Por que não devemos praticar liturgias “à la carte”

Retirar tradições históricas de seu contexto teológico está na moda, mas é problemático.

Christianity Today August 18, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / Peter Dazeley / Getty

Se você dissesse a um pastor evangélico, em 2005, que o Livro de Oração Comum poderia em pouco tempo estar mais na moda do que abrir cafés no saguão das igrejas, ele certamente teria rido.

Não faz muito tempo que inúmeras igrejas evangélicas abandonaram o uso de livros de orações e trocaram seus hinários por projetores de alta resolução. O uso do calendário eclesiástico histórico para a ordem do culto tornou-se uma raridade, pois a maioria das igrejas começou a desenvolver séries temáticas de sermões ou a pregar a Bíblia um livro por vez.

A oração litúrgica e a confissão em formato de chamamento e resposta caíram no esquecimento, e até os nomes das igrejas mudaram, de modo a distanciar as congregações de suas raízes denominacionais — uma vez que muitas Igrejas Batistas de “tal cidade” se tornaram Comunidade Cristã Manancial ou algo parecido.

Em suma, os ritmos, as leituras, os padrões e as orações das liturgias históricas caíram de moda, decididamente.

Nos últimos anos, no entanto, uma nova tendência começou a surgir. Qualquer um que passe algum tempo entre cristãos na faixa dos 20 aos 30 anos provavelmente notou um grande aumento no uso da palavra liturgia, algo que se tornou comum tanto na adoração coletiva quanto na prática espiritual privada.

Mesmo algumas igrejas não denominacionais, que buscaram se distanciar das tradições formais há uma década ou mais, começaram consistentemente a encerrar o culto com a Doxologia ou a adotar o uso de simples e antigas fórmulas de chamamento e resposta, como “Esta é a Palavra do Senhor. Graças a Deus.”

Muitos jovens cristãos estão encontrando vitalidade e constância espirituais onde menos esperavam, e há muito o que comemorar neste resgate de belas orações e práticas de nossos antepassados na fé.

Esta tendência, no entanto, não está isenta de inconvenientes. À medida que a liturgia volta abstratamente a estar “em voga”, jovens cristãos têm demonstrado uma tendência preocupante de mudarem de igreja, de denominação ou mesmo de tradições com base na prática litúrgica, sem levar muito em consideração a doutrina.

Em vários casos, jovens evangélicos vindos de um contexto de Baixa igreja (ou seja, formados em igrejas que dão pouca ênfase a rituais e sacramentos) estão migrando para congregações cuja estética de culto parece mais antiga ou ordenada — em especial, igrejas anglicanas, católicas e ortodoxas — sem se dar conta de suas diferenças confessionais ou, em alguns casos, simplesmente ignorando-as.

De acordo com um estudo do Barna Group, realizado em 2018, embora alguns cristãos da geração dos millennials sintam que o culto litúrgico está desatualizado, “eles também são mais propensos a se mostrarem curiosos em relação a isso… [e] [são] os mais propensos a mudarem de uma igreja não litúrgica para outra litúrgica”.

Na busca bem-intencionada por uma vida de culto mais rica e por um senso de herança espiritual, esses “convertidos estéticos”, se podemos chamá-los assim, correm o risco de separar o conteúdo histórico e doutrinário do culto de uma igreja de suas expressões externas e artísticas.

É claro que um membro da igreja não precisa concordar com todos os pontos doutrinários de menor imprtãncia que constam da declaração de fé da igreja — e em muitos casos, o apreço pela liturgia é apenas o primeiro passo na consideração cuidadosa tanto do ensino quanto das práticas de uma igreja ou de uma tradição.

Michael Bird, proeminente estudioso do Novo Testamento, relatou sua própria jornada para o anglicanismo em termos semelhantes. Ele disse que foi uma profunda apreciação pelo Livro de Oração Comum que desencadeou sua mudança do presbiterianismo para a igreja anglicana.

Não há nada de errado em permitir que o alimento espiritual da liturgia histórica nos leve a uma busca sincera de Deus — desde que seja combinado com uma busca diligente pela verdade bíblica. Essa busca tanto pode nos levar a uma nova tradição quanto pode simplesmente nos levar a nos aprofundar no culto histórico da nossa própria tradição.

Um batista, por exemplo, pode usar e apreciar o Livro de Oração Comum sem se converter ao anglicanismo — especialmente se pontos mais sutis do ensino anglicano estiverem em desacordo com algumas de suas outras convicções. Mas, talvez, sua apreciação por sua tradição histórica possa levá-lo a cavar fundo na história batista e a encontrar exemplos dentro dessa corrente.

Por exemplo, o livro Gathering Together, de Rodney Kennedy e Derek Hatch, defende que os batistas podem e devem explorar tanto o legado de sua própria tradição quanto as contribuições de outras tradições, para lidar com o que eles chamam de “a relativa escassez de recursos relacionados à prática do culto, para os batistas nos Estados Unidos”.

Em contrapartida, alguém que sempre foi pentecostal pode ser atraído pelo senso de tradição e continuidade histórica da igreja ortodoxa oriental. Essa pessoa pode explorar seus ensinamentos — em toda a sua profundidade doutrinária e litúrgica — e, finalmente, com base nisso, optar por se tornar ortodoxa.

Winfield Bevins argumentou, em seu livro Ever Ancient, Ever New: The Allure of Liturgy for a New Generation, que essas migrações sinceras e refletidas retratam uma contranarrativa esperançosa para a costumeira tendência de jovens que simplesmente estão deixando a igreja para trás.

Mas o que deve ser evitado, a meu ver, é migrar de uma tradição para outra exclusivamente por causa de suas expressões externas, sem considerar o cerne de sua doutrina. A estética da adoração, por exemplo, é uma coisa boa e vital — mas não deve ser exaltada acima da substância dessa adoração nem deve obscurecê-la.

Se, por estar na moda, a liturgia puder separar as práticas de adoração da teologia que as embasa, há um risco muito real de baratear a liturgia e de enfraquecer sua utilidade espiritual. A suspeita do protestantismo histórico em relação à liturgia, a despeito de todos os seus efeitos colaterais negativos, tem raízes bem-intencionadas em sua resposta à religiosidade ritualística espiritualmente morta que predominava na Idade Média.

Até a igreja católica moderna reconhece esse perigo. Em 2019, o Papa Francisco alertou um grupo de cardeais sobre os perigos de uma liturgia do tipo “faça você mesmo”, e chamou a liturgia de “um tesouro vivo que não pode se reduzir a gostos, fórmulas e modas […] , não [é] ‘o campo do faça-você-mesmo’, mas sim a epifania da comunhão eclesial”.

Quando a prática litúrgica pessoal não está unida ao discipulado holístico e ao envolvimento consistente em uma comunidade autêntica de outros seguidores sérios de Cristo, ela pode rapidamente se tornar pouco mais do que uma forma habitual de se automedicar.

A liturgia à la carte pode oferecer uma sensação de consistência em um mundo caótico — e talvez seja levemente benéfica, do ponto de vista da saúde mental —, mas, como forma de realmente “praticar a presença de Deus”, logo perde sua utilidade e se torna tristemente diluída.

Permita-me fazer alguns breves esclarecimentos, antes de oferecer algumas potenciais soluções.

Primeiro, isso não deve ser interpretado como algum tipo de postura defensiva contra igrejas com formas de culto mais litúrgicas. O cerne da questão não é a “conversão” intracristã, mas o perigo de divorciar a doutrina dos rituais devocionais. Líderes da igreja de ambos os lados da divisão litúrgica — em outras palavras, das igrejas que perdem membros e das que ganham membros [em função disso] — devem ser igualmente cautelosos com essa tendência.

Em segundo lugar, advertir contra [essa tendência de] separar a liturgia de sua substância não significa, de forma alguma, sugerir que expressões congregacionais, litúrgicas ou não, sejam meramente um revestimento estético para a teologia proposicional. Pelo contrário, é precisamente porque práticas autênticas de oração e de adoração são tão centrais para a fé cristã que devemos preservar a unidade e a integridade entre liturgia e teologia.

De fato, quando bem compreendida e praticada, a liturgia é uma espécie de teologia — na medida em que é um exercício de verdadeiro culto e comunhão com Deus. Essa unidade deve ser defendida contra a erosão acidental, a qual ocorre quando adoradores bem-intencionados de perfil explorador negligenciam a reflexão sobre o significado e o sentido de certas orações ou práticas.

Com essa preocupação em mente, para onde devemos ir, a partir daqui?

Acredito que devamos ter como objetivo reunir uma liturgia rica e ritmada com a profundidade da verdade bíblica e a reflexão teológica que a inspirou. O Livro de Oração Comum é poderoso e belo precisamente porque é fundamentado de forma cuidadosa nas palavras das Escrituras e nas convicções teológicas de reformadores ingleses como Thomas Cranmer.

