brasil”, escreveu Mark Mohr, vocalista da banda de reggae cristã Christafari, no Instagram. “Você foi um plantador de igrejas com centenas de congregações em mais de 30 países.”

Rina nasceu em São Paulo, em 15 de abril de 1972. Ele era o filho mais velho de um casal batista, Lídia Colomietz e Rinaldo Pereira. Ele nasceu após um parto complicado, e os médicos tiveram de retirá-lo com fórceps do útero da mãe. Rina tinha duas irmãs, Daniela e Priscila, que se tornaram pastoras na Bola de Neve.

Na infância, ele frequentou o Colégio Batista Brasileiro e, depois, estudou publicidade, acumulando aprendizados que um dia usaria como pastor de uma megaigreja. Na juventude, porém, Rina se afastou do cristianismo: aos 20 anos era dependente de drogas e tinha contraído hepatite. Ele se reconectou com a sua fé depois de um encontro que, mais tarde, ele descreveu como uma “sensação de morte”.

Logo após essa experiência, Rina começou a frequentar a Renascer em Cristo, em São Paulo, congregação ligada ao movimento neopentecostal que começou a se desenvolver na década de 1970, conhecida por pregar o evangelho da prosperidade e batalha espiritual, bem como por transmitir essas mensagens através de seus próprios meios de comunicação de massa.

Depois de servir por vários anos como líder do ministério de evangelismo dessa igreja, em 1999, Rina começou sua própria igreja com a bênção de Estevam Hernandes, o fundador da Renascer em Cristo. A nova comunidade seria fortemente influenciada pelo que Rina tinha visto em sua antiga igreja, mas, ao mesmo tempo, seria um ambiente acolhedor para os jovens.

Surfista de longa data, Rina perguntou a seus amigos, os donos da Hawaiian Dreams, se ele poderia começar uma igreja em sua loja. Quando eles concordaram, pelo menos 130 pessoas compareceram à primeira reunião. Em uma história que Rina contaria inúmeras vezes depois, o espaço não tinha um púlpito ou sequer uma mesa onde ele pudesse colocar a Bíblia. Ele, então, improvisou: tomou emprestado um longboard (uma prancha de surf) e colocou-o sobre duas cadeiras, numa disposição que se tornou uma característica marcante da comunidade.

A cultura do surf na igreja não era a única coisa que intrigava os novatos. A Renascer em Cristo foi uma das primeiras a abraçar a música contemporânea como forma de se envolver e se conectar com os jovens. A Bola de Neve foi mais longe, realizando cultos com música alta e luzes estroboscópicas, em bares e casas de shows. Nas paredes, painéis iluminados exibiam frases de efeito em inglês, como “In Jesus we trust” [Em Jesus nós confiamos].

O nome da igreja veio de uma visão sobre seu crescimento — “uma bola de neve que, começando pequena, virava uma avalanche”, como Rina descreveu no site da igreja. Em contraste com muitas igrejas evangélicas do início do século 21, a Bola de Neve atendia diretamente o público jovem por meio de sua ênfase em adoração contemporânea, uso de linguagem informal na pregação, aceitação de tatuagens e um código de vestimenta mais casual. (O sucesso da Bola de Neve, por sua vez, influenciou muitas congregações evangélicas a empregarem estratégias semelhantes para atrair os jovens).

Desde o início, a Bola de Neve atraiu artistas, atletas e outras celebridades, e manteve ao longo do tempo a reputação de igreja descolada. Gabriel Medina, Sasha Meneghel, e as atrizes Fernanda Vasconcellos e Danielle Winits estão entre seus frequentadores mais famosos. Muitas das igrejas locais da Bola de Neve também organizam um “ministério de lutas”, nos quais os congregantes frequentam aulas de jiu-jitsu e, às vezes, participam de competições patrocinadas pela igreja.

A pregação de Rina frequentemente invocava imagens da vida cotidiana e gírias. “Na casa de Deus não tem leite derramado, nem feijão queimado, nem arroz grudado, amém?”, foi o que o surfista-pastor certa vez pregou do púlpito, conforme relata Eduardo Maranhão, em seu livro A Grande Onda Vai te Pegar.

Por trás desse estilo coloquial estava uma tentativa de ajudar os cristãos a responderem com eficácia à cultura contemporânea. “Jesus usava uma linguagem peculiar e inovadora”, escreveu Rina. “Ao mesmo tempo em que pregava o conteúdo das escrituras com grande propriedade, expunha os ensinos bíblicos com uma roupagem nova e instigante, através de parábolas, comparações e metáforas.”

Para ele, o cristianismo contemporâneo havia se tornado morno e conformista. “Um dos maiores problemas da Igreja hoje é a perda de sua essência de contracultura”, escreveu ele em seu site. “Se não for baseada na confiança em Deus, a busca pelo Senhor pode nos levar a destinos estranhos e perigosos.”

Embora a igreja nunca tenha anunciado uma estratégia intencional de plantação de igrejas internacionais, a diáspora brasileira organizou e abriu igrejas Bola de Neve locais (com púlpitos de pranchas de surfe) em países tão diversos quanto Estados Unidos, Moçambique, Espanha, Índia, Japão e Austrália, o que lhe permitia alegar que tinha congregações em todos os continentes.

À medida que crescia, a Bola de Neve conseguiu se manter distante de grande parte da cobertura negativa da imprensa que caracterizava muitas congregações neopentecostais. Mas isso mudou este ano.

Em maio, ex-membros de uma congregação do estado de Santa Catarina acusaram a igreja de administrar mal as doações dos fiéis para um projeto destinado a apoiar mulheres empreendedoras. (Na justiça, a igreja negou quaisquer irregularidades).

Dias depois, o cantor cristão Rodolfo Abrantes divulgou um vídeo no qual disse que ele e sua esposa sofreram abuso ​​emocional, no tempo em que ambos foram membros da mesma congregação Bola de Neve, e que os líderes o acusaram de dever dinheiro à gravadora da igreja, a Bola Music.

Rina não comentou publicamente essas acusações.

As acusações começaram a chegar mais perto do líder-fundador. No mesmo mês, Nathan Gouvea, enteado de Rina, disse que fora espancado pelo padrasto e o citou como responsável direto pelas práticas de gestão abusivas que foram denunciadas em Santa Catarina. Ele também alegou que a Bola de Neve era uma seita. “Todo mundo morre de medo do apóstolo”, disse ele.

Em junho, a esposa de Rina, Denise Seixas, pastora da Bola de Neve e cantora cristã, obteve uma medida protetiva na justiça contra Rina, acusando-o de violência física e psicológica.

Em seu depoimento à polícia, ela disse que Rina havia lhe dado um soco no nariz. Gravações de áudio e vídeos vazados nas redes sociais na época mostravam Rina xingando e acusando a esposa de “ouvir demônios”.

Na mesma semana, os anciãos destituíram Rina e Denise da presidência e vice-presidência, respectivamente, da Bola de Neve. O conselho também anunciou a criação de um canal de ouvidoria (um endereço de e-mail para onde as pessoas poderiam enviar reclamações e denúncias) para tratar de “possíveis falhas e má conduta”, além da criação de um conselho de ética para investigar e deliberar sobre irregularidades.

Em junho, uma ex-funcionária da igreja foi à polícia para acusar Rina por importunação sexual. Em seu depoimento, ela relatou várias situações de comportamento inapropriado que ocorreram entre 2012 e 2017, que culminaram em uma tentativa de Rina de agarrá-la. Quando ela saiu do local, disse que tinha hematomas visíveis no braço resultantes do “embate”.

Após essas denúncias, em julho, um tribunal em São Paulo ordenou que Rina entregasse à polícia todas as armas que possuía, em um prazo de 48 horas. Ele informou que as armas estavam guardadas em um clube de tiro e permitiu que a polícia tivesse acesso a elas.

Com a morte de Rina, ainda não está claro como as autoridades e a liderança da igreja abordarão as acusações de má administração, abuso e agressão. Na declaração que anunciou seu falecimento, a Igreja Bola de Neve disse apenas que “Neste momento de grande tristeza, nos colocamos em oração por sua família, amigos e toda a igreja que foi tão abençoada por seu ministério, deixando um legado que jamais será esquecido”.

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Ideas

Chamado e trabalho são coisas diferentes

Frequentemente confundimos nossa vocação com o propósito de Deus para nossa vida. Isso é bíblico?

A small woman pushing a briefcase with papers and paperclips flying out of it.
Christianity Today November 20, 2024
Illustration by Simone Noronha

Quando os cristãos falam sobre trabalho, grande parte da conversa gira em torno de discernir o plano de Deus para a sua vida. Como alguém que se formou em uma universidade cristã, percebo que escolas confessionais e igrejas frequentemente pedem que os jovens reflitam sobre questões como: “qual é a vontade de Deus para a sua carreira?”

Sim, essa é uma questão importante — discernir o chamado de alguém para um caminho vocacional específico e segui-lo de todo o coração pode levar a um senso de realização e de sentido no trabalho. Presumivelmente, também faz parte do processo de fazer boas obras, as quais Deus de antemão preparou para nós as praticarmos (Efésios 2.10). Mas, muitas vezes, quando discernimos um chamado vocacional, presumimos que tudo o que precisamos para cumpri-lo é decifrar o plano de Deus e encontrar um emprego que se encaixe nisso.

Essa suposição é enganosa, na melhor das hipóteses, e talvez até prejudicial. Por quê? A seguir aponto alguns problemas comuns relativos a ela que encontrei em minha pesquisa.

Uma jovem universitária vê a música como sua vocação. Depois de anos tocando em bares pequenos, sem perspectiva de ter um emprego sustentável de longo prazo, ela desiste. E consegue um emprego estável como gerente de um restaurante. Mas, para ela, o trabalho parece algo aquém de suas expectativas, como se fosse um desperdício dos talentos que Deus lhe deu. Supostamente, sua grande chance na música deveria ter sido o primeiro passo para a carreira certa.

Outro jovem se sente chamado para trabalhar com jovens problemáticos, mas seus pais insistem para que ele arrume um emprego estável, a fim de pagar seus estudos. A cada manhã, quando vai para o escritório, ele sente que está se vendendo, em vez de fazer o que Deus claramente lhe disse para fazer.

Ou pense em uma família de dedicados missionários. Depois de passar por uma série de problemas que estão fora de seu controle com o pedido de visto, eles retornam ao seu país de origem, sentindo que falharam com Deus e com a missão que receberam.

Ou pode ser que você já tenha sentido algumas das primeiras alegrias de ir atrás do seu chamado, com todo o seu coração, e talvez até encontrado um emprego que se encaixasse perfeitamente nele. Mas, às vezes, um chamado — especialmente quando não se realiza — de alguma forma gera sentimentos de esgotamento, estresse, fracasso e insatisfação.

Se o chamado vocacional é algo tão bom e tão nobre de se buscar, por que às vezes — ou até mesmo muitas vezes — ele leva a tantos questionamentos e dores de cabeça?

Acredito que nossa compreensão do chamado vocacional precisa passar por uma atualização — que o desvincule das visões modernas de sucesso profissional e amplie a compreensão que temos de trabalho e de tempo. Se fizermos isso, pode ser que encontremos uma abordagem mais saudável para discernir e ir atrás do nosso chamado.

Em meus estudos de PhD na área de psicologia vocacional, tive contato com décadas de pesquisa sobre a noção de chamado e seus efeitos positivos. Grande parte desses estudos aponta para uma correlação entre um senso de chamado e sentimentos de satisfação, eficácia e senso de sentido. O chamado pode melhorar até o desempenho profissional.

Mas nem sempre o cenário é tão otimista. A pesquisa acadêmica começou a destacar um “lado ruim” de se ir atrás de um chamado.

Quando não falamos com precisão do chamado vocacional, tendemos a fazer falsas inferências, particularmente no que se refere à necessidade e ao controle sobre os resultados alcançados. Em geral, presumimos que devemos identificar o chamado vocacional ou que, uma vez que o identificamos, devemos encontrar um emprego que realize esse chamado.

E isso nem sempre é verdade. Todo cristão pode glorificar a Deus e ouvir seu chamado em outros aspectos de sua vida, mesmo sem ter identificado um chamado vocacional específico.

Nós não deveríamos dizer uns aos outros que discernir um chamado — e muito menos cumpri-lo — é requisito para ser um cristão piedoso. Em vez disso, podemos enfatizar que esse discernimento é uma meta desejável e valiosa, que depende das circunstâncias certas. É mais como ter uma casa (algo bom de se ter) do que exercer hospitalidade (uma virtude cristã).

Mesmo que alguém tenha identificado alguma vocação, pode ser que simplesmente não haja oportunidades de emprego suficientes na área desejada, ou que outra força externa possa impedir essa pessoa de entrar ou de permanecer naquele campo, independentemente de quanto ela se empenhe para isso. Isso pode levar a pessoa a sentir uma pressão avassaladora, que parte de expectativas irracionais para construir uma carreira.

Muitas pessoas sentem arrependimento, estresse ou decepção quando reconhecem uma vocação que não se realiza. Em um estudo com 378 membros do corpo docente de faculdades americanas, aqueles que sentiam que sua vocação não se realizava por meio de seu trabalho atual relataram piores resultados em áreas como vida, trabalho e saúde do que aqueles que não sentiam ter vocação alguma. Os pesquisadores concluíram que “ter uma vocação é algo benéfico apenas se esta se realizar, mas pode ser prejudicial quando não se realizar, se comparado a não ter vocação alguma”.

Outro estudo entrevistou 450 músicos, ao longo de 11 anos, e descobriu que aqueles que sentiam fortemente uma vocação para a música eram mais propensos a seguir a carreira musical profissionalmente. Isso a despeito de, ironicamente, “um padrão intrigante, segundo o qual a experiência vocacional inicialmente mais forte levava a uma percepção maior da habilidade que não se refletia em maior habilidade concreta”. Em outras palavras, o senso de vocação dos participantes da pesquisa não se alinhava com seu nível de talento.

Enquanto tentam entrar no campo em que acreditam que deveriam estar, as pessoas podem se deparar, como alguns pesquisadores colocam, com “estados desagradáveis ​​de arrependimento por não terem insistido em sua vocação, e estresse devido a dificuldades de ir atrás de sua vocação não realizada”.

Além disso, mesmo quando as pessoas encontram empregos que atendem à sua vocação, elas geralmente ficam suscetíveis a comportamentos laborais que levam a burnout e a um equilíbrio ruim entre vida pessoal e profissional.

Um dos primeiros relatos desse lado obscuro do chamado vocacional veio de um estudo de 2009 focado em cuidadores de animais de zoológicos, nos EUA. Os pesquisadores descobriram que os trabalhadores que tinham um forte senso de chamado se beneficiavam de um senso mais amplo de sentido e importância de seu trabalho, mas também sofriam por abrir mão de salários justos, tempo e conforto. Em seu estudo de 2023 sobre educadores luteranos, Krista E. Hughes, professora do Newberry College, chamou isso de “imposto da paixão” que se tornou “assustadoramente alto”.

