Theology

A igreja ainda importa? 

Devoção privada, serviço comunitário e entretenimento não são os motivos pelos quais as comunidades cristãs locais devem existir.

Christianity Today October 16, 2024
Photo-illustration by Mitchell McCleary

Quem faz perguntas erradas receberá respostas erradas. Contudo, na teologia, a disciplina que ensino, talvez o erro mais comum seja conseguir a resposta certa para a pergunta errada.

Talvez seja injusto chamar os costumeiros debates sobre cosmologia, teodiceia e milagres de “perguntas erradas”. Na medida em que são feitas de boa fé, tais perguntas podem gerar insights. Com frequência, porém, elas encorajam os seres humanos a continuarem fazendo e respondendo perguntas humanas sobre Deus.

Como disse Tomás de Aquino, a teologia propriamente dita deve provocar homens e mulheres a pensarem segundo Deus — procurando falar de Deus como Deus é e buscando as “riquezas insondáveis ​​de Cristo” (Efésios 3.8, ESV).

Isto é, a teologia nada mais é do que se familiarizar, através das Escrituras e da adoração da igreja, com o Deus que só pode ser conhecido através de um reflexo obscuro, como em espelho (1Coríntios 13.12).

Buscar o conhecimento de Deus e da fé cristã através das lentes da incognoscibilidade de Deus não é o ponto de partida mais confortável ou comum. Para uns soa como uma manobra para se esquivar [da questão] e para outros é como se eu estivesse sugerindo que sua fé é incerta. E para outros ainda parece uma postura muito relaxada, preguiçosa até, quando temos milhares e milhares de palavras escritas sobre a doutrina cristã que nos fazem questionar: Será que não seria melhor tentarmos resolver todos os potenciais problemas da fé cristã?

Minha resposta é que o objetivo da teologia cristã, ao menos para mim, é a crença cristã, e não uma conclusão sobre o que pode ser dito ou o que pode ser questionado. Plena compreensão e crença não são a mesma coisa.

No final do Evangelho de João, o Jesus ressuscitado aparece aos discípulos. Eles tinham voltado ao mar de Tiberíades para pescar. Este fato por si só é pungente. Eles eram pescadores que foram chamados a deixar sua profissão para seguir o Senhor, aquele que salvaria Israel. Eles o seguiram, abandonando seu sustento nesse meio tempo, mas essa fidelidade parecia haver terminado com a morte daquele a quem amavam.

Este tempo entre a morte de Cristo e a Ascensão é uma pausa dramática, cheia de expectativa na tradição cristã. Cristo morreu, Cristo ressuscitou — no entanto, o que isso significa para os discípulos ainda não fora totalmente revelado. Há uma questão, neste ponto, sobre o que significava o ressuscitado em seu meio: Por meio de qual poder ou agência eles levarão adiante a mensagem de Cristo?

E, assim, eles voltaram à sua antiga profissão — a pesca — e passaram a noite toda no mar. Mas não pegaram nada. Você pode imaginar a tristeza ou até mesmo o desespero de uma noite dessas. Eles viram seu Senhor morrer, e, com ele, viram morrer suas esperanças pela restauração de Israel. Alguns deles o viram ressuscitado, mas, mesmo assim, o Cristo ressuscitado esteve com eles apenas brevemente, e de uma forma bem diferente. E agora suas tentativas de voltar à sua antiga fonte de sustento também se frustraram. Que mensagem eles proclamarão? O que eles podem oferecer ao mundo? Como eles se alimentarão? Todas essas perguntas estão, por enquanto, sem resposta.

Você pode imaginar a confusão deles. Eles acreditavam que o Senhor era o Messias prometido. Na época dos discípulos, os judeus acreditavam que o Messias voltaria e inauguraria um reino terrestre messiânico. Eles acreditavam que isso teria ramificações políticas imediatas para suas vidas no Império Romano. Quando, em vez disso, Jesus foi crucificado como um inimigo do Estado, essa estrutura dos discípulos desabou. Os ecos dessa tristeza podem ser ouvidos nas palavras daqueles homens na estrada para Emaús: “Nós esperávamos que era ele que ia trazer a redenção a Israel” (Lucas 24.21)

Nós esperávamos.

A decepção nessa declaração é semelhante a uma gravidez, é como alguém que está prestes a dar à luz ao sentimento de perda e até mesmo de pesar. Certamente, a questão é que a morte de Cristo havia frustrado as expectativas de muitos que esperavam que sua vida inauguraria uma nova teocracia, um novo reino de Deus na terra. Mas a pergunta deles — Como pode aquele que morreu salvar Israel? — era, naquele momento, a pergunta errada.

Uma pergunta que encontro com certa regularidade hoje em dia é por que a igreja local importa. E penso que essa também é a pergunta errada.

Cristãos descontentes querem saber por que devem frequentar a igreja, quando ela já acobertou tantos danos. Pastores e líderes querem saber como explicar aos outros, especialmente aos jovens adultos, qual é o bem que a igreja tem a oferecer.

Estamos em um caldeirão no qual borbulham respostas erradas sobre a igreja. Dois anos de fechamento de igrejas devido à pandemia levaram muitas congregações a migrar seus cultos para o universo online. Os cultos da igreja eram transmitidos ao vivo e acessados ​​nas salas de estar das pessoas. A Santa Ceia às vezes era tomada na mesa da cozinha ou nem era. A música era transmitida virtualmente. E os cristãos se reuniam — ou não — com sua família imediata para adorar.

Seria equivocado sugerir que tais arranjos não são adoração. De fato, o salmista diz “Os céus declaram a glória de Deus”, e o próprio Senhor diz “Onde dois ou três se reúnem em meu nome, aí estou eu” (Salmos 19.1; Mateus 18.20). A percepção de que Deus pode ser encontrado em salas de estar, na natureza e até mesmo na TV não está errada. Toda a tradição cristã insiste que Deus não é impedido por nada e pode estar perto das pessoas por meio da matéria — mesmo quando transmitida por pacotes de dados para uma tela. Deus de fato habita com seu povo, que se reune nos lares ao redor do mundo.

No entanto, também seria incorreto chamar tal presença de “igreja”. A igreja não é a presença orientadora e consoladora de Deus no coração de alguém, nem mesmo é o consolo e a exortação bem reais que podem surgir quando um grupo de cristãos se reúne para orar. Tampouco é igreja a reunião ocasional de cristãos pelo mundo todo, nos lares ou ao redor de uma mesa, para cantar e estudar.

Na Bíblia, a preocupação de Deus, ao criar a igreja, não é formar pessoas, mas formar um povo. Abraão foi chamado para ser uma bênção para as nações; Davi foi chamado para ser um rei de Israel, e não simplesmente um homem segundo o coração de Deus; e os juízes condenaram o pecado dos líderes de Israel para que a nação pudesse ser conduzida à santidade.

Este padrão em que Deus fala, instrui e corrige indivíduos distintos para servir a um povo santo é a história da obra de Deus entre o povo de Deus. Todos os tipos de ajuntamentos cristãos e de reuniões de cristãos podem ser vias para a obra graciosa de Deus entre seu povo, embora nem todas essas reuniões sejam “igreja”.

A principal tentação ao definir igreja é, em vez de definir, articular seus fins. A pergunta errada que estamos inclinados a fazer sobre a igreja é por que ela importa. Mas pode ser que ela não “importe” do jeito que esperamos.

No minuto em que perguntamos por que a igreja “importa”, somos tentados a identificar seus benefícios concretos ou sua contribuição para a sociedade. O sociólogo da religião Peter Berger argumenta, na obra The Sacred Canopy [O dossel sagrado], que as religiões são hoje oferecidas no mercado de experiências entre as quais os indivíduos podem escolher. Se Berger estiver certo, as religiões estão entre as muitas opções que os americanos e outros povos em sociedades igualmente secularizadas podem escolher para aliviar suas consciências, acalmar sua ansiedade ou gerar efeitos morais. Essas coisas seriam vistas como propósitos da igreja. Mas a alma é uma realidade notavelmente ineficiente e, à medida que seu cuidado se torna opcional, a prioridade de seu cuidado diminui.

Se a igreja funciona em uma espécie de mercado, ela, portanto, deve se anunciar [nesse mercado] como algo que as pessoas possam querer. Uma vez que ela faz isso, torna-se muito difícil imaginar a igreja (ou qualquer religião) como algo diferente de um bem que produz resultados que as pessoas podem escolher.

Também se torna muito difícil para os líderes religiosos não se comportarem como se estivessem comercializando esses resultados para os indivíduos. Talvez a igreja esteja cheia de pessoas mais morais do que outras organizações sociais. Talvez sua música seja melhor. Talvez seus líderes sejam bem jovens e descolados.

Mas o que acontece quando a igreja não é mais moral, mais divertida ou mais atraente? O que acontece quando ela exibe profunda pecaminosidade e formas ultrapassadas de adoração e as pessoas se cansam umas das outras? Outras opções, e melhores, geralmente estão disponíveis para indivíduos, se o que eles estão procurando é boa companhia ou entretenimento.

Às vezes, as igrejas tentam demonstrar o quanto elas importam acrescentando algo de bom a uma comunidade ou abordando alguma dificuldade. O problema aqui não é que o serviço voluntário seja ruim; ele é, evidentemente, um verdadeiro fruto do evangelho. O problema é que se o objetivo da igreja for visto como transformação social, então se voluntariar para a United Way pode ser tão eficaz quanto ser voluntário na igreja, se não mais.

Se o produto da igreja for identificado como benefício social, seria sensato um cristão decidir fazer trabalho voluntário nas terças-feiras à noite e tomar um brunch nos domingos, em vez de ir à igreja. Afinal, a United Way tem resultados mais claros, e o café deles também pode ser melhor.

Servir a comunidade local e abordar questões de injustiça é uma vocação grande e importante. Mas você não precisa de Jesus para fazer isso.

Se o sucesso for medido pelo crescimento, a igreja está indo muito mal. As igrejas estão encolhendo, e a frequência às igrejas — especialmente entre jovens adultos — diminuiu significativamente.

E quem poderia culpá-los? Se o sucesso está em manter um conjunto de valores, muitos percebem que líderes e membros da igreja violam esses valores reiteradamente. Dissemos à nossa sociedade que a igreja deve ser uma força para o bem no mundo e que os cristãos devem ser pessoas moralmente superiores. A Bíblia diz que os cristãos serão identificados por seu amor (João 13.35).

Até mesmo os líderes da igreja parecem decepcionados com a igreja. Uma proporção alta e crescente de pastores está relatando esgotamento significativo e, depois de administrar as pressões dos últimos anos, estão falando em imenso estresse, solidão, divisões políticas, desesperança e conflito sobre o futuro de suas igrejas.

Se nem a igreja nem seus líderes são os melhores em qualquer das coisas que fazem, pode parecer que a igreja raramente é necessária — que ela é redundante. Quando perguntamos que benefício social a igreja pode fornecer, ou como podemos nos promover para o mundo, estamos fazendo as perguntas erradas.

Há mais de 30 anos, Stanley Hauerwas e William H. Willimon escreveram um livro intitulado Resident Aliens [Alienígenas residentes]. A preocupação deles era que a igreja estava perdendo a oportunidade de uma nova aventura, uma aventura como cristãos radicalmente peculiares vivendo no exílio.

Os autores disseram que, como o cristianismo era, pela leitura deles, uma parte tão importante da experiência americana, tornou-se difícil discernir o que havia de singularmente cristão na igreja. As igrejas faziam exortações para que seus membros fossem “boas pessoas”, não mentissem, não sonegassem impostos e ajudassem seus próximos quando estes estivessem em dificuldades. Mas nenhuma dessas exortações exigia que a pessoa cresse na Ressurreição.

O que Deus chamou, no entanto, não foi um povo moral ou poderoso, mas sim um povo peculiar. Ora, é verdade que em parte a peculiaridade da igreja deve se mostrar em uma certa moralidade. Mas a moralidade em si não é particularmente peculiar. O que torna a igreja peculiar é sua consciência de si mesma como um povo chamado por Deus para ser seu representante na terra, um povo que se destaca por práticas difíceis e incômodas como perdão, hospitalidade, humildade e arrependimento. Ela é marcada dessa forma por sua reunião comunitária, no batismo e na Ceia, para lembrar a morte do Senhor e proclamá-la até que ele volte.

Uma igreja peculiar é aquela que percebe que existe para dar testemunho de outro mundo, um mundo em que a Ascensão não é só tristeza, mas sim um convite para viver um novo momento, quando o Filho está de fato sentado à direita do Pai. Seu testemunho desse outro reino, uma comunidade no céu (Filipenses 3.20-21), é o que justifica sua existência.

Isso não quer dizer que as igrejas devam se tornar comunidades com preocupações somente internas, isoladas das demais comunidades. A igreja tem uma ética social implícita, como Hauerwas discute, e é guiada pelo chamado de Jesus a imitá-lo no amor ao próximo e na preocupação sacrificial.

Mas essa comunidade remodelada da igreja é formada a partir de sua adoração, que dá testemunho de outro mundo onde o Senhor é Rei. Os autores concluem: “A igreja, como aqueles que foram chamados por Deus, encarna uma alternativa social que o mundo não pode, em seus próprios termos, conhecer.”

Conversei com minha amiga Sarah Hinlicky Wilson, uma pastora luterana americana que serve no Japão. Sarah é teóloga formada, pastora e expatriada. Servir no Japão lhe deu uma visão privilegiada dos desafios do ministério da igreja em um contexto secular. Wilson diz que a América é “ignorantemente cristã”. Há um consenso cultural em torno de que cuidar dos pobres é bom (embora ainda persistam as diferenças sobre como fazê-lo), em torno de valorizar os fracos e marginalizados, e há um amplo consenso de que toda a vida é valiosa — ou seja, há um consenso em torno de conceitos cristãos não compartilhados por todas as sociedades.

“O Japão não é pós-cristão”, diz Wilson. “Ele nunca foi cristão.” Ela diz que os pobres e os indigentes com frequência podem contar inteiramente com a ajuda dos serviços governamentais. “A partir daquilo que consigo perceber do Japão, todas as necessidades diaconais básicas já foram atendidas há muito tempo.”

Mas ela aponta para sinais de miséria espiritual em uma sociedade consumista: “Parece-me que as pessoas são solitárias, têm tão poucos relacionamentos significativos, [e] nenhum relacionamento sério com qualquer poder superior”, diz Wilson. “As pessoas precisam é de Deus.” E isso é algo que somente a igreja pode lhes dar.

Isso não torna a evangelização uma tarefa fácil no Japão. De fato, a crise de solidão do Japão precedeu a dos Estados Unidos. O isolamento dos indivíduos, a falta de laços familiares e a obsessão pelo trabalho são uma epidemia.

“Mas é difícil fazê-los considerar a igreja ou até mesmo enxergar o problema”, diz Wilson, tão negligenciada é a ideia do cuidado espiritual.