O renascimento atual do culto litúrgico — que é, em muitos aspectos, uma redescoberta das práticas espirituais de culto adotadas ao longo da história da igreja — deve ser acompanhado por nossa redescoberta da rica história doutrinária e teológica das respectivas denominações e tradições em que essas práticas surgiram.

Em seu livro Theological Retrieval for Evangelicals, Gavin Ortlund, teólogo histórico e pastor batista, afirma que “podemos e devemos fortalecer a vitalidade do protestantismo evangélico refletindo sobre nossa identidade histórica com maior escrutínio e autopercepção, e fazendo teologia com um engajamento mais autoconsciente com os clássicos credos, confissões e textos teológicos da igreja”.

Para este fim, exorto as igrejas e os cristãos a escavarem sua herança! Seja você presbiteriano ou pentecostal, cristão ortodoxo ou metodista, sua igreja está enraizada em uma tradição de crentes fiéis, que vieram antes de você e lançaram as bases para sua comunidade de discípulos. Em vez de cortar o galho em que você está sentado, distanciando-se dos rótulos denominacionais, faça o que puder para aprender sua história.

Assim como Paulo instruiu os coríntios a imitá-lo como ele imitava a Cristo, você também pode encontrar exemplos de imitação fiel de Cristo na história de sua igreja e de sua tradição.

Pesquise os credos, confissões e catecismos que moldaram a teologia da sua igreja. Identifique as orações, os hinos e outras formas de adoração que surgiram de sua tradição. Eles podem não ser todos do seu gosto, mas pelo menos podem orientar você com precisão sobre o seu lugar nessa tapeçaria da provisão graciosa que é a história da igreja de Cristo.

Para aqueles que ocupam posições de liderança em nossas igrejas, ofereço mais uma sugestão: Ensinem a história de sua igreja aos membros! É provável que muitos de seus congregados não saibam quase nada sobre a história específica de sua igreja e sobre o legado denominacional mais amplo. Pode ser que os jovens crentes se sintam historicamente desancorados, não porque sua igreja careça de uma rica história, mas apenas porque ninguém jamais a compartilhou com eles!

À medida que a próxima geração de cristãos redescobrir as orações e os louvores de nossos antecessores, vamos reintroduzir a nós mesmos e a nossas igrejas em nossa história eclesiástica — com toda a sua diversidade e complexidade.

Deus permita que um amor renovado por nossos próprios legados litúrgicos possa se mostrar uma tendência muito mais frutífera do que a de abrir cafés nas igrejas — e é provável que deixe bem menos manchas no tapete do santuário.

Benjamin Vincent é pastor de jovens e de jovens adultos na Journey of Faith Bellflower, em Bellflower, Califórnia (CA), e professor de história e teologia na Pacifica Christian High School, em Newport Beach, CA.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Books
Excerpt

Para colocarmos a armadura de Deus, precisamos primeiro tirar a nossa

Teresa de Lisieux nos ensina a ter uma fé como a de uma criança e a parar de esconder nossas vulnerabilidades.

Christianity Today August 18, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / Jonny Gios / Unsplash

Tenho uma Bíblia que me acompanha desde a juventude; eu a comprei quando estava no ensino médio. Sublinhei vários versículos durante aqueles anos de formação da adolescência. Folheando suas páginas agora, vejo um fio comum que liga as passagens que destaquei. Elas são predominantemente “chamados à ação”, seções instrutivas que mapeavam para mim uma maneira identificável de sentir que eu estava fazendo o suficiente para satisfazer a Deus.

Uma das minhas maiores ansiedades recorrentes é a possibilidade de que, de alguma forma, eu não esteja levando meu pecado suficientemente a sério. Isso soa ultraespiritual, mas é algo mais motivado pelo medo do que pela piedade. Revejo não apenas minhas ações, mas toda a minha agenda interna, e chego à mesma conclusão de Jeremias: O coração é uma bagunça complicada (Jeremias 17.9). Sondo minha mente em busca de qualquer resquício de transgressões que possam precisar ser confessadas e erradicadas, apenas para descobrir novas camadas de distorções por baixo. Levantar a tampa da minha alma é como olhar para um caldeirão de horrores sem fundo.

Nunca me ocorreu, em meio a toda essa purificação da alma, que talvez parte do que Deus deseja para mim é que eu me livre da aversão por mim mesmo e da crueldade que tenta se fazer passar por um desejo de me tornar mais parecido com ele. A própria autoadmoestação, que equiparo à santidade, está na verdade distorcendo minha percepção de Deus.

Trilhar esse caminho de assumir “total responsabilidade” pelo meu pecado só me leva ao desespero, pois percebo que o problema que há em mim é mais profundo e penetrante do que consigo começar a tratar (“Embora eu queira fazer o bem, o mal está logo ali comigo” — Romanos 7.21). Sou incapaz de discernir com segurança minhas verdadeiras motivações. Quanto mais disseco minhas confissões, menos adequadas elas parecem, e mais para baixo me empurram nesse poço sem fundo da introspecção.

Minhas tentativas de assumir plenamente meu pecado acabam competindo com minha capacidade de aceitar o que Cristo fez por mim. Ele foi para a cruz precisamente porque somos todos incapazes de assumir total responsabilidade por nosso próprio pecado.

Martinho Lutero abordou a falácia desse pensamento: “Esta atitude brota de uma falsa concepção de pecado, a concepção de que o pecado é um assunto de pouca importância, facilmente resolvido por boas obras; de que devemos nos apresentar a Deus com uma boa consciência; de que, antes de sentir que Cristo foi entregue por nossos pecados, devemos primeiro nos livrar da sensação de pecado”.

A alternativa para ser responsável não é ser irresponsável — é confiar a responsabilidade a Deus, da mesma forma que uma criança confia os cuidados de si mesma a um pai.

Ian Osborn, no seu livro em que explora o TOC e a fé, conta a história de Teresa de Lisieux. Teresa nasceu no final do século 19. Ela era tão plenamente religiosa quanto alguém pode ser. Foi educada em uma escola beneditina, e depois se tornou uma freira carmelita. As carmelitas mantêm um estilo de vida muito rigoroso, orando por horas a fio, todos os dias, suportando condições muito ascéticas e observando completo silêncio por longos períodos. Se já houve alguém que foi um exemplo de trabalho diligente para colocar a própria armadura, essa pessoa foi Teresa.

Apesar de sua devoção, dúvidas e medos incontroláveis ​​a assombravam. Ela tentou realizar atos severos de autopunição, para combater o que lhe passava na mente, mas o esforço não trouxe consolo à sua consciência.

Incapaz de encontrar qualquer método que aliviasse seu sofrimento mental, Teresa concluiu que precisava de uma forma fundamentalmente diferente de abordar a Deus. Depois de muito orar e refletir sobre as Escrituras, ela desenvolveu o que veio a chamar de “pequeno caminho”.

Este consistia em um afastamento radical do rígido moralismo de seu tempo. Ela se concentrou em todos os versículos que retratam Deus cuidando dos pequenos e dos humildes — como Mateus 18.3: “Digo-lhes a verdade: a menos que vocês mudem e se tornem como criancinhas, nunca entrarão no reino dos céus”.

Teresa concluiu que a principal coisa que Deus pedia a ela era que se lembrasse de sua própria pequenez. Em vez de cultivar a autossuficiência, ela procurou adotar a atitude de uma criança que depende do pai para tudo.

Teresa de LisieuxIllustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons
Teresa de Lisieux

A princípio, o “pequeno caminho” soa como algo que vai contra tudo o que os jovens cristãos aprendem sobre o discipulado saudável. As Escrituras nos advertem a “crescer em tudo” e a não sermos “crianças […] jogados para cá e para lá” (Efésios 4.14-15). Afinal, onde a maturidade entrará em jogo, se continuarmos pequenos?

O objetivo de Teresa não era nos encorajar a ficarmos presos em algum tipo de desenvolvimento atrofiado, mas sim a permanecermos em um estado de total dependência. Em vez de trabalhar duro para superar a necessidade de mais graça, abraçamos nossa confiança perpétua nela.

O que vem a ser essa ideia de continuarmos pequenos? A autora Pia Mellody identificou cinco características essenciais que descrevem o estado natural das crianças:

Valiosas: Toda criança tem valor inerente.

Vulneráveis: As crianças precisam de cuidados e proteção.

Imperfeitas: Aprender e cometer erros são parte do crescimento.

Dependentes: As crianças não devem precisar se defender sozinhas.

Imaturas: As expectativas precisam ser apropriadas para a idade.

Todas essas características traduzem igualmente bem a descrição de como é viver como filhos de Deus. Acreditamos que temos grande valor para ele? Podemos reconhecer e aceitar nossa vulnerabilidade? Conseguiríamos admitir nossa imperfeição? Que tal escolher contar com Deus, em vez de tentar ardentemente estar à altura? Será que somos capazes de demonstrar graça em relação a nós mesmos, sabendo que nossa fé está se desenvolvendo e ainda não vemos o que nos tornaremos?