Permitir que nosso senso de chamado supere outras necessidades reais parece ser um caminho particularmente escorregadio, quando alguém tem um chamado voltado para ocupações de baixa renda, alta carga de trabalho e alto nível de estresse com poucos limites entre trabalho e vida pessoal, como, por exemplo, o trabalho pastoral. Não é incomum ouvir falar de pastores que trabalham por muitas horas, voluntariamente, nunca pedem um aumento justo de salário e, acabam  se esgotando e deixando o ministério.

Quero encorajar a todos, jovens e velhos, a pensarem com cuidado sobre o que acreditam que Deus os chamou a fazer. Podemos orar: “Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, ensina-me as tuas veredas” (Salmos 25.4). Podemos pedir a Deus: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que o nosso coração alcance sabedoria” e “consolida a obra de nossas mãos” (Salmos 90.12, 17). Sabemos que Deus nos convida a participar da sua vontade na terra e no seu reino, e pedimos que nos capacite de maneiras que nos permitam realizar essa vontade (Hebreus 13.20-21).

Meus colegas e eu publicamos um artigo de pesquisa, no ano passado, que defende uma nova conceituação de chamado. Acredito que esse material seja especialmente importante para os cristãos.

O primeiro passo para isso pode ser desvencilhar nossa compreensão de chamado das visões modernas de sucesso na carreira. Quando dizemos que determinado trabalho é nosso chamado, parece que colocamos sobre ele a expectativa adicional de que devemos “ter sucesso” naquele trabalho. Talvez não uma expectativa financeira — especialmente se for um chamado para o ministério —, mas ao menos expectativas de outros tipos, e muitas vezes olhamos para maneiras de medir o sucesso como uma forma de validar que estamos de fato cumprindo o nosso chamado. Quer seja uma promoção, influência cultural ou o crescimento da igreja, vemos isso como evidência de que estamos fazendo a vontade de Deus com eficácia, e esperamos ver resultados, se de fato estivermos em uma função para a qual fomos chamados.

Só para esclarecer, os sinais de sucesso por si só não são ruins. Mas eles podem ser facilmente transformados em ídolos, que, por sua vez, transformam objetivos nobres em orgulho e expectativas irracionais. Além disso, muitas vezes eles colocam nosso foco no mundo, e não em Deus. John Piper escreve em seu livro A Hunger for God [Fome de Deus]: “O maior adversário do amor a Deus não são os inimigos de Deus, mas os seus dons…Pois quando estes [dons] substituem nosso apetite pelo próprio Deus, a idolatria torna-se algo difícil de reconhecer e quase incurável.”

A jornada de cada um para discernir e ir atrás de seu chamado é diferente e tem resultados diferentes. Perceber isso nos liberta de viver segundo um padrão do que seja um “chamado cumprido” e nos permite explorar, pela fé, o que Deus tem reservado para cada um de nós.

A partir disso, precisamos ampliar nossa compreensão do trabalho e do chamado. O “trabalho” pode abranger muito mais do que apenas um emprego remunerado. O escopo do nosso chamado pode ser cumprido não por meio de um único emprego estritamente definido, mas por um amplo espectro de atividades, as quais podem ou não pertencer ao domínio do emprego remunerado.

Talvez você seja chamado para ser um escritor. Isso não significa que você precisa ser um escritor profissional, cuja única fonte de renda venha de lançar livros que façam sucesso. Seu chamado pode ser cumprido por meio dos contos que você escreve para os recursos educacionais da sua igreja ou dos livros que você lança de vez em quando para abençoar a vida de alguns leitores.

Sua ocupação principal e seu chamado podem ser buscados simultaneamente, quando não coincidirem. Veja Paulo, que foi chamado diretamente por Deus, na estrada para Damasco, com o intuito de servir como um catalisador para o crescimento da igreja primitiva (Atos 9). Ele também parece ter continuado com seu trabalho diário como fabricante de tendas, uma função que ele usava para se sustentar e promover o reino de Deus por meio de suas atividades (Atos 18.2-3; 1Tessalonicenses 2.9).

Também precisamos ampliar nossa compreensão do período de tempo de um chamado. Quando começamos a buscar a vontade de Deus para a nossa vida por meio de um chamado, parecemos presumir que é uma busca imediata. Na realidade, porém, o chamado pode levar um tempo para se concretizar. Em outras palavras, podemos discernir o chamado de Deus bem cedo na vida, mas o caminho que ele estabeleceu para nós pode nos levar por uma série de reviravoltas, durante muitos anos, antes de encontrarmos uma ocupação por meio da qual possamos cumprir nosso chamado.

Esse tempo não deve ser considerado um desvio de rota ou um tempo perdido. Ele é um importante trampolim que Deus está usando para nos moldar e formar, preparando-nos para o futuro. Tomemos, por exemplo, os sonhos de José sobre seu futuro, relatados pela primeira vez em Gênesis 37. Eles só se realizaram anos depois — após inúmeras provações e adversidades.

Da mesma forma, depois de encontrar um trabalho que cumpra nosso chamado, precisamos lembrar que ele não dura para sempre. Alguns chamados podem durar apenas alguns anos, enquanto outros podem durar a vida inteira. Quando seu trabalho muda, devido a fatores como uma demissão, as necessidades de sua família ou o surgimento de uma nova tecnologia, isso não significa que você perdeu seu chamado. Talvez você tenha cumprido esse chamado vocacional, e Deus esteja lhe apontando na direção de um novo chamado ou de uma pausa temporária.

O campo do aconselhamento de carreira já está mudando sua abordagem quanto a ideia de chamado. Antes, alguns conselheiros relutavam em ajudar estudantes a discernirem um chamado, acreditando que essa iniciativa poderia sair pela culatra, se as circunstâncias do estudante estivessem levando a um emprego que ficasse fora da sua percepção de chamado. Então, um estudo de 2020 sugeriu que os conselheiros de carreira podem ajudar os jovens a discernirem uma vocação sem ter a preocupação de que suas vidas serão afetadas negativamente se não a seguirem.

Os benefícios de tentar identificar o chamado de um jovem ficaram especialmente claros quando os conselheiros encorajaram os indivíduos a serem flexíveis em relação ao que seu chamado e sua ocupação podem se parecer na vida real. Isso também pode mitigar efeitos adversos, como burnout, equilíbrio ruim entre vida pessoal e profissional e estresse prejudicial à saúde.

Mas ainda há motivos para cautela. Um estudo com músicos amadores apontou uma preocupação digna de nota: aqueles com um senso mais forte de chamado tendiam a ser mais dispostos a ignorar conselhos relacionados à carreira dados por um mentor confiável, se tais conselhos estivessem em desacordo com a percepção que tinham de seu chamado profissional.

Tomados em conjunto, esses fatores me levam a concluir que devemos investir em mais estudos e recursos voltados para aconselhamento de carreira.

Os cristãos precisam discernir e ir atrás de seus chamados vocacionais. No entanto, fazer isso com foco no propósito mais amplo de servir no reino de Deus pode mudar a forma como percebemos o chamado, e aumentar nosso deleite a respeito das variadas formas e aspectos do chamado de Deus para a nossa vida — algo que vai muito além de um emprego. Talvez, possamos trocar as perguntas que fazemos por perguntas melhores como estas:

Será que só posso cumprir meu chamado por meio de um trabalho específico de tempo integral?

Um trabalho que se alinha com meu chamado está disponível para mim agora, ou terei que esperar mais?

Estou pressupondo que meu chamado durará por todos os meus anos de trabalho, ou ele pode mudar com o tempo?

Para todos que buscam a melhor forma de usar os dons que Deus lhes deu, eu digo: Orem ativamente e busquem conselhos sábios, sabendo que sua carreira e seu chamado não são a mesma coisa. Podemos encontrar realização nos lugares mais improváveis.

Steven Zhou tem um PhD em psicologia organizacional pela George Mason University, onde agora leciona como membro adjunto do corpo docente; ele também atua como diretor de operações de sua igreja.

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Theology

O Advento também é para os que estão tristes e solitários

O que esse tempo em que antecipamos o Natal tem a ver com o deserto?

Christianity Today November 15, 2024
KariHoglund / Getty Images

Normalmente as pessoas possuem opiniões diferentes sobre o Natal. Alguns esperam por essa época do ano com intensa antecipação e entusiasmo, enquanto outros prefeririam evitar a data.

Normalmente, eu faria parte do primeiro grupo. Mas já tive algumas estações do Advento [esse período que antece o Natal] em que me vi tentando evitar o clima natalino e seus festejos, pois eu me sentia estranhamente vazia e exausta com toda essa agitação característica da época. Assim foram os primeiros Natais depois que meu pai morreu. E embora eu tenha tido a sorte de ter crianças bastante animadas com o Natal em casa, que me arrastaram de volta para as festividades, pude entender esse gostinho da tristeza que é comum nessa época para algumas pessoas.

Uma temporada que tem tudo a ver com família pode ser um momento desesperadamente solitário para pessoas que estão vivendo isoladas, sofrendo a perda de um ente querido ou tentando lidar com algum estresse na família. E para aqueles de nós que seguem o calendário litúrgico, se o Advento chegar em um momento em que espiritualmente estivermos em um lugar estéril, o chamado para abrirmos nosso coração para a temporada pode intensificar nossa sensação de incerteza ou de alienação.

Sem dúvida, algumas pessoas este ano simplesmente não estão “no clima” para pensar em Advento, devido a alguma circunstância pessoal. Talvez a estação encontre você em um momento extremo de tristeza ou em um deserto de distanciamento espiritual. Se for esse o caso, é importante lembrar que o Advento é uma estação que também fala de anseio, vazio e espera. É um tempo que separamos para nos ajudar a perceber que precisamos ser libertos de nossa condição atual.

Coincidentemente, existem duas passagens muito significativas que se passam no deserto e que são sempre lembradas no Advento: Isaías 40 e Marcos 1.

Em Isaías 40, os israelitas estão vivendo em um extremo de exílio político e desolação espiritual. Depois de vários capítulos de exortações e julgamento, Deus começa a falar de esperança por meio de seu profeta.

“Consolem, consolem o meu povo”, ele começa. “Encoragem a Jerusalém” (v. 1). E então uma voz clama: “No deserto preparem o caminho para o Senhor; façam no deserto um caminho reto para o nosso Deus” (v. 3).

Esta metáfora, que fala de uma espécie de via expressa que atravessa o deserto, é dos temas favoritos de Isaías. Ele pede que o ouvinte imagine uma terra ressequida e inóspita, quase intransitável, a leste de Jerusalém, sendo transformada em um caminho largo e acolhedor. Tal metáfora tem ao menos duas camadas de sentido.

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Primeiro, para os israelitas que estavam há muito exilados, ela é uma promessa da tão esperada volta ao lar. Esta passagem está reverberando um assunto citado anteriormente, em Isaías 35, onde o profeta promete aos israelitas que eles um dia voltarão a Sião, com cânticos de alegria enquanto caminham. Ele os assegura de que chegarão lá por uma grande estrada, um caminho de santidade, no qual não haverá leão algum nem outros animais ferozes. Em outras palavras, um caminho livre de ameaças e perigos se abrirá para eles.

Mas a metáfora também tem outro sentido.

Pois, sempre que um rei estava chegando a uma cidade, um arauto era enviado à frente, para anunciar a chegada iminente e para garantir que a cidade anfitriã iria estender o tapete vermelho e preparar o caminho para receber o rei. Então, para os ouvidos de um israelita, a voz de alguém que clamava para que preparassem um caminho no deserto significava não apenas que eles iriam voltar para casa, mas também que o próprio Senhor está a caminho.

Isaías lembra seus ouvintes que tudo muda quando o rei chega à cidade. Ele promete que “Todos os vales serão levantados, todos os montes e colinas serão aplanados; os terrenos acidentados se tornarão planos; as escarpas serão niveladas.” (40.4).

Essa ideia de vales sendo levantados e de montes sendo aplanados me chama a atenção. Percebo que eu mesma sou uma mescla de montes e vales, de lugares altos e baixos — uma mistura curiosa de arrogâncias e inseguranças. Muitas vezes acabo pensando em mim mesma, se me permite parafrasear Anne Lamott, “como o pedaço de lixo em torno do qual o mundo gira”. Mas Isaías pede que eu permita que meus lugares de arrogância sejam nivelados para chegar à humildade adequada, e minhas zonas de desespero sejam levantadas até alcançar a coragem e a esperança.

Além do mais, como essa tarefa de preparar o caminho no deserto é dada à toda a comunidade, há uma implicação inegável de que a disparidade entre os “que têm” posses e os “que não têm” deve ser nivelada, chegando em uma equidade para todos. Então, Isaías nos clama no deserto e nos convida para uma jornada rumo à santidade pessoal e à mobilização, à transformação social.

E não é só Isaías que nos chama a preparar um caminho. Na leitura do Novo Testamento para o Advento, os versículos de abertura do Evangelho de Marcos incluem uma citação direta de Isaías 40. Marcos nos diz que agora a “voz do que clama no deserto” é João Batista, que chegou à cena como um cumprimento direto da profecia de Isaías. E o único foco de João Batista é anunciar a vinda do rei — de Jesus — que é o cumprimento direto de todas as promessas já feitas ao povo de Deus.

É importante notar que João Batista não é apenas uma voz que clama para o deserto — ele é uma voz que clama no deserto, do deserto. Ele é um morador do deserto, e seu ministério está acontecendo nos lugares áridos que ficam a leste de Jerusalém.

João Batista cresceu sabendo que tinha um chamado especial em sua vida. Ele era filho de Zacarias e Isabel — um casal que já havia suportado uma vida inteira de infertilidade, e que teve seu primeiro filho quando já eram idosos. Seu nascimento foi um milagre inegável, o qual havia sido anunciado por um anjo em um discurso que também deixou claro que João tinha um papel incrível a desempenhar na história da salvação.

Mas, então, por que João optou por viver no deserto? Você pensaria que um jovem com uma linhagem espiritual como essa se colocaria na vitrine da sinagoga mais influente da região — ou melhor ainda, do templo — e esperaria que os líderes religiosos reconhecessem sua autoridade. Em vez disso, porém, João escolheu ir para as colinas. O que ele sabia sobre o deserto que nós não sabemos?

Talvez João tenha optado por viver no deserto porque já tinha ouvido o suficiente da história de Israel para saber que Deus é especialista em fazer coisas boas surgirem de lugares pouco promissores.

Afinal, Deus havia trabalhado na história da salvação por meio de casais sem filhos, irmãos rivais, líderes gagos, reis rebeldes e, agora, por meio de Jesus, um jovem de paternidade questionável, nascido e criado em algumas cidadezinhas do interior. “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?”, perguntou incrédulo um discípulo em potencial, quando soube de onde Jesus era.

João sabia que, quando Deus está envolvido, algo de bom poderia, sim, vir até mesmo de uma cidade de reputação questionável como Nazaré. E algo de bom poderia vir do deserto também.