Se nos Estados Unidos as igrejas se sentem desafiadas a provar seu valor para uma cultura preocupada com necessidades sociais e materiais, no Japão o desafio de Wilson é demonstrar o valor do espírito humano. Ela está respondendo à pergunta certa. Não estou dizendo que as necessidades espirituais sejam as únicas necessidades que as pessoas têm. A questão é que as necessidades espirituais são aquelas que somente a igreja pode suprir. Nas palavras de Wilson: “Como você convence as pessoas de que tudo o que você tem a oferecer é o evangelho?”.

As observações dela se sintonizam bem com as preocupações de Willimon e Hauerwas. Em ambos os países, a atenção das pessoas é desviada das realidades espirituais. A igreja, com sua “ alegação de criação da realidade”, não nega que os desafios do mundo sejam urgentes, que o mal seja real ou que esteja ganhando cada vez mais terreno. Ela não se retira do mundo, nem é ignorante ou não se engaja politicamente. Mas diz que o Senhor é Rei, enquanto as nações se enfurecem e os povos conspiram em vão (Salmos 2.1).

Não estou dizendo que as necessidades espirituais sejam as únicas necessidades que as pessoas têm. A questão é que as necessidades espirituais são aquelas que somente a igreja pode suprir.

Em The Great Passion [A Grande Paixão], Eberhard Busch registrou um episódio na vida de Karl Barth, quando uma bomba explodiu no telhado de uma igreja, durante um culto. Apesar da explosão, eles continuaram cantando o “Magnificat”. Barth elogiou isso, dizendo que a igreja tinha suas prioridades claras.

Muitas vezes me perguntam se não estou “pedindo demais” quando insisto que o culto da igreja forme pessoas dessa forma rigorosa. Mas me parece que esse tipo de exigência é a única coisa que, em última análise, torna o cristianismo crível. Se for verdade, vale a pena apostar sua vida nisso. Se não for, é melhor você escolher outra coisa qualquer.

Quando a igreja se preocupa em se defender do mundo, ela acaba se tornando incoerente. A única maneira de ser igreja é falando a linguagem peculiar da paz, do perdão, do arrependimento e da ressurreição.

Quando não fazemos nosso trabalho, a igreja se torna compreensível para o mundo, mas perde sua missão. Deixa de ser peculiar, mesmo que agora seja coerente com uma cultura que é tudo, menos cristã. Precisamos desse atrito, dessa pergunta impossível de como a igreja funciona, dessa perplexidade sobre o que a igreja faz, porque o que ela faz é frequentemente inconcebível para aqueles estão do lado de fora.

A igreja hoje corre o risco de meramente restabelecer resultados e políticas sociais que desfrutam do favor do mundo. E continuará girando sua engrenagem para anunciar e recrutar pessoas cuja expectativa é ingressar no conselho de alguma organização local sem fins lucrativos. A menos que se lembre de sua tarefa — que é dar continuidade à adoração a Deus — ela perderá sua identidade por completo.

Devemos resistir à tentação de fazer as perguntas erradas sobre a igreja. Devemos nos recusar a justificar a existência da igreja citando qual benefício oferecemos, qual é nossa contribuição ou se podemos prometer que nosso povo resistirá à tentação ou se negará a fazer mal uso do poder ou nunca prejudicará uns aos outros.

A igreja importa porque somente nela a verdade sobre o mundo é falada — porque somente nela o Senhor é proclamado como Rei.

Às vezes, pastores locais me perguntam o que podem fazer para atrair jovens para sua igreja. Digo a eles que não existem boas ideias para esse objetivo; na verdade, até mesmo o simples fato de fazerem essa pergunta significa que eles entenderiam mal minha resposta.

O único que levará as pessoas à igreja é o Espírito. A igreja deve se ocupar em deixar claras as fronteiras do mundo sendo um povo chamado pelo Espírito.

Como Emmanuel Célestin Suhard escreveu: “Ser uma testemunha não consiste em se envolver em propaganda, nem mesmo em instigar as pessoas, mas sim em ser um mistério vivo. Significa viver de tal forma que a vida de alguém não faria sentido se Deus não existisse.” Significa ser peculiar diante de um mundo que está procurando a próxima solução ou a próxima medida paliativa — significa cantar uma cântico de louvor, enquanto o perigo se aproxima.

Os discípulos tinham chegado ao fim de uma longa noite de pesca no mar de Tiberíades. E não tinham pescado nada. Jesus foi ao encontro deles, embora não o tenham reconhecido a princípio.

Lancem a rede do lado direito do barco, disse Jesus. Eles assim fizeram e pegaram uma quantidade enorme de peixes. Jesus tinha feito uma fogueira na praia e lhes preparou o café da manhã (João 21.1-14).

Neste momento, o que importava não era como acontecera a Ressurreição ou por que estavam tristes ou o que se sucederia. O que importava era serem alimentados por Cristo, como amigos dele.

Naquele momento, os discípulos não fizeram a pergunta errada. Em vez disso, eles comeram e deram testemunho daquele cujas obras, se fossem todas registradas, nem mesmo no mundo inteiro haveria espaço suficiente para os livros que seriam escritos. (v. 25)

Eles pescaram porque seguiram os comandos de Jesus. Esta é a única justificativa para a igreja que vale a pena dar.

Kirsten Sanders (PhD, Emory University) é teóloga e fundadora do Kinisi Theology Collective.

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Ideas

Em tempos de polarização, Jesus ordena: “Guarde a espada!”

Guest Writer

Jesus usou seus momentos finais com os discípulos para curar a orelha de um oponente — e modelar o caminho do amor.

Christianity Today October 16, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: WikiMedia Commons

Nota da edição em português: este artigo foi escrito como comentário ao atentado ao candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, em julho de 2024. Mesmo tendo como pano de fundo o cenário estadunidense, acreditamos que o artigo traz reflexões importantes também para o público brasileiro.

Nas narrativas do Evangelho, um destacamento de soldados veio prender Jesus, antes da crucificação. Tentando detê-los, o apóstolo Pedro levantou a espada para defender seu Mestre do perigo, mas errou o alvo, atingindo um dos soldados — ironicamente — na orelha. Jesus respondeu [ao ato] usando um de seus últimos momentos de cunho pessoal com seus seguidores, para ensiná-los sobre os perigos da violência política e religiosa.

Jesus repreendeu Pedro com uma frase muito citada: “Guarde a espada! Pois todos os que empunham a espada, pela espada morrerão” (Mateus 26.52). Conforme Jesus ensinou, violência só gera mais violência, criando uma espiral que pode tragar indivíduos, movimentos e, às vezes, até mesmo repúblicas.

Mas Jesus fez mais do que emitir um enunciado de conteúdo político. Ele curou o soldado que viera até ele para lhe fazer mal (Lucas 22.51).

Este mesmo soldado e seus companheiros beligerantes prosseguiriam com a prisão, e Jesus se tornaria vítima de tortura e morte patrocinadas pelo Estado. A cura, portanto, não foi um esclarecimento sobre a política do soldado. Jesus não o curou porque acreditava que as ações contra ele mesmo fossem justas. A cura foi um reconhecimento da humanidade de seu inimigo, pois há momentos em que devemos deixar de lado a política e ver que nossos oponentes são gente como a gente, são seres igualmente portadores da imagem de Deus.

Após a tentativa de assassinato do ex-presidente Donald Trump, nos encontramos em um momento como esse. Independentemente de nossa filiação partidária, a atitude apropriada é lamentar o ataque, lamentar a morte daquele pai que estava na multidão e morreu defendendo sua família e orar por todos os que foram afetados por esse ato injustificável de violência.

Para os cristãos, porém, orar é a parte fácil. Já ser honesto sobre o estado da nossa nação é mais difícil.

É desonesto de nossa parte fingir que isso era inimaginável. Já vimos muita morte neste país para agir como se algo estivesse além da compreensão: sofremos com homens armados atirando em crianças nas escolas e em fiéis nas igrejas e sinagogas; em pessoas em casas noturnas, supermercados e câmpus de universidades; e em jovens negros que saíram para fazer atividade física. Perdemos o direito de fingir que é impensável que alguém mire [uma arma] em um político. Há um ódio perigoso borbulhando por todos os cantos do país e, na Pensilvânia, ele transbordou para a campanha eleitoral, com resultados trágicos.

A violência política também está presente há muito tempo em nossa retórica. Nosso discurso nas mídias sociais é uma terra devastada. A guerra civil apresenta-se sempre como pano de fundo constante das discussões, pois vemos concidadãos que discordam de nós como pessoas totalmente malignas. Aprendemos a ver nossos adversários políticos como uma massa uniforme de desajustados que ameaçam tudo aquilo que prezamos — como um perigo para a república.

Não me entenda mal. Existem altos riscos na política. Existem ideias políticas perigosas. Existem entre a população alguns que querem minar a democracia. As políticas têm consequências no mundo real, e agora não é hora de fingir o contrário.

Mas nem toda opinião divergente chega a esse nível. Nossos amigos e vizinhos que discordam de nós são muito mais do que apenas uma soma de todas as piores ideias existentes no lado oposto ao nosso. No entanto, nos tornamos estranhos uns para os outros e, nessa separação, a discórdia floresceu. É fácil denunciar a violência quando ela finalmente vem à tona; é mais difícil admitir que ela está ao nosso redor já há algum tempo, crescendo nas lacunas criadas por nossa alienação.

Não é fácil apontar quando começou o medo que hoje sinto por nosso país. Lembro-me de um primeiro sinal dele, enquanto assistia à posse do ex-presidente Barack Obama, em 2009. Meu filho, agora adolescente, era um bebê na época, mas eu o acordei e o coloquei na frente da televisão. Eu queria poder lhe contar [no futuro] que assistimos juntos à posse do primeiro presidente negro da nossa nação. Eu estava cheio de esperança, mas também com medo de que ele pudesse ser assassinado.

Quando Obama saiu do carro para caminhar pela Pennsylvania Avenue, fiquei pensando: Volte para aquele automóvel. O lado de fora não é seguro. Voltei a sentir esse mesmo medo quando ouvi pela primeira vez a notícia da tentativa de assassinato de Trump. As coisas não estão seguras neste país, e há muito tempo. Cada eleição parece mais tensa, mais divisiva e até mais perigosa.

Existe um caminho para sairmos dessa espiral mortal? Sim. Devemos renunciar à violência que põe em risco todo o tecido social. Jesus estava certo no Getsêmani, quando descreveu o ódio e o assassinato como um contágio social que se espalha de pessoa para pessoa. É tolice pensar que uma doença que infecta toda a realidade que vivemos juntos não chegará às nossas eleições. Uma nação que não pode proteger suas crianças em idade escolar não pode proteger seus candidatos à presidência. Uma nação que não pode controlar seu ódio virtual não controlará seu ódio em carne e osso.

Palavras nem sempre são violência. Violência é violência, mas “o homem bom tira coisas boas do bom tesouro que está em seu coração, e o homem mau tira coisas más do mal que está em seu coração, porque a sua boca fala do que está cheio o coração” (Lucas 6.45).

Devemos começar a agir como um povo capaz de promover eleições livres e transparentes, enraizadas em princípios e em argumentos respeitosos e de boa-fé. Todos os candidatos devem conduzir o restante de suas campanhas com o objetivo de restaurar a confiança pública. Toda eleição é importante, mas os últimos meses desta corrida eleitoral em particular podem dar o tom para as próximas décadas.

Trump, o presidente Joe Biden [que, na época do atentado, era o candidato democrata] e quaisquer outros candidatos de outros partidos devem participar de outro debate nas próximas semanas, para darem aos Estados Unidos a chance de vê-los apresentar sua visão para o país. Eles devem mostrar seus planos para a nação e defender por que merecem nossos votos. Chega de debates sobre quem é melhor no golfe. O futuro da república está em jogo.

Todo americano que se importa com o futuro da democracia deveria votar, seja em um desses dois candidatos ou em um candidato de um terceiro partido. Um comparecimento recorde às urnas reafirmaria nosso compromisso com os princípios que prezamos. Mesmo neste estágio avançado, seria uma promessa de [tentar] encontrar um caminho melhor.

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Pedro não foi o único crente da igreja primitiva que usou de violência. Paulo, que escreveu um quarto do Novo Testamento, esteve envolvido no assassinato do primeiro mártir cristão, Estêvão (Atos 7). A mudança de coração de Paulo ocorreu quando ele estava a caminho para prender mais daqueles que, na época, eram seus oponentes. Seu encontro com Jesus o fez rejeitar a violência como meio de conseguir o que queria, e ele passou o resto de sua vida viajando pelo Império Romano para mudar vidas sem a ajuda de armas humanas. Ele nunca converteu uma única pessoa sequer pelo poder da espada. Em vez disso, ele usou argumentos. Precisamos fazer nosso país argumentar com civilidade novamente, usando os dados, a razão — e o amor.

Em uma das passagens mais famosas de Paulo, 1Coríntios 13, ele descreveu o amor como algo que é paciente, bondoso, que não é egoísta nem orgulhoso, que não se ira facilmente. Ele falou de um amor que não guarda rancor dos erros. Ele o chamou de a maior de todas as virtudes, e tinha em mente o amor que poderíamos mostrar uns aos outros como cristãos (Gálatas 6.10, João 13.35).

O amor pelos outros continua sendo um elemento central dos ensinamentos cristãos (Lucas 10.25-37). Dada a atmosfera de ódio sempre crescente, faríamos bem em recuperar esse amor como um princípio operacional dentro da igreja e permitir que ele transbordasse para o mundo. Esse pode ser o nosso testemunho mais crucial neste momento.

Esau McCaulley (@esaumccaulley) é o autor de How Far to the Promised Land: One Black Family’s Story of Hope and Survival in the American South [O quanto falta para chegar na Terra Prometida? A história de esperança e sobrevivência de uma família negra no sul dos Estados Unidos] e do livro infantil Andy Johnson and the March for Justice [Andy Johnson e a marcha por justiça]. Ele é professor associado de Novo Testamento e teologia pública no Wheaton College.

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Ideas

A ONU é um campo missionário

O que aprendi representando minha organização cristã para diplomatas de 193 países.

Christianity Today October 11, 2024

Eu mostro meu crachá de acesso da Organização das Nações Unidas (ONU) para o policial, e ele me acena para passar pela barreira de segurança. Ao me aproximar da praça, vejo atiradores de elite com rifles no telhado e ouço uma dúzia de línguas diferentes. Limusines pretas estão por toda parte, enquanto presidentes e primeiros-ministros se reúnem na cidade de Nova York, preparando seus discursos para a Assembleia Geral da ONU, que teve início no começo de setembro.

Já se passaram cinco anos desde que me tornei representante do Comitê Central Menonita (MCC) na ONU e tive acesso, pela primeira vez, a esta comunidade de políticos, trabalhadores humanitários e ativistas de todo o mundo. Observei as ineficiências desta burocracia — seus desafios em agir de forma decidida e enfática. Vi muitas pressões internas por políticas às quais me oponho fundamentalmente, por causa das minhas convicções cristãs.