Foi C. S. Lewis quem disse: “Quando me tornei homem, deixei de lado as coisas de criança, entre elas o medo da infantilidade e o desejo de ser muito adulto”.

Maturidade espiritual nunca significa independência. Deus não nos chama para contar com nossa própria autoproteção. Em vez disso, ele nos oferece algo completamente diferente. Isaías nos diz isso:

O Senhor olhou e ficou descontente por não haver justiça. Ele viu que não havia ninguém, ficou horrorizado por não haver ninguém para intervir; assim seu próprio braço lhe trouxe salvação e sua própria justiça o sustentou. Ele vestiu a justiça como sua couraça e o capacete da salvação em sua cabeça. (Isaías 59.15-17)

Aqui, a armadura de Deus é usada por ninguém menos do que o próprio Deus. Ele a veste para trazer a salvação que ninguém mais poderia fazer acontecer. Isso é resgate. É poderoso. É rápido e seguro. A armadura representa que Deus age em nosso favor.

Essa maneira de ver muda tudo. Significa que, quando colocamos (ou incorporamos) a armadura de Deus, não estamos simplesmente pegando um recurso que ele colocou à nossa disposição para desenvolver nossa própria justiça. Estamos deixando Deus nos capacitar com aquilo que ele fez por nós. Estamos optando por continuarmos pequenos e confiarmos apenas em seus esforços para nos defender.

Quando estou com o modo de autopreservação ativado, tenho várias opções que acesso regularmente. Eu as chamo de “minha armadura”, a qual é composta do cinto da negação, da couraça do humor, de pés prontos para um plano de fuga, do escudo do perfeccionismo, do capacete da evitação e da espada da culpa. Minha armadura tem muitos elementos adicionais que Deus não oferece, como as ombreiras da ilusão, a máscara para agradar as pessoas e as caneleiras da distração.

Psicólogos chamariam esses componentes de mecanismos de defesa — maneiras de nos protegermos da dor causada por emoções difíceis. Em tempos de trauma, eles se mostram incrivelmente valiosos. Os mecanismos de defesa são uma medida de segurança e de alívio, dada por Deus quando o mundo está insuportável.

Nós os conquistamos quando ainda somos muito jovens, e eles ficam tão arraigados em nossas reações que são quase instintivos. Uma ameaça aparece e imediatamente nossos mecanismos estão lá, prontos para enfrentá-la.

Com o tempo, porém, eles vão além de sua utilidade. Começamos a viver permanentemente com estes mecanismos de defesa acionados. Eles começam a moldar nossas escolhas, independentemente da situação. É nesse momento que eles se tornam armaduras, como uma segunda pele que nunca trocamos. O humor, que servia para quebrar a tensão durante uma discussão, agora atrapalha quando alguém tenta se aproximar. O “lugar feliz”, que existe em sua mente e o fez atravessar uma crise, logo toma conta de todos os seus pensamentos e torna a vida real ainda mais miserável. O perfeccionismo, que lhe trouxe recompensa por algum trabalho bem feito, transforma-se em um capataz implacável e diário.

Se eu for usar a armadura de Deus, primeiro preciso tirar a minha armadura. Não posso segurar o escudo do perfeccionismo e o escudo da fé ao mesmo tempo. O cinto da verdade não vai servir, se eu estiver envolto em negação.

Tenho tentado usar as duas coisas, de modo a complementar a armadura de Deus com uma segunda camada de proteção. Pensei que ajudaria; em vez disso, porém, está apenas atrapalhando. É preciso desaprender padrões que se tornaram uma segunda natureza.

Voltar ao “pequeno caminho” de Teresa, “continuar pequeno” requer que, um gesto de confiança, deixemos de lado os sistemas de defesa que adotamos para nos sentirmos seguros e evitarmos sentimentos avassaladores. E requer que entreguemos a responsabilidade pelo nosso bem-estar de volta a Deus, nosso bom e amoroso Pai.

Assim que tomei consciência de todos esses mecanismos que estava usando, comecei a persegui-los com força total. Remover a minha armadura tornou-se minha missão e ela consumia tudo. Isso rapidamente me levou a um ponto de autoaversão, pois descobri o quão forte eu havia cingido essa minha armadura em volta de mim, e como era difícil me desvencilhar dela. Fiquei muito frustrado e envergonhado pela minha falta de progresso. A ansiedade em tentar mudar se intensificou. Senti a enorme responsabilidade de consertar a mim mesmo e não consegui.

Mas, talvez, em vez de me fechar, eu pudesse convidar Deus para me ajudar a fazer algumas perguntas. O que estava gerando meus medos? O que estava causando tanto pânico em mim mesmo? Se eu pudesse identificar e cuidar desses pontos, meus mecanismos de autoproteção poderiam começar a se desfazer por conta própria. Minha mente e meu corpo não precisariam mais estar em alerta máximo e constante, pois a ameaça percebida não seria mais tão ameaçadora.

Tudo exige tempo. Um amigo meu, que luta contra o alcoolismo, certa vez descreveu a jornada para a recuperação como “10 passos para frente, 10 passos para trás”. Não podemos apressar algo que é um processo para a vida inteira.

Assim, nossa necessidade de ajuda para mudar torna-se mais uma oportunidade de continuarmos pequenos. Podemos confiar a Deus a obra de nos transformar, deixando Jesus substituir nossa armadura invertida e às avessas por suas vestes de louvor.

J. D. Peabody é escritor e pastor sênior da New Day Church, em Federal Way,Washington. Este artigo é uma tradução da adaptação da obra Perfectly Suited: The Armor of God for the Anxious Mind, de J. D. Peabody. © Aspire Press, uma divisão da Tyndale Publishing House (2022).

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History

Vamos falar sobre raça como filhos de Deus, e não como construtores de Babel

Em Cristo, podemos lidar até mesmo com as conversas mais difíceis sem desrespeitar o outro.

Christianity Today August 12, 2022
Illustration by Mallory Rentsch

Quase sempre, quando as pessoas pedem para se envolver em diálogos há muito tempo necessários e evitados sobre injustiça racial, elas lamentam a forma como isso se desenrola na prática. As vozes dos que falam mais alto e não têm disposição de perdoar enchem a arena, enquanto outras ficam à margem, seja por temerem dizer a coisa errada ou porque o problema todo parece muito incômodo ou difícil de lidar.

Talking about Race: Gospel Hope for Hard Conversations

Talking about Race: Gospel Hope for Hard Conversations

Zondervan

240 pages

$8.41

Não tem que ser assim, diz Isaac Adams, especialmente entre aqueles que se chamam irmãos e irmãs em Cristo. Em Talking about race: Gospel hope for hard conversations , Adams, pastor da Capitol Hill Baptist Church, em Washington, D.C., oferece orientação bíblica e pastoral sobre como falar (e ouvir) a verdade sobre raça em amor. Timothy Muehlhoff, professor de comunicação da Biola University e codiretor do Projeto Winsome Conviction, da Biola, conversou com Adams sobre os segredos para diálogos sobre raça que exaltem a Cristo.

Ao explicar sua motivação para escrever o livro, você afirma: “No início , eu estava decidido a escrever um livro diferente [deste], um livro que desse orientação bíblica e prática sobre por onde os cristãos poderiam começar a combater o racismo”. O que mudou?

Enquanto preparava a proposta do livro, não sabia que surgiria a notícia sobre a morte de Ahmaud Arbery. Isso me fez pensar: Como vamos falar sobre o assassinato dele? Se entendêssemos o problema menor, ou seja, a comunicação disfuncional entre as linhas raciais, entenderíamos o problema bem maior, a saber, o conflito racial que há tanto tempo divide nossas igrejas, nossas comunidades e nossa nação. O livro é, em certo sentido, uma teologia do discurso aplicada ao tema da raça.

Quando olho para o título da sua obra, Talking About Race, posso imaginar muitas pessoas pensando:Não quero falar sobre raça. Isso não leva a lugar nenhum. Vamos acabar sendo feridos e ficando ainda mais divididos. Mas, em seu prefácio, você escreve que entender o colapso da comunicação entre as divisões raciais e os danos resultantes desse problema é não só importante como fundamental para seguir a Jesus. Por quê?

É fundamental porque isso está no cerne do que Cristo fez. Cristo morreu para transformar judeus e gentios em um novo homem. Efésios 2.11-22 não poderia ser mais claro. No entanto, Satanás, desde o primeiro dia, tem procurado desfazer essa obra o máximo que pode. Ele tem interesse em mostrar que nosso discipulado é superficial e falso, encorajando-nos a odiarmos uns aos outros, a nos dividirmos e a ficarmos uns contra os outros. A oração de Jesus é impressionante: que “eles sejam um como nós somos um” (João 17.11). Por quê? “Para que o mundo creia que tu me enviaste” (v. 21). Portanto, há um testemunho evangelístico em jogo em nossa unidade cristã. Se você se preocupa com o evangelismo, precisa se preocupar com o racismo.