Marcos nos conta que, mais tarde, Jesus se juntou a João no deserto e insistiu para que João o batizasse. Assim que Jesus saiu da água, o espírito de Deus desceu visivelmente sobre ele na forma de uma pomba, e uma voz vinda do céu afirmou publicamente a identidade de Jesus como o filho amado do próprio Javé. Você poderia pensar que, depois de uma afirmação tão incrível, Jesus passaria diretamente para seu ministério público; porém, não foi isso que aconteceu. O mesmo Espírito que desceu sobre ele como uma pomba o compeliu a entrar ainda mais fundo no deserto.

Jonathan Martin argumenta que a jornada de Jesus no deserto, por 40 dias e 40 noites, foi tanto uma dádiva quanto uma provação.

Embora a experiência de Jesus no deserto não tenha sido fácil — ele jejuou por quarenta dias e quarenta noites, e foi confrontado pelo diabo — o diabo não foi o único que ele encontrou por lá. O espírito enviou ao deserto um Jesus revigorado pela afirmação de sua identidade aos olhos de Deus, e permitiu que ele se afastasse de sua vida cotidiana, até que o barulho e a pressa do mundo ao seu redor fossem reduzidos a um ponto em que ele pudesse facilmente distinguir a voz do acusador da voz do Pai. O mesmo pode ser verdade para nós.

Então, se você se encontra em uma terra árida neste Advento, considere a possibilidade de estar, na verdade, recebendo as dádivas do deserto. O Advento é um tempo de espera, e o deserto é um lugar tão bom quanto qualquer outro para esperar — talvez até o melhor lugar de todos. Se você está se sentindo um pouco vazio, talvez isso seja uma coisa boa. Afinal, há uma voz clamando no deserto, e ela está nos pedindo para preparar um lugar para Jesus em nossos corações.

Carolyn Arends é diretora de educação no Renovaré Institute for Christian Spiritual Formation. Ela também é artista, palestrante, autora e instrutora universitária.

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Ideas

Esperança radical em uma era de apocalipse climático

A atual crise ambiental está avançando rápida e furiosamente. Como evitarmos o desespero?

A picture of a forest fire being peeled away revealing a green forest
Christianity Today November 13, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty / Unsplash

Um dos piores sentimentos do mundo é ver um desastre que você não consegue impedir se desenrolando. Um acidente de carro que você vê que vai acontecer uma fração de segundos antes do impacto. Uma pessoa cuja doença você consegue diagnosticar, mas não consegue curar. Uma avalanche descendo montanha abaixo, quando você sabe que nada pode ser feito para detê-la. Um furacão de categoria cinco que está vindo em sua direção e promete provocar uma destruição incalculável.

Para um número crescente de pessoas, as mudanças climáticas evocam esse mesmo sentimento. À medida que novas máximas de temperatura são batidas a cada dois anos (com o ano de 2023 superando todas as médias globais anteriores de temperatura nos últimos 100.000 anos), assistir à mudança climática da Terra se parece com assistir a um desastre de trem que está acontecendo em câmera lenta.

Inundações, incêndios florestais e tempestades recordes, sem precedentes, chocam-se de frente com a indecisão de governos, a apatia (ou negação) política e as prerrogativas individuais. Só no mês passado, dois furacões monstruosos, Helene e Milton, devastaram os estados do Sul dos EUA, deixando comunidades inteiras destruídas. A crescente disparidade entre a escala dos desafios que enfrentamos e a pequena quantidade de poder que qualquer pessoa comum possui já é capaz de fomentar uma sensação de desespero e ansiedade.

As pessoas processam desastres de grandes proporções de maneiras diferentes. Muitas optam por uma postura de negação, ignorância ou apatia (“não há nada que eu possa fazer mesmo, então, por que tentar?”) — e há pouco a ser feito em relação a essas pessoas, exceto continuar a disseminar conscientização e educação.

Mas aqueles que acreditam em alertas têm duas maneiras comuns de reagir. Os mais otimistas querem acreditar no melhor cenário; querem acreditar que há uma solução plausível que pode ser alcançada — que, com a quantidade certa de esforço coordenado, podemos fazer o que é preciso e mudar o mundo, talvez até mesmo no intervalo de uma ou duas gerações. Enquanto isso, os mais pessimistas querem ficar a par do pior cenário possível, para que possam gastar energia e esforço com cautela, tendo em mente a longa estrada que têm pela frente — eles sabem que é tolice correr o máximo que podem no início de uma maratona.

Notei essas duas reações diferentes no início dos lockdowns da COVID-19, lá na minha faculdade, em Oxford. Algumas pessoas nos diziam com confiança: “Isso tudo acabará em três meses — voltaremos ao normal em setembro!”. E eu circulava por aí com meu jeito pessimista, dizendo: “Bem, dados históricos sugerem que vai levar pelo menos um ano, talvez dois, antes que qualquer coisa parecida com a vida normal seja retomada. É melhor nos acostumarmos com isso.”

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Eu realmente achava que estava ajudando as pessoas, quando estabelecia uma meta razoável, para que elas não tivessem a sensação — que eu odeio mais do que qualquer coisa — de que a linha de chegada ficava sempre mudando mais para a frente, cada vez que nos aproximávamos dela. Mas muitos dos meus amigos, que eram do tipo mais otimistas, sentiam que eu estava esmagando suas esperanças. Minhas tentativas de sempre considerar o pior cenário realista acabaram me rendendo o apelido carinhoso de “profeta do apocalipse”.

Em relação às mudanças climáticas, aqui está minha opinião de “profeta do apocalipse”: em certo sentido, a ansiedade que as pessoas sentem se justifica pelos fatos sombrios. O mundo está passando por mudanças rápidas e generalizadas, que trarão sofrimento intenso a centenas de milhões, se não bilhões, de pessoas.

Estamos presos nas garras de um sério vício global em combustíveis fósseis. A dura verdade a se encarar é que já queimamos petróleo e gás natural suficientes para colocar o clima em novos parâmetros. Quanto mais queimamos combustíveis fósseis, principalmente a essas taxas altíssimas às quais nos acostumamos, mais pioramos a situação.

Os combustíveis fósseis nos trouxeram muitas coisas boas. Aumento da expectativa de vida e melhoria das condições de nutrição. Diminuição da mortalidade infantil. Viagens rápidas e baratas. Não queremos perder os muitos benefícios da nossa cultura movida a combustíveis fósseis. Mas também não queremos ver nosso futuro sendo queimado pelo consumismo desenfreado ou pela ganância imprudente.

Como acontece com qualquer vício grave, a abstinência é dolorosa, custosa e, quando mal feita, pode ser fatal. Na verdade, as mudanças drásticas que são necessárias para conter nosso vício provavelmente significariam um sofrimento tremendo e prováveis perdas de vidas.

Pense nisto: construímos todo o nosso mundo desenvolvido para depender da agricultura em larga escala, do transporte rápido e eficiente de alimentos e mercadorias, e de casas dependentes de sistemas de aquecimento e de resfriamento que consomem muita energia. Se cortarmos o petróleo, que é a força vital desses sistemas, pessoas podem morrer.

À medida que o clima esquenta, esses eventos ligados ao aquecimento se tornarão mais frequentes, embora a maneira mais eficaz de diminuir o número de mortes que eles provocarão seja consumindo ainda mais energia para gerar espaços mais frescos. É um ciclo vicioso, que não para nas mudanças de temperatura.

Da mesma forma, os alimentos básicos da nossa dieta vêm de um sistema agrícola insustentável. Um estudo descobriu que 1,78 bilhão de pessoas são alimentadas por plantações que dependem diretamente de fertilizantes gerados por combustíveis fósseis, os quais, quando usados ​​em excesso, podem envenenar cursos d’água e prejudicar a produtividade do solo com o passar do tempo.

Tudo isso mostra o quão perversamente complexo é o problema da mudança climática. Cientificamente falando, envolve perda de biodiversidade, poluição da água e do ar, acidificação dos oceanos, ciclos biogeoquímicos e colapso do sistema ecológico. Socialmente falando, envolve uso de tecnologia, metas de desenvolvimento sustentável, normas culturais, crescimento populacional, sistemas econômicos e políticos, crenças religiosas e limitações psicológicas e físicas.

A razão pela qual é tão difícil falar sobre mudança climática é que levantar qualquer questão é como puxar um fio em uma teia de aranha: todos os outros fios da teia são atingidos. Nós nos sentimos impotentes para efetuar as mudanças que gostaríamos de ver, quando simplesmente atender às necessidades de cada dia parece uma batalha dificílima. E, com isso, a ansiedade aumenta, até o ponto em que a própria ansiedade parece fazer parte da avalanche que ameaça desabar sobre nós. Será que existe alguma esperança?

A resposta curta é sim, existe. Na verdade, acho que este é o momento para uma esperança radical. Encontrei esse termo pela primeira vez no excelente livro de Jonathan Lear, Radical Hope: Ethics in the Face of Cultural Devastation [Esperança radical: ética diante da devastação cultural]. Lear explora a história da tribo Crow, em meados de 1800, conforme eles respondiam às mudanças trazidas pela colonização ocidental de seus territórios em Montana.

A figura-chave no livro é Plenty Coups, Chefe da tribo Crow que passou a vida liderando seu povo, em meio a essas mudanças frequentemente traumáticas, com uma percepção fundamental: o antigo estilo de vida nômade de correr atrás dos búfalos estava inevitável e irrevogavelmente liquidado. Como seu povo poderia ter esperança, quando a própria possibilidade de viver como um Crow de forma significativa estava sendo destruída? Eles tiveram que aprender um novo estilo de vida. Até mesmo seus valores essenciais, como o que significava ser corajoso, tiveram que ser reformados em uma cultura na qual os atos tradicionais de coragem dos guerreiros eram ilegais.

A esperança radical, então, é a esperança que se forma quando todas as esperanças que tínhamos antes se acabam. A esperança radical foi o tipo de esperança que Deus proporcionou aos exilados israelitas na Babilônia, quando disse:

Construam casas e habitem nelas; plantem jardins e comam de seus frutos. Casem-se e tenham filhos e filhas; […]Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei […] Não deixem que os profetas e adivinhos que há no meio de vocês os enganem. Não deem atenção aos sonhos que vocês os encorajam a terem. (Jeremias 29.5-8)

Esta passagem vem antes das famosas palavras no versículo 11: “‘Porque sou eu que conheço os planos que tenho para vocês’, diz o Senhor, ‘planos de fazê-los prosperar e não de lhes causar dano, planos de dar-lhes esperança e um futuro.’” No entanto, os bons planos de Deus não eram para que aquela geração voltasse para casa e vivesse como sempre tinham vivido. Em vez disso, a esperança e o futuro deles estavam em investir no exílio. Como a tribo Crow, eles aceitaram a realidade de que sua antiga vida não existia mais e precisava ser refeita.

Da mesma forma, para nós, a esperança radical significa criar raízes em nosso exílio pessoal e esperar que a promessa de Deus seja cumprida além do alcance da nossa própria vida.

Estamos apenas começando a ver as consequências de uma crise que caracterizará o mundo nas próximas décadas, e percebendo que toda a nossa boa vontade — toda a nossa reciclagem, os nossos canudos de papel e as nossas escovas de dentes de bambu — não conseguirá impedir o gigante da mudança climática. Os rolos compressores da economia e da política são simplesmente fortes demais para que nossos pequenos atos façam muita diferença.

Em 2016, 195 países aderiram ao Acordo de Paris, um tratado para tentar evitar que a mudança climática ulltrapassasse 1,5 grau Celsius (2,7 graus Fahrenheit). Essa esperança de manter o aquecimento global abaixo de 1,5 grau já se foi, mas ainda há lugar para a esperança radical.

Mas como viver essa esperança radical em nossa vida cotidiana?

Para mim, ela lembra muito a antiga oração da serenidade: “Senhor, dá-me serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que posso e a sabedoria para saber a diferença [entre elas]”. Na prática, significa fazer planos para usar minha energia de forma a tentar fazer a máxima diferença que eu puder com as escolhas que faço e as ferramentas que tenho.

Uma ferramenta que me ajuda a calcular bem meu foco de atenção e minha energia é a chamada “teoria das colheres” — que ouvi de meus amigos portadores de deficiências crônicas. É uma maneira de medir o esforço que você tem que despender, quando tem uma doença que o impede de fazer tudo o que deseja em um dia. Em suma, a teoria das colheres pede que você imagine seu nível de energia diário como se fosse um certo número de colheres. Então, você divide suas tarefas diárias com base em quanta energia cada uma delas consome: duas colheres para levantar e se vestir, seis para fazer compras, três para preparar uma refeição, e assim por diante.

Eu faço algo parecido com isso para a questão do cuidado com a criação. Geralmente uso metade das minhas colheres de energia ambiental para advocacy e para tentar mudar instituições sistêmicas e políticas: votando, escrevendo cartas para líderes políticos, mobilizando e educando pessoas. A outra metade das minhas colheres eu uso em trabalhos menores, mais gratificantes psicologicamente, embora menos impactantes: recuperando uma margem de riacho, pesquisando e substituindo produtos por outros melhores em minha vida, vasculhando brechós.

O esforço que dedico a essa minha pequena parcela de influência democrática para buscar uma mudança sistêmica, em vez de tentar viver uma vida privada perfeita, significa que minha escova de dentes ainda é de plástico, e que meu carro, que raramente uso, ainda é movido a gasolina — mas [também significa que] tenho uma chance maior de fazer diferença em larga escala do que se eu dedicasse todos os meus esforços para tornar minha vida individual perfeita.

Enquanto os modelos culturais negam as mudanças climáticas ou abrem mão de todos os bens da sociedade moderna para viver uma vida ideal e fora do sistema em alguma fazenda orgânica, eu descobri que a teoria das colheres me ajuda a administrar o perfeccionismo que poderia sobrecarregar e matar a possibilidade de fazer um bem real e concreto, sem sentir uma culpa avassaladora a respeito de tudo o que não posso fazer.

A cultura ocidental vive em profunda negação de algumas das realidades básicas da vida, como doenças, sofrimento e morte. Uns tentam dribar essas realidades fazendo usos cada vez mais elaborados de energia movida a combustíveis fósseis, como o congelamento criogênico.

Como cristãos, porém, nossa fonte última de esperança radical encontra-se na história da Páscoa. Jesus não evitou o sofrimento intenso nem a morte, mas os aceitou, suportou e venceu. E, ao fazê-lo, ele abriu caminho para a esperança radical da vida ressuscitada. A esperança cristã não está em evitar ou em driblar a morte ou o sofrimento, mas em atravessá-los com coragem e virtude, enquanto antecipamos a esperança da ressurreição e da vida eterna na nova criação de Deus.

À medida que desastres naturais acontecem, à medida que a insegurança alimentar aumenta, à medida que a migração humana se intensifica, lembramos das palavras de Jesus: “Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo” (João 16.33). E é por causa dessa vitória que podemos viver nossa esperança radical amando a misericórdia, agindo com justiça e caminhando humildemente com Deus nos tempos difíceis.