Mas, por meio do meu papel no MCC, também percebi que meu local de trabalho é um campo missionário, no qual tenho oportunidades diárias de ser um discípulo de Cristo para o mundo do poder político. Por exemplo, conheço uma embaixadora da ONU no Conselho de Segurança que disse a um pequeno grupo de agências cristãs que nós a inspiramos a ser fiel à sua própria fé cristã, enquanto ela transitava pelos desafios da violência em Israel e na Palestina.

Eu vi o embaixador da Albânia na ONU, enquanto servia no Conselho de Segurança, dizer a um grupo de 40 estudantes universitários cristãos que sua vocação era continuar expondo ao mundo as mentiras da Rússia sobre a invasão militar da Ucrânia e que, um dia, documentar a verdade teria seu valor. Parei diante de uma estátua no prédio da ONU, dedicada a Michael “MJ” Sharp, um ex-funcionário do MCC que mais tarde serviu na ONU. Depois de anos trabalhando com mentores congoleses locais, MJ e sua colega da ONU, Zaida Catalán, da Suécia, foram emboscados e executados por um grupo armado na República Democrática do Congo (RD Congo), sendo que seu intérprete e três motoristas [que estavam com eles] até hoje são dados como desaparecidos.

Mais de 6.000 agências não governamentais solicitaram e receberam status consultivo da ONU, o que lhes permite que se envolvam oficialmente com diplomatas e funcionários da organização, entrem no complexo e participem de atividades. Por meio da Caritas, a igreja católica tem presença aqui, assim como as igrejas anglicana, metodista e presbiteriana. Contudo, dentre as mais proeminentes agências evangélicas internacionais dos EUA — entre elas Compassion International, Hope International, International Justice Mission, Samaritan’s Purse e World Relief —, apenas a World Vision tem um escritório na ONU e presença diária em Nova York, como o MCC.

Mas e se os seguidores de Cristo vissem essa comunidade de 5.000 funcionários do corpo diplomático e 8.000 funcionários da ONU como um grupo de povos não alcançados? E se eles percebessem que influenciar o poder político nos salões da ONU teria um impacto descomunal, em termos de compaixão e de justiça, sobre as pessoas a quem tantos cristãos servem em ministérios internacionais? E se fizéssemos amizade e fôssemos inspirados aqui pelos servidores públicos de religiões e de nações as mais diversas, que são exemplos de coragem moral?

Uma voz rara para o poder político

Em vários dos 45 países onde o MCC tem ministérios de ajuda humanitária, desenvolvimento comunitário e pacificação, ficou claro que o poder político muitas vezes é um obstáculo para a nossa missão.

O golpe militar de 2021 em Mianmar fez com que muitos de nossos parceiros cristãos locais fugissem, escapando para salvar suas vidas e tentando ajudar os outros, enquanto eles mesmos se deslocavam internamente. Quando as gangues no Haiti assumiram o controle, após o colapso do governo, tornou-se quase impossível levar adiante os programas de saúde e agricultura. Treze anos de guerra na Síria devastaram o país, geraram milhões de refugiados e prejudicaram dramaticamente as vidas e o trabalho de parceiros da igreja.

Para os ministérios cristãos que trabalham pelo mundo inteiro, são os parceiros locais, aqueles que vivem em lugares de sofrimento e esperança, que sabem o que está acontecendo em tempo real no lugar e que têm experiência para [as possíveis] soluções. Esse conhecimento encarnacional pode se tornar precioso e persuasivo nos corredores da ONU.

Após o golpe militar em Mianmar, nós, trabalhando com um órgão da ONU, fornecemos um canal seguro para um parceiro documentar um relato em primeira mão de um ataque com armas químicas contra civis. Em reuniões com diplomatas dos EUA, testemunhamos como a proibição de 2017 de viagens de cidadãos norte-americanos para a República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte) prejudicou agências humanitárias e interrompeu nossos 25 anos de trabalho naquele país. Trabalhando com outras agências, persuadimos os EUA a conceder vistos temporários de viagem que permitiram que as equipes entrassem na Coreia do Norte e garantissem que kits de comida e água potável chegassem aos hospitais infantis.

Em uma reunião com um embaixador de uma influente nação europeia, minha colega Victoria Alexander, de 26 anos, compartilhou como nossos parceiros em Gaza enfrentaram obstáculos significativos para levar alimentos e suprimentos domésticos para as famílias, mesmo quando eles mesmos estavam fugindo de bombas e sofrendo a perda de entes queridos. Victoria também compartilhou como nossa equipe dos EUA em Jerusalém foi forçada a sair, quando o governo israelense interrompeu as renovações de visto para trabalhadores humanitários.

“Informação é a moeda da ONU”, disse-me um diplomata cristão de uma nação ocidental. “Grupos cristãos têm um nível de conexão e de confiança com a comunidade e com a igreja local que muitos diplomatas de elite desses países não têm. Isso dá credibilidade [a essas] organizações.”

Aprendendo o engajamento político saudável

Em Christianity in the Twentieth Century [Cristianismo no Século 20], o historiador Brian Stanley argumenta que a omissão das igrejas em se posicionar publicamente na Alemanha, durante a ascensão do nazismo, e em Ruanda, antes do genocídio de 1994, nos lembram que “o discurso profético eficaz depende de um equilíbrio paradoxal entre manter o acesso às fontes de poder político e preservar uma distância suficiente dessas fontes que lhe permita resguardar sua independência moral”.

Infelizmente, os cristãos ainda lutam contra a tentação de controlar o poder político ou de se afastar dele. No entanto, como os grupos cristãos não têm representantes políticos na ONU, e como os diplomatas da ONU não têm obrigação de nos ouvir, estar na ONU ajuda os cristãos a aprenderem a ser uma minoria cujo poder moral está na persuasão e na construção de relacionamentos. Nós nos engajamos não para tomar o poder, mas para dar testemunho dos valores do reino de Deus. Além disso, ter uma audiência composta por todas as nações do mundo nos pressiona a pensar e a falar de uma forma que vá além dos interesses de qualquer nação específica, e baseada em nossos relacionamentos com os impotentes e os negligenciados do mundo todo.

Em uma época em que a política é frequentemente tomada por gritos e ira, uma via para um engajamento saudável é o caminho da persuasão silenciosa. Quando um grupo de colegas do ministério visitou nosso escritório da ONU, em Nova York, nesta primavera, nós nos reunimos com um diplomata dos EUA. Durante o almoço, contei a ele sobre os desafios que o MCC estava enfrentando em Gaza e na Península Coreana, e sobre o dano que acreditávamos que certas políticas dos EUA estavam causando às pessoas que viviam nesses locais. Ele ouviu pacientemente. Depois que o diplomata foi embora, Clair Good, que trabalha com desenvolvimento comunitário e serviu pelo MCC na República Democrática do Congo e no Quênia, disse: “Chris, você trouxe algumas questões bem difíceis para ele, mas durante um almoço muito agradável e mostrando interesse nele como pessoa. Isso nos ajudou a ver como as relações de respeito importam em nosso trabalho de engajar o mundo político.”

Outros momentos pedem que nos posicionemos publicamente de maneiras inesperadas. Na primavera passada, o MCC e outros grupos carregaram cartazes que diziam “uma peregrinação de luto por todos os traumas, todas as vidas perdidas e todo o sofrimento no conflito Palestina-Israel”, e caminharam em silêncio, dando 25 voltas ao redor dos quarteirões da ONU, para representar as 25 milhas da Faixa de Gaza. No ano passado, no 70º aniversário do armistício da Guerra da Coreia, 50 diplomatas da ONU compareceram ao nosso culto de lembrança e paz. Se não fosse por esse evento, organizado pelo MCC e outros grupos religiosos, nenhum evento da ONU teria marcado os 70 anos da divisão do povo coreano — que permanece até os dias de hoje.

Aquele mesmo diplomata cristão de uma nação ocidental me disse que as negociações na ONU são longas e frustrantes, e o progresso é lento. “Mas trago uma visão cristã de que todos são bem-vindos à mesa e devem ouvir aqueles que estão na pior das situações. E isso também vale para aquelas pessoas de quem discordo profundamente.”

Todo ano, realizamos um seminário da ONU para estudantes universitários cristãos do Canadá e dos EUA. Apesar de tentarmos ao máximo sermos honestos sobre os limites e fracassos da ONU, os alunos saem daqui com mais esperança, falando sobre embaixadores e diplomatas que tiveram a oportunidade de conhecer e que exaltam a vocação política.

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Crescendo nas virtudes da pacificação bíblica

Conforme foi popularizado pela série de livros Deixados para Trás, muitos evangélicos dos EUA historicamente expressaram uma profunda suspeita de um “governo mundial único”, o qual representa uma ameaça secular à independência nacional, à liberdade religiosa e ao governo de Cristo. Às vezes, a ONU é retratada como o centro dessa ameaça.

Mas fique tranquilo, pois, na maioria dos dias, que são marcados por amargas batalhas no Conselho de Segurança entre os EUA e a China, a ONU está mais para “Nações Divididas” do que para “Nações Unidas”. Os parceiros do MCC na República Democrática do Congo e em Mianmar sempre me lembram que, em seus países, a ONU é conhecida como “Unidos por Nada”. E como aquele diplomata cristão de uma nação ocidental me disse: “A ONU é uma instituição imensa. E essa enorme burocracia tem a tendência de pensar que dinheiro pode resolver problemas. Não há aqui um esforço suficiente de autoanálise sobre os fracassos da ONU, desde o Haiti ao Afeganistão”.

Não deveria ser surpreendente descobrir que o bom, o mau e a feiúra do nosso mundo estão plenamente representados em Nova York, na Assembleia Geral, ou que a ONU é limitada em seu poder — pois toda a humanidade está aqui, criada à imagem de Deus e afastada de Deus, caída e frágil. Sim, aqui há coragem moral e excelência. Mas também há desperdício, timidez e autoridades poderosas que protelam, mentem, obstruem e abusam.

No entanto, essa turbulência moral é mais um motivo para os discípulos de Cristo estarem presentes.

“É o único recinto no mundo onde você vê ucranianos falando com russos, israelenses com palestinos, americanos com iranianos”, disse uma diplomata de Nova York, que não pode ser identificada por causa de aspectos sensíveis relacionados ao seu trabalho. As manchetes dos jornais falam das questões em que as nações discordam. “Mas não podemos evitar uns aos outros aqui”, disse ela. “Temos que sentar e ouvir um ao outro, deixar nossas diferenças de lado para encontrar áreas em que concordamos, que vão de água potável à inteligência artificial. Tenho o WhatsApp de diplomatas de outros países com os quais não temos boas relações diplomáticas. Mesmo quando discordamos, conversamos por mensagens de texto.”

Em uma época em que evitamos cada vez mais aqueles de quem discordamos, e até nos mudamos para igrejas e guetos de bairro de “pessoas como nós”, estar diariamente cara a cara com amigos e inimigos, nas ruas e corredores da ONU, pode gerar frustração e raiva. Mas esse contexto pode se tornar um terreno para crescermos nas virtudes da pacificação bíblica.

O teólogo Stanley Hauerwas acredita que a ONU é uma comunidade de diálogo imprescindível, da qual os cristãos não deveriam querer abrir mão.

“A ONU não vai impedir a guerra, mas fornece um lugar para adiar guerras, e isso não deve ser descartado”, ele me disse. “É bom termos diplomatas comprometidos em tornar a guerra menos provável e que, depois, ficam frustrados quando seus esforços não funcionam. Mas a nossa esperança é que essa frustração seja uma fonte de energia que gerasse resultados depois de um tempo. Porque a paz leva tempo, e você tem que aprender a ter paciência. Porque você tem de ouvir a pessoas que despreza.”

Até os confins da Terra

Quando saio da Assembleia Geral da ONU e passo pelas 193 bandeiras do lado de fora, aproximo-me do prédio do Church Center [Centro Eclesiástico], onde trabalho, e vejo a obra de arte na capela que sedia cultos cristãos semanais abertos a todos. A obra de arte, feita na parede do prédio, é em parte uma escultura, em parte um vitral. Chamada de Busca do Homem pela Paz, ela apresenta formas humanas distribuídas ao redor de uma estrutura grande, que lembra o formato de um olho e olha tanto para dentro do santuário quanto para fora, do outro lado da rua, para a ONU. Vejo esse olho como algo que representa os olhos do Senhor.

Toda vez que passo por lá, essa obra de arte me lembra que o nosso Deus vivo, o Senhor de todas as nações, mantém um olho tanto nos poderes que falam do outro lado da rua quanto na igreja, nos incitando a sermos testemunhas, entre os poderosos, do Senhor de todo o poder que “garante justiça aos pobres e defende a causa dos necessitados” (Salmos 140.12).

Em Atos, Jesus enviou seus discípulos aos “confins da terra” (Atos 1.8). Em nosso tempo, todos os dias, membros de todos os “confins da terra” se reúnem na ONU. Um dia eles voltarão para suas casas, espalhando-se de volta por todas as nações. Dentro das paredes da ONU, na cidade de Nova York, o testemunho cristão pode alcançar o mundo inteiro.

Chris Rice é diretor do Comitê Central Menonita do Escritório das Nações Unidas, na cidade de Nova York; foi anteriormente diretor cofundador do Duke Divinity School Center for Reconciliation [Centro de Reconciliação da Duke Divinity School]. Seu último livro é From Pandemic to Renewal: Practices for a World Shaken by Crisis [Da pandemia ao renovo: práticas para um mundo abalado pela crise], publicado pela InterVarsity Press.

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Ideas

Uso de smartphones na infância: a igreja deve lutar pela saúde mental dos pequeninos

Os cristãos lutaram por leis para proteger as crianças durante a Revolução Industrial. Podemos fazer isso de novo na era dos smartphones.

Christianity Today October 10, 2024
Edição da CT / Source Images: Library of Congress / Pexels

À medida que voltam às aulas [pois o ano escolar norte-americano começa depois das férias de julho], muitas crianças americanas chegarão nas escolas com smartphones nas mãos. A idade média em que as crianças nos Estados Unidos ganham seu primeiro celular é de apenas 11 anos, e a maioria das escolas públicas proíbe o uso dos aparelhos em salas de aula apenas para fins não acadêmicos — e até mesmo essa medida requer esforço para ser aplicada.

Sabemos que isso é um problema. Pesquisas de acadêmicos como Jonathan Haidt e Jean Twenge continuam a mostrar que os jovens norte-americanos estão vivendo uma crise de saúde mental, e há evidências convincentes de que a infância vivida em frente às telas dos celulares é a principal causa desse problema. E a igreja não é uma exceção aqui; se você trabalhou em ministérios de jovens recentemente, entende os desafios que vêm com uma sala cheia de adolescentes que estão cronicamente conectados online. Se você próprio for jovem, entende o quão fortemente o uso da tecnologia está ligado à questão do pertencimento, e o quanto pode ser difícil desviar sua atenção do seu próprio celular, por medo de estar perdendo alguma coisa.