Aprecio o fato de você não ter medo de evocar a batalha espiritual. Afinal, era o foco de cerca de 20% de tudo o que Jesus tinha a dizer.

Existem forças demoníacas reais em jogo. Se tão-somente olharmos para o nível da depravação, demonstrado pela injustiça racial ao longo dos anos, acho que é de fato a explicação mais lógica. Se deixarmos de fora o reino espiritual, acho que não estaremos considerando com precisão todos os dados bíblicos que o Senhor nos forneceu. Se assim fizermos, reduziremos o problema a pessoas que não gostam de outras pessoas, ou meramente a carne contra carne.

Como professor de comunicação, estou interessado em suas decisões de comunicação. Na primeira metade do seu livro, você nos fornece seis personagens fictícios envolvidos em uma discussão sobre um caso imaginário de um homem negro de 22 anos que foi alvejado por tiros dados por policiais. Com tantos exemplos do mundo real que você poderia invocar, por que usou esse recurso literário?

Parábolas e histórias compunham uma boa parte do ministério de ensino de Jesus. As histórias permitem que você capte complexidades e áreas cinzentas da vida que vão além de nossas crenças ou ideologias políticas. As pessoas são muito mais do que suas perspectivas raciais. Para além dos rótulos, há toda uma pessoa que é profundamente complexa.

Vamos nos concentrar apenas em dois dos personagens. Um deles é Hunter, um homem branco que é membro de uma igreja e o melhor amigo de Darius, um homem negro que é diácono nessa igreja. Enquanto Hunter está preocupado com o tiroteio, Darius está consumindo-se por esse acontecimento e acha difícil até respirar, quando pensa nisso. Como uma pessoa branca, posso me reconhecer em Hunter, pois grande parte do meu privilégio é poder parar de pensar em questões ligadas à raça sempre que eu quiser.

Uma das razões pelas quais é tão difícil falar disso é porque, muitas vezes, meus irmãos e irmãs brancos podem considerar o assunto de maneira abstrata. Testamos ideias; nós as analisamos detidamente e as levamos ao limite, comparando-as com coisas que sabemos serem verdadeiras, o que nem sempre é ruim.

Mas quando você estiver falando com uma pessoa que não é branca, há uma grande chance de que esteja falando com alguém que não pensa em termos abstratos. Deixe-me contar uma anedota rápida. Quando contei à minha mãe que ia pastorear uma igreja em Birmingham, Alabama, ela recuou horrorizada. “Oh, Isaac, eu disse ao Senhor que nunca pisaria naquela cidade, depois do que eles fizeram com aquelas quatro meninas”. Para ela, Birmingham ainda é “Bombingham”, devido à trágica explosão de uma bomba, que ocorreu em 1963, na Igreja Batista da Sixteenth Street [explosão que fez parte de uma série de ataques, especialmente contra pessoas pretas, em retaliação ao Movimento dos Direitos Civis]. Minha mãe tem idade suficiente para ter sido uma daquelas garotas.

Para mim, porém, Birmingham é um lugar bastante acolhedor. Para minha mãe, não é assim. E para cuidar bem dela, preciso olhar não apenas para os meus próprios interesses, mas também para os dela.

Ao tratar do diálogo entre Hunter e Darius, você cita o escritor Lance Morrow: “O mais trágico obstáculo para uma conversa honesta sobre raça na América é o medo”. Hunter tem medo de violar uma lei não escrita que afirma que ele deve sempre ser o aprendiz e os negros sempre os mestres. “Ele sabia que se transgredisse essa lei não escrita”, você escreve, “tudo o que ele dissesse seria usado contra ele”. Para ser honesto, eu mesmo sinto essa tensão, esse medo de não poder entrar no diálogo sobre raça e oferecer minhas opiniões, observações ou até mesmo críticas, porque faço parte da maioria branca.

Eu tento deixar claro no livro que este sentimento é legítimo em certo nível. Certamente não estou dizendo aos brancos: “Sentem-se, calem a boca e ouçam”. No entanto, há momentos em que procurar ouvir e entender pode lhes fazer bem. Não digo isso porque os negros estejam sempre certos. Alerta de spoiler: nós não estamos. Nós também estamos destituídos da glória de Deus. No entanto, não podemos ignorar que as vozes negras foram marginalizadas por muito tempo. Reconhecer esse tipo de assimetria histórica deve ajudar a moldar o diálogo e, talvez, a promover o desejo de ouvir e entender.

O medo de Darius é que, caso ele queira dizer algo sobre o tiroteio, “ele [tem] que dizê-lo perfeitamente — isto é, ele [tem] que falar aquilo nos termos de Hunter”. Ele parece refletir uma objeção comum à civilidade como um conjunto de regras de conversação, criadas pela cultura dominante branca, para manter as perspectivas das minorias sob controle. Isso é meio que usado como uma técnica de silenciamento. Em outras palavras, “Não vamos nos emocionar demais. Não vamos nos irritar. Vamos manter tudo civilizado.”

Observe bem, tanto Hunter quanto Darius têm medos. O simples fato de admitir esses medos já faz algo pelo diálogo. Eu entendo o que as pessoas podem estar dizendo quando descrevem a civilidade como uma mera técnica da cultura da maioria branca. Mas tudo o que sei é que esta Bíblia na minha frente diz que “o servo do Senhor não deve ser briguento, mas deve ser amável para com todos” (2Timóteo 2.24). Não há asterisco que reduza esse “todos” a “todos que compartilhem de minhas simpatias políticas” ou “todos que estejam dentro do meu próprio grupo étnico”.

O fruto do Espírito não é tendencioso do ponto de vista racial. Todo o povo de Deus deve ser amoroso, paciente, bondoso, gentil e fiel. Não quero enquadrar essas coisas apenas em termos de dinâmica de poder ou de inserção cultural, porque a Bíblia transcende a cultura. Ela transcende o tempo. Deus queria que seu povo fosse gentil e amável no primeiro século, e ele quer a mesma coisa no século 21. E eu simplesmente não consigo escapar disso. É por isso que enfatizo, no livro, que a Palavra de Deus é lâmpada para nossos pés e luz para nosso caminho. Não é que eu não ache que estatísticas e análises culturais sejam úteis. Mas precisamos lembrar que existe uma autoridade maior.

Você pode pintar um quadro de como seria se perdêssemos o que você acabou de descrever? Como seria se as Escrituras não fossem mais nossa “Estrela do Norte”?

Não precisamos imaginar. Em sua misericórdia, Deus pinta esse quadro para nós repetidamente nas Escrituras. No final de Juízes, é dito que “cada um fazia como bem entendia” (21.25). Depois da Torre de Babel, Deus essencialmente diz: “Quer saber de uma coisa? Vocês todos não querem falar uns com os outros? Vão em frente. E deixem-me mostrar como será.” E é claro que parece uma verdadeira confusão e estão constantemente brigando uns com os outros.

Mas Cristo oferece uma alternativa. Não brigamos mais uns com os outros. Em vez disso, pegamos uns aos outros pela mão — ou pelo menos deveríamos fazer isso. Portanto, eu acho que Babel é uma imagem fantástica sobre como, com frequência, a conversa sobre raça se desenrola. Muitas vezes parece que estamos tentando construir algo juntos, e talvez até algo bom, mas não estamos respeitando o outro. Estamos falando línguas diferentes, estamos frustrados e estamos sob a condenação de Deus. É por isso que tantas pessoas dizem: “Sim, não quero nem falar sobre isso”.

O que eu adoro no seu livro é que você não nos deixa nessa situação. Você entra no diálogo como pastor e oferece conselhos para Hunter e Darius. Vamos começar com Hunter. Você sugere que algo que ajuda é entender que qualquer conversa sobre raça não se dá apenas entre duas pessoas e que devemos “pesar a história”, antes de dizer o que pensamos. Você pode falar mais sobre essas palavras?

Acho que irmãos e irmãs brancos podem involuntariamente — sem intenção maliciosa — abordar essas conversas como se elas estivessem ocorrendo apenas de um para o outro, entre mim e o amigo com quem estou conversando. Na realidade, muitas minorias as enxergam através de uma estrutura diferente. Elas entendem que isso não é só uma conversa entre mim e ti, entre duas pessoas, mas sim entre nossas diferentes comunidades. E estão perguntando como essas comunidades se trataram historicamente.

No livro, falo sobre como quando Darius vê o tiroteio, ele não está apenas pensando em Malachi Brewers, esse personagem fictício que foi morto. Ele está pensando em Walter Scott, em Eric Gardner, em Ahmaud Arbery, em George Floyd. Quando chegamos para essa conversa, estamos todos carregando pesos diferentes. E, se não tomarmos cuidado, podemos nos atrapalhar com esses pesos e deixá-los cair nos dedos dos nossos ouvintes e realmente causar algum dano, especialmente se estivermos ignorando o peso da história.