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Bethany Sollereder faz preleções sobre ciência e religião na Universidade de Edimburgo. Ela é especialista em teologia do sofrimento e escreveu Why Is There Suffering?: Pick Your Own Theological Expedition [Por que o sofrimento existe: escolha sua própria expedição teológica], o primeiro livro teológico do mundo do tipo “escolha sua própria aventura”.

Ideas

O que é (e o que não é) perseguição de cristãos

Nove verdades que os crentes precisam entender para saber orar pelos que sofrem no corpo de Cristo.

Jesus' hand and his feet with holes from the nails
Christianity Today November 12, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: WikiMedia Commons / Getty

Recentemente, conversei com um líder de igreja nigeriano que me mostrou um vídeo assustador, o qual não consigo tirar da cabeça. Militantes do Boko Haram — grupo terrorista que há anos ataca brutalmente igrejas na Nigéria — filmaram a si mesmos subjugando um pequeno grupo de cristãos e dizendo a quem quisesse ouvir que pretendiam matar todos os cristãos, se eles não se submetessem ao islamismo. Então, decapitaram nossos irmãos e irmãs em Cristo.

Um horror como esse foi o que me levou a orar e a trabalhar por anos em favor daqueles que sofrem por sua fé. Como parte do meu ministério com a Radical, tive a oportunidade de falar com cristãos que enfrentaram violência, pressão social ou até mesmo prisão por anunciar o evangelho, plantar igrejas ou simplesmente por se manterem firmes em sua fé.

Ao mesmo tempo, reconheço que, para muitos cristãos, esses casos de perseguição podem parecer distantes, abstratos, incompreensíveis ou avassaladores. Muitos cristãos perseguidos vivem em países que nunca visitamos e em lugares cujo nome mal conseguimos pronunciar. Também vivemos em um ciclo de notícias constante, 24 horas por dia, que nos inunda com histórias de guerra e terror, o que nos insensibiliza para o custo que nossa família da igreja global paga por seguir Jesus.

Mas, pelos próximos dois domingos de novembro, designados pela Aliança Evangélica Mundial como Dia Internacional de Oração pela Igreja Perseguida — e também para além deles — quero convidá-lo a se juntar a outros crentes ao redor do mundo para interceder por aqueles que professam a Cristo e sofrem por isso. Também quero dissipar alguns mitos sobre perseguição e ajudá-lo a entender o que ela realmente significa e como acontece no mundo. À luz da ordem de Deus para que nos lembremos daqueles que são perseguidos como se estivéssemos fisicamente com eles (veja Hebreus 13.3) e oremos por eles, espero que aprender mais sobre perseguição nos ajude a ser o corpo global de Cristo que ele nos chamou a ser.

Perseguição é assédio ou oposição por seguir a Jesus. No Sermão do Monte, o termo que Jesus usa para “perseguido” significa “perseguido com hostilidade”. E ele continua descrevendo como o termo pode significar tudo, desde pessoas ridicularizando, envergonhando, excluindo ou mentindo sobre você até restringindo a sua liberdade, aprisionando você e acabando com a sua vida (veja Mateus 5.10-12;10.16-33; Lucas 6.22-23). É digno de nota que a perseguição se dá quando essas formas de resistência acontecem especificamente porque alguém está seguindo a Jesus. Em Mateus 5, Jesus diz que devemos esperar essa hostilidade, a qual ocorre “por causa da justiça” e “por minha causa”.

Perseguição não pode ser definida como qualquer coisa difícil que acontece a um cristão. Os seguidores de Jesus enfrentam todos os tipos de tribulações neste mundo, justamente como o próprio Jesus prometeu que enfrentariam (João 16.33). Muitas vezes, esse sofrimento é comum à experiência de pessoas que não são cristãs também. Crentes e descrentes recebem diagnósticos de câncer. Crentes e descrentes sofrem por causa de conflitos ou de guerras. Crentes e descrentes passam por sofrimento emocional e tensão em relacionamentos.

Mas dificuldade não é o mesmo que perseguição. Só porque você é cristão e está sentindo na pele os efeitos de um mundo caído não significa que está sendo assediado ou que está sofrendo oposição por causa da justiça.

A perseguição acontece para igrejas que se reúnem em segredo e para igrejas que se reúnem às claras. Muitos de nós imaginamos nossos irmãos perseguidos se reunindo em igrejas secretas nas casas. Anos atrás, a Radical iniciou um evento chamado Igreja Secreta. Essa iniciativa foi baseada em momentos que vivi com crentes asiáticos, em que fui levado às escondidas para lugares em que todos os outros presentes na sala seriam presos, caso fossem pegos reunidos ali.

Mas o que muitos cristãos não percebem é que a perseguição também acontece em países onde nossos irmãos e irmãs se reúnem abertamente em prédios (até mesmo grandes) de igrejas, onde são liderados por pastores formados em seminários. Acabei de me encontrar, na África Ocidental, com um pastor cujo complexo em que fica a sua igreja recebia regularmente mais de 500 fiéis; certo dia, porém, eles foram repentinamente atacados por militantes que começaram a queimar prédios, carros e pessoas. Só porque os cristãos se reúnem em público não significa que não corram perigo.

A realidade da perseguição pode variar dentro de um mesmo país. Veja a Índia e a Indonésia, por exemplo. Os cristãos podem se reunir tranquilamente nas manhãs de domingo, no estado de Kerala, que fica no sul da Índia. Enquanto isso, no ano passado, multidões queimaram mais de 200 igrejas no estado de Manipur, que fica no leste do país. Algumas centenas de quilômetros a sudeste, na Indonésia, os cristãos podem estar protegidos em uma ilha e sofrer oposição em outra. Assim como acontece no país em que você vive, a segurança pode variar de região para região.

A perseguição pode vir de cima para baixo, de baixo para cima ou de ambas as direções. Alguns governos ao redor do mundo proíbem seus cidadãos de seguirem a Jesus e se reunirem como igreja. Mas a perseguição nem sempre é iniciada por autoridades governamentais. Quando meu amigo Zamir se tornou cristão, seus próprios irmãos o espancaram quase até a morte, e seu pai o expulsou de casa. Outros amigos meus, a quem chamarei de Samil e Aanya, foram rejeitados por sua família por seguirem Jesus. Quando o casal voltou, anos depois, para tentar compartilhar o evangelho com seus pais, o pai de Aanya a envenenou e ela morreu. Em alguns países, forças políticas, familiares e amigos trabalham em conjunto para perseguir os cristãos. Por exemplo, o regime norte-coreano proíbe o cristianismo, e as autoridades dependem que familiares, amigos ou vizinhos lhe delatem atividades cristãs.

A perseguição pode significar morte — ou discriminação. Como já compartilhei, as histórias de perseguição na Nigéria são horrendas. Há várias décadas, militantes têm sequestrado, estuprado e matado muitos de nossos irmãos e irmãs em Cristo. Ao mesmo tempo, a perseguição à igreja nem sempre é tão severa. Com base em conversas que tive com irmãos e irmãs ao redor do mundo, um empreendedor cristão em um país do Oriente Médio pode perder o direito de ter um negócio — ou pode perder a clientela que o sustenta. Um novo seguidor de Jesus que vive no alto do Himalaia pode perder o direito à água ou à eletricidade em sua aldeia. Uma igreja em uma cidade do Sudeste Asiático pode ser forçada a pagar taxas extras (e às vezes exorbitantes) para alugar ou possuir um prédio.

Na Europa e nas Américas, os crentes geralmente introduzem qualquer menção à perseguição em suas vidas dizendo: “Não é tão ruim quanto o que nossos irmãos e irmãs ao redor do mundo estão enfrentando”, e isso é uma verdade inquestionável. Mas não significa que ainda não seja perseguição quando um cristão britânico é preso por orar silenciosamente do lado de fora de uma clínica de aborto ou quando um cristão americano é demitido de seu emprego por expressar suas opiniões sobre a sexualidade bíblica.

A perseguição vem em seguida da identificação e da proclamação. Desde o começo da igreja, no livro de Atos, a perseguição tem ocorrido sempre que as pessoas professam ou propagam a fé em Jesus. A palavra grega para “testemunha”, em Atos 1.8, é martus, de onde vem a palavra mártir. Na Somália, enquanto minha amiga Halima continuar reservada e calada sobre sua fé, ela poderá evitar a perseguição. Mas assim que disser que se afastou do islamismo para seguir a Jesus, ela provavelmente será morta. Na Índia, dependendo do estado, compartilhar o evangelho com outra pessoa pode levar alguém à prisão, enquanto levar alguém a Jesus e batizar essa pessoa pode significar dez anos de prisão.

O propósito da perseguição é silenciar o testemunho. Quando começou a perseguição contra a igreja, em Atos 4, os líderes judeus ordenaram aos cristãos que “não falassem nem ensinassem em nome de Jesus”. Pedro e João responderam dizendo: “não podemos deixar de falar do que vimos e ouvimos” (v. 18-20). Depois de se reunirem para orar, os primeiros cristãos ficaram “todos cheios do Espírito Santo e anunciavam corajosamente a palavra de Deus” (v. 31).

É importante lembrar disso, quando cristãos de partes do mundo em que há liberdade costumam dizer coisas como: “eu dou testemunho sendo uma boa pessoa ou praticando boas obras”. Isso pode até soar bem aos nossos ouvidos, mas não é o que a Bíblia quer dizer com testemunho. Em muitas partes do mundo, nossos irmãos e irmãs em Cristo estão razoavelmente seguros, se não forem mais do que boas pessoas que praticam boas obras. Mas quando falam do que viram e ouviram, eles sofrem perseguição.

A perseguição é algo garantido não apenas para outros cristãos, mas também para nós. À luz de tudo o que foi dito aqui, é uma questão de obediência a Deus orar especificamente por nossos irmãos e irmãs que vivem em partes do mundo onde a perseguição é mais feroz (Hebreus 13.3). Não há como exagerarmos a importância disso: temos uma responsabilidade bíblica e familiar de orar e de trabalhar por nossos irmãos e irmãs em Cristo, particularmente em países como Coreia do Norte, Somália, Líbia, Eritreia, Iêmen, Nigéria, Paquistão, Sudão, Irã e Afeganistão. Ao mesmo tempo, Deus também deixa claro em sua Palavra que “todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (2Timóteo 3.12). Observe as palavras “todos” e “serão”. A perseguição não é um “talvez” nem é para “alguns” cristãos.

Se você não está sofrendo perseguição em algum grau, precisa se perguntar: “Estou professando e propagando a fé em Jesus?” Em outras palavras, você está se identificando de forma clara e inequívoca com Jesus; está proclamando Jesus com humildade e ousadia; está contando às pessoas sobre a vida, a morte e a ressurreição de Jesus, e chamando outros a se arrependerem e a crerem no nosso Salvador, porque a vida deles, hoje e por toda a eternidade, no céu ou no inferno, depende da resposta que derem a ele?

Se não estamos professando fé em Jesus dessa forma, então, enquanto oramos pela igreja perseguida, precisamos perceber que, na verdade, nossas vidas se simpatizam com os perseguidores. Isso pode soar como algo exagerado, ofensivo, mas considere isto: se o propósito da perseguição é silenciar o testemunho, e se você ou eu estamos silenciando nosso próprio testemunho, então, estamos refletindo a imagem dos perseguidores, e não a dos perseguidos.

Mas se nos identificamos corajosamente com Jesus e damos testemunho dele, então, enquanto oramos, estamos nos identificando com a igreja perseguida. E de acordo com 2Timóteo 3, podemos ter certeza de que a perseguição virá para nós. Quanto mais dedicarmos nossas vidas a seguir a Jesus e a torná-lo conhecido no lugar em que vivemos e em todas as nações, e particularmente nos lugares onde o evangelho ainda não foi pregado, mais enfrentaremos perseguição. Vamos interceder por nossos irmãos e irmãs em Cristo que são perseguidos ao redor do mundo, para que sejam fiéis até o fim, conscientes de que todo cristão precisa de intercessores semelhantes para fazer o mesmo.

David Platt atua como pastor principal da McLean Bible Church e é autor de livros como Radical e Don’t Hold Back [Não se contenha]. Também é o fundador da Radical, uma organização que ajuda as pessoas a seguirem a Jesus e a torná-lo conhecido nos lugares em que vivem e em todas as nações.

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As deportações em massa prometidas por Trump colocam igrejas de imigrantes em alerta

Algumas das propostas do presidente eleito parecem improváveis, mas ele ameaçou retirar do país milhões de imigrantes, ilegais e legais.

A man furls a flag after a US naturalization ceremony in Los Angeles for immigrants becoming citizens.

Em Los Angeles, no início deste ano, um homem enrola uma bandeira dos EUA, após uma cerimônia de naturalização para imigrantes que se tornam cidadãos.

Christianity Today November 11, 2024
Mario Tama / Getty Images

Jackson Voltaire, um pastor que lidera uma denominação com 255 igrejas batistas haitianas na Flórida, fez uma oração pedindo uma bênção pessoal para Donald Trump, no dia seguinte à eleição.

Mas Voltaire também se reuniu para orar com líderes das igrejas de sua denominação que estavam preocupados com o que pode vir a acontecer com o status legal dos haitianos no país.

“Podemos até dizer para as pessoas não se preocuparem, porém, para a maioria delas, há motivos para se preocupar”, disse Voltaire. “Mas quando fixamos nossos olhos em Jesus, a preocupação começa a se dissipar. A força e o consolo que encontramos nas promessas de Deus são mais fortes do que o medo.”

Trump, o presidente eleito, fez da deportação em massa uma parte central de sua campanha, prometendo retirar dos Estados Unidos milhões de imigrantes, entre eles, os haitianos. A plataforma oficial do Partido Republicano promete “realizar a maior operação de deportação da história americana”.

Em discursos de campanha, Trump falou de imigrantes sem visto que estariam cometendo crimes violentos, mas também indicou que acabaria com certos programas de imigração legal, como o que beneficia os haitianos.

Essas propostas podem afetar mais de 10 milhões de pessoas nos EUA e resultar na separação de milhões de famílias, já que a maioria dos imigrantes sem visto vive em lares com outros imigrantes legais.

Grande parte dos haitianos está legalmente nos Estados Unidos, através do Status de Proteção Temporária, um programa para quem foge de guerras ou de situações extremas, e que contempla o Haiti e outras nações, como Venezuela e Nicarágua. Trump tentou, sem sucesso, acabar com esse programa em seu primeiro mandato e, agora, vai tentar de novo.

O Haiti atualmente não tem um governo funcional, o que dificulta qualquer deportação, e os moradores vivem sob o controle de gangues em guerra.

Voltaire disse que orou não apenas para que Trump abençoasse os Estados Unidos, mas para que Deus encontrasse pessoas que mudassem o curso da nação do Haiti, para que os haitianos não tivessem que fugir do país. Voltaire ora para que o Haiti possa “voltar aos tempos gloriosos em que essa nação era considerada a pérola do Caribe”.