Os cristãos já começaram a considerar como as igrejas podem encorajar o uso mais seguro das mídias sociais no ministério e como podem abordar o uso da tecnologia como uma questão de discipulado. Mas quero recomendar outra resposta que tem uma longa história na igreja: o envolvimento cristão em políticas públicas.

Se acreditamos que o evangelho tem o poder de falar a todas as áreas da nossa vida, devemos reconhecer que isso inclui nossa vida digital, e não apenas individualmente, mas também como comunidade: como famílias e congregações, sim, mas também na política. O envolvimento cristão em políticas públicas — que diz respeito ao modo como seguimos a Deus enquanto povo arraigado em um determinado tempo e espaço e em uma comunidade política — pode ser parte de como amamos e servimos a Deus e ao próximo em nossa era digital.

Eu entendo por que alguns cristãos são cautelosos em se envolver na política e no governo, seja por razões teológicas ou históricas ou simplesmente por causa do ceticismo quanto à capacidade de o governo fazer algo produtivo. Mas se tivermos a oportunidade de defender políticas públicas que promovam segurança e prosperidade para nós e nossos próximos, devemos exercer com boa mordomia essa responsabilidade, como os servos na parábola dos talentos, em Mateus 25. E, de vez em quando, teremos o dever de assumir o papel de defensores daqueles que não podem defender a si mesmos.

Isso significa particularmente crianças e adolescentes cujas famílias não têm o conhecimento, os recursos ou os meios necessários para fazer da limitação do tempo de tela uma prioridade. Crianças de famílias de baixa renda têm duas a três vezes mais probabilidade do que seus pares de desenvolver transtornos de saúde mental, e algumas pesquisas mostram que elas também têm mais probabilidade de passar muito tempo online. Escolas sem smartphones forneceriam pelo menos uma certa trégua das redes sociais intencionalmente viciantes.

Então, como a igreja historicamente se envolveu nesse engajamento político para o bem de nossos próximos? Cristãos que transitaram pelas rápidas mudanças tecnológicas, econômicas e sociais da Revolução Industrial fornecem exemplos com os quais podemos aprender muito hoje.

A mudança de economia agrária para economia industrial, tanto nos EUA quanto no Reino Unido, trouxe consigo novas conveniências e oportunidades, mas também novos perigos para as crianças. Isso lhe soa familiar? Pode ser que seja difícil para nós imaginarmos hoje em dia, mas aquela foi uma época em que a escolaridade não era obrigatória e na qual não havia regulamentação para questões de segurança. As crianças frequentemente trabalhavam ao lado dos pais ou de outros adultos nos campos ou nas fábricas.

Sem as leis trabalhistas com que hoje contamos, as crianças às vezes trabalhavam 16 horas por dia ou mais. Elas tinham poucas pausas na jornada de trabalho. Ferimentos eram comuns, e as crianças não eram alvo de nenhum cuidado especial. Até mesmo a prostituição infantil era encontrada em muitos locais de trabalho, como a historiadora Penelope Carson escreveu em seu texto para Christian History, e não havia “regulamentos de segurança nem multas financeiras, além de espancamentos serem impostos para penalizar os mais mínimos deslizes ou contravenções. Acidentes e mortes eram muito comuns”. Os órfãos eram particularmente vulneráveis, pois não tinham tutores para intervir em seu favor.

Mas alguns cristãos intervieram, e desempenharam um papel fundamental na aprovação de leis para regulamentar o trabalho infantil em ambos os lados do Atlântico. Richard Oastler, um metodista devoto e abolicionista do século 19, começou a trabalhar pela conscientização pública tão logo soube como as crianças eram tratadas nas fábricas britânicas. Então, ele buscou soluções legais para garantir a proteção infantil. Os métodos e a retórica por vezes radicais de Oastler o colocaram em apuros mais de uma vez, mas sua preocupação com os pobres e as vítimas da injustiça ajudou na aprovação dos Factory Acts [Leis das Fábricas] do Reino Unido de 1833 e 1847, que limitavam as horas de trabalho para mulheres e crianças.

Décadas depois, nos EUA, um sacerdote episcopal chamado Edgar Gardner Murphy estava preocupado com o bem-estar das crianças que trabalhavam nas fábricas. Durante anos, ele defendeu uma legislação que encurtaria as horas trabalhadas por elas, aumentaria o limite de idade para as crianças que trabalhavam em fábricas e minas e proibiria o trabalho noturno. Entendendo que as reformas eram essenciais para proteger as crianças dos empregadores e, às vezes, de seus próprios pais, ele fundou o National Child Labor Committee (NCLC) [Comitê Nacional de Trabalho Infantil], em 1904, para disseminar a conscientização e promover soluções políticas.

Apenas dois anos após o estabelecimento do NCLC, as conversas sobre a reforma das leis sobre trabalho infantil foram passadas de nível estadual para nível federal, e o comitê conseguiu destacar tanto a injustiça do trabalho infantil quanto os benefícios que a escola pública proporcionaria. Muitos pais e empregadores estavam satisfeitos com o status quo, mas as fotografias tiradas por Lewis W. Hine expuseram a difícil situação das crianças que trabalhavam em fábricas e minas, motivando ações legislativas.

Os smartphones não oferecem os mesmos perigos físicos das primeiras minas industriais ou fábricas de algodão, mas seu risco para as crianças é real. Portanto, é responsabilidade dos cristãos intervir em favor de crianças vulneráveis, defendendo melhores políticas públicas para uso da tecnologia em escolas públicas ou privadas.

Claro, não há garantia de que nossa luta terá sucesso. A história e pesquisas atuais sugerem que, apesar de nossos melhores esforços, as propostas para proteger as crianças do mundo online têm uma grande chance de fracasso. Muitos pais — e certamente muitas crianças — prefeririam manter o status quo, ou seja, deixar tudo como está. Mas essa possibilidade não deve nos desencorajar de lutar.

Em um discurso na Conferência Internacional Cristã de Política, em 1977, o senador Mark Hatfield, do Oregon, listou muitos projetos de lei que ele defendeu ou nos quais votou por causa de sua fé cristã. “Acontece que”, ele continuou, “cada uma dessas propostas foi derrotada. No entanto, eu confio que em cada caso foi dado um testemunho dos objetivos que nos moveriam na direção do reino — como eu o concebo.” Mesmo que não tenhamos as políticas que queremos, ainda assim podemos praticar esse tipo de testemunho fiel em praça pública. Ainda podemos dar testemunho da esperança que temos em Cristo, confiando que Deus fará justiça.

Em nível prático, os cristãos — e especialmente os pastores e outros líderes da igreja — devem construir relacionamento com membros do conselho escolar, autoridades estaduais e municipais e até mesmo membros do Congresso que possam moldar as políticas para uso de tecnologia em nossas escolas. Podemos mostrar para esses líderes — assim como Oastler fez com os responsáveis por formular as políticas britânicas há dois séculos — que temos o dever e a capacidade de proteger melhor jovens e famílias vulneráveis ​​em nossas comunidades. Afinal, temos o dever de verdadeiramente amar nossos próximos.

Emily Crouch é uma profissional que trabalha nas áreas de políticas públicas e comunicações; ela vive e trabalha em Alexandria, Virgínia. Emily lidera o programa para estudantes universitários e a bolsa para desenvolvimento de liderança congressista em início de carreira no Center for Public Justice [Centro para Justiça Pública].

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Culture

Deus também quer comunhão em torno da mesa

Cada vez mais pessoas comem sozinhas. Mas, na vida cristã, alimento e comunidade são realidades que se entrelaçam.

Ceia em Emaús de Matthias Stom

Christianity Today October 8, 2024
WikiMedia Commons

Naquele dia, quando o garçom trouxe o chá da tarde tão aguardado, não imaginei que, décadas depois, eu ainda sofreria ao me lembrar daquele momento.

Eu tinha 21 anos e estava curtindo “de verdade” meu primeiro recesso de primavera, passando uma semana em Londres e acumulando dívidas [para pagar mais tarde]. Depois de anos devorando castos romances ambientados na Inglaterra, aprendi que a Harrods [loja luxuosa de departamento] era o melhor lugar para experimentar as glórias dos scones [espécie de bolinho típico do chá da tarde britânico] com clotted cream [produto típico inglês, uma variação do requeijão, servido tradicionalmente com scones e geleia] e sanduíches minúsculos, todos servidos em reluzentes xícaras e pratos de porcelana e, claro, regados a muito chá quente. Assim, na minha primeira viagem transatlântica, me pareceu justo desfrutar das regalias do meu cartão de crédito em um belíssimo chá da tarde na Harrods. Sozinha.

À medida que comecei a olhar em volta do salão naquele dia, percebi que tinha cometido um erro grave. Nem mesmo os scones macios ou a perdição do clotted cream conseguiram equilibrar o gosto amargo do arrependimento. Na verdade, eles pioravam essa sensação. A cada coisa com que eu me deliciava, mais intensamente sentia a falta de alguém com quem compartilhar meu prazer.

Quando eu estava fazendo pesquisa de campo para meu livro sobre a vida de solteiro, alguém me disse que comer sozinho pode ser pior do que dormir sozinho. Comer sozinho é certamente um problema para pessoas que vivem sozinhas. Mas, com os horários do século 21 para trabalhar, praticar esportes e outras realidades estruturais, mesmo as pessoas que, em tese, teriam companhia garantida para comer, alguém como um cônjuge, os filhos ou um colega de quarto, muitas vezes fazem refeições solitárias. E mesmo quando compartilhamos a mesa, alergias e restrições alimentares podem criar outras formas de nos separar. Essa mudança modificou até mesmo o design de apartamentos e casas, eliminando das plantas as salas de jantar, à medida que se tornaram um espaço obsoleto.

Às vezes, a solidão de uma refeição sozinho pode parecer bem-vinda. Talvez uma pessoa introvertida, esgotada por um dia repleto de reuniões, não queira nada mais do que um tempo sozinha para relaxar. E para alguns pais que vivem na correria, uma xícara de café em paz — uma espécie de recompensa por acordar antes do resto da família — pode parecer um consolo raro e precioso.

Para os cristãos, porém, a questão de como e com quem comemos envolve mais do que meramente nossas preferências pessoais. Qual é o propósito de Deus para nossas refeições?

As Escrituras trazem um número surpreendente de histórias em torno da refeição. Em preparação para a sua libertação da escravidão, Deus faz os israelitas comerem uma refeição especial de Páscoa à base de cordeiro, pão sem fermento e ervas amargas, a qual os judeus praticantes continuam a reencenar anualmente, até os dias de hoje. Mais tarde, Jesus ressignificou essa refeição com o pão e o vinho da Ceia.

Jesus também usou a comida para fazer conexões com marginalizados e pecadores. Ele usou uma refeição para consertar o distanciamento causado pela traição de Pedro, fritando peixe para um café da manhã na praia. E foi somente em volta da mesa que a dupla a caminho de Emaús finalmente o reconheceu.

A comida desempenhou ainda um papel fundamental em ajudar a igreja primitiva a compreender o alcance da visão que Deus tinha para seu povo. Como Willie James Jennings escreve em seu comentário sobre Atos, “comer os animais que estavam associados a determinado povo era entrar no espaço de vida daquele povo”.

Isso dá grande significado à visão repetitiva que Pedro teve, que o chamava a comer alimentos proibidos anteriormente. Jennings escreve:

Não está sendo dito a Pedro que possua, mas sim que entre, que se torne, por meio do comer [aqueles alimentos], parte de algo do qual ele não se imaginava parte, antes de comer aquilo. Esse novo comer surge de outro convite a comer, oferecido por seu salvador e amigo: “Este é o meu corpo, que é dado por vocês”.

Nem toda igreja incorpora essa diversidade que reflete em sua plenitude o corpo de Cristo. Mas, até o ponto em que a incorporamos, a comida é uma das melhores maneiras de nos conectarmos por meio de nossa identidade compartilhada de filhos de Deus. Todos nós precisamos do lembrete encarnado da graça na Santa Ceia. Outras refeições compartilhadas, como almoços em grupo após o culto ou um momento para um cafezinho, apontam tanto para nossa dependência comum de Deus para a vida neste mundo quanto para o banquete que nos espera no céu.

E seja alimentando os famintos e marginalizados ou preparando refeições para os doentes e cansados, reconhecemos duas verdades: nossas vidas são interligadas, e o que fazemos pelos “menores” em nosso meio toca o coração de Jesus. Como o saudoso bispo ortodoxo David Mahaffey me disse: “Para mim, Deus nos deu o alimento como uma forma de comunhão com ele”.

E o que tudo isso significa para as muitas refeições que fazemos sozinhos? Elas estão intrinsecamente aquém do bom propósito de Deus para o sustento?

Uma das minhas coisas favoritas sobre a Bíblia é o quanto da vida ela contém: nela encontramos todos os tipos de pessoas, todos os tipos de situações.

No Livro de 1Reis, Deus envia Elias para o oriente, para Querite, um lugar supostamente remoto, onde ele é instruído a se esconder até novo aviso. O autor dá poucos detalhes sobre este período, exceto pelo milagre do sustento que Deus provê em um cenário de crescente fome. Corvos, aves mais conhecidas por tomar comida, levam alimento até o profeta.

Talvez, por causa das aves, eu nunca tenha pensado que essas refeições em si foram solitárias. No entanto, Elias deve ter passado um dia após o outro comendo sem a companhia de seres humanos. (A propósito, Adão também teria comido “sozinho”, até que Deus criou Eva).

Quero tomar o cuidado de não fornecer detalhes que os autores bíblicos não forneceram. Mas algumas coisas me impressionam a respeito das refeições solitárias desses homens. Primeiro, elas envolvem uma comunhão implícita com Deus. Refeições à parte, o pouco que sabemos sobre os períodos de solidão de Adão e de Elias sugere um forte relacionamento com o Senhor. E isso certamente se estendia às suas refeições também. Na verdade, por causa da presença de Deus, talvez eles nem se sentissem realmente sozinhos.

Segundo, ambos receberam provisão direta de Deus — água e a comida trazida pelos corvos, no caso de Elias, e frutas, no caso de Adão. Nessas circunstâncias, minha expectativa é de que ambos regularmente davam graças pelo alimento. Com que frequência e quão bem nós fazemos o mesmo? Quando engolimos uma torrada às pressas, enquanto dirigimos ou quando comendo as sobras da última refeição, assistindo à televisão no sofá — em circunstâncias assim fica muito fácil mergulhar direto no ato sem praticamente nenhuma palavra de agradecimento.

