Quando a Mídia se Torna o ‘Príncipe do Poder do Ar’

Para se libertar da desinformação e da opressão sistêmica é preciso discipular uma nação.

Christianity Today July 10, 2024
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Unsplash / Pexels

Nas Filipinas, meu país de origem, as fake news se espalham rapidamente — não apenas pelas redes sociais, mas também através da comunicação boca a boca propagada pelas “Marites”, termo em tagalo [um dos principais idiomas falados nas Filipinas] que descreve pessoas fofoqueiras.

Essa palavra é uma junção de “mare”, que significa “madrinha” e também pode se referir a grupos de amigos do bairro, com a palavra em inglês “latest” (última). Basicamente, ela expressa a ideia de “Mare, qual é a última novidade?” E assim a fofoca se espalha com rapidez, especialmente em comunidades urbanas densamente povoadas e pobres.

A tecnologia acelerou e expandiu a disseminação da desinformação para muito além do que as redes de amigos tagarelas jamais poderiam alcançar. Este fenômeno não se limita aos Estados Unidos e ao Ocidente em geral, mas também afeta países com mídia controlada ou influenciada pelo governo.

Analistas afirmam que parte da razão pela qual Ferdinand Marcos Jr. e seus aliados voltaram ao poder foi por sua habilidade em usar amplamente as redes sociais digitais para ressignificar as narrativas sobre nossa experiência de autoritarismo durante o governo de seu pai.

Cristãos ao redor do mundo têm lamentado, e com razão, a disseminação de fake news em suas comunidades, a prevalência de teorias da conspiração e o ceticismo em relação à possibilidade de se saber a verdade. Nós que vivemos no Mundo Maioritário [termo hoje usado para designar o que antes era conhecido como “Terceiro Mundo” ou, mais recentemente, como Sul Global, e que abrange África, Ásia e América Latina] também somos sensíveis a outra dimensão desse fenômeno: somos mais propensos a perceber a realidade espiritual que está por trás disso.

Discernimos como o poder demoníaco pode se alojar e se enraizar nas tecnologias da mídia — em uma nossa versão contemporânea do que Paulo denomina “príncipe do poder do ar”, em Efésios 2.2.

A linguagem utilizada por Paulo para se referir a “tronos ou soberanias, poderes ou autoridades”, em Colossenses 1.16, sugere que o poder demoníaco se manifesta não apenas em personalidades, mas também em forças sub-humanas — em estruturas e instituições — que escravizam ou oprimem as pessoas.

A falsidade frequentemente anda de mãos dadas com a opressão, diz o profeta Jeremias. Quando a verdade é suprimida da esfera pública, “opressão sobre opressão, falsidade sobre falsidade” crescem (Jeremias 9.6, ESV). Aqueles que abrem a boca para contar mentiras não se cansam de fazer o mal.

O Estado e outras instituições poderosas têm o poder de enganar multidões através da mídia e das redes sociais. Não é por acaso que a primeira coisa que os déspotas fazem para consolidar o poder é amordaçar a imprensa.

Em uma era de desinformação em massa, os cristãos devem lutar pela verdade. Enfrentamos o “príncipe do poder do ar” quando articulamos, de forma persuasiva, as normas de Deus para a sociedade, na esfera pública.

Construindo uma “comunidade hermenêutica”

Participar da vida política e social de um país não significa apenas eleger cristãos para cargos públicos ou conquistar posições de poder para promover nossos valores e nossa agenda, como faz a Direita religiosa nos Estados Unidos e em outros países. Significa criar um ambiente social e intelectual que defenda a força moral dos valores cristãos e sirva de modelo para o comportamento na esfera pública.

Como escreveu T. S. Eliot:

O que os governantes acreditam é menos importante do que as crenças às quais eles são obrigados a se conformar [cuja forma eles são obrigados a assumir]. E um estadista cético ou indiferente, que trabalha com um referencial cristão, poderia ser mais eficaz do que um estadista cristão devoto que fosse obrigado a se conformar a uma estrutura secular. […] O que primordialmente importa não é o cristianismo dos estadistas, mas o fato de eles estarem confinados, pelas tradições e pelo temperamento do povo que governam, a uma estrutura cristã dentro da qual possam realizar o que ambicionam.