Trump fez promessas de deportar milhões, em sua campanha de 2016, mas os números de deportação em seu primeiro mandato parecem ser praticamente os mesmos do governo Biden. O governo Obama ainda detém o recorde do maior número de deportações em um ano.

Desta vez, Trump propôs um meio mais drástico de deportação: mobilizar a Guarda Nacional para prender imigrantes ilegais. Ele frequentemente cita a “Operação Wetback”, do governo Eisenhower, na qual autoridades policiais federais e locais fizeram amplas operações para deportar quase um milhão de pessoas, entre as quais havia cidadãos americanos.

Especialistas em imigração duvidam que o Congresso fornecerá financiamento para deportações em massa, e dizem que a infraestrutura necessária para a ação não é algo fácil de se ampliar. Um grupo ligado à imigração estimou o custo da deportação em US$ 315 bilhões.

Mesmo que não haja dinheiro para deportações em massa, “não quero dizer às pessoas que tudo vai ficar bem. Acho que veremos um aumento nas deportações de pessoas de bem”, disse Matthew Soerens, chefe de advocacy da World Relief, uma organização evangélica de reassentamento de refugiados. “Todos concordam em deportar criminosos violentos.”

Embora os evangélicos tenham apoiado Trump na eleição, historicamente, eles também têm visões mais compassivas sobre imigração. Eles apoiam o status legal para os “Dreamers” (imigrantes ilegais trazidos para os EUA quando crianças), se opõem à separação de famílias e sentem que os EUA têm uma obrigação moral de acolher refugiados. Uma visão que mudou recentemente, no entanto, é que eles veem os imigrantes como um dreno econômico.

Grupos religiosos esperam poder argumentar com Trump que os imigrantes têm valor.

“Vamos implorar a ele, apelar ao seu compromisso de apoiar a igreja perseguida, às suas declarações de que ele acredita na imigração legal”, disse Soerens.

“Nós […] acreditamos na possibilidade de progredir e pedimos à nova administração que considere o imenso valor que os imigrantes e refugiados trazem para nossa nação”, afirmou Krish O’Mara Vignarajah, chefe da Global Refuge, uma agência religiosa de reassentamento de refugiados.

Separar famílias é a política de imigração mais impopular entre os cristãos evangélicos brancos. “Não está claro o que Trump, o presidente eleito, fará”, disse Soerens.

As deportações atingiriam a comunidade latina de forma desproporcional. Os evangélicos latinos apoiam a extensão do status legal aos Dreamers e a outros imigrantes sem visto que vivem nos EUA há muito tempo. Contudo, a maioria desses evangélicos (60%) votou em Trump na última eleição, em grande parte com base em questões sociais, entre elas o aborto, que podem ter tido origem em países com regimes comunistas ou de esquerda.

“Embora os evangélicos latinos não sejam um bloco monolítico nem sejam eleitores que votam com base em uma única questão, quando o assunto é imigração, muitas congregações latinas expressaram profundas preocupações em torno do discurso da deportação em massa e de seu impacto no ministério em relação à igreja latina”, disse Gabriel Salguero, presidente da National Latino Evangelical Coalition [Coalizão Nacional de Evangélicos Latinos], em uma declaração à CT.

“Nós nos perguntamos como as igrejas podem aceitar os dízimos e as ofertas de membros imigrantes e, ao mesmo tempo, permanecem caladas sobre políticas que defendem sua deportação em massa”, disse ele. “Nossa oração sincera é que finalmente haja uma solução para a questão da imigração que contemple os dois lados, que respeite o estado de direito e honre a dignidade de todas as pessoas.”

A pressão política há muito tempo impede o Congresso de promulgar a reforma da imigração; um projeto de lei bipartidário sobre segurança nas fronteiras, proposto em fevereiro com o intuito de restringir migrantes na fronteira e tratar do processo de asilo fracassou, quando Trump se opôs a ele.

Outros programas legais de imigração estão sendo questionados. A liberdade condicional humanitária permite que afegãos, ucranianos, haitianos, cubanos, nicaraguenses e venezuelanos encontrem abrigo legal nos EUA, mas Trump prometeu deportar pessoas desse programa.

“Preparem-se para ir em embora”, disse Trump.

Muitos ucranianos vieram para os EUA sob o status de liberdade condicional humanitária, fugindo da guerra em seu país. Paul Oliferchik é filho de refugiados da União Soviética e foi, até recentemente, pastor de uma igreja ucraniana das Assembleias de Deus em Nova York, a cidade que abriga a maior população ucraniana dos EUA. Ele agora serve em uma igreja chinesa na cidade.

Sua esposa é filha de refugiados ucranianos que receberam ajuda de uma organização luterana para se reinstalarem nos EUA, lembra ele. “Nós nos mudamos [para cá] como refugiados e fomos tremendamente abençoados”, disse ele.

Mas muitos dos imigrantes evangélicos ucranianos que ele conhece são apoiadores de Trump — eles não tomam decisões políticas com base na questão da imigração, mas sim com base em questões socialmente conservadoras.

Oliferchik acha que eles provavelmente não sabem sobre o possível fim do programa de liberdade condicional humanitária. De qualquer forma, espera que eles fiquem no país, assim como outros refugiados.

“Deus ajudou a trazer muitos de nós para cá, para viver nos Estados Unidos”, disse ele. “Deus disse a Israel, quando os estava tirando do Egito, para se lembrarem [daquilo que ele estava fazendo]. Se não nos lembrarmos de onde o próprio Deus nos tirou e de como ele nos redimiu, isso pode ter reflexos no modo como tratamos outros que também estão apenas tentando sobreviver e viver.”

No primeiro mandato de Trump, ele tentou acabar com o Deferred Action for Childhood Arrivals (DACA) [Ação Diferida para Chegadas na Infância], um programa para aquelas pessoas conhecidas como Dreamers, mas se deparou com obstáculos legais. Especialistas em imigração disseram que os consultores jurídicos de Trump aprenderam com suas primeiras tentativas de derrubar alguns desses programas e podem ter mais sucesso desta vez.

Liderada por Stephen Miller, experiente consultor em matéria de imigração, a equipe de Trump está procurando outras maneiras de restringir a imigração legal, relatou o The Wall Street Journal, como, por exemplo, uma política que bloquearia a imigração de pessoas com deficiência ou de baixa renda.

Um programa que fica totalmente sob a alçada do presidente é o programa de refugiados; em seu último mandato, Trump suspendeu temporariamente o programa inteiro, e, assim, reduziu drasticamente o número de admissões de refugiados para um nível recorde.

Em 2020, quando ele completou seu mandato, as admissões de refugiados tinham caído da média histórica de 81 mil por ano para 12 mil. Trump, em sua campanha de 2024, criticou as admissões de refugiados de Biden e disse que traria “novas medidas repressivas”.

As medidas repressivas do governo Trump anterior, em alguns casos, prenderam imigrantes sem antecedentes criminais que estavam no país há décadas.

Em 2017, agentes do Immigration and Customs Enforcement [Imigração e Fiscalização Aduaneira] prenderam centenas de cristãos iraquianos em Detroit, alguns a caminho da igreja. Esses cristãos teriam que enfrentar perseguição e “até mesmo a morte” se tivessem sido deportados, escreveram líderes evangélicos ao governo Trump, na época.

Durante os embates legais em torna dessa deportação, muitos cristãos iraquianos foram mantidos em detenção nos EUA, por mais de um ano, antes de serem libertados, e alguns foram deportados. (Alguns dos indivíduos de fato tinham registros criminais que levaram à deportação; outros não tinham antecedentes criminais.) Muitos dos cristãos caldeus não acreditavam que seriam deportados, porque tinham apoiado Trump e acreditavam em suas declarações sobre proteger os cristãos perseguidos.

Seja qual for a escala da deportação na próxima administração, as promessas de Trump já causam ansiedade nas comunidades de imigrantes.

“Minha sensação é que, para a maioria dos meus amigos haitianos, a preocupação nem é tanto com a deportação, pois eles têm um status (ainda que temporário) que os protege da deportação”, disse Jeremy Hudson, pastor da Fellowship Church, uma das maiores igrejas em Springfield, Ohio, que tem uma grande população haitiana.

“A maior preocupação de que mais ouvi eles falarem é sobre como serão tratados e vistos pelos cidadãos locais.”

Trump falou que imigrantes sem visto estão “envenenando o sangue do nosso país” e prometeu socorrer “todas as cidades que foram invadidas e conquistadas” [por imigrantes]. Ele e seu vice-presidente, JD Vance, perseguiram haitianos reiteradamente, espalhando a história falsa de que eles estavam comendo os animais de estimação das pessoas em Springfield.

Voltaire, o pastor da Flórida, disse que suas igrejas haitianas ainda estão lidando com as consequências dessas declarações.

“O impacto dessa história falsa de Springfield chegou para ficar”, ele disse. “Mas os haitianos são um povo resiliente. Eles já passaram por muita coisa.”

Enquanto isso, os pastores haitianos devem continuar a servir os imigrantes que estão em suas igrejas.

“Nossa oração é que as pessoas encontrem forças e consolo no amor que mostramos por elas”, ele disse. “No final, oramos para que o nome de Deus seja glorificado na vida de todos os imigrantes, sejam eles haitianos ou de onde quer que sejam.”

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O que outra presidência de Trump significa para os evangélicos ao redor do mundo

Líderes cristãos, do Brasil à Turquia, recebem os resultados das eleições nos EUA com alegria, tristeza e indiferença.

Donald Trump in front of a world map
Christianity Today November 9, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty

Enquanto os americanos iam às urnas, na terça-feira, o resto do mundo observava, para ver quem se tornaria o 47º presidente dos Estados Unidos. A eleição de Donald Trump tem impacto em muitas comunidades evangélicas ao redor do mundo, em termos de política externa, ajuda humanitária, liberdade religiosa e tendências culturais. Ainda assim, líderes cristãos de alguns países disseram que não fazia diferença para eles quem se tornaria o próximo presidente dos EUA.

A CT perguntou a vários líderes evangélicos ao redor do mundo sobre suas reações a uma nova presidência de Trump e seu impacto prático sobre a situação dos evangélicos em seus respectivos países. As respostas são divididas por região: África, Ásia, Europa, América Latina, América do Norte e Oriente Médio. A CT acrescentará outras respostas, à medida que forem enviadas.

América Latina

Brasil

Cassiano Luz, diretor-executivo, Aliança Evangélica Brasileira

O fato de Donald Trump ter sido novamente eleito para a presidência dos EUA, potencialmente, tem importantes implicações para os evangélicos brasileiros.

Trump é considerado aliado e amigo de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil que teve amplo apoio evangélico. Condenado por abuso de poder político e uso irregular dos meios de comunicação, Bolsonaro está inelegível, e portanto, impedido de concorrer à reeleição em 2026. Também é investigado por lavagem de dinheiro, falsificação em registros de vacinação e incitação da insurreição que destruiu o Congresso Nacional e outros prédios oficiais na capital da república, Brasília, em 2022. Bolsonaro e seus aliados comemoram a volta de Trump à presidência, crendo que a pressão política americana poderá reverter sua inelegibilidade no Brasil.

Penso que uma prioridade para nós, como igreja evangélica brasileira, é entender os elementos que motivam nossas escolhas e posicionamentos ideológicos. Enquanto grande parcela dos evangélicos brasileiros comemora a volta de Donald Trump à presidência, por considerá-lo alinhado aos princípios do evangelho, prefiro parafrasear o querido Ronaldo Lidório, lembrando que o evangelho não é nem democrata nem republicano, não se alinha à Kamala nem a Trump; o evangelho é Jesus. “Amigos, este mundo não é a casa de vocês; por isso, não se sintam à vontade nele. Não deem espaço para o ego à custa da sua alma” (1Pedro 2.11 na versão A MENSAGEM) 

México

Rubén Enriquez Navarrete, secretário, Fraternidade Evangélica do México

Donald Trump venceu a eleição presidencial nos Estados Unidos mais uma vez. Embora possa não estar acima de qualquer suspeita, ele é uma pessoa que reconhece as origens e os princípios dos EUA como enraizados no Deus da Bíblia. Acredito que Deus permitiu isso por dois motivos: para dar às igrejas uma oportunidade maior de difundir o evangelho e para encorajar a reflexão entre aqueles que se afastaram de Deus.

A questão dos imigrantes é uma das principais preocupações das igrejas mexicanas, e o resultado da eleição sem dúvida a influenciará. As igrejas mexicanas estão organizando esforços para apoiar os imigrantes, especialmente na fronteira. Para nós, isso não é um problema, mas uma oportunidade. Embora muitos cheguem aqui como descrentes, eles geralmente se convertem e, ao retornarem para seus países de origem, compartilham o evangelho ou apoiam igrejas estabelecidas.

Para os cristãos mexicanos, não há um impacto significativo — apenas um sentimento de orgulho em saber que, nos EUA, as opiniões dos pastores evangélicos são valorizadas.

América do Norte

Canadá

David Guretzki, presidente e CEO, Fraternidade Evangélica do Canadá

Devido à proximidade geográfica do Canadá, os principais eventos políticos nos EUA têm uma influência maior em nosso clima político e social. Por exemplo, quando a Suprema Corte dos EUA derrubou o precedente Roe v. Wade, o aborto se tornou um tópico polêmico novamente no Canadá, o que levou a promessas do nosso governo no sentido de garantir que o Canadá não seguiria pelo mesmo caminho.

Houve muita angústia em ambos os lados do debate sobre o aborto, embora absolutamente nada tenha mudado em nosso contexto legal. A revogação de Roe v. Wade despertou nos defensores pró-vida um desejo renovado de ver novas leis promulgadas, enquanto os defensores pró-escolha buscavam permitir acesso irrestrito ao aborto.

Embora sempre haja comparações entre as políticas dos EUA e do Canadá, buscamos lembrar aos cristãos evangélicos que o contexto histórico, religioso, social e político do Canadá é único.

Nossa organização é grata pelo fato de que a eleição dos EUA tenha sido realizada com liberdade e sem violência ou perda de vidas. As Escrituras nos ordenam a orar por todos aqueles em posição de autoridade, independentemente de sua filiação política. Nesse sentido, pedimos a todos os seguidores de Jesus que observem esta exortação, e ao mesmo tempo demonstrem amorosa tolerância para com aqueles cujas visões políticas possam diferir das suas.

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África

Nigéria

James Akinyele, secretário-geral, Fraternidade Evangélica da Nigéria

À luz das atuais dificuldades econômicas e políticas que a Nigéria enfrenta, esta eleição nos EUA não foi debatida localmente tanto quanto as duas anteriores. Para os evangélicos, nenhum dos candidatos era uma opção fácil. Harris era considerada mais sensata, mas seu forte apoio ao aborto e aos direitos LGBTQ deixou muitas pessoas desconfortáveis. As posições morais de Trump reverberam nossas principais convicções evangélicas, mas sua falta de moralidade em termos pessoais e sua percepção da supremacia branca despertaram alguma preocupação. Esperamos que ele se torne mais aberto à imigração.