Por fim, me impressiona o fato de que esses dois homens comeram sozinhos durante períodos de preparação. Como Priscilla Shirer destaca, em seu estudo sobre Elias, Deus usou o tempo em Querite para preparar Elias para a comunhão inesperada em Sarepta e para o eventual confronto com Acabe. As refeições de Adão sozinho ocorreram durante um tempo de aprendizado sobre o trabalho que Deus lhe dera, e colaboraram para que ele pouco a pouco viesse a perceber que precisava de companhia humana. Inclusive, vale ressaltar que essas refeições de Adão ocorreram antes da Queda!

Sendo assim, talvez as refeições que fazemos sozinhos ainda possam honrar o propósito de Deus. Mas como? Talvez precisemos desacelerar um pouco para notar o visual, os sons, os aromas, as sensações e os sabores do alimento. (Isso também pode ajudar com a ansiedade e o estresse.) Em vez de nos distrairmos com o YouTube ou as mídias sociais durante as refeições, talvez possamos reconhecer e acolher a presença de Deus conosco. E possamos agradecer sinceramente por aqueles cujas mãos prepararam e nos entregaram o alimento, e por aqueles que o plantaram, cultivaram e colheram, bem como por Aquele que providenciou a chuva.

Mas também devemos procurar comer com outras pessoas, sempre que for possível.

Escrevo isso como alguém que hoje faz muitas refeições sozinha, sentada à minha mesa de jantar dobrável, na cadeira que fica de frente para a janela. Graças a uma entrevista para um livro que precisei fazer com um norueguês, que às vezes pagava contas enquanto comia — e odiava isso — eu me esforço para evitar trabalhar durante o jantar. Nas minhas melhores noites, eu como enquanto leio ou ouço um audiolivro. Nas piores, eu rolo o feed das rede sociais no meu celular, enquanto como.

Pouco tempo atrás, eu compartilhava um lanche, já tarde da noite, com um amigo que veio [à minha casa] para pegar alguma coisa. Quase sempre comemos algo juntos durante suas visitas, geralmente alguma sopa que eu fiz. Depois de umas poucas colheradas de sopa, ele me perguntou: “Como foi seu dia?”

Depois de anos vivendo em comunidade, estou há vários meses morando no segundo imóvel que aluguei sozinha em cerca de 20 anos. Só de ouvir a pergunta singela do meu amigo, meus ombros relaxaram e a tensão se dissipou. De repente, eu me vi de volta à mesa de jantar com minha família, nos meus anos de ensino fundamental e médio.

Nos dias de semana, o jantar era, em geral, a única refeição que fazíamos com meu pai. Então, ele usava nossos jantares para ajudar nós seis a nos conectarmos. Um por um, ele fazia perguntas a cada um de nós, enquanto compartilhávamos os pontos “altos” e “baixos” do nosso dia. Este foi um dos rituais mais formativos, do ponto de vista emocional, da minha criação. Tinha um ritual de limpeza estruturado (um rodízio de tarefas noturnas, cuidadosamente acompanhadas pelo calendário) e limites claros para discordar de forma limitada das regras da família (cada um de nós podia escolher um prato que não quisesse comer do cardápio rotativo das receitas que a mamãe fazia).

Com nossos jantares de sexta-feira à noite, à base de hambúrgueres caseiros e batatas fritas, aprendemos a celebrar o comum. Às vezes, nossos pais até compravam uma garrafa de dois litros de refrigerante, embora eu não fizesse a conexão entre o refrigerante comprado e o dia do pagamento do salário deles até me tornar adulta.

A hospitalidade sacraliza o cotidiano. Enquanto aplicativos ajudam alguns a encontrar companhia para refeições em restaurantes, comer em casa traz uma vulnerabilidade extra, que aprofunda as conexões e acomoda os orçamentos mais variados. Adoro que um amigo, que mora perto de mim, tenha começado a me enviar mensagens de texto sempre que faz muitas batatas ou muito chili (o que, geralmente, leva a um convite para jantar de última hora). Outros amigos sabem que podem ter que me ajudar a tirar uma porção de coisas que fui deixando em cima da cadeira da mesa de jantar ou que pode ser que eu sirva as sobras de outra refeição. Depois de meses de visitas como essa, uma amiga casada finalmente me convidou para almoçar na casa dela — nossa primeira refeição lá, em anos de amizade.

Compartilhar comida pode exigir vulnerabilidade e flexibilidade. Mas, uma vez que você supera o risco ou o desconforto inicial, uma conexão mais profunda geralmente se estabelece, e a solidão diminui.

No verão passado, morei por um breve período com um casal que muitas vezes só se encontrava no fim do dia. Antes de sair para seu trabalho de barman, o marido preparava o jantar numa panela de pressão elétrica e o deixava pronto para a esposa comer, quando ela chegasse em casa do trabalho como cabeleireira. Uma noite, ele fez um guisado picante; em outra noite, peixe ensopado. Mesmo quando ele chegava tarde em casa, e mesmo que ela já tivesse comido o que ele tinha deixado preparado, eles frequentemente se sentavam à mesa e conversavam sobre o seu dia, compartilhando alguma comida ou bebida.

Quando me mudei para a casa do casal, eles estavam ansiosos para abraçar a vida em comunidade, mas duvidavam que pudéssemos comer juntos. Eu cozinhava pratos muito diferentes dos deles, e ambos tinham várias alergias alimentares. Mas, como eles frequentemente adoravam o cheiro da minha comida, fiz uma lista de suas restrições alimentares para poder adaptar minhas receitas à dieta deles. À medida que fomos nos acostumando a viver juntos, tentei encontrar receitas que todos nós pudéssemos comer, ou fiz pequenos ajustes para que se encaixasse na dieta deles. Comemos pimentões recheados com folhas de repolho; no aniversário dele, fiz a receita do bolo de maçã da minha família sem ovos e com farinha sem glúten. No final dos meus quatro meses lá, eles estavam tentando me incluir em seus planos detalhados de refeições semanais.

Foi preciso que todos nós entrássemos num acordo. Mas, olhando para trás, parece que todas as vezes em que nós três nos sentimos mais conectados envolveram comida, a cozinha ou as duas coisas. Quer algum de nós reconheça isso ou não, o plano de Deus para a comida parece continuar se confirmando. Talvez seja por isso que Jesus com muita frequência descreva a vida celestial como uma grande banquete, um tema que João mais tarde aborda em suas alusões à ceia das bodas do Cordeiro.

Apocalipse termina com a promessa do alimento restaurada, afinal. Em seu capítulo final, a árvore da vida, cujo fruto fez com que Deus banisse os seres humanos do Éden, reaparece (Gênesis 3.22, Apocalipse 22.2). Somente quando Deus retoma o ato de compartilhar esse alimento com os seres humanos é que a Bíblia declara que já não haverá maldição nenhuma, e que Deus e os seres humanos estarão tão próximos que “eles verão a sua face”.

Anna Broadway é autora de Solo Planet: How Singles Help the Church Recover Our Calling [Planeta solo: como solteiros ajudam a igreja a recuperar nosso chamado] e Sexless in the City: A Memoir of Reluctant Chastity [Sem sexo na cidade: memórias de uma castidade relutante].

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News

Ira santa ou pecado? “Irai-vos, mas não pequeis”.

O conselheiro cristão Brad Hambrick fala sobre como lidarmos com nossa própria fúria em tempos acalorados.

Christianity Today October 4, 2024

Brad Hambrick supervisiona ministérios de aconselhamento na Summit Church, uma igreja da Carolina do Norte com 14 câmpus e cerca de 13 mil frequentadores. Ele também ensina aconselhamento bíblico no Seminário Teológico Batista do Sul e é autor de livros como Angry with God [Com raiva de Deus].

Como você diferencia a raiva boa da ruim?

Toda raiva diz duas coisas: “Isso é errado, e eu me importo com isso”. No espaço interpessoal, a raiva pecaminosa diz uma terceira coisa: “Isso é errado e é mais importante do que o meu próximo”. É possível estarmos certos sobre as duas primeiras coisas, ou seja, isso “é algo que você não deveria ter feito” e “é algo com que me importo”. No entanto, quando estou disposto a pecar contra meu próximo, ainda que meu pressuposto seja correto do ponto de vista teológico e moral, isso não significa que a expressão da minha raiva seja justa. Quando voltamos esse sentimento para as mídias sociais e a política, de várias maneiras esse “próximo” se torna muito distante ou muito ambíguo. E as pessoas sentem muito mais liberdade para descarregar [sua raiva] ou se enfurecer, porque não veem uma pessoa do outro lado. Elas apenas expressam seus sentimentos por uma causa.

Onde vemos esse tipo de raiva destrutiva?

A raiva aparece mais em contextos privados. Se alguém, por acaso, explode de raiva no supermercado, [isso significa que] seu sistema de controle e seus filtros sociais estão significativamente deteriorados.

Quero usar um teste bem simplificado para detectar a ira santa [ou a raiva boa]. “Se eu estiver certo, e se isso de fato importar, não vejo problema [em expressar minha ira]. [Se você achar que estou errado] Diga-me onde estou errando”. Normalmente, quando achamos que a nossa indignação tem uma motivação justa, amamos aquela imagem de Jesus virando as mesas no templo. E sentimos que estamos fazendo justamente isso.

Mas, se observarmos a passagem de Mateus 21, depois que Jesus termina de virar as mesas no templo, o texto diz: “Os cegos e os mancos aproximaram-se dele”. Na imagem dessa cena em minha mente, quando penso em Jesus no templo, penso em alguém que virou o Incrível Hulk. Ele ficou verde [de fúria]. Está olhando para as pessoas e vendo o íntimo de cada uma, e todas se afastam dele, pois erraram, pisaram no tomate. No entanto, nesse momento em que Jesus expressa sua ira com mais intensidade, os mais vulneráveis ​​se sentiram protegidos e atraídos [por ele]. Não ficaram assustados.

Será que eu estou expressando a minha raiva como Cristo expressou a dele? Não estou dizendo que Jesus não tenha ficado bravo. A ira é um dos atributos de Deus, o que significa que podemos nos irar do jeito certo. Pode haver beleza na ira. Ela não está inerentemente fora dos limites para os cristãos, como se fôssemos estoicos. Mas se vamos nos irar como Cristo fazia, então, deve haver um claro senso de atração e de proteção em torno do que estamos fazendo, por parte daqueles que estão vulneráveis e precisam de cuidado.

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Que ferramentas podem ser utilizadas para estes tempos de fúria que estamos vivendo?

Uma categoria que acho útil é a alocação de responsabilidades — perceber o que [realmente] está dentro de sua área de influência. Quando sinto uma raiva mais intensa a respeito de algo sobre o qual tenho pouquíssima influência, minha raiva não leva a nada de bom. À medida que começamos a nos sentir mais impotentes, começamos a contar com a ira para tentar recuperar parte do [poder] que sentimos que perdemos.

No discurso adotado pela cultura, todo mundo diz: “Precisamos nos acalmar e apaziguar a retórica”. Mas ninguém está fazendo isso. Mesmo que isso não esteja acontecendo de cima para baixo, deveria acontecer de baixo para cima, e a cultura deveria exigir esse posicionamento de seus líderes, se os líderes não estiverem liderando a cultura [dessa forma].

Na questão da raiva, devemos aplicar príncípios diferentes a eventos diferentes, se compararmos, por exemplo, a raiva motivada por traição em relacionamentos pessoais à raiva motivada por razões de outro tipo?

Existe raiva egoísta. Também existe raiva sofredora. Se você observar o Salmo 44, nos primeiros versículos, a vida está correndo muito bem. Então, você se depara com um selah. Você não sabe o que aconteceu. Mas foi algo muito grave. Nos próximos 12 versículos, o salmista dá tanto crédito a Deus pelas coisas ruins que aconteceram quanto deu pelas coisas boas, na primeira parte do salmo.

Ele se acha coberto de razão em sua ira. Há heresia ali. O salmista está pedindo para Deus despertar, quando sabemos que Deus nunca dorme. Mas não há ali um senso de que o salmista precisa se arrepender [do que está falando]. Ele está passando por um período de sofrimento na vida, um sofrimento que não faz sentido [para ele], e a equação moral não está equilibrada. Eu acredito que [ali] há uma tristeza-raiva inocente, em resposta ao sofrimento.

Então, os Salmos são um bom lugar para ir, quando estamos com raiva?

Uma característica comum da raiva é que não nos sentimos ouvidos e não nos sentimos compreendidos. E, por isso, aumentamos o volume para ter certeza de que estamos sendo ouvidos, e aumentamos a contundência de nossas palavras na tentativa de sermos compreendidos. E quanto mais irritados ficamos, mais as pessoas se afastam de nós.

A coisa não funciona assim, como se buscássemos os Salmos e necessariamente tivéssemos algum insight profundo e penetrante que explicasse a nossa situação, e pensássemos: “Oh, não tenho razão para ficar com raiva”. O que frequentemente descobrimos é que, quando sentimos que algo “passou dos limites”, e todos se afastam de nós — podemos levar essa situação para Deus e saber que ele se importa e nos ouve.

Um exemplo disso é Moisés na sarça ardente. Moisés tinha um problema com a ira. Ele tinha matado um homem em um momento de raiva. Quando fizeram o bezerro de ouro, ele o moeu até virar pó e fez as pessoas beberem aquele pó misturado na água. Em Números 20, ele teve um ataque de fúria e começou a bater na rocha e a repreender [o povo].

Uma das primeiras coisas que Deus diz a Moisés na sarça ardente, depois de ter dito “Tire as sandálias dos pés”, foi “tenho visto a opressão sobre o meu povo no Egito, tenho escutado o seu clamor, […] e sei quanto eles estão sofrendo”. Pense em como seria poder estar no lugar de Moisés, e dizer para Deus “ok, eu não deveria ter matado aquele homem. Foi um lampejo de raiva. Foi uma atitude má. Mas pelo menos eu fiz alguma coisa. Puxa, Deus, você não faz nada”, e escutar Deus lhe responder “Eu ouvi o clamor, eu vi o sofrimento, estou prestando atenção”. A verdade, porém, é que normalmente não temos uma sarça ardente só para nós — essa não é uma experiência humana comum —, mas os Salmos são um lugar onde podemos ter essa interação com Deus.

Esta entrevista foi editada para maior clareza.

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Ideas

Contra a cultura da demonização

President & CEO

O problema não é quando o conflito está fora, mas sim dentro do cristão.

Christianity Today October 3, 2024
MidJourney / Christianity Today

Cresci em uma pequena igreja evangélica, que fica no Vale Central da Califórnia, na qual havia mais operários do que executivos, empresários e profissionais liberais. Cerca de 25 famílias se aglomeravam nos bancos todos os domingos; eram pessoas amorosas, generosas e atenciosas. Acampamos na Sierra Nevada, fizemos mochilões no parque Yosemite e montamos armadilhas para caranguejos em Half Moon Bay. Estudávamos a Palavra, compartilhávamos alimentos, quando o infortúnio nos atingia, e fomos mais vezes ao Taco Bell depois do culto do que qualquer ser humano seria capaz de suportar. Vivemos uma espécie de evangelicalismo ensolarado da Califórnia, que exibia seu conservadorismo em camisetas, shorts de surfista e um humor alegre e despreocupado.