É por isso que quero encorajar os Hunters do mundo a tentarem pesar a história e pensar: se eu viesse dessa outra perspectiva e minha comunidade tivesse sido tratada assim, eu bancaria apenas o advogado do diabo? Bem, não, você teria uma postura muito diferente. Por exemplo, irmãos e irmãs brancos podem não pretender defender o racismo, mas quando criticam instantaneamente Martin Luther King Jr., parecem estar mais preocupados com King do que com o racismo ao qual ele se opunha.

O que você diz se aplica igualmente à crítica de uma pessoa branca ao Black Lives Matter (por atacar a família nuclear) ou à teoria crítica da raça (por ter raízes marxistas)?

Isso me lembra as palavras de dois ícones dos direitos civis. C. Herbert Oliver lamentou que “o mundo parece estar liderando o caminho na batalha contra os dogmas do racismo”, enquanto Martin Luther King Jr. dizia que, muitas vezes, a igreja tem sido “uma luz traseira […] em vez de um farol” nessa batalha. O que eles queriam dizer é que, muitas vezes, estamos apenas reagindo às coisas, em vez de abordá-las proativamente. E assim, quando irmãos e irmãs brancos fazem críticas ao Black Lives Matter (BLM) ou à teoria crítica da raça (TCR), eu posso ser o primeiro a dizer que essas são críticas legítimas. Mas aqui está a pergunta mais urgente: O que vamos fazer?

É muito fácil dizer que você é contra algo. Se você é contra a TCR, ótimo, mas como você está lidando com o racismo ou a injustiça racial? Como você está amando seu próximo? É muito mais fácil incendiar uma casa do que construir uma. É por isso que muitas vezes optamos pelo criticismo.

Você também menciona que Hunter deveria liderar com lamento. Você pode definir o lamento e explicar por que ele é importante nas conversas sobre raça?

O lamento é uma queixa a Deus em esperança. Estamos lamentando a realidade caída deste mundo e trazendo-a diante de Deus com esperança, dizendo: “Senhor, isso não está certo”. Quantas vezes vemos estas duas palavras nas Escrituras: Até quando? Às vezes é bom apenas descansar na dor. Acho que o lamento nos traz gentileza e humanidade, o que, por sua vez, pode gerar civilidade. O lamento pode ser maravilhosamente desarmante e poderosamente unificador.

Digamos que eu faça um esforço sincero para fazer tudo o que você recomenda — lembrar a dimensão comunitária das conversas raciais, pesar a história pertinente e começar com o lamento. Sendo assim, você está dizendo que é certo para mim, uma pessoa de maioria branca, intervir e não apenas ser empático, mas também oferecer críticas ou possíveis soluções?

Vou lhe dar a resposta pastoral: depende. Há momentos em que você só precisa sentar e ouvir. E isso vale para os dois lados. Não são apenas brancos ouvindo negros, mas também vice-versa. É a sabedoria de Eclesiastes: há “tempo de calar e tempo de falar” (3.7). Ou, como Paulo sugere, fale apenas “conforme a necessidade” (Efésios 4.29, ESV).

Então, suponhamos que você pesou a história. Você ouviu primeiro. Mas o tiroteio acabou de acontecer. E eu estou confuso. Estou com raiva. Estou triste. Você tem o direito de fazer sua crítica ou sua sugestão? Pode ser. Claro. Mas a vida cristã não consiste em fazer valer nossos direitos. Consiste em colocá-los em benefício dos outros. Então, repetindo as palavras de Efésios 4.29: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas somente aquela que for boa para a edificação, conforme a necessidade, para que conceda graça aos que a ouvem” (ESV). Portanto, essa é a lente; esse é o tipo de funil pelo qual você deseja passar sua palavra. Sua sugestão concederá graça a quem ouví-la? Se for conceder, fale. Se não for, cale-se.

Em contrapartida, digamos que já se passaram alguns meses desde o tiroteio. Eu sei que você tem muita instrução e muita sabedoria, então, pergunto: “Tim, o que você acha?” Ou digo: “Estou realmente lutando com isso”. E você diz: “Ei, cara, eu conheço essas dinâmicas. A realidade é que você e eu somos irmãos em Cristo. Posso apenas dar uma sugestão?” E eu respondo: “Sim, por favor, me ajude”. A conclusão é que, se vamos escalar esse monte Everest de conflitos raciais em nosso país, teremos que trabalhar juntos.

Parece que muito do que você está descrevendo se resume a agirmos com graça uns para com os outros, algo que soa tremendamente libertador. Mas serei transparente: não sinto essa graça quando falo de raça, principalmente para uma pessoa de cor. Muitas vezes sinto que vou dizer algo errado — que vou ser insensível, apesar das minhas melhores intenções. Acrescente a isso a possibilidade de eu dizer algo que possa vir a público e causar problemas. Como realmente agir com graça de modo a desobstruir essas conversas?

O ponto de partida é lembrar da graça que foi concedida a você. Embora seja verdade que sua comunidade não tem sido boa para a minha comunidade, preciso lembrar que não fui bom para Deus e, no entanto, ele me perdoou. Deus cancelou a dívida que eu tinha com Ele e a prendeu na cruz em Cristo.

A igreja deve ser um mundo diferente nesse sentido. As regras são diferentes. Consequentemente, eu realmente vou ouvi-lo. Não vou olhar para você apenas como um exemplar da sua etnia, como um homem branco privilegiado. Em vez disso, direi: “Esse é meu irmão em Cristo, antes de ser qualquer uma dessas coisas (se ele for alguma dessas coisas)”. É por isso que não podemos entrar nessa conversa com uma mentalidade de preto versus branco. Na realidade, esta é uma questão de cristão para cristão.

Vamos mudar para o conselho que você dá a Darius. Você diz que ele pode ficar bravo, mas não pode ser rude nem uma pessoa cheia de ódio. Você acrescenta que “os negros podem dizer coisas etnicamente odiosas, assim como os brancos, os hispânicos ou os coreanos também podem dizê-las”. Você pode falar mais sobre isso?

É claro que as pessoas devem ficar com raiva do racismo, mas devem ficar apenas com o tipo certo de raiva. Há uma razão pela qual Deus diz para que seus filhos se irem, mas “na sua ira, não pequem” (Efésios 4.26). David Powlison, o já falecido conselheiro cristão, apontava que Deus é a pessoa mais irada do universo. Se você pensar sobre isso, é realmente algo impressionante. Ele odeia o pecado. Ele odeia injustiça e opressão. E ele vê tudo isso. Por definição, então, ele deve ser a pessoa mais raivosa do universo, mas sua ira é sempre santa. É sempre justa. É sempre pura. Nossa raiva pode ser justa, mas muitas vezes rapidamente se transforma em uma raiva hipócrita.

Você também menciona a Darius que não há problema em deixar sua igreja predominantemente branca, se ele não confiar mais na liderança ou sentir que ela se tornou irremediavelmente politizada. Mas Paulo não disse que devemos suportar uns aos outros em amor e proteger a unidade a todo custo (Efésios 4.2-3)?

Sinto que há apenas duas opções hoje, com base em como os negros estão tratando uns aos outros: se você ficar em sua igreja predominantemente branca, você é considerado um negro visto como excessivamente obediente ou servil aos brancos.; se você sair, você é considerado um liberal do ponto de vista teológico. Acho que isso é coisa do diabo. Acredito que há razões melhores ou piores para entrar ou sair de uma igreja? Claro que acredito, e falo sobre todos esses motivos no livro. Mas, no final do dia, Jesus não ordenou que você estivesse na Primeira Igreja Batista de Tuscaloosa nem em qualquer outra. Ele ordenou que você fizesse parte de seu povo. E quer que você trabalhe pela unidade.

Achei que poderíamos encerrar esta entrevista com algo fácil… como o racismo estrutural! Honestamente, hesito até em brincar sobre isso com um irmão, pois no Projeto Winsome Conviction descobrimos que, em conversas sobre raça, no minuto em que surge o racismo sistêmico ou estrutural, isso acaba com a conversa. Como você definiria o racismo estrutural e como essa definição deve moldar nossas conversas?

Para mim, o racismo estrutural é um sistema injusto que contém leis, escritas e não escritas, tradições, procedimentos, hábitos formais e informais, e práticas culturais que favorecem indevidamente uma etnia ou uma raça. O racismo estrutural é algo tão insidioso porque pode existir independentemente das intenções individuais. Uma coisa que considero útil nessas conversas é encontrar um terreno comum. Por exemplo, vamos falar sobre a segregação de Jim Crow [série de leis que impunham a segregação racial]. Você chamaria isso de racismo estrutural?

Não encontrei ninguém que responda: “Não, não, não, não, isso não foi estrutural”. No entanto, alguém pode acrescentar rapidamente: “Bem, as placas que diziam “somente para brancos” foram retiradas, então, você não pode dizer que isso ainda exista”. Eu comparo as leis do racismo estrutural a fósforos acesos. O fósforo foi aceso sob a forma de políticas como a de bebedouros só para brancos. Hoje, o fósforo foi apagado. Essas leis estão fora dos códigos legais. Mas o que estou tentando lembrar às pessoas é que a casa ainda está pegando fogo. E a pergunta que nos assombra é: Será que nos acostumamos tanto a olhar para o fogo que isso não nos incomoda mais?