Alguns líderes cristãos nigerianos disseram que a vitória de Trump é uma resposta às nossas orações por um presidente dos EUA que defenderá a fé cristã na Nigéria e ao redor do mundo. Outros disseram que deveria ser aceita como a vontade de Deus, sem julgamento positivo ou negativo. Mas quase todo mundo espera que ele se torne menos polêmico em sua retórica e na conduta pessoal. E muitos são simpáticos à sua promessa de manter o papel da América de polícia global, sem ser subserviente ao resto do mundo.

África do Sul

Moss Ntlha, secretário-geral, Aliança Evangélica da África do Sul

A vitória de Trump é um dia triste para o evangelicalismo em todo o mundo. Evangélicos proeminentes nos EUA saíram em total apoio a Trump, fazendo parecer que ser alguém que crê na Bíblia é ser alguém que apoia Trump. Esse endosso passa a impressão de que o conservadorismo teológico requer e conduz a uma visão política de direita que é ditatorial, que se opõe à justiça climática, que sanciona o genocídio na Terra Santa e aprova o que ocorreu naquele 6 de janeiro.

Na África do Sul, muitos que conhecem os horrores do apartheid reconhecem quão facilmente uma política populista, que se apega a uma visão estreita da moralidade pública, pode prejudicar aqueles que estão nas margens. Trump já declarou, em seu primeiro mandato, que os países africanos são “países de m—”. Recentemente, ele deixou claro que, quando voltasse à presidência, garantiria que Israel tivesse tudo o que precisa para “terminar o trabalho”, o que muitos entendem como apagar do mapa a existência palestina.

Nossa preocupação é que ter Trump na Casa Branca tornará difícil proclamar a mensagem do evangelho de que “Deus amou o mundo de tal maneira” que enviou Jesus para morrer por todos, especialmente nossos vizinhos muçulmanos. Nossa preocupação é que ele use o imenso poder do governo dos EUA para punir aqueles que buscam políticas estrangeiras contrárias às dele, como a África do Sul, por apelar ao Tribunal Internacional de Justiça para que julgue se o que estamos testemunhando no conflito Israel-Palestina é genocídio.

Ásia

Bangladesh

Philip Adhikary, presidente, Aliança Evangélica de Bangladesh

A eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA evoca reações mistas. Embora a administração de Trump geralmente tivesse uma posição forte em favor da liberdade religiosa, suas políticas externas em relação a países como Bangladesh eram frequentemente pragmáticas, em vez de explicitamente focadas nas preocupações de minorias religiosas específicas. Sua abordagem em favor da “América primeiro” [que desconsidera interesses globais e foca somente na política doméstica dos EUA] e seu apoio à liberdade religiosa podem sinalizar implicações positivas e desafiadoras para os evangélicos de Bangladesh.

No entanto, a ajuda externa dos EUA, que às vezes vem com condições relacionadas a direitos humanos, pode não mudar drasticamente em resposta às prioridades de Trump, em especial se sua administração priorizar os interesses nacionais em detrimento dos direitos humanos internacionais.

Na prática, o impacto da presidência de Trump poderia incluir maiores oportunidades para ONGs religiosas sob a forma de ajuda. No entanto, a ascensão da retórica nacionalista e anti-imigrantes em alguns países ocidentais, durante seu mandato, poderia encorajar a oposição local aos esforços evangélicos, potencialmente aumentando a pressão social ou a perseguição.

China

Pastor de uma igreja doméstica na China

A presidência de Donald Trump pode impactar os cristãos chineses de algumas maneiras importantes. Sua política “a América primeiro” pode levar a controles de visto mais rígidos, reduzindo o acesso de estudantes chineses à educação nos EUA. Isso pode ser particularmente desafiador para famílias cristãs na China que estão educando seus filhos em casa, por meio de homeschooling [educação domiciliar] ou enviando seus filhos para escolas cristãs não registradas. Como entrar depois em uma faculdade no exterior é frequentemente a única opção de ensino superior que esses estudantes têm, essas famílias podem ter de enfrentar escolhas difíceis.

Em contrapartida, estudantes chineses que se convertem durante o período em que vivem nos EUA podem ter mais probabilidade de voltar à China, devido às oportunidades limitadas de carreira nos EUA, o que potencialmente fortaleceria as comunidades cristãs locais.

O apoio que Trump recebeu de grupos evangélicos americanos, somado a suas declarações polêmicas sobre democracia e liberdade, podem aprofundar as divisões dentro das comunidades cristãs chinesas. Sua retórica e sua ênfase nos interesses nacionais podem fornecer munição para a mídia estatal chinesa criticar ainda mais a democracia ocidental, o que pode levar a mais restrições às liberdades religiosas na China.

Se Trump impuser mais tarifas ou outras pressões econômicas sobre a China, isso pode levar a dificuldades financeiras para muitas famílias, impactando assim a capacidade dos cristãos chineses de sustentar a igreja. No entanto, tais dificuldades econômicas também podem levar as pessoas a buscar refúgio espiritual, possivelmente aumentando o interesse na fé cristã.

Índia

Vijayesh Lal, secretário-geral, Fraternidade Evangélica da Índia

Não espero muitas mudanças no rumo geral da política externa sob uma nova administração Trump, já que a Índia é um parceiro estratégico fundamental para equilibrar a crescente influência da China na região. Em questões como direitos das minorias e liberdade religiosa, é seguro pressupor que Trump não colocará tanta pressão sobre a Índia quanto um presidente democrata provavelmente colocaria. Na verdade, ao visitar a Índia durante seu mandato anterior, ele fez um elogio infame ao histórico do primeiro-ministro Narendra Modi em matéria de liberdade religiosa. Embora a administração Trump possa se concentrar na liberdade religiosa, de um ponto de vista global, é provável que não comentará sobre o tratamento que é dado a cristãos e a muçulmanos na Índia.

Pode ser que muitos cristãos na Índia e no sul da Ásia com inclinações para o Partido Republicano recebam bem essa volta de Trump à presidência; para a igreja na Índia, porém, não vejo ganhos significativos. A igreja na Índia não deposita suas esperanças na liderança política, seja ela dos EUA ou da Índia.

Nepal

Sher Bahadur A. C., secretário-geral, Fraternidade de Igrejas Nacionais do Nepal

A eleição de Donald Trump trouxe uma onda de otimismo entre os cristãos nepaleses. Para muitos, sua vitória é vista como uma boa notícia, não só para os Estados Unidos, mas também para as comunidades cristãs ao redor do mundo.

As políticas de Trump, que demonstram uma forte inclinação para apoiar a liberdade religiosa e as causas cristãs globais, tornaram seu nome popular entre os cristãos nepaleses. Esperamos que ele continue apoiando os cristãos em todo o mundo e nos apoie em nossos esforços para praticar nossa fé com liberdade.

Embora não esperemos mudanças significativas no Nepal, a influência global do governo americano e a possibilidade de pressão diplomática dos EUA, caso quaisquer ações forem tomadas contra os cristãos em nosso país, podem servir como uma proteção para as minorias religiosas.

Ao mesmo tempo, a dinâmica geopolítica mais ampla deve ser considerada. A administração Trump é conhecida por sua postura crítica em relação aos governos comunistas, e o Nepal é atualmente liderado por um primeiro-ministro comunista, Khadga Prasad Sharma Oli. Trump também tem um relacionamento próximo com a Índia, enquanto o Nepal está mais alinhado com a China. Isso poderia potencialmente criar tensões entre o Nepal e a administração Trump, caso o Nepal aprofunde seus laços com Pequim.

Filipinas

Noel Pantoja, diretor nacional, Conselho Filipino de Igrejas Evangélicas

Com nossos corações alegres, celebramos a vitória de Donald Trump nas eleições recentes, reconhecendo que Deus ordenou que ele liderasse os EUA. Este momento nos enche de esperança, pois significa um compromisso renovado com a liberdade religiosa, permitindo que os indivíduos expressem sua fé sem medo nem restrição.

A igreja filipina está atualmente se opondo a projetos de lei do Senado e do Congresso filipinos sobre orientação sexual, identidade de gênero, e expressão, casamento entre pessoas do mesmo sexo e aborto. Se aprovados, esses projetos de lei prejudicarão a igreja, as escolas e as empresas. Todos os lobistas são apoiados por defensores dos direitos LGBTQ dos EUA e do Ocidente; por isso, a posição de Trump sobre essas questões e a sua vitória nas eleições encorajam as igrejas nos EUA e nas Filipinas.

Estamos esperançosos quanto ao impacto positivo que esta administração terá na política externa, promovendo a paz e fortalecendo relacionamentos com nações que compartilham os valores da democracia. É uma vitória não apenas para a América, mas para pessoas tementes a Deus ao redor do mundo, especialmente na Ásia, onde a luz de Deus pode brilhar mais forte através de sua própria liderança divina.

 Sri Lanka

Noel Abelasan, diretor nacional, Every Home Crusade

A vitória de Trump pode impactar positivamente os cristãos evangélicos no Sri Lanka, ao promover a liberdade religiosa e, possivelmente, direcionar a ajuda dos EUA para programas baseados na fé. Esse foco nos princípios cristãos pode encorajar os cristãos do Sri Lanka e apoiar iniciativas alinhadas com as prioridades dos EUA.

No entanto, um posicionamento forte contra a China pode complicar a posição diplomática do Sri Lanka, dada a influência da China na região, o que pode afetar indiretamente os grupos evangélicos locais. No geral, pode aprofundar a solidariedade entre os evangélicos em termos globais, inspirando os cristãos do Sri Lanka a se sentirem mais conectados a um movimento comum.

 Taiwan

Andrew Chiang, pastor, Bilingual Community Church

Não acho que a presidência de Trump impactará a liberdade religiosa em Taiwan no curto prazo. O apoio de Trump a causas evangélicas conservadoras não afeta as pessoas em Taiwan; portanto, é improvável que desencadeie qualquer reação negativa por parte das fatias mais seculares da sociedade. Em termos de ajuda e de política externa, tanto Trump quanto Biden buscaram uma política de contenção da China, o que é benéfico para Taiwan, desde que não exagerem e desencadeiem uma guerra.

A presidência de Trump provavelmente terá um impacto maior nas tendências culturais e religiosas. Teorias da conspiração, alarmismo do fim dos tempos e falsas profecias, que têm corrido desenfreadas nos EUA, desde a primeira presidência de Trump, também se espalharam por Taiwan. Isso provavelmente continuará sob sua segunda presidência. É difícil prever como a igreja evangélica em Taiwan reagirá, mas, em alguns círculos, a eleição de Trump levou a mais reflexões sobre teologia pública e política. A igreja evangélica em Taiwan pode ganhar voz própria, independente da igreja evangélica dos EUA, em consequência do caos que testemunha do outro lado do Pacífico.

 EUROPA

 Armênia

 Craig Simonian, coordenador da região do Cáucaso, Rede de Paz e Reconciliação da Aliança Evangélica Mundial

Acredito que a vitória de Trump e a volta do Partido Republicano à liderança do Congresso são coisas inquestionavelmente boas para a Armênia.

Embora poucas pessoas que estão fora dos círculos políticos saibam, a República da Armênia tem sido uma peça central da política externa americana há mais de 30 anos, devido à sua posição estratégica na fronteira com a Rússia, o Irã e a Turquia. Mas somente desde a guerra do Azerbaijão, em 2020, para recuperar o enclave de Nagorno-Karabakh, chamado de Artsakh, de população armênia, foi que a importância da Armênia se tornou conhecida por um público mais amplo — especialmente entre os evangélicos. Os cristãos na região das Montanhas do Cáucaso são perseguidos há milênios.

Grande parte dessa cosncientização é fruto do fato de republicanos terem usado comitês do Congresso e comissões governamentais para defender a Armênia. Ela se tornou a primeira nação cristã do mundo, em 301 d.C., e continua precisando de proteção contra vizinhos hostis. Em contraste, embora os democratas tenham promovido fielmente o reconhecimento do genocídio armênio nos últimos 33 anos, eles realizaram pouco mais que isso.

Agora, com Trump de volta à Casa Branca, podemos esperar que a Armênia cristã desponte mais plenamente como uma nova aliada para a promoção da democracia ocidental na região. Se Deus quiser, a Armênia se tornará um novo centro para missões mundiais também.

Rússia

Vitaly Vlasenko, secretário-geral, Aliança Evangélica Russa

Trump era o candidato mais digno, e estou feliz que ele tenha vencido. Mas a ideia de que ele tem um relacionamento próximo com Vladimir Putin é um exagero. Embora os russos tenham recebido bem sua primeira presidência, muitos ficaram decepcionados e agora olham para ele com desconfiança. Ainda assim, sua eleição nos dá uma nova esperança de que as coisas possam ser diferentes.

Espero que Trump apoie o diálogo internacional, a paz e a liberdade religiosa. Ele prometeu acabar com a guerra na Ucrânia em 24 horas. Ele não é Deus, mas se isso acontecer em breve, ficarei muito feliz. No entanto, como a Rússia não é um estado-satélite dos Estados Unidos, até que Trump tenha selecionado seu gabinete presidencial completo, é muito difícil prever como seremos afetados. Por enquanto, estou esperançoso.

É difícil saber como Trump impactará nossa comunidade evangélica russa. O apoio mútuo entre congregações nos EUA e na Rússia depende principalmente de relacionamentos pessoais e entre igrejas, não depende de quem está na Casa Branca. Historicamente, as autoridades americanas não se opuseram ao nosso diálogo, muito pelo contrário, contribuíram de forma positiva para ele. Como Trump tem o apoio da maioria dos evangélicos dos EUA, espero que sua equipe dê continuidade a essa boa tradição.

Turquia

Ali Kalkandelen, ex-presidente da Associação de Igrejas Protestantes na Turquia

As políticas americanas relacionadas a esta região inundaram nossa nação com refugiados da Síria, do Afeganistão e da Ucrânia. Se Israel expandir sua guerra em direção ao Irã, isso pode ser uma ameaça de envolvimento da Turquia. O conflito Armênia-Azerbaijão continua crítico, pois tem sido negligenciado pelos EUA. E o povo curdo tem buscado autonomia regional, confiante de que os Estados Unidos os apoiam.

Nossa nação foi afetada negativamente por essas crises, dos pontos de vista político e econômico. Devemos orar pela misericórdia e pela sabedoria de Deus para todos os líderes mundiais. Mas Trump promete mudar de rumo e buscar a paz na região, o que seria melhor e mais justo para todos. O presidente Recep Tayyip Erdoğan chama Trump de “meu amigo”, e o relacionamento entre eles provavelmente fortalecerá os laços conjuntos de nossos países dentro da OTAN.