Quando penso naquela igreja, por mais imperfeita que fosse, eu me sinto imensamente grato. Ela me vacinou contra a caricatura tóxica sobre a qual eu ouviria com tanta frequência nos anos seguintes — especialmente em universidades seculares — de que as igrejas evangélicas eram bastiões da ignorância e do preconceito.

Quando deixei a academia, em 2009, foi em parte por desilusão. Os departamentos da área de humanas pareciam mais interessados em conformidade ideológica do que em investigação intelectual. Lembro-me como se fosse hoje de um seminário de doutorado em que uma das minhas colegas jogou fora toda a história das missões cristãs, como se não tivesse passado de um voraz colonialismo. Concordo que há muita coisa a se lamentar nessa história, mas com certeza parte dela também teve missionários que tinham boas intenções, não?

Por uma questão de honestidade intelectual, parecia que o mínimo que minha interlocutora deveria fazer era admitir tal fato. Em vez disso, ela me denunciou ao nosso professor pelo suposto crime de “defender uma instituição maligna”.

Este episódio foi apenas um de uma longa série de experiências desse tipo. Muitas aulas mais pareciam recrutamento para programas políticos; muitos seminários poderiam ser considerados competições para ver quem seria o primeiro a se ofender. Se você apresentasse uma tese que desafiasse as tendências predominantes nos departamentos da área de humanas, não haveria evidência ou argumentação no mundo que bastasse para defendê-la; em contrapartida, se você apresentasse uma tese que servisse a alguma causa que tivesse a simpatia dos departamentos, pouquíssimas evidências e argumentos seriam necessários. Afinal, uma vez que abandonarmos o conceito de que há uma verdade unitária, por que cada um de nós não pode escolher a história que mais convenha à nossa própria tribo? Quem se importa com precisão, quando se pode fazer “justiça”?

Então, deixei a academia para ajudar a lançar um novo empreendimento de mídia. Hoje é até irônico me lembrar do idealismo que acompanhou o surgimento da blogosfera e das mídias sociais naqueles anos. O cenário digital era um espaço aberto onde poderíamos reimaginar um diálogo público que fosse compassivo, informado e disposto a desafiar convicções partidaristas. Talvez os cristãos pudessem dar o exemplo de uma forma de engajamento público que simultaneamente defendesse valores cristãos e exibisse virtudes semelhantes às de Cristo. Talvez as mídias sociais pudessem ser o que a universidade deveria ser: um espaço aberto de ideias onde os melhores argumentos vençam por mérito próprio.

No entanto, ao longo dos anos seguintes, novos negócios de mídia criaram modelos financeiros que incentivavam o que há de pior no comportamento humano. O caminho para a riqueza e a influência passava pela viralização, e o caminho mais seguro para a viralização era incitar animosidades tribais. Tristan Harris, especialista em ética da tecnologia, chama isso de “corrida para o fundo do tronco cerebral”. Reafirme os preconceitos e pressupostos do seu público, alimente seus medos, despreze a outra tribo e você conquistará seguidores apaixonados e em número cada vez maior, os quais você pode monetizar por meio de engajamento com palestras [em vídeos] e textos.

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Em outras palavras, a maneira mais rápida de construir um público não era consolidando expertise e credibilidade durante uma longa carreira de trabalho sério, mas sim alcançando fama viral ao jogar com as antipatias tribais de um grupo ou de outro. O que começou como um esforço para colher a atenção [do público] se transformou em empenho para plantar a ira [no coração desse público].

Nos primeiros anos da cultura da viralização, as linhas divisórias separavam grandes grupos de pessoas, como evangélicos conservadores e progressistas históricos. Com o passar do tempo, ficou claro que as plataformas de mídia social poderiam aumentar ainda mais o engajamento e trazer publicidade mais bem direcionada (ou seja, ganhar mais dinheiro), canalizando leitores para subcategorias cada vez mais estreitas. Comunidades mais amplas com uma convicção comum se dividiram e se subdividiram em campos de guerra; cada campo era alimentado por fontes de informação próprias e se unia em torno dessa hostilidade compartilhada com aqueles ao seu redor. A raiva que sentimos pelos chamados traidores da nossa tribo é muito maior do que a raiva que sentimos por aqueles que nunca pertenceram à nossa tribo.

E assim chegamos ao ponto em que estamos hoje, no qual evangélicos são comprados e vendidos nos mercados do desdém e jogados uns contra os outros na busca por lucro. No qual escritores e leitores estão igualmente viciados na dopamina da divisão. Essa realidade é bem parecida com a dos departamentos das áreas de humanas nos quais convivi e trabalhei.

Tudo se reduz à política. Os fatos não importam se a história convier à sua tribo. Carreiras são construídas não com base em amar e entender os outros, mas com base em zombar deles e distorcê-los.

Para que fique bem claro, a Christianity Today jamais defendeu que os cristãos deveriam se retirar da vida política. Embora os mortos não sejam ressuscitados pela política, os vivos são auxiliados por ela.

O problema não é quando o conflito está fora do cristão. O problema é quando o conflito está dentro do cristão. Nosso engajamento de uns com os outros e com a sociedade em geral deve seguir o padrão de Cristo, e não a cultura.

A Christianity Today nunca se encaixou perfeitamente na agenda política de ninguém, porque estamos mais comprometidos com o reino de Deus do que com os interesses de qualquer partido ou país. Isso frustra aqueles que patrulham as linhas divisórias da conformidade política, mas vemos essa postura como algo essencial para o nosso chamado. E nos recusamos a participar do ciclo de insultos.

Nosso chamado é para promover as histórias e ideias do reino de Deus. Contamos essas histórias quando são encorajadoras e quando são difíceis. Convidamos vozes cristãs ortodoxas a apresentar seus argumentos para pontos de vista contrários. Buscamos entender e exemplificar o que significa seguir a Jesus em nosso tempo. A CT é composta por diretores, executivos, funcionários, escritores e leitores que possuem diferentes posições políticas. E vemos isso como uma força, não como uma fraqueza.

Um dos cânticos que cantávamos naquela igreja no Vale Central da Califórnia era “Eles Saberão Que Somos Cristãos Pelo Nosso Amor”. Experimentar esse amor do corpo de Cristo deixou sua marca em minha alma. Como Jesus disse em João 13: “Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (v. 35). E como ele orou ao Pai, em João 17, é por causa da unidade da igreja que “o mundo [sabe] que tu me enviaste, e os amaste como igualmente me amaste.” (v. 23)

Isso é algo sério. O amor que demonstramos uns aos outros, a unidade que mostramos ao mundo, tudo isso dá testemunho da divindade de Cristo e da realidade do amor de Deus. A Igreja carrega em si a imagem de Cristo para o mundo; no entanto, hoje essa imagem é controversa e fragmentada.

O reino de Deus está sempre confundindo as expectativas do mundo. Ele pega aquilo que o mundo virou de cabeça para baixo e vira de cabeça para cima, de volta à sua posição correta. Ele eleva os humildes acima dos arrogantes, os mansos acima dos fortes, os impotentes acima dos poderosos. O reino de Deus é profundamente contracultural.

Talvez a coisa mais contracultural que os cristãos possam fazer neste momento que vivemos é se recusarem a demonizar uns aos outros. Cristãos com corações e mentes sadios chegarão a conclusões diferentes sobre o que o amor exige deles na próxima eleição. Apoie quem sua consciência lhe disser para apoiar. Mas que seu primeiro amor seja o seu primeiro amor, e que nosso amor de uns pelos outros seja nosso testemunho ao mundo de que Cristo está vivo e operando entre nós.

Timothy Dalrymple é presidente e CEO da Christianity Today.

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Ideas

A epidemia das apostas esportivas: um problema que os cristãos não podem ignorar

Jogos de azar online não são necessariamente pecaminosos, mas certamente não são um uso cuidadoso da riqueza que Deus nos deu.

Christianity Today October 3, 2024
Ilustração de Elizabeth Kaye / Source Images: Getty

Nota da edição em português: este artigo foi escrito com base na realidade estadunidense, mas acreditamos que ele traz reflexões importantes também  para a igreja brasileira.

É bem provável que você conheça alguém que faz apostas esportivas. Com o aumento das apostas esportivas online, essa indústria agora fatura mais do que todas as principais ligas esportivas profissionais dos EUA somadas. Espera-se que os americanos apostem US$ 35 bilhões somente em jogos da NFL nesta temporada.

Essa não é uma tentação nova, mas acredito que o advento das apostas esportivas online aumenta consideravelmente o grau da seriedade com que os líderes cristãos devem abordar questões sobre a natureza moral e teológica dessas apostas.

As empresas de apostas esportivas online patrocinam as transmissões e a mídia esportiva, de modo que incentivos para apostar estão por todo lado, e é fácil participar. As pessoas podem se registrar e pagar [as apostas] com uns poucos toques no celular. Além disso, vinculá-las aos esportes faz com que pareçam algo mais inocente do que pôquer e blackjack.

Embora apostas esportivas em qualquer formato sejam atualmente ilegais em alguns estados norte-americanos de expressão — como a Califórnia, o Texas e a Geórgia — as apostas esportivas online agora são legais e estão disponíveis em grande parte do território norte-americano. Para estados como o Texas, onde moro e pastoreio uma igreja, parece provável que, com o passar do tempo, as apostas [offline] acabem sendo legalizadas também.

Quando falo com líderes cristãos e membros da igreja sobre apostas, frequentemente encontro hesitação. Há uma certa relutância entre os cristãos em tolerá-las, mas não há oposição suficiente para condená-las de forma aberta e direta. Acho que muitos cristãos não sabem bem o que fazer quanto à moralidade das apostas.

Para ser justo, as Escrituras não falam sobre apostas com o mesmo grau de clareza e de ênfase com que abordam outros males, como o adultério, a embriaguez e o roubo. Isso nos deixa com a seguinte pergunta: “É pecado apostar?”

Em Provérbios 13.11, vemos uma advertência contra a busca por riqueza fácil: “A riqueza que se ganha rápido diminuirá, mas a de quem ajunta pouco a pouco aumentará” (ESV). Somos repetidamente alertados sobre o amor ao dinheiro no Novo Testamento: “Conservem-se livres do amor ao dinheiro e contentem-se com o que vocês têm, porque Deus mesmo disse: ‘Nunca o deixarei, nunca o abandonarei’” (Hebreus 13.5).

Em Eclesiastes 5.10 é dito que dinheiro não satisfaz. E 1Timóteo 6.9-10 alerta que “ Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos”

Embora 1Timóteo chegue um pouco mais perto, ainda assim não é um comando direto para o cristão não apostar. No entanto, há muitas coisas que a Bíblia não proíbe especificamente, mas que cristãos de bom senso e comprometidos com as Escrituras reconhecem como coisas que são moralmente erradas. A Palavra de Deus não proíbe o uso de cocaína, mas não acredito que muitos cristãos tratariam o consumo de cocaína como algo moralmente neutro. As Escrituras não condenam explicitamente a rinha de cães [luta de cães], mas se alguém do seu pequeno grupo o convidasse para assistir seus cachorrinhos salsichas se enfrentarem no quintal, acredito que você não teria problemas em se opor a esse tipo de evento.

Embora todos os tipos de jogos de azar incluam risco, aposta e certa habilidade no jogo, nem todos os jogos de apostas devem ser medidos da mesma forma. Os casos extremos de disparate no jogo podem equivaler a pecado, mas será que é perverso apostar um sorvete com a minha filha quando jogamos Uno? Em especial quando não temos na Bíblia advertências claras a favor ou contra determinada coisa, a beleza da sabedoria que encontramos nas Escrituras é que elas nos fornecem princípios para vivermos com prudência.

A ética quanto ao jogo de apostas pode parecer nebulosa nas Escrituras, mas as considerações da Bíblia sobre explorar a situação dos pobres nada têm de nebuloso. Além da questão da moralidade individual, devemos ser honestos sobre a natureza predatória das apostas.

Os profetas de Israel rotineiramente castigam o povo de Deus por não cuidar dos pobres e por explorá-los. Muitos dos códigos de Israel sobre empréstimo de dinheiro são dados explicitamente para evitar que pessoas com muitos recursos lucrassem injustamente explorando pessoas com poucos recursos. E é para isso que a indústria das apostas foi criada: para explorar aqueles que estão ansiosos para ganhar dinheiro rápido, particularmente aqueles que sentem que não têm uma alternativa viável.

As grandes empresas do ramo têm sistemas em vigor que limitam os apostadores espertos (aquelas pessoas que fazem apostas excelentes), mas intencionalmente não limitam as pessoas que fazem apostas muito ruins. A expressão “a casa sempre ganha” não é meramente uma realidade estatística; é um sistema de “jogatina” que mantém o jogo lucrativo para quem paga as apostas.

Alguns leitores de hoje podem sugerir que a Bíblia não só é apática em relação à questão da aposta, como, na verdade, apoia o empreendimento. Provérbios 16.33 diz: “A sorte é lançada no colo, mas a decisão vem do Senhor”. Lemos que o sacerdote Zacarias foi escolhido por sorteio para queimar incenso (Lucas 1), e que também por sorteio foi escolhido o apóstolo que substituiu Judas — depois que os discípulos oraram para que o Senhor dirigisse essa seleção apostólica (Atos 1).

Essas passagens estão aprovando de forma implícita práticas como fazer apostas, assumir riscos ou qualquer outro tipo de jogo a dinheiro?

Presume-se erroneamente que lançar sortes no antigo Israel fosse um tipo de jogo aleatório voltado para algum ganho. Embora a prática continue envolta em certo mistério, sabemos que lançar sortes envolvia alguma forma de jogo com pedras. Alguns estudiosos sugerem que o Urim e o Tumim que o sumo sacerdote carregava eram usados ​​para lançar sortes, a fim de determinar a vontade de Deus. Vemos, no Antigo Testamento, que os sacerdotes eram selecionados e alguns deveres sacerdotais eram atribuídos por meio da prática de lançar sortes (1Crônicas 24.5, 31; 25.8; Neemias 10.34).

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O lançar sortes nunca foi acompanhado por apostas ou por lucro de qualquer tipo. Fica claro, então, que o sorteio entre o povo de Deus não era um jogo de azar para conquistar algum tipo de ganho financeiro, mas sim uma maneira prática de confiar no Senhor.

O lançar sortes não era uma prática imprudente, temerária, nem algo que visasse diversão ou riqueza; era uma forma simples e ligada à tradição de reconhecer que as decisões pertencem a Deus. No entanto, essas práticas descritivas nunca são prescritas como uma abordagem normativa para discernir a vontade de Deus, e não devem ser tratadas como tal. Muito menos devem ser tratadas como passagens em favor de apostas.