Hoje, muitas pessoas são rápidas em descartar o ideal da graciosidade, e há um apelo renovado por vozes e posturas proféticas. Quais são seus pensamentos sobre esta tendência?

Os profetas são ótimos. Todos somos chamados a falar profeticamente. Os pastores devem falar profeticamente. Portanto, sou grato pelos profetas, mas temo termos reduzido a tarefa profética meramente a confronto e condenação.

Esdras 5.2 fala que “os profetas de Deus” estavam “com” o povo de Deus, na volta do exílio, e “os ajudavam”. Os profetas forneciam consolo e esperança de uma restauração com Deus. Caso contrário, de que serve a condenação? É apenas uma espada nesse sentido. É apenas um martelo. Os verdadeiros profetas são os que dizem: “Receba este martelo para que vocês possam ter a esperança de estar bem com Deus e uns com os outros”.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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Books
Review

Existe uma alternativa saudável para o nacionalismo cristão?

A crítica de Paul Miller à idolatria política é convincente. Já a sua defesa da religião civil patriótica nem tanto.

Christianity Today August 8, 2022
Edits by Christianity Today / Source Images: Drew Angerer / Staff / Getty

“Se o ‘nacionalismo cristão’ é algo a se temer, eles estão mentindo para você”, disse a deputada Marjorie Taylor Greene (do Partido Republicano pelo estado da Geórgia) a seus apoiadores, em junho. “E eles estão mentindo para você de propósito, porque essa é exatamente a mudança de temperatura que está acontecendo nos Estados Unidos hoje, e eles não podem controlá-la.”

The Religion of American Greatness: What’s Wrong with Christian Nationalism

The Religion of American Greatness: What’s Wrong with Christian Nationalism

InterVarsity Press

304 pages

$25.65

Uma vez que o nacionalismo cristão triunfe, “ele acabará com os tiroteios nas escolas”, afirmou Greene. Isso reduzirá as taxas de criminalidade, porá um fim na “imoralidade sexual” , protegerá a inocência das crianças e as instruirá a desejarem um estilo de vida tradicional. E é esse movimento saudável de “cristãos e […] pessoas que amam seu país e querem cuidar dele” que os “mentirosos” na mídia estão ridicularizando.

Greene está certa em dois pontos: o nacionalismo cristão está cada vez mais visível na política americana [e também na de outros países, como o Brasil], e o movimento tem sido muito discutido na imprensa nos últimos dois anos, particularmente desde que os jornalistas começaram a analisar os símbolos cristãos e a linguagem cristã usados na tomada do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.

O restante do discurso de Greene deixa mais a desejar, embora sua ênfase na dominação cultural, no poder político e na proteção da própria tribo — tudo isso disfarçado sob um frágil verniz de cristianismo — soará familiar para qualquer leitor da obra The religion of American greatness: what’s wrong with Christian nationalism, de Paul D. Miller.

Miller é uma pessoa adequada para explicar por que o nacionalismo cristão, embora não seja “algo a se temer”, é certamente algo que os cristãos devem rejeitar. Ele é um veterano do Exército dos EUA, da CIA e do governo de George W. Bush — ou seja, alguém que conhece bem os ambientes patrióticos. Também é um estudioso, e atualmente trabalha como professor de relações internacionais na prestigiosa School of Foreign Service da Universidade de Georgetown, além de ser um evangélico de viés evangelical — conservador do ponto de vista teológico, que foi batizado em um rio, participou de uma cruzada de Billy Graham e tem uma especial predileção por Chick-fil-A [rede norte-americana de fast-food reconhecidamente cristã].

A deputada Greene retratou as críticas ao nacionalismo cristão como enganação ou inveja do poder crescente dos nacionalistas, mas a obra de Miller — The Religion of American Greatness — não é nem uma coisa, nem outra. Miller é implacável em sua avaliação do movimento, embora simpatize com sua base de adeptos. Ele produziu um recurso útil para seu público principal, composto por evangélicos instruídos — pastores, líderes de igreja, jornalistas, acadêmicos e “outros profissionais cristãos” — pessoas a quem ele imagina usando essa obra para interagirem de forma produtiva com seus congregados, seguidores e entes queridos. Quanto a esse objetivo principal, The religion of American greatness é uma obra eficaz e convincente, embora o argumento de Miller em favor de uma religião civil patriótica e do republicanismo cristão como alternativa ao nacionalismo não seja tão convincente nem bem desenvolvido.

Uma defesa contrária ao nacionalismo cristão

“O casamento do cristianismo com o nacionalismo americano”, pergunta Miller, “ é uma excentricidade perdoável sobre uma questão doutrinária sem importância, um adorável excesso de patriotismo e piedade?” Será que se trata, como diz Greene, simplesmente de cristãos e “pessoas que amam seu país e querem cuidar dele”?

“O ônus deste livro”, escreve Miller, é demonstrar que o nacionalismo cristão não é algo inócuo. É “mostrar que o nacionalismo é incoerente na teoria, iliberal na prática e, segundo temo, muitas vezes idólatra em nossos corações”. E, com relação a esses três objetivos, Miller consegue provar habilmente aquilo que afirma.

O livro começa com definições e com o autor usando a tática de advogado do diabo, investigando a natureza do nacionalismo em geral e sua variante cristã, americana e (em geral) especificamente composta por brancos. “O nacionalismo cristão não é um termo que abrange qualquer tipo de ativismo político cristão”, Miller tem o cuidado de observar. “A característica única do nacionalismo cristão é que ele define a América [ou qualquer outro país] como uma nação cristã e quer que o governo promova um modelo cultural anglo-protestante específico como a cultura oficial do país.” Para ser justo, Miller apresenta a defesa do nacionalismo cristão por meio de seus principais pensadores americanos e britânicos, entre eles Rich Lowry, da National Review, R. R. Reno, da First Things (leia aqui a crítica, em inglês, da CT ao livro de R.R. Reno), e Samuel Huntington, o falecido estudioso e autor de “O choque de civilizações”.

Esta investigação de um “tipo ideal” de nacionalismo cristão, conforme articulado por seus defensores mais sérios, será útil para os leitores que desejam ser capazes de “construir uma argumentação consistente” em relação ao movimento, identificar sua influência no embate político e articular por que esse tipo ideal e o cristianismo são, nas palavras de Miller, “religiões distintas, rivais, mutuamente excludentes. Elas fazem reivindicações fundamentalmente incomensuráveis ​​sobre a lealdade humana. Segundo esse tipo ideal, você pode ser um nacionalista cristão ou pode ser um cristão: não pode ser as duas coisas”.

No entanto, como Miller reconhece, a maioria dos nacionalistas cristãos na América não são do tipo ideal. A disputa por sua lealdade última é algo muito mais confuso. Seu nacionalismo é primordialmente um sentimento, “um vínculo intenso e profundo […[ entre igreja e nação que é experienciado de forma muito mais visceral do que intelectual ou teológica”, e o mais provável é que sua política seja “uma mistura inconsistente de nacionalismo, conservadorismo, cristianismo, republicanismo, libertarismo e muito mais”.

Para entender essa variante popular do nacionalismo cristão, os capítulos finais da obra de Miller sobre a direita religiosa e a interação do nacionalismo com as Escrituras talvez sejam os mais importantes do livro. Eles também são os mais ardentes e fascinantes, principalmente para leitores como eu, que se depararam com o nacionalismo cristão por anos sem saber nomeá-lo. Ler esta seção foi como rejuntar azulejos: eu tinha as peças maiores, e o livro preencheu tantas lacunas — resgatando o uso histórico de versículos-chave da Bíblia na política americana; descrevendo a divisão da elite de base do evangelicalismo dos EUA; criticando os movimentos hermenêuticos que apoiam a teologia dos Estados Unidos como Israel; e caracterizando a subcultura jacksoniana do nosso país.

Mas talvez o argumento mais forte de Miller, que perpassa grande parte do livro, seja sua afirmação de que o nacionalismo cristão é, na verdade, uma ideologia secular. Os pensadores que ele analisa falam de “protestantismo sem Deus” e da adequação do “monoteísmo ecumênico da América” como o suporte moral de seu projeto político-cultural. Seu interesse está nas “normas, valores e hábitos herdados do legado cristão da América” mais do que em uma fé cristã viva. Para o nacionalista cristão, portanto, o “ponto principal da santificação” torna-se salvaguardar a nação, e não “honrar a Deus, imitando seu caráter”. E a nação, por sua vez, torna-se o objeto de adoração do nacionalista. Embora a massa de nacionalistas cristãos possa não acreditar que corre o risco dessa idolatria, “um pouco de fermento leveda a massa toda” (Gálatas 5.9).

Se não o nacionalismo cristão, o que, então?