Embora os membros das igrejas tenham sofrido sob o peso dessas crises, estas também abriram uma nova porta para o ministério. Muitos refugiados chegaram à fé em Cristo na Turquia, e nossas congregações têm crentes de origens curda, persa e árabe.

Essa transformação espiritual continuará e fortalecerá a igreja. Nenhum presidente americano pode ter um impacto negativo sobre isso.

Reino Unido

Gavin Calver, CEO, Aliança Evangélica

Mais uma vez teremos de responder a acusações feitas por aqueles que pressupõem que os evangélicos britânicos casam política com fé, da mesma forma que o fazem aqueles que carregam o rótulo de evangélicos nos EUA. Política e fé sempre estarão conectadas até certo ponto; contudo, a relação simbiótica entre a fé e a preferência política de alguém, bem como o fato de o termo evangélico ser frequentemente percebido como sinônimo do slogan MAGA [Make America Great Again, em português, Tornemos a América Grande Novamente], tem sido algo extremamente problemático para nós, aqui no Reino Unido.

Em contraste, os evangélicos britânicos não são de forma alguma casados ​​com quaisquer das nossas filiações políticas. Os cristãos precisam orar e apoiar seus líderes, mas também precisam se posicionar contra o que estiver errado. Nossa lealdade primária deve ser a Jesus, e não a um líder nacional.

Espero que a próxima presidência de Trump seja diferente, que ninguém pressuponha erroneamente que os evangélicos do meu país estão alinhados política e nacionalisticamente, e que possamos continuar a ser o povo das “boas-novas” no Reino Unido.

Ucrânia

Taras M. Dyatlik, diretor de engajamento, Scholar Leaders

Estou profundamente preocupado com o potencial impacto do resultado das eleições dos EUA na defesa do meu país contra a agressão não provocada da Rússia. A Ucrânia depende muito da ajuda dos EUA e das decisões de política externa, e temo que uma mudança na liderança possa afetar esse apoio crucial.

É preocupante para mim ver alguns líderes evangélicos ocidentais adotando narrativas que minimizam ou justificam a agressão russa, muitas vezes decorrentes de sofisticadas campanhas da propaganda russa. A noção de que “a guerra vai acabar quando a Ucrânia parar de se defender ou quando o Ocidente parar de apoiar a Ucrânia”, em vez da ideia de que “a guerra será detida, e deve sê-lo, quando fizermos a Rússia deixar os territórios ucranianos”, revela uma interpretação equivocada e perturbadora da realidade.

A utilização da retórica e dos valores cristãos como armas, para fins políticos, tanto na Rússia quanto nos EUA, também é profundamente preocupante a meu ver. Quando os valores cristãos se tornam intimamente alinhados aos poderes políticos, eles são com frequência distorcidos e utilizados de forma equivocada para justificar ações que prejudicam os vulneráveis.

Oro para que, independentemente da liderança e das políticas dos EUA, a comunidade internacional continue apoiando a luta da Ucrânia por sua existência, seus valores democráticos e pela dignidade humana.

Oriente Médio

Egito

Michael El Daba, Diretor Regional do Movimento de Lausanne para o Oriente Médio e Norte da África

Enquanto o mundo aguardava os resultados das eleições nos EUA, muitos cristãos egípcios estavam em oração pela paz. A guerra se avizinha de nossas fronteiras com Gaza, Líbia e Sudão, e nosso governo aumentou o problema com decisões políticas que levaram à inflação e à dívida sem precedentes. Os turistas têm medo de visitar o país, enquanto os refugiados encontraram um abrigo seguro aqui.

Seja no que diz respeito aos direitos humanos locais ou à paz e à estabilidade regionais, o governo Biden fez pouco para ajudar. Não esperamos que Trump seja muito diferente — pelo menos no que diz respeito ao povo egípcio. Ele buscará uma abordagem altamente transacional com aliados regionais, entre eles o Egito, que enfatiza a venda de armas, acordos comerciais e cooperação em segurança, ao mesmo tempo em que vai ignorar amplamente o engajamento político e diplomático baseado em valores. Trump provavelmente negligenciará até mesmo advertências gentis sobre direitos humanos e liberdades políticas.

Um ponto positivo é que o forte apoio evangélico dos americanos a Trump pode ajudar os evangélicos egípcios a terem uma voz local mais forte. Se Trump se empenhar em uma agenda de liberdade religiosa internacional, podemos contribuir para a campanha pelos direitos das minorias [religiosas]. Isso pode abrir ainda mais a praça pública para a participação política cristã e superar obstáculos administrativos para a construção de prédios de igrejas.

Israel

Danny Kopp, presidente, Aliança Evangélica de Israel

Muitos evangélicos pró-Israel e pró-Palestina — os quais se opõem uns aos outros quando o assunto é a política dos EUA na região — estão ironicamente unidos em sua esperança de que uma nova presidência de Trump seja uma melhoria em relação ao governo Biden. Ainda assim, se há algo que pode ser dito com toda confiança a respeito de Trump, é que ele será imprevisível. Ele é capaz tanto de apoiar uma escalada dramática no uso da força contra os inimigos de Israel quanto de exigir uma rápida cessação das hostilidades que alguns considerariam uma capitulação.

Em geral, os judeus messiânicos não têm nenhuma expectativa de que Trump aborde especificamente suas questões internas como cidadãos judeus messiânicos de Israel. Eles são um grupo demográfico muito pequeno para que ele lhes dedique uma política específica. Assim como seus concidadãos, eles estão quase totalmente consumidos com a questão de como o governo de Trump apoiará ou não Israel em sua atual guerra de sete frentes.

Uma segunda administração Trump pode de fato embarcar em um esforço bem-vindo para expandir os Acordos de Abraão, a fim de incluir a Arábia Saudita e, talvez, até mesmo a Palestina no estabelecimento de acordos de paz com Israel. No entanto, se os Estados Unidos abandonarem seus aliados na Ucrânia e no Sudeste Asiático à agressão russa e chinesa, respectivamente, isso apenas impulsionará esse mesmo eixo que — sobretudo por meio do Irã e de seus representantes — tem sido o principal instigador da violência em Israel, Gaza, Líbano, Síria, Iêmen e Iraque.

Líbano

Wissam al-Saliby, presidente, 21Wilberforce Global Freedom Center

O povo do meu país historicamente não vê muita diferença entre as políticas de republicanos e de democratas em relação a Israel e ao Líbano. No entanto, muitos libaneses que vivem no Líbano e nos EUA apoiaram a eleição de Donald Trump, porque preferem o elemento “desconhecido” de sua presidência às políticas da atual administração, que permitiram que a guerra no Oriente Médio continuasse e se expandisse.

Sem mencionar que esta região está sendo esvaziada de sua população cristã por causa da guerra — primeiro, o Iraque, depois, a Síria, e agora, o Líbano. Muitos dos meus amigos e familiares partiram. E os cristãos palestinos na Cisjordânia continuam a perder suas terras e meios de subsistência para os colonos israelenses.

Precisamos urgentemente de um processo de paz que aborde as queixas genuínas e a injustiça na raiz do conflito, e até hoje nunca tivemos um.

Além disso, a destruição de Gaza e, agora, de grandes partes do Líbano corroeu gravemente a credibilidade dos EUA. Se o governo dos EUA procurasse um país de maioria muçulmana para denunciar ali a perseguição de cristãos, a resposta que ouviria seria: “Primeiro, acabem com a guerra em Gaza; depois, voltem aqui e nos perguntem sobre o nosso próprio histórico de direitos humanos”.

Palestina

Jack Sara, secretário-geral, Aliança Evangélica no Oriente Médio e Norte da África

A política dos EUA tem tido uma influência complexa e muitas vezes contenciosa aqui, com decisões da Casa Branca que afetam nossas vidas cotidianas e nosso futuro de maneiras profundas.

O apoio de Trump a políticas que favorecem a expansão israelense e seu desrespeito aos direitos dos palestinos levantam preocupações. Isso pode significar mais marginalização para os palestinos e um ambiente ainda mais desafiador para os cristãos, que se esforçam para viver sua fé neste contexto volátil.

Trump recebeu apoio significativo de muitos evangélicos, apesar das políticas que parecem contradizer os valores fundamentais de justiça, misericórdia e humildade que as Escrituras nos chamam a defender. Suspeito que muito desse apoio esteja enraizado em uma ideologia teológica e política equivocada — o sionismo cristão — que vê uma fidelidade inquestionável ao Estado de Israel como um mandato bíblico. Muitos evangélicos podem ver Trump como o protetor de Israel, talvez ignorando o desrespeito de sua administração anterior pelos direitos dos palestinos e as consequências mais amplas para a paz no Oriente Médio.

No entanto, mantenho a esperança e permaneço em oração. Espero que a administração Trump possa trabalhar para deter a guerra genocida em Gaza, bem como a invasão terrestre e a campanha de bombardeio generalizado no Líbano. Espero que Trump trabalhe em prol de uma paz que respeite genuinamente os direitos e a dignidade de todos os povos na Terra Santa e na região.

OCEANIA

Austrália

Simon Smart, diretor-executivo, Centro para o Cristianismo Público

Em determinado nível, outra presidência de Trump não tem muita influência sobre os evangélicos na Austrália, que têm um cenário religioso muito diferente em comparação aos EUA. Mas, na medida em que sua presidência contribuir para um desejo cristão de obter o máximo de poder político possível, com o intuito de atingir seus objetivos, ela pode não ser útil a longo prazo. A história mostra que frequentemente — embora nem sempre — a fé cristã e o poder político não se misturam bem. Essa é uma lição que parece difícil de aprender.

A Austrália é um país mais secular do que os Estados Unidos. Para aqueles de nós que tentam promover a compreensão pública da fé cristã aqui, em nada ajudou à nossa causa essa associação, que já vem de décadas, do termo evangélico com um tipo de política que a maioria dos australianos vê com maus olhos. Isso nos obriga a nos envolver com certas percepções que atrapalham um diálogo construtivo sobre a fé.

Reportagem de Angela Lu Fulton, Bruce Barron, Franco Iacomini, Isabel Ong, Jayson Casper e Surinder Kaur.

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Theology

A Bíblia é uma história, e não informação

Editor in Chief

Os algoritmos nos roubam o mistério. Os Evangelhos nos devolvem a capacidade de sermos surpreendidos pela verdade.

Christianity Today November 7, 2024

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Recomendei a leitura do Evangelho de Marcos a um descrente. Ele leu e achou “assustador”. Essa era exatamente a reação que eu queria.

Este jovem é provavelmente ateu ou agnóstico, mas viveu em um ambiente tão secular que não parece ter essa percepção de si mesmo, assim como você não se apresentaria como alguém “que é contra o canibalismo” ou “que é antirroubo”. Ele queria, no entanto, tentar entender — apenas a título de mero exercício intelectual — por que alguém defenderia visões ou práticas religiosas que ele considera estranhas.

Então, ele me perguntou o que deveria ler para conseguir compreender isso. Evidentemente, há muitos conteúdos que eu recomendaria a uma pessoa com esse tipo de curiosidade, mas disse a ele: “Por que você não lê o Evangelho de Marcos? Não se preocupe em entender cada detalhe; apenas leia.”

Mais tarde, encontrei-o novamente, e ele disse que havia seguido meu conselho. “Então, o que você achou?”, perguntei.

Ele disse que estava em conflito. Ler o Evangelho, por um lado, fora envolvente do ponto de vista da narrativa, e de uma forma que ele não esperava, partindo do pressuposto que um texto religioso ancestral seria enfadonho e propagandístico. Por outro lado, ele disse: “Foi meio assustador.” E foi nessa hora que ele mencionou O problema dos três corpos, de Cixin Liu.

Ele sabia que eu tinha lido essa obra de ficção científica no ano anterior — com certa relutância. Um amigo de confiança me recomendou o livro, mas avisou: “Não desista da leitura. Você vai sentir como se não entendesse o que está acontecendo e vai querer parar de ler. Continue lendo e verá que tudo valerá a pena no final.” Meu parceiro de conversa descrente não tinha lido o livro, mas tinha assistido parte da adaptação da obra feita pela Netflix [para a série que traz o mesmo nome do livro].

Vou dar alguns spoilers aqui, de leve: tanto no livro quanto na série, uma civilização alienígena se comunica com cientistas humanos por meio de um headset de realidade virtual para jogos. Os cientistas são colocados em cenários nos quais devem resolver as flutuações de gravidade que estão submetendo um planeta distante a períodos totalmente imprevisíveis de caos e calmaria.

“Às vezes, [ler o Evangelho de Marcos] era como jogar nesses cenários”, disse o jovem. “Era quase como se alguém estivesse lá do outro lado, me observando.”

Com isso, ele quis dizer particularmente que, no texto de Marcos, o “personagem” (nas palavras dele) de Jesus às vezes aparentava ter sido escrito de uma forma que parecia ser inesperadamente imediata. “Às vezes eu tinha que lembrar a mim mesmo de que eu não estava lá, bem no meio daquilo tudo. Isso meio que me assustou um pouco.”

Embora eu não tivesse em mente nenhum alienígena de alguma realidade virtual, essa reação era exatamente o que eu esperava despertar, quando recomendei que ele lesse o Evangelho de Marcos.

Normalmente, se estou ajudando alguém a “entender” o que é o cristianismo, peço a essa pessoa que leia o Evangelho de João. No caso de pessoas como esse rapaz — pessoas que não sei se algum dia terei a oportunidade de acompanhar —, porém, eu sugiro Marcos, em parte porque é conciso e relativamente fácil de ler.

Também faço isso por causa de uma história que ouvi há alguns anos. Se bem me lembro, um homem que tinha sido um espécie de religioso oriental da Nova Era — do tipo que encontrávamos frequentemente nos movimentos contraculturais hippies das décadas de 1960 e 1970 — tornou-se cristão, porque um professor que lhe dava aula de religião comparada passou como tarefa a leitura do Evangelho de Marcos. Assim como o jovem agnóstico que conheci, esse homem foi atraído pela figura de Jesus e começou a sentir como se não estivesse apenas lendo o texto, mas como se estivessem lhe acenando do interior da história.

Leon Wieseltier argumenta que hoje em dia damos muita ênfase à “contação de histórias” — que isso leva a uma perda de argumentos, de persuasão. “A contação de histórias é concebida para despertar no ouvinte certas reações, certas posturas mentais. Isso gera passividade, credulidade, espanto”, escreve Wieseltier. “E todas elas são posturas de rendição.”

É evidente que essa afirmação nega que existam verdades importantes que só podemos ver a partir de posturas de passividade, credulidade, espanto e até mesmo rendição.

O filósofo Byung-Chul Han concorda que deveríamos nos preocupar com a ênfase que é dada à contação de histórias, mas porque — por mais que falemos muito sobre contação — perdemos a capacidade de contar e de ouvir uma história real.