Apostar é pecado? Não acredito que os cristãos possam ver todos os exemplos de apostas como pecado. Apostar é um ato sensato? Raramente. Os cristãos devem fazer apostas? Como norma, acredito que eles devam evitar isso. Por quê? Bem, nem tudo que é lícito nos convém. Há coisas que não violam os ditames das Escrituras, mas não são sábias.

O jogo de apostas trata aquilo que Deus confiou aos nossos cuidados com atitude descuidada. Sua lógica é a exploração, e seu objetivo final é a aquisição rápida de riqueza, seja ganhando-a ou tomando-a. Os cristãos devem relutar em participar e apoiar jogos de azar de qualquer tipo, e acredito que os líderes cristãos devam começar o quanto antes a falar das apostas esportivas online com clareza e precisão.

Para colegas líderes de ministério, aqui estão cinco maneiras práticas de abordar esta questão:

1. Fale sobre dinheiro.

É simplesmente uma falha na estratégia de discipulado da igreja o fato de que a maioria dos cristãos não tem uma concepção positiva de riqueza. Se não fornecermos um relato coerente do que é riqueza, de como ela é obtida e de como ela pode ser administrada para o bem das famílias, comunidades e igrejas, não deveríamos nos surpreender se as pessoas a desperdiçarem.

A maioria dos cristãos em nossas igrejas recebeu aparentemente duas mensagens sobre dinheiro: a riqueza corrompe o homem e você deve dar com generosidade. Além da simples contradição entre essas duas mensagens, há uma falta de propósito e de visão em buscar, administrar e preservar a riqueza.

O cristão não deve adorar a riqueza, mas também não deve desperdiçá-la.

2. Ofereça oportunidades para a competição saudável e fraterna.

Muitos homens são atraídos por apostas esportivas por causa da natureza competitiva e comunitária dos esportes. Em uma era digital de solidão exacerbada, os homens estão migrando para apostas esportivas online para sentir o perfume de algo do qual sentem falta: a competição fraterna. 

Líderes cristãos de todos os tipos podem ajudá-los a se envolverem num discipulado holístico trazendo de volta meros convites para competições fraternas, que beneficiem os homens em suas igrejas e comunidades. Organize um torneio beneficente de algum esporte, monte um time de futebol ou crie uma liga esportiva na igreja. À medida que esses grupos forem integrados por homens envolvidos em uma comunidade movida pela competição saudável, você estará proporcionando a eles uma chance de colocar em prática algo melhor do que aquilo que as apostas esportivas online oferecem.

3. Fale profeticamente sobre vícios que são considerados respeitáveis ​​e “divertidos”.

Uma razão pela qual a igreja permanece em suspeito silêncio sobre jogos de azar é por eles não serem um dos nossos “vícios cruéis”. Não sentimos a mesma pressão para abordar as apostas que sentimos para abordar os vários tipos de gula ou a preguiça ou a amargura — por estes serem vícios de abdicação. Quando chega ao ponto de pecado, é algo próximo a um “pecado por omissão”. A gula consiste em abdicar do autocontrole, a preguiça consiste em abdicar de trabalhar e a amargura consiste em reter o perdão; já a aposta pode muitas vezes se tornar uma renúncia à mordomia.

Temos de considerar que a santificação inclui não só amadurecer para deixarmos de fazer aquilo que não deveríamos [fazer], mas também trabalhar para fazer aquilo que preferiríamos não fazer.

Como o Livro de Oração Comum confessa: “Deus misericordioso, confessamos que pecamos contra ti em pensamento, palavra e ação, pelo que fizemos e pelo que deixamos de fazer.”

O jogo de apostas, em suas piores formas, é deixar de exercer a mordomia. É “deixar de cuidar” daquilo que Deus confiou a nossas mãos.

4. Ajude as pessoas a verem que o sistema que permite a “indulgência inofensiva” em relação a uma pessoa é o mesmo que permite a exploração escravizante em relação a outra.

O cálculo dos apostadores e das empresas de jogos de azar é oferecer a ilusão de oportunidade, para que eles possam, eventualmente, tirar tudo dos participantes. Para alguns, perder 1.000 dólares no Super Bowl pode ser uma perda insignificante. Mas o mesmo sistema que permite a alguns essa brincadeira inofensiva tirará os últimos 100 dólares que um viciado em jogo deveria usar para suas compras de supermercado.

Existimos no contexto de comunidades. A busca por sabedoria e retidão frequentemente significará abrir mão de nossas liberdades de nos entregarmos a atividades que não são prejudiciais para nós, especificamente porque prejudicam e atrapalham os mais fracos entre nós.

5. Diga a seus líderes municipais, estaduais e nacionais que você não quer viver em lugares em que o vício é apoiado pelo Estado.

Mesmo que você não esteja convencido da imoralidade e do disparate dos jogos, é fato que o jogo gera força centrífuga para o vício. A prostituição, o tráfico e a venda de drogas ilícitas, bem como seu uso abusivo, e a violência são atividades que surgem a partir de centros de apostas. Onde quer que seja permitido que as apostas cresçam sem controle, a erva daninha da iniquidade crescerá de forma abundante.

Se realmente devemos “buscar a paz e a prosperidade da cidade” (Jeremias 29.7), então, devemos nos opor a que em solo fértil sejam cultivadas coisas que são obviamente perversas, malignas e desumanizantes. O jogo de apostas pode estar em uma zona cinzenta [e mais complexa] do ponto de vista ético, mas serve como um solo propício para vícios cuja pecaminosidade é flagrante e simples.

Para aqueles que possam acreditar que isso não passa de um moralismo do passado, e que estão convencidos de que esse mesmo tipo de raciocínio já foi invocado para reclamar de os “jovens dançarem” nas igrejas tradicionais da nossa juventude, eu digo: “Vocês podem estar certos”.

Mas eu, por exemplo, acho que poderíamos tirar mais proveito da moralização do evangelho nestes dias imorais em que vivemos. Continuo não convencido de que seja bom para nós fazermos de conta que questões da nossa vida cívica de caráter público, econômico e cultural estão melhores sem os princípios das Escrituras para guiá-las.

Se você estiver inclinado a discordar de mim, então, acho que tudo o que tenho a dizer é “que a sorte esteja sempre a seu favor”.

Kyle Worley é pastor na Mosaic Church em Richardson, Texas, e apresentador do podcast Knowing Faith [Conhecendo a Fé], com Jen Wilkin e J. T. English. Ele é o autor de Home with God: Our Union with Christ [Em casa com Deus: Nossa união com Cristo] e Formed For Fellowship [Formado para a comunhão].

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Ideas

24 preceitos para estas eleições (e todas as outras)

Sobre discordância, fidelidade, tolerância e votos.

Christianity Today October 1, 2024
Ilustração de Elizabeth Kaye / Source Images: Getty

Este artigo foi adaptado para ser contextualizado à realidade brasileira.

Estamos, mais uma vez, na temporada de eleições. Ficamos com o estômago embrulhado. As intenções de voto oscilam. Os debates entre candidatos esquentam.

E quanto à igreja? Muitos de nós também estamos tremendo: de medo, de raiva, de antecipação pelo que quer que esteja reservado para nós nos centros políticos do país — e em nossas próprias casas e templos.

Algumas semanas atrás, um colega meu aqui na CT escreveu um artigo sobre política, e a reação que teve online foi furiosa. As reações nas redes sociais cruzaram todas as linhas da prudência que aprendemos em Provérbios, e teriam feito Martinho Lutero corar.

E os comentários não vieram de bots de redes sociais, de máquinas programadas para automatizar a desumanidade. Muitos dos nomes nos comentários são conhecidos. Eles não são computadores, não; eles são cristãos. São pessoas como nós.

Quando digo “nós”, não quero dizer que você, pessoalmente, está criticando alguém nas mídias sociais; sei que eu não estou. Em vez disso, quero dizer que os preceitos que proponho a seguir não são — nem podem ser, se pretendemos que sirvam para alguma coisa — reflexões e orientações que dirigimos com altivez para aquelas pessoas lá, para aqueles cristãos que nos envergonham, nos frustram e nos confundem.

A maneira de atravessarmos este próximo mês e os meses que vierem com a mais vaga semelhança que seja de amor e de unidade cristãos é copiando a atitude de Paulo em 1Timóteo: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior” (1.15). E não basta só dizer isso, é preciso realmente acreditar no que dizemos.

Por isso, gostaria de sugerir estes 24 preceitos para um ano de eleições:

  1. A oposição de um cristão ao candidato X não implica que ele apoie o candidato Y. Não implica esse apoio nem de forma prática, nem por inferência. Insistir no contrário, refutando os protestos de seu irmão em Cristo, é fomentar a discórdia e a calúnia.
  2. Você pode criticar a visão política de um colega cristão sem questionar a fé dele, e vocês dois devem ser capazes de ouvir as discordâncias um do outro.
  3. Sua crítica à posição política de um colega cristão pode muito bem incluir lembrá-lo de compromissos e obrigações de sua fé.
  4. Sua crítica à posição política de um colega cristão pode nunca persuadi-lo [a mudar]. Em caso de impasse político com um irmão em Cristo, a tolerância e a graça mútuas geralmente são um caminho melhor do que a discussão contínua. Será que não existem coisas melhores que vocês dois poderiam fazer com seu tempo?
  5. Há uma linha na posição política de um cristão que, se cruzada, justifica que se lancem dúvidas sobre sua profissão de fé. Essa linha pode não estar onde nós supomos que esteja.
  6. Essa linha pode até mesmo ser diferente para diferentes cristãos em diferentes épocas, lugares e estágios do processo de santificação, pois Deus não trata todos os nossos pecados, erros e fraquezas de uma só vez.
  7. Alguns de nós podem precisar de mais coragem para expressar suas convicções, especialmente quando fazem parte de uma minoria religiosa, política ou cultural em suas igrejas e comunidades mais amplas.
  8. Mas, nesta cultura impetuosa e precipitada em que vivemos, o mais provável é que a maioria de nós precise de tolerância e graça para com aqueles que supomos serem menos preparados do ponto de vista espiritual, moral, da inteligência ou menos informados do que nós.
  9. Tolerância não é complacência. Graça não é condescendência.
  10. Tolerância e a graça também não são indecisão e covardia.
  11. Lembre-se de 1João 4.20: “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar o seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê.”
  12. Discordâncias políticas duradouras entre cristãos não são, por si só, evidências de pecado, de falta de fé ou de qualquer outro fator disfuncional. Cristãos sensatos ​​e fiéis podem, de boa fé, chegar a conclusões diferentes. Todos eles podem ter uma sólida base bíblica para suas opiniões; todos eles podem buscar o bem comum; todos eles podem buscar amar seus próximos; e todos eles podem discordar [entre si].
  13. Cristãos sensatos ​​e fiéis podem decidir considerar seriamente apenas candidatos viáveis.
  14. Cristãos sensatos ​​e fiéis podem decidir que a viabilidade é menos importante do que o alinhamento ético e político.
  15. Cristãos sensatos ​​e fiéis podem decidir votar em branco ou anular o voto: “Não confieis em príncipes, nem em filhos de homens, em quem não há salvação” (Salmo 146.3, KJV).
  16. Ter esperança é uma virtude cristã; iludir-se não.
  17. A sabedoria é um chamado cristão; o cinismo não é sábio.
  18. Seu voto não pertence a nenhum candidato. Nem mesmo se você acredita que tem o dever de votar. Ainda que você faça parte de um partido específico.
  19. Com algumas exceções, o voto em eleições municipais e estaduais — especialmente para vereadores, prefeitos, deputados e governadores — terá efeitos mais frequentes e tangíveis em sua vida e na de seus vizinhos do que os votos para presidente.
  20. Esta provavelmente não é a eleição mais importante da sua vida. E se for a eleição mais importante da sua vida, você não conseguirá saber isso em tempo real. Você só será capaz de fazer essa avaliação com lucidez daqui a 5, 10 ou 20 anos, mas não tem como saber isso agora.
  21. Seu voto não chega às mãos dos candidatos com uma nota explicativa. Os candidatos não sabem que você estava em conflito ou que votou de forma estratégica para mudar os rumos do partido adversário. Eles só sabem que venceram com o apoio de milhares ou milhões de cidadãos, e agirão em nome desses eleitores — ou seja, em seu nome.
  22. O que você faz na privacidade da cabine de votação é problema seu e pode ser mantido em segredo. Mas se você se sentir hesitante ou envergonhado em relação a compartilhar como votou, pergunte a si mesmo porque está se sentindo assim.
  23. No geral, seu voto individual tem importância ínfima para determinar o resultado de uma eleição ou o futuro do país. No entanto, pode ser que tenha uma importância espiritual substancial para você.
  24. “Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Romanos 8.38-39)

Bonnie Kristian é a diretora editorial de ideias e livros da Christianity Today.

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News

Teólogos de Lausanne explicam a Declaração de Seul, que surpreendeu delegados do Congresso

Líderes do Grupo de Trabalho de Teologia, com 33 membros, oferecem insights sobre sua declaração de 97 pontos e 13.000 palavras.

Ivor Poobalan, diretor do Seminário Teológico Colombo, e Victor Nakah, diretor internacional da "Mission to the World' da África-subsaariana, atuaram como copresidentes do comitê de redação da Declaração de Seul

Christianity Today September 27, 2024
Photography by Morgan Lee

A decisão do Movimento de Lausanne de lançar uma declaração teológica com 97 pontos e 13.000 palavras, no dia de abertura de quarto congresso mundial, desencadeou uma semana de debates e conversas.

O tratado de sete partes, que afirma posições teológicas sobre o evangelho, a Bíblia, a igreja, a “pessoa humana”, o discipulado, a “família das nações” e tecnologia, foi publicado online pouco antes do início do evento, na noite de domingo.

A Declaração de Seul “foi elaborada para preencher algumas lacunas, para ser um complemento em sete tópicos-chave sobre os quais não pensamos o suficiente, ou não refletimos ou não escrevemos o bastante dentro do Movimento de Lausanne”, disse David Bennett, diretor-associado global de Lausanne, na tarde de domingo, quando se encontrou com a mídia para explicar a visão e o propósito da declaração.

“Não estávamos tentando criar um quarto documento que substituiria ou tornaria obsoletos aqueles três documentos anteriores”, ele acrescentou.

Os organizadores do congresso também explicaram, em uma coletiva de imprensa, na segunda-feira, que esta era a versão final do texto.

No entanto, dois dias depois, o Christian Daily International relatou que, após a divulgação do documento, uma seção que aborda a homossexualidade havia sido alterada. Essas edições deveriam ter sido feitas antes da publicação da Declaração de Seul, disse um porta-voz de Lausanne, na terça-feira.

Na quinta-feira, em resposta à divulgação da declaração, Ed Stetzer, diretor regional de Lausanne para a América do Norte, veio a público insistir para que a organização “declarasse enfaticamente que o evangelismo é ‘central’, ‘uma prioridade’ e ‘indispensável’ para a nossa missão”. Enquanto isso, na manhã de sexta-feira, 235 delegados assinaram uma carta aberta, organizada pelo grupo Korean Evangelicals Embracing Integral Mission, pedindo ao Lausanne Theology Working Group (LTWG, Grupo de Trabalho de Teologia, do Movimento de Lausanne), o órgão que compôs a Declaração de Seul, para revê-la e revisá-la, dedicando atenção especial a 10 pontos específicos.