Logo no início, Miller diz esperar que este seja o primeiro livro de uma trilogia sobre nacionalismo cristão, progressismo e republicanismo cristão patriótico. Apesar desses planos, ele começa sua apologia em prol do patriotismo e do republicanismo como alternativa ao nacionalismo já nessa primeira obra. Infelizmente — e talvez porque isso requeira um tratamento extenso como o de um livro — esta parte é mais fraca do que o restante da obra. Destaco três pontos.

Primeiro, a linha que Miller traça entre a concepção de patriotismo (bom) e de nacionalismo (ruim) não é clara. A certa altura, ele diz que a diferença entre o engajamento político cristão adequado e o nacionalismo cristão “pode ser sutil”, talvez até externamente indistinguível, pois a diferença é “uma questão de nossa própria motivação interna”. Nesse sentido, Miller põe no mesmo patamar a rejeição ao nacionalismo cristão e uma concepção persistente dos Estados Unidos como nação. Por exemplo, ele argumenta que varrer para debaixo do tapete figuras históricas complicadas como Thomas Jefferson “é o mesmo que dizer que não há uma história de grandes feitos que nos une, nenhuma história compartilhada e, portanto, nenhuma nação” (ênfase minha).

É possível que Miller seja simplesmente impreciso em sua linguagem, usando “nação” como sinônimo de “país”, em vez de se ater à definição inicial de “nação”como um termo nacionalista, e, se for mesmo esse o caso, trata-se de um equívoco de edição, e não de pensamento. Mas Miller também promove a religião civil patriótica — não apenas uma adesão a valores como liberdade e justiça, mas a rituais culturais para “evocar lealdade emocional ao nosso país” como “o patriotismo do passado no 4 de julho”. E ele faz isso ao mesmo tempo em que condena a sacralização do secular e nega que “o governo dos EUA seja competente para sustentar, criar ou orquestrar um modelo cultural nacional comum para uma nação de 320 milhões de pessoas”.

Miller afirma que precisamos dessa religião civil porque “não podemos viver sem algum tipo de identidade de grupo”; porque “as pessoas devem ter algo para se orgulhar [e] se negarmos a elas a capacidade de se orgulhar de sua nação, elas simplesmente mudarão o locus de sua lealdade para um subgrupo, como seu grupo étnico ou racial”; e porque “não podemos prescindir de histórias nacionais. […] Para vencer o nacionalismo, precisamos contar uma história melhor.”

Mas o que Miller não responde é por que, em um livro voltado principalmente para cristãos, essa história não é o evangelho. Por que a solução é “uma história política” — e, se deve ser política, por que esta política deve assumir escala nacional? Por que nossa identidade de grupo não é a igreja? Por que não podemos combater o nacionalismo com lealdade às nossas congregações ou bairros? Por que o patriotismo nacional é o antídoto escolhido?

Em segundo lugar, Miller faz uma argumentação convincente de que há uma relação inexorável entre nacionalismo, política identitária e guerra cultural. “Nacionalismo”, escreve ele, “é a política identitária da tribo majoritária; política identitária é o nacionalismo de pequenos grupos. Em cada caso, grupos de pessoas que se definem por algum traço identitário comum olham para a praça pública em sua busca por status, espólios, reconhecimento e poder”. Esses grupos desembocam em uma espiral crescente de guerra cultural, à medida que cada um procura determinar quem “nós” somos, em que “nós” acreditamos e o que fazemos. Em contraste, Miller argumenta que, em um modelo republicano de política, o Estado deve eliminar esses espólios de guerra, engajando-se na “neutralidade cultural”, não na “neutralidade moral e no secularismo patrocinado pelo Estado”.

Mas, ao distinguir entre os tipos de neutralidade, Miller deixa em campo as maiores batalhas da guerra cultural. Fundamentando sua distinção em uma alegação do direito natural — que dificilmente convencerá aqueles que ainda não estejam convencidos dos méritos dessa teoria — ele diz que o Estado não pode ser neutro em relação à “pessoa humana e à sexualidade humana”, e que aqui, “a praça pública é um 'campo de batalha dos deuses', no qual não podemos fazer nada senão defender nossas próprias crenças fundamentais”. Mas certamente para muitos nacionalistas cristãos de hoje, essas questões são o jogo inteiro. Esses cortes “limitados” da neutralidade cultural são exatamente os assuntos que motivam os nacionalistas cristãos a buscarem o poder do Estado para ditarem a cultura nacional.

Por fim, embora ele trate em detalhes o iliberalismo do nacionalismo cristão, não tenho certeza se Miller percebe sua extensão atual — e o que isso significa para a perspectiva de fazer os nacionalistas mudarem para um republicanismo cristão classicamente liberal. Terminando o capítulo sobre “O Iliberalismo da Direita Cristã”, ele escreve:

O que é mais importante: as instituições republicanas ou a cultura cristã? Ter uma sociedade livre e aberta, ou ter símbolos públicos de respeito ao cristianismo? Princípios cristãos ou poder cristão? Liberdade política ou vitória política? Os nacionalistas cristãos rejeitariam o enquadramento dessas questões, [que consideram] como uma falsa escolha, pois dizem que os dois lados devem andar juntos, enquanto os republicanos cristãos ficariam muito mais à vontade defendendo o republicanismo, com ou sem uma cultura cristianizada.

A noção de que os nacionalistas cristãos veriam isso como uma falsa escolha pode ser verdadeira entre alguns adeptos do “tipo ideal”; no nível popular, porém, suspeito que, diante dessas opções, muitos nacionalistas cristãos simplesmente escolheriam a vitória e o respeito público. Considere como abraçaram o governo iliberal na Hungria — ou lembre-se da expectativa de Greene de que um triunfo político para o nacionalismo cristão mudaria o comportamento sexual dos americanos e reformularia os planos das crianças para suas vidas.

Os nacionalistas cristãos americanos [ou não] gostam de falar sobre “liberdade”, mas não acho que haja muito dilema para eles nesse ponto, o que significa que estão mais distantes do republicanismo do que Miller possa esperar. Essa é uma pequena falha em seu argumento, mas faço uma grande recomendação de seu livro.

Bonnie Kristian é escritora e colunista da CT. Ela é autora de um livro em vias de ser publicado, Untrustworthy: The Knowledge Crisis Breaking Our Brains, Polluting Our Politics, and Corrupting Christian Community .

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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Christianity Today nomeia Russell Moore como editor-chefe

Joy Allmond, experiente editora-executiva, também se juntou à CT para promover a visão do ministério.

Christianity Today August 5, 2022
Eric Brown

O que torna uma pessoa grande aos olhos do mundo não é o fato de possuir um talento extraordinário, mas sim uma aplicação arrojada e persistente desse talento, guiada pela coragem e pelo caráter, rumo a um objetivo digno. O que torna uma pessoa grande no reino de Deus é, segundo Jesus, um espírito de servidão humilde (Mateus 20.26).

É por isso que estou tão profundamente satisfeito em anunciar que, no dia 1º. de setembro, Russell Moore assumirá o papel de editor-chefe da Christianity Today.

Que Moore é uma pessoa com talentos extraordinários é fato incontestável. Ele foi nomeado reitor da Escola de Teologia do Seminário Teológico Batista do Sul quando tinha apenas 32 anos. Por meio de seus livros, artigos e podcasts, discursos públicos e liderança da Comissão de Ética e Liberdade Religiosa, Moore atuou como a voz pública cristã evangélica possivelmente mais proeminente do país na última década. Qualquer um que tenha lido seus escritos ou ouvido sua oratória atestará seus prodigiosos dons naturais.

Mas esse talento por si só não é o motivo de nossa empolgação. Moore demonstrou, repetidas vezes, a coragem de expressar suas convicções e a integridade de viver de acordo com elas. Às vezes, isso significa lutar em praça pública por verdades bíblicas e teológicas essenciais. Às vezes significa declarar verdades à igreja que nos desafiam e nos constrangem.

Ele trabalhou incansavelmente para ajudar homens e mulheres de convicção evangélica a lidar com o pecado dentro de nossos próprios muros, seja relacionado a idolatria e preconceito ou a abuso e negligência. Moore assumiu alguns dos objetivos mais importantes e urgentes do nosso tempo, mesmo quando isso significou sofrer as fisgadas e flechadas dos críticos de dentro e de fora.

O que mais me empolga, no entanto, é a maneira como ele nunca perdeu de vista nosso principal chamado cristão de servir os necessitados e buscar os perdidos. Seja aconselhando pastores em crise, acolhendo sobreviventes de abuso em sua casa ou compartilhando o evangelho com estudantes universitários, Moore não é um acadêmico de gabinete ou um lançador de bombas no Twitter, mas sim alguém que está profundamente engajado na vida da igreja e em compartilhar o amor de Deus com os outros. Como ministro batista ordenado que ocupou vários papéis pastorais (e desempenha um deles ainda hoje), Moore tem servido a igreja e o reino de forma incansável ao longo de sua carreira.