Segundo argumenta Han, em seu novo livro The Crisis of Narration [A crise da narração], “contamos cada vez menos histórias em nossa vida cotidiana” porque “a comunicação assumiu a forma de troca de informações”. Em uma era da informação, escreve Han, uma história real é uma ruptura. Afinal, a informação é algo direto, controlável e consumível. Já uma história funciona de maneira diferente. Para ser vivenciada, uma história precisa que algumas informações sejam retidas e também reveladas.

“Informações retidas — ou seja, a ausência de explicação — aumentam a tensão narrativa”, escreve Han. “A informação empurra para as margens aqueles eventos que não podem ser explicados, mas tão somente narrados. Uma narrativa em geral tem algo de maravilhoso e misterioso em suas margens”. E esse tipo de mistério é surpreendentemente raro em uma era de algoritmos.

Parte do nosso problema é que enxergamos os enredos como algo inquietante em nossa era da informação, especialmente se começarmos a ver nossas vidas como parte desse enredo. É isso que Han acha nocivo nos algoritmos. Eles nos têm feito consumir apenas pedaços de dados desconectados — selecionados de acordo com nossas curiosidades e nossos apetites —, a ponto de não sermos mais surpreendidos. A própria realidade começa a parecer morta, assim como tantos dados abstratos. E morte gera mais morte.

“Pedaços de informação são como partículas de poeira, e não como grãos de semente”, ele escreve. “Eles não têm força germinativa. Uma vez registrados, eles imediatamente caem no esquecimento.” A metáfora de pronto me trouxe à mente as próprias palavras de Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto” (João 12.24, ESV).

O jornalista David Samuels lamenta o fato de que hoje nós vivamos na monotonia de uma época em que histórias e músicas são esvaziadas por Big Data e substituídas “pelo consumo de pornografia e ativismo ideológico”.

“O objetivo dos algoritmos que governam as informações não é criar beleza, nem qualquer coisa que seja humana; é sugar seus cérebros e, então, fatiá-los em pedaços que possam ser analisados ​​e vendidos para corporações e governos, os quais, inclusive, estão rapidamente se tornando a mesma coisa. É uma mutilação em massa do ser humano”, escreve Samuels. “Na prática, isso soa como um alarme de carro disparado, que toca cada vez mais alto — um som que por si só não significa nada, senão um aviso de que algo está acontecendo.”

Talvez o problema dos três corpos em tudo isso não seja a Bíblia, mas sim o restante da vida. Do lado de lá de nossas vidas digitais estão inteligências em busca de nos questionar — estão algoritmos, sem nome e sem rosto, projetados para nos testar com uma única pergunta: “O que você quer?”. E se, no entanto, o tédio e o mal-estar que sentimos hoje forem sinais de que não fomos criados para viver assim?

Jesus disse que esta é uma das principais razões pelas quais ele ensinava por parábolas, “porque vendo, eles não veem, e ouvindo, eles não ouvem, nem entendem” (Mateus 13.13). Uma história requer um certo tipo de participação, uma certa falta de controle. É preciso ser preparado pela história — e muitas vezes através da história — para ouvir o que ela está dizendo. É preciso ficar suficientemente perplexo para suspender o controle, para sentir a tensão, a fim de não apenas compartilhar informações, mas experimentar algo verdadeiro. Sem esse senso de perplexidade e mistério, uma história perde sua capacidade de surpreender e permanecer [viva].

Pense, por exemplo, no relato muito familiar do Evangelho de João sobre a multiplicação dos pães e peixes feita por Jesus — um sinal milagroso tão importante que todos os Evangelhos fazem referência a ele. Temos a tendência de lembrar que havia uma multidão de milhares, que não havia o suficiente para comer e que Jesus providenciou um banquete praticamente a partir do nada. No entanto, o que a maioria das pessoas não pensa, ao relembrar essa história, é simplesmente como Jesus arma, constrói o episódio.

“Levantando os olhos e vendo que uma grande multidão vinha em sua direção, Jesus disse a Filipe: ‘Onde compraremos pão para esse povo comer?’”, João registra. “Fez essa pergunta apenas para pô-lo à prova, pois já tinha em mente o que ia fazer” (6.5-6).

Ele já tinha em mente o que ia fazer. A pergunta em si — a perplexidade momentânea que foi criada em Filipe — era a intenção de Jesus. É o mesmo padrão que Deus seguiu com as tribos de Israel no deserto, após o Êxodo. Moisés disse a eles: “Assim, ele os humilhou e os deixou passar fome. Mas depois os sustentou com maná, que nem vocês nem os seus antepassados conheciam, para mostrar-lhes que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca do Senhor” (Deuteronômio 8.3).

Jesus não pretende apenas alimentar; ele pretende que primeiro tenhamos “fome e sede de justiça” (Mateus 5.6). Ele não pretendia simplesmente salvar Pedro do afogamento, mas também que Pedro sentisse como era ficar embaixo d’água, gritar por socorro e sentir uma mão puxando-o para cima (Mateus 14.30-31).

O encontro de Jesus com cada um de nós, nas Escrituras, deve funcionar da mesma maneira. Nós também devemos nos encontrar exclamando com a sinagoga de Cafarnaum: “O que é isto? Um novo ensino — e com autoridade!” (Marcos 1.27). Devemos começar a fazer a pergunta: “Por que esse homem fala assim?” (Marcos 2.7). Devemos ouvir as palavras de Jesus, como se fossem dirigidas diretamente a nós: “E vocês? […] Quem vocês dizem que eu sou?” (Marcos 8.29).

Quando alguém encontra autoridade em algoritmos e revelação em consumo, isso de fato pode parecer assustador — assim como, depois de um tempo passando fome, o cheiro de pão assando pode provocar náuseas. Quem não está “entendendo as coisas” não são aqueles que acham tudo isso estranho, mas sim aqueles que acham tudo familiar e chato. É isso que um enredo faz, especialmente o que um enredo inspirado pelo Espírito de Cristo faz, um enredo no qual devemos ouvir a voz do Pastor (João 10.4).

E se alguém que está do outro lado dessas palavras ancestrais souber que você está lá? E se, nessas palavras, você quase puder ouvir a voz com sotaque galileu, que um dia subverteu as linhas do enredo da vida de alguns pescadores, quando lhes disse: “Sigam-me”? E se [essa voz] estiver falando com você? Se for assim, achar isso perturbadoramente estranho não é o fim da história, mas sim um bom lugar para começar.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Public Theology Project [Projeto de Teologia Pública].

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News

Não é fácil orar quando se tem TDAH

Cristãos com neurodivergência estão explorando outras opções para momentos devocionais e estudo da Bíblia.

Christianity Today November 6, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty, Wikimedia Commons

Emily Hubbard relembra uma tendência no discipulado de mulheres, que as incentivava a descansar em Jesus e a “parar de tentar fazer tudo”. O problema era que Hubbard não estava tentando fazer tudo. Ela só queria se lembrar de ligar a máquina de lavar louça.

“Todo discipulado era para pessoas do tipo A, mas eu era uma pessoa do tipo Z”, disse ela.

Hubbard é mãe de quatro filhos, membro do conselho escolar e professora adjunta. O problema dela não é preguiça, mas sim transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).

Mais de oito milhões de adultos nos EUA são afetados pelo TDAH. Como o transtorno prejudica as funções executivas — o autocontrole necessário para se empenhar em direção a uma meta —, cultivar hábitos para crescer espiritualmente pode ser muito mais desafiador para um cérebro com TDAH do que para alguém que é neurotípico.

A Lifeway Research descobriu que quase dois terços dos frequentadores de igrejas protestantes intencionalmente passam um tempo sozinhos com Deus, ao menos diariamente. A Cru lista a leitura da Bíblia, o estudo da Bíblia, a memorização das Escrituras e a oração como as quatro principais disciplinas espirituais que os cristãos devem desenvolver.

O TDAH torna tarefas repetitivas desse tipo difíceis de praticar. Quando se sentam para um longo período de leitura da Bíblia e oração, os cristãos com TDAH podem sentir dificuldade para se concentrar e acabar se distraindo. Para eles, pode parecer impossível crescer espiritualmente, quando a igreja à sua volta vê o “tempo de silêncio” diário como um indicador de disciplina.

“Por anos, tudo o que eu conseguia fazer era ir à igreja aos domingos e orar pelos meus filhos à noite, e isso era o melhor que eu podia fazer”, disse Hubbard. “Ainda bem que Jesus morreu pelo meu melhor.”

Como o espinho na carne de Paulo (2Coríntios 12), Hubbard diz que vê seu TDAH como um constante lembrete de que seu desempenho não ganha a aprovação de Deus. Sua igreja, New City South, em St. Louis, segue o calendário cristão, em cujos ciclos Hubbard vê graça. Segundo ela, pode ser difícil se concentrar durante um momento específico de oração, um culto de domingo ou durante os diferentes períodos do calendário litúrgico, mas sempre há uma próxima vez, uma nova oportunidade para tentar.

Antes da pandemia, Hubbard visitava regularmente a Abadia da Assunção, em Ava, Missouri, para retiros espirituais silenciosos. Ouvir os monges orando como têm orado há séculos fazia com que Hubbard se lembrasse de que é parte de uma fé maior do que ela mesma.

Cada vez mais cristãos, inclusive líderes cristãos, estão falando sobre como o TDAH afeta sua vida de fé.

José Bourget, capelão da Andrews University, no Michigan, mencionou pela primeira vez, em um sermão no ano passado, que tem TDAH.

“Uma maneira neurodivergente de se relacionar com o mundo não é realmente abordada do púlpito”, disse ele.

Foi só na pandemia que Bourget percebeu que seu esquecimento e sua distração podiam ser mais do que meros traços de personalidade. Certa vez, ele perdeu um voo porque esqueceu sua carteira de motorista. E justificou o erro dizendo que Deus não queria que ele fizesse a viagem. Embora ele ainda pense que Deus possa agir em meio a suas distrações, agora acha importante reconhecer o TDAH.

Desde seu diagnóstico, Bourget — hoje na casa dos 40 anos — está trabalhando para se desvencilhar de anos de culpa e vergonha pelo que ele acreditava serem falhas pessoais.

Ele repete verdades simples como “Cristo me ama”. Ele declara que o cérebro com TDAH não é um cérebro com defeito, e fala do amor e da aceitação de Deus por aqueles que têm esse transtorno. E está pregando tanto para si mesmo quanto para qualquer outra pessoa.

“Parece exagerado e desmedido”, ele disse, “mas sentir constantemente que não me encaixo ou que não pertenço [a um grupo ou a um lugar] faz com que a aceitação seja algo muito crítico.”

Bourget também se deu “permissão para não se conformar” a práticas preestabelecidas de leitura das Escrituras e de oração silenciosa. Em vez disso, ele estabelece algumas estruturas básicas — como separar um tempo todas as manhãs para passar com o Senhor —, mas age com liberdade nesse tempo. Às vezes, ele passa mais tempo em oração; outras vezes, pratica a contemplação ou assiste a um vídeo de um sermão.

Bourget percebe que há alunos da Andrews que estão lutando com essas dificuldades. E faz questão de fazer com que saibam que ele está disponível para ajudá-los. Quando eles expressam culpa porque seus cérebros parecem não funcionar como os de todo mundo, Bourget os ajuda a encontrar práticas que funcionem para eles.

Tentar ficar quieto, parado e concentrado por longos períodos é difícil para pessoas com TDAH — seja para estudar alguma matéria ou para fazer orações a Deus.

Alex R. Hey, especialista em TDAH, aborda o sentimento de vergonha e de fracasso que pode advir dessa incapacidade de se manter atenta, quando a pessoa fica em silêncio. Ele reformula essas limitações para si mesmo e para seus clientes com frases como: “eu consigo orar de forma diferente”.

Isso o ajuda a lembrar que Deus o fez assim. “Pessoalmente, sinto que [o transtorno] colabora para a minha humildade”, disse ele.

Como outros tipos de neurodivergência, o TDAH se manifesta em um espectro. Enquanto alguns podem descrever suas lutas como algo que contribui para sua humildade, outros acham o TDAH debilitante. Jeff Davis, hoje um líder leigo na Igreja Stonebriar Community, nos arredores de Dallas, disse que lutou para encontrar e manter um emprego, devido às suas frágeis funções executivas. Ele passou quase dois anos sem uma casa para morar antes de conseguir ajuda.

Além de recorrer a aconselhamento e uso de medicação, pessoas com TDAH podem desenvolver estratégias de enfrentamento.

Para se envolver com as Escrituras, Hey frequentemente usa a lectio divina — uma prática monástica que usa uma fórmula para ler, meditar, orar e contemplar. Isso mantém sua mente conectada ao texto.

Como o cérebro com TDAH é propenso ao hiperfoco, pessoas com esse transtorno podem se fixar em uma coisa e negligenciar todo o resto. Certa vez, enquanto Hey meditava sobre a passagem em que uma mulher unge os pés de Jesus, ele não conseguia parar de pensar na imagem da mulher beijando os pés do Senhor (Lucas 7.37-38).

“Eu não gosto de pés, então, tudo o que eu conseguia pensar era em como pés são nojentos”, ele disse. Mas, ao pensar mais profundamente sobre o que estava acontecendo na passagem, ele percebeu que a única parte do corpo de Jesus que a mulher pecadora se sentia digna de tocar eram seus pés sujos. Ele, então, imaginou Jesus pegando a mão dela e fazendo-a se levantar.

“Quando não nos sentimos dignos e não nos sentimos amados, Jesus vem até nós e nos levanta”, disse Hey.

Outras orações cristãs antigas e liturgias tradicionais podem ter apelo para o cérebro com TDAH. Michael Agapito, estudante de pós-graduação no Northern Seminary, acha um tempo de silêncio algo assustador, mas faz uso da lectio divina, do Livro de Oração Comum e da Oração de Jesus: “Jesus Cristo, Filho de Deus, tem misericórdia de mim, um pecador.”

“Há um enorme repertório de tradições da igreja do qual também somos herdeiros legítimos, mas que nunca realmente exploramos no evangelicalismo moderno”, disse Agapito, que recebeu seu diagnóstico na faculdade.

Ao mesmo tempo em que desenvolveu hábitos para administrar seus sintomas, ele também lutou para abandonar o perfeccionismo e para ver seu TDAH como algo ordenado por Deus. Ele descreveu sua mente como uma máquina de pinball, que fica constantemente saltando de uma ideia para outra sem desacelerar.

“Como cristão e como alguém envolvido no ministério, entendo que Deus entendeu por bem me dar essa condição, em sua providência, sabedoria e soberania”, disse ele. “Durante a minha fase de crescimento, eu meio que via isso como uma maldição, mas [hoje] também vejo isso em parte como uma dádiva.”

Enquanto considera a possibilidade de se tornar pastor, Agapito quer que sua futura congregação aprenda disciplinas espirituais com intencionalidade e acolha todos aqueles que lutam para manter esses hábitos — sejam pessoas neurodivergentes ou não. “O cristão médio também trava suas lutas para mantê-los.”

Megan Fowler mora na Pensilvânia e é escritora colaboradora da CT.

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