Até a noite de quinta-feira, nenhum líder de Lausanne se pronunciou de palco [no próprio congresso], oferecendo uma explicação mais aprofundada da Declaração de Seul, ou do motivo pelo qual o documento foi finalizado antes do congresso — uma ação que surpreendeu aqueles que, com base em congressos anteriores, haviam antecipado um documento ainda aberto à revisão, com base no feedback dos delegados.

Na manhã de sexta-feira, Mike du Toit, diretor de comunicações e conteúdo de Lausanne, enviou um e-mail em massa aos delegados, explicando que a Declaração de Seul “foca em certos tópicos teológicos que o Grupo de Trabalho de Teologia, do Movimento de Lausanne, identificou como questões que necessitavam de maior atenção por parte da igreja global, e [o documento] reflete sobre esses tópicos com base no evangelho, a história bíblica que vivemos e contamos.”

“Reconhecemos que, ao apresentar a Declaração de Seul, deveríamos ter sido mais claros em explicar seu propósito e a maneira como os participantes são convidados a se envolver com ela”, ele escreveu. O e-mail também colocou um link que direciona para um formulário de feedback.

O e-mail de Du Toit também observou que os delegados seriam convidados a assinar um documento chamado Compromisso de Ação Colaborativa, durante a sessão de encerramento de sábado, e que esse documento não estava relacionado à Declaração de Seul.

Mais tarde, na mesma manhã, Philip Ryken, presidente do Wheaton College e palestrante de plenária, mencionou a Declaração de Seul e encorajou os delegados a fornecerem feedback.

Enquanto isso, a CT ouviu de dezenas de delegados — cuja compreensão do propósito da declaração diverge daquela apresentada por Bennett, em suas coletivas de imprensa no domingo e na segunda-feira — que eles estavam confusos e frustrados pela falta de canais formais para feedback.

O processo que redundou na Declaração de Seul começou no final de 2022, quando o conselho de Lausanne escolheu como copresidentes de um comitê de redação Ivor Poobalan, do Sri Lanka, diretor do Seminário Teológico de Colombo, e Victor Nakah, do Zimbábue, diretor internacional para a África Subsaariana junto à Mission to the World. Poobalan e Nakah trabalharam com 33 teólogos da África do Sul, Índia, Etiópia, Noruega, Vietnã, Japão, Coreia do Sul, Estados Unidos, Reino Unido, Brasil, Austrália, Nova Zelândia, Irã, Palestina, Suécia, Cingapura e Zâmbia.

“Não estamos surpresos com as discussões geradas”, disse Nakah. “Afinal de contas, é um documento teológico, e os tópicos desta declaração são questões reais.”

Poobalan e Nakah se encontraram com Morgan Lee, editora-chefe global da CT, para falar sobre a Declaração de Seul, na tarde de quinta-feira.

Esta entrevista foi editada por motivos de extensão e clareza.

Como foi articulada essa tarefa de elaborar a Declaração de Seul?

Poobalan: Nós nos perguntamos: precisamos de outra declaração? Não havia a menor necessidade de escrevermos um documento simplesmente porque o Congresso deveria produzir um documento. Os documentos de Lausanne que já temos são excelentes por si só.

Mas a liderança de Lausanne sentiu que, à medida que o cristianismo global cresce em novos lugares, há uma nova geração de cristãos que não está ciente do Pacto de Lausanne, do Compromisso da Cidade do Cabo ou do Manifesto de Manila e, talvez, não esteja muito interessada em resgatá-los. Em vez disso, eles estão preocupados com questões atuais.

Por exemplo, a antropologia só se tornou uma grande questão no século 21, e, nos últimos anos, adquiriu proporções ainda maiores. Por isso, era importante que falássemos sobre algumas dessas questões. Não estamos substituindo os documentos anteriores, mas estamos tentando encontrar maneiras de agregar mais valor ao que Lausanne representa, fornecendo algumas diretrizes específicas que ajudarão a igreja global a navegar por questões difíceis.

Qual foi o processo de criação da declaração?

Poobalan: Ao longo desses 50 anos, já falamos sobre a autoridade, a infalibilidade e a utilidade das Escrituras, mas não abordamos realmente como interpretá-las. Nosso propósito era abordar questões que foram um tanto negligenciadas ou estiveram sob pressão, como o grande desafio do discipulado ou a questão do que significa ser humano. Foi assim que chegamos a esses sete assuntos, embora muitos outros pudessem ter sido abordados.

Nakah: Para aqueles que se perguntam por que começamos de novo pelo evangelho, foi porque agora existem muitos “evangelhos” diferentes em circulação. Se os evangélicos não chegarem a um acordo sobre a maneira de ler, estudar e interpretar as Escrituras, como encontraremos respostas para as questões que a igreja enfrenta hoje? Se não atentarmos para a hermenêutica, o que nos resta, então, é apenas o evangelho segundo Ivor ou segundo Victor.

Por que a declaração foi finalizada antes do Congresso?

Poobalan: Porque são possíveis diferentes abordagens. O Pacto de Lausanne foi finalizado durante o Congresso. Na Cidade do Cabo, não havia um documento final quando o Congresso terminou; ele saiu muito depois, mas houve uma escuta na Cidade do Cabo, e, então, a equipe usou essas informações para completar o documento mais tarde.

Assumimos a postura de que poderíamos concluir este documento, apresentá-lo no Congresso e ter uma ideia das discussões [geradas]. Não decidimos o que faremos em consequência disso, mas discutiremos a reação juntos, como liderança de Lausanne, e veremos como faremos a partir daí.

Nakah: A maneira como as pessoas reagiram ao documento nos dá um retrato mais preciso da diversidade teológica do mundo evangélico global. Mas toda essa discussão que foi gerada é um bom feedback.

Quer isso tenha sido certo ou errado, o documento não foi concebido para ser algo que apresentamos, obtemos um feedback e depois refinamos. Se quiséssemos fazer isso, teríamos feito. É por isso que esse feedback se justifica. Ninguém apresenta um documento teológico e vê todo mundo bater palmas para ele.

Ouvi críticas sobre a falta de canais formais para feedback. Isso não impediu alguns delegados de darem seu feedback. Mas, se esse feedback influenciar alguma mudança, posso imaginar outros delegados se sentindo frustrados por não ter havido uma maneira mais formal de dar suas opiniões.

Poobalan: Acho que amanhã [27 de setembro], isso será abordado, e acredito que as pessoas terão a oportunidade de dar seu feedback. Esse feedback, evidentemente, viria de qualquer maneira, e, uma vez que você o formaliza, então, gera uma expectativa sobre o que se fará com o feedback, e é com isso que o conselho de Lausanne se debaterá.

Nakah: Somos muito gratos ao conselho por ter aceitado este documento e, então, ter prosseguido a partir daí. Mas, no final das contas, o documento é de Lausanne [não nosso]. É preciso que a liderança do movimento explique suas diretrizes de como seguir em frente.

Provavelmente não há outras declarações teológicas em circulação cujo processo tenha sido liderado por teólogos do Zimbábue e do Sri Lanka. Como a formação e o contexto de cada um de vocês podem ter influenciado esta declaração?

Poobalan: Fiquei surpreso quando Victor e eu fomos convidados para compartilhar a presidência do TWG, porque este grupo desempenha um papel crítico e sempre teve líderes provenientes do mundo ocidental. A ousada disposição do conselho de pensar diferente e convidar dois copresidentes do Sul Global foi surpreendente, mas também incentivadora e encorajadora. Em contrapartida, queríamos garantir que o documento não se tornasse apenas uma questão do Sul Global.

Com esse fim, ao montar nossa equipe, procuramos pessoas que pudessem representar diferentes partes da igreja. Muitos desses 33 teólogos são bem conhecidos, mas formaram um grupo incrível, que colaborava entre si.

Em toda reunião com eles, eu tinha dois sentimentos: um senso de que havia na sala uma grande expertise e a mais pura humildade.

Nakah: Houve outros momentos neste processo em que percebemos que precisávamos de expertise. Em mais de uma ocasião, percebemos que faltava alguém, e tivemos que entrar em contato com pessoas que tinham feito pesquisas naquela área, porque sabíamos que não éramos especialistas no assunto. Acabamos trabalhando com pessoas que são muito mais preparadas do que nós e muito mais espertas também. Foi uma alegria.

Você pode apontar uma ou duas seções da Declaração de Seul que realmente evidenciam a presença do Sul Global neste documento?

Nakah: Como sabemos, a África se tornou um terreno fértil para o evangelho da prosperidade. À luz disso, a seção sobre o evangelho foi importante, porque há uma impressão de que podemos falar de muitos evangelhos no continente africano. Queríamos estruturar o documento de tal forma que qualquer um que o leia saia com uma compreensão do evangelho que seja revigorante e desafiadora.

O segundo grande desafio para a igreja do mundo majoritário atualmente é o discipulado. Alguns teólogos africanos ainda resistem, quando a igreja na África é descrita como uma igreja extensa, difundida, mas pouco profunda. Contudo, essa ainda é a realidade.

Então, se há uma seção mais crítica para a caminhada da igreja africana daqui para frente, é esta. Esperamos que ela desafie os líderes eclesiásticos e paraeclesiásticos a levar o discipulado a sério.

Poobalan: Este documento fala sobre a questão da antropologia teológica. Na igreja, há um senso de confusão sobre o que significa ser um ser humano redimido. Algumas pessoas às vezes reivindicam para a pessoa humana redimida um status divino ou um poder que vai além do que a Bíblia oferece.

Mas, também na área de gênero e sexualidade, às vezes o Sul Global se pergunta: “Por que o cristianismo está falando apenas a partir da perspectiva do Norte Global?” Nesse sentido, falar sobre sexualidade e gênero foi importante para esclarecer que nossas convicções não são meras reações ao que está acontecendo no Ocidente, mas expressam a posição bíblica.

Consequentemente, há uma seção inteira que trata do que as Escrituras ensinam sobre sexualidade e gênero. Há um pouco mais de exposição bíblica nela, pois a igreja global tem necessidade de clareza sobre o que as Escrituras ensinam.

Além disso, a seção “família das nações” fala sobre a importância da paz e o que significa ser uma nação, tanto no sentido bíblico quanto no moderno. Por exemplo, podemos simplesmente equiparar nomes históricos de povos e países, sem um contexto? [Nota do editor: veja a Seção 84 da Declaração de Seul.] Estamos tentando abordar situações atuais, nas quais os cristãos às vezes encontram uma base teológica para posições particulares, quando abordam uma guerra ou um conflito.

E, ainda assim, às vezes há contradições em nossa abordagem. Os cristãos podem às vezes denunciar toda forma de violência contra civis, mas, em outras vezes, podem encontrar razões teológicas para justificá-la.

Estou ciente de que alguns delegados de Lausanne, por causa do contexto de seu país e daqueles a quem ministram, acharam as seções sobre questões LGBT muito brandas ou muito rígidas.

Nakah: Para o grupo que trabalhou nesta seção, sentimos que a hermenêutica era um bom ponto de partida. Então, começamos pela pergunta: “O que a Bíblia ensina?” Em nosso grupo, havia consenso sobre o que a Bíblia dizia, e as discordâncias eram todas relacionadas à aplicação a contextos da vida real.

Para aqueles líderes que acham que nossa abordagem foi um pouco branda, eu perguntaria: É bíblico insultar gays e lésbicas? Se voltamos às Escrituras, a Bíblia nos ajuda a entender que Deus ama os pecadores. E isso é totalmente diferente de uma posição cultural que os rebaixa.

Como vocês escolheram quais conflitos mencionar pelo nome, na seção “família das nações”?

Poobalan: Reconhecemos que nem todo conflito poderia ser mencionado, porque esse não era o ponto. Alguns conflitos foram tratados com base na medida em que o país avançou, como a África do Sul, o Sri Lanka ou a Irlanda do Norte. Os exemplos de conflitos atuais servem como pontos de referência para discutir a posição bíblica sobre o conflito e onde os cristãos devem se posicionar. Entendemos quando as pessoas ficam sensíveis e tristes porque um conflito específico que vivenciaram não é mencionado.

Com relação a Gaza e Israel, essa situação é única, porque a igreja está fortemente dividida, com base em sua teologia sobre Israel.

De certa forma, gostaríamos de ver a igreja global colocar essa questão sobre a mesa e dizer: “Vamos conversar sobre isso. Qual é a teologia bíblica real sobre Israel? Como isso se encaixa em nossa compreensão da igreja” (que discutimos no terceiro capítulo da declaração)? É importante discutir detalhes da Declaração de Seul, mas realmente gostaríamos que a igreja voltasse a perguntar: “De onde vem a nossa base teológica?”

Esperamos muito que este trabalho incentive a igreja a se engajar em diálogos. Isso não será fácil, porque, no momento, há muita emoção envolvida, mas esperamos que a igreja assuma essa tarefa, pois é doloroso que ela fique polarizada nessa questão com base na teologia.

Se eu sou um delegado que lê a Declaração de Seul e concorda com grande parte dela, mas não com tudo, ainda devo sentir que posso fazer parte do Movimento de Lausanne?

Nakah: Volto à questão do que une os evangélicos. Quais são os fundamentos ou bases essenciais ​​da fé cristã que não são negociáveis?

Quando se trata de questões atuais, a maioria dos evangélicos não entende muito bem a avassaladora diversidade do corpo evangélico global. Se alguém decidir se está dentro ou fora do Movimento de Lausanne com base nesta declaração, isso é lamentável.

Poobalan: É ingênuo pensar que todos os evangélicos, mesmo os que são de um mesmo país, concordarão em tudo. Mas praticamos essa disciplina da amizade, da camaradagem, e reconhecemos que os fundamentos da fé não devem ser comprometidos.

Até mesmo John Stott e Billy Graham, os fundadores do Movimento de Lausanne, discordavam em certos aspectos, mas puderam permanecer amigos. Eles se aproximaram. Da mesma forma, neste Congresso, nossa ideia de colaboração não se baseia em todos nós pensarmos de forma idêntica. A colaboração envolve uma disposição de estender a mão a outros que tenham as mesmas convicções fundamentais.

O que você quer que as pessoas saibam sobre a maneira como esta declaração discute o evangelismo?

Poobalan: A declaração é muito clara quanto ao evangelismo ser absolutamente importante. Estamos trabalhando para nos afastar de velhas dicotomias que separam a mensagem que proclamamos das vidas que vivemos. Ao longo da declaração, há muitas referências à importância da proclamação verbal; contudo, a proclamação verbal feita por pessoas que não demonstram a realidade do que proclamam acabará por minar a verdade da mensagem.

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