Como criar esse ambiente?

Em primeiro lugar, construindo intencionalmente o que chamo de “comunidade hermenêutica”, formada por aqueles que, como a tribo de Issacar (1Crônicas 12.32), conheciam bem o tempo em que viviam e eram capazes de dar orientações sobre como influenciar e impactar a sociedade de forma eficaz.

Testemunhar, no sentido paulino do termo, é “levar cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo” (2Coríntios 10.5). Infelizmente, esse mandato missional tem sido negligenciado em favor de um grande esforço dedicado a proclamações superficiais do evangelho, às quais muitas vezes chamamos de “evangelismo”. Ensinamos os crentes a usar a Bíblia para questões como a salvação, mas não os ensinamos a como aplicar todo o conselho de Deus aos diversos problemas que enfrentamos diariamente.

Reconheço que o tipo de educação que capacita pessoas para se envolverem na esfera pública exige uma atenção concentrada naquelas que possuam dons e expertise profissional apropriados, abrindo suas mentes para a relevância do evangelho em todas as áreas da vida. É hora de trazer para o centro da vida e do testemunho de nossa igreja os artistas e cientistas, aqueles que tenham dons capazes de se comunicar de forma criativa com o mundo exterior.

A importância de uma comunidade hermenêutica como essa se tornou evidente para mim no auge da luta contra o regime autoritário do ex-presidente filipino Ferdinand Marcos. Alguns líderes evangélicos nas Filipinas criticavam constantemente minha organização, o Instituto de Estudos da Igreja e da Cultura Asiática (ISACC), por fazer parte do movimento de resistência contra a continuidade do governo de Marcos.

O ISACC é uma pequena comunidade de cientistas sociais, profissionais da área de desenvolvimento comunitário,escritores, artistas e alguns pastores e teólogos. Estávamos convencidos de que os resultados das eleições antecipadas de 1986, que proclamaram a vitória de Marcos, eram fraudulentos. Ele não tinha mais o direito de governar nosso país.

Organizamos um protesto em colaboração com outros movimentos. Na época, líderes evangélicos o rotularam como “rebelião”, e ficavam citando o texto de Romanos 13.1-7, que fala sobre a submissão às autoridades governantes.

Todavia, nossa interpretação do que estava acontecendo na época era bastante diferente. Para nós, o texto relevante para aquele momento não era Romanos 13, como a maioria dos evangélicos acreditava, mas sim Apocalipse 13. Há momentos em que o Estado deixa de ser um servo e assume a forma de uma besta (Apocalipse 13.5-8), e, por isso, deve ser enfrentado.

Prevaleceu a leitura que fizemos tanto da época quanto do texto que era pertinente.

Após a Revolução do Poder Popular de 1986, alguns líderes da igreja começaram a perguntar: “Como o ISACC parece estar sintonizado com os anseios do nosso povo, e nós não?”

Para não perdermos as pistas que a história nos dá, é crucial formarmos uma geração de líderes, de cabeças pensantes, que sejam capazes de interpretar os sinais dos tempos com perspicácia e aplicar os ensinamentos das Escrituras, de forma criativa, na análise e no enfrentamento das questões polêmicas da época em que vivemos.

Discipulando nações

Em segundo lugar, para criar esse ambiente social e intelectual que defenda a força moral dos valores cristãos e sirva de modelo para o comportamento na esfera pública, somos instruídos a discipular nações, não apenas indivíduos. Devemos criar dentro da nossa cultura novos sistemas de afirmação da vida.

Isso não se limita à criação de estruturas paralelas rotuladas como “cristãs”, tais quais uma “mídia cristã” ou “escolas cristãs”. Devemos nos engajar ativamente em nossa cultura e em nossas instituições. Analisamos criticamente nossos costumes e tradições, e os voltamos para Cristo e os valores do Reino.

O forte clamor que levantamos contra Marcos pode ter ocorrido há 37 anos, mas continuamos a lutar contra bestas igualmente sinistras nos dias atuais.

Por exemplo, há um ressurgimento do autoritarismo em muitos países, nos quais se supunha que a democracia tivesse sido restaurada. O culto ao caudilho ou ao mítico líder forte persiste.

Parte da razão para isso é a falta de congruência entre os valores operantes na cultura e as estruturas de governança estabelecidas. Como o sociólogo guatemalteco Bernardo Arevalo afirma: “Temos o hardware da democracia, mas o software do autoritarismo”.

A mudança requer um “software” de valores que sustentem o “hardware” das estruturas e instituições que colocamos em prática.

A criação de padrões culturais de sustentação que farão com que nossos sistemas funcionem exige que discipulemos a nação toda. O processo começa com a transformação interna dos indivíduos, mas não termina aí. Essa mudança deve resultar nas “boas obras, as quais Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos” (Efésios 2.10), que depois se espalham por toda a sociedade em geral.

O renomado missiólogo e historiador Andrew Walls, ao analisar a transição do judaísmo para a enculturação de formas do pensamento grego que ocorreu no cristianismo, explica como a Bíblia interage com as culturas e transforma o tecido social das nações:

A Palavra deve penetrar em todas essas formas distintas de pensamento, essas redes de afinidade, essas maneiras específicas de fazer as coisas, que conferem a uma nação seu aspecto comum, sua coesão, sua identidade. [A Palavra] precisa percorrer os processos mentais e morais compartilhados por uma comunidade.

Ao proclamarmos a Palavra de Deus na esfera pública, libertamos as pessoas das “fortalezas” mentais descritas por Paulo em 2Coríntios 10.4. Nesse sentido que Paulo confere à palavra, essas fortalezas não se referem apenas a domínios de poderes espirituais exteriores, mas sim à rede [interior] de mentiras que trazemos na mente e que moldam a consciência da sociedade e mantêm nossas culturas sob escravidão.

Testemunhar envolve a destruição das barreiras intelectuais que impedem a fé em Cristo. Significa propagar a Palavra de Deus e fazer “cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo” (2Coríntios 10.5).

Infelizmente, reduzimos nosso testemunho a fórmulas pré-fabricadas do evangelho, acreditando que elas serão eficazes em qualquer cultura. Essa abordagem superficial não toca o coração e a mente das pessoas de forma genuína. Também é lamentável o fato de que todos nós que aprendemos teologias desenvolvidas no Ocidente tenhamos uma tendência a negligenciar a natureza cultural e encarnacional do nosso testemunho.

Um trabalho transformador

Hoje em dia, a pobreza massiva causou a erosão dos valores do povo filipino. A pressão econômica faz com que nossos burocratas abram mão da integridade e transforma nossos trabalhadores em mão-de-obra estrangeira que se dispõe a ser contrabandistas e entregadores de drogas em terras remotas. No idioma tagalo, chamamos a isso de kapit sa patalim, uma referência à forma como as pessoas agarram com avidez a lâmina de uma faca afiada — mesmo cortando a própria mão — apenas para aproveitar oportunidades para sobreviver.

Mas a mudança pode acontecer e pode se espalhar através das estruturas que organizam a nossa vida em comum, da mesma forma que a igreja primitiva, através da sua prática e de seu testemunho sob perseguição, rompeu as barreiras de classe, raça e gênero, vindo finalmente a rasgar o tecido social da sociedade greco-romana, uma civilização que se sustentava nas costas de escravos.

A batalha pela alma de um povo começa com a mente. As pessoas seguem o “príncipe do poder do ar” até que a Palavra as alcance. E, à medida que o evangelho penetra e transforma nossos modelos mentais de como o mundo funciona, as comunidades são capacitadas a avançar rumo a novos padrões culturais.

Melba Padilla Maggay é escritora e antropóloga social. Ela atua como presidente da Miqueias Global e já foi presidente do Instituto de Estudos da Igreja e da Cultura Asiática.

“Speaking Out” é uma coluna da Christianity Today que expressa a opinião de pessoas convidadas e (ao contrário de um editorial) não necessariamente representa a opinião da revista.

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