Na Christianity Today, aspiramos promover histórias e ideias do reino de Deus. A pergunta básica que inspira nosso trabalho é esta: Como é ser um fiel seguidor de Jesus Cristo em nosso tempo? Esperamos ser para uma nova geração o que fomos para o próprio Moore, quando conheceu a Christianity Today aos 15 anos de idade: uma visão abrangente e impactante da vida cristã que abra um caminho, em meio a este mundo caído, na direção do reino de Deus.

Por isso nomear Moore para essa posição é algo tão importante. Como presidente e CEO, ocupei o cargo por um breve período em espírito de mordomia, mas é preciso alguém para ocupá-lo de forma plena, e Moore demonstra ter essa maneira de seguir a Jesus que é profundamente enraizada, lindamente ortodoxa, atenta, compassiva e comprometida em servir ao reino, mesmo que isso nos custe muito.

Igualmente importante é o fato de também estarmos trazendo Joy Allmond, uma veterana da comunicação e do mundo editorial, para atuar como chefe da equipe editorial. Uma das principais incumbências de Moore será continuar avançando no Projeto de Teologia Pública. Allmond trabalhará ao lado dele para que esse projeto floresça. Com uma vasta experiência na Billy Graham Evangelistic Association, na revista Decision e na Lifeway, Allmond trará consideráveis ​​talentos editoriais, executivos e interpessoais para o bom funcionamento de nosso empreendimento editorial, bem como para eventos e programas futuros.

A nossa é uma era de grandes perigos e de grandes promessas para a igreja. Estamos determinados na Christianity Today a fazer tudo o que pudermos para servir a igreja em um momento turbulento e divisivo, bem como para amar o mundo que Deus criou. Tivemos a honra de trazer Russell Moore para a equipe há pouco mais de um ano. Agora aguardamos ansiosos por aquilo que ele, Allmond e nossa extraordinária equipe editorial poderão realizar nos próximos anos.

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Anunciamos o Segundo Concurso Internacional Anual de Artigos da Christianity Today

Mais uma vez estamos buscando sabedoria, perspectiva e visão teológica de escritores de língua espanhola, portuguesa, francesa, chinesa e indonésia.

Christianity Today August 3, 2022
Image: Illustration by Rick Szuecs / Source Images: Ron Lach / Pexels / Flickr / CCO

Na Christianity Today, acreditamos que a Palavra de Deus tem verdades e insights específicos para os desafios e as lutas que enfrentamos nos tempos de hoje. Além disso, cada cultura aborda a Bíblia a partir de uma perspectiva própria e oferece percepções únicas sobre o texto sagrado; assim, temos muito a aprender conhecendo as maneiras como pessoas de contextos diferentes do nosso analisam e aplicam as Escrituras.

Com isso em mente, estamos anunciando nosso segundo concurso internacional anual de artigos. Queremos que pessoas que escrevam em português, espanhol, francês, indonésio ou chinês nos enviem suas reflexões em um texto escrito no seu idioma. Os artigos serão julgados por três a cinco líderes cristãos e teólogos de locais que falam essa língua. Os artigos vencedores serão traduzidos para o inglês e publicados no site da Christianity Today no idioma em que foi escrito e em inglês.

Este ano, estamos pedindo aos escritores que escolham um versículo, capítulo ou história de Gênesis, Jó, 1 ou 2Coríntios ou Colossenses e o apliquem a alguma questão que você ou a sociedade em que vive esteja enfrentando em seu contexto específico. Em particular, estamos em busca de textos que demonstrem uma forte reverência pelas Escrituras combinada com uma aplicação do texto bíblico que seja nova e surpreendente. No artigo, o escritor deve exortar seus próximos e concidadãos, mas também ter em mente que será lido pela igreja global.

Estamos interessados em ler argumentos originais que comuniquem a perspectiva do Evangelho sobre uma questão específica em tom generoso e sensato que deixe os leitores ansiosos para abrir a Bíblia e ler mais. Artigos escritos em primeira pessoa devem aplicar a experiência pessoal a um conceito mais amplo de fé e de verdade bíblica.

Aconselhamos você a ler alguns dos artigos publicados pela CT para ter uma ideia melhor do tom, do estilo e do tipo de texto que publicamos. Não estamos procurando artigos acadêmicos; também não usamos notas de rodapé, mas sim hiperlinks, quando necessário.

Critérios de julgamento

  • Clareza com que a ideia é apresentada.
  • Originalidade das reflexões, ideias ou contribuições do autor.
  • Estrutura argumentativa.
  • Profundidade teológica.
  • Evidências de pesquisa sobre o tema.
  • Reconhece e, quando apropriado, interage com outras perspectivas.
  • Relevância para a comunidade de língua portuguesa.

Prêmios

Teremos um vencedor para cada um destes idiomas: espanhol, português, francês, indonésio e chinês.

O vencedor do concurso deste ano ganhará um prêmio de 250 dólares e assinaturas impressa e digital, por três anos, da Christianity Today. Também terá seu artigo publicado no site da Christianity Today.

Se o artigo que enviou não vencer, ainda assim podemos publicá-lo. Ao enviar seu artigo, você concorda este que seja considerado pelos editores da Christianity Today para publicação futura.

Informações para o envio

Por favor, envie seu artigo por e-mail para ChristianityTodayPT@christianitytoday.com até 30 de setembro de 2022.

No assunto do e-mail coloque: “Concurso de artigos da Christianity Today – [Seu nome e sobrenome]”

Cada artigo deve ser formatado separadamente em um documento digitado em espaço simples

Nomeie seu documento da seguinte maneira: Sobrenome, Nome — Título do artigo

Envie seu artigo como um link ou anexo.

Inclua seu nome completo e uma pequena biografia no e-mail (50 palavras ou menos)

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Por que estou criando minha filha nos primeiros bancos da igreja

O melhor presente que meus pais me deixaram foi uma fé concretamente vivida. E quero fazer o mesmo por minha filha.

Christianity Today July 30, 2022
Emma Bauso / Pexels

Antes de nossa filha, Hildegaard, nascer, meu marido e eu conversávamos sobre o peso de criar um filho de pastor.

Lutávamos com o fato de que as crianças que crescem no ministério são muitas vezes colocadas sob escrutínio extra — e muitas acabam amarguradas com a igreja, e abandonam por completo a fé cristã.

Eu mesma sou filha de pastor. Conheço em primeira mão o privilégio que é estar imersa na verdade do evangelho e nos ritmos da vida da igreja.

Mas também conheço a pressão constante, ainda que não intencional, de parecer estar bem, mesmo quando você não está — de fingir retidão, em vez de ser honesta sobre suas lutas e falhas. Como pano de fundo, sempre estava aquele versículo em 1Timóteo sobre os pastores serem capazes de administrar suas famílias. Meus irmãos e eu sabíamos que nossas ações poderiam custar o emprego de meu pai.

Hilde inevitavelmente terá que lidar com experiências semelhantes ao crescer nos primeiros bancos da igreja.

Contudo, um ponto que está faltando na discussão atual sobre a necessidade de desconstruir e entender essa nossa experiência de igreja é o lado bom que há em uma educação evangélica — o que há de bom em ser criado na igreja, o privilégio de ter pais cristãos e a beleza de conhecer o evangelho antes mesmo de aprender a andar.

Alguns meses atrás, pedi aos meus seguidores cristãos no Twitter que compartilhassem quais aspectos de sua fé eles querem repetir na criação de seus filhos. Recebi mais de uma centena de respostas, e muitos admitiram que, embora seu próprio relacionamento com a igreja possa atualmente ser tênue, eles tinham certeza de uma coisa: queriam que seus filhos experimentassem a comunidade cristã, tivessem uma compreensão das Escrituras e pudessem falar honestamente sobre dor, fé e dúvida.

O que notei em suas respostas foi que muitos de nós estão tentando descobrir quais aspectos de nossa educação cristã são justos e dignos de serem repetidos e quais não são.

Por exemplo, ainda estou lidando com uma falsa culpa ligada à pressão da leitura diária da Bíblia. Mas quando seguro minha filha nos braços, sei que quero que ela seja lavada regularmente na Palavra. Há muitas mensagens evangélicas extrabíblicas que quero evitar, mas estou ansiosa para contar a Hilde todas as histórias da Bíblia e ensiná-la a louvar ao Senhor e a orar os Salmos. Mal posso esperar para apresentar Jesus para ela.

Podemos desconstruir as coisas e examiná-las, mas nossos filhos nos fazem querer reconstruí-las de maneira mais saudável e que honre a Deus.

Quanto à minha própria história, sou grata por meus pais terem me ensinado a Bíblia e a valorizar a igreja local. Mas também sou muito grata porque o exemplo deles não se resumiu apenas a falar sobre o cristianismo, mas realmente a vivê-lo. Eles encarnaram para mim o conceito de fé, mostrando-me o que significa conhecer e amar a Deus desfrutando da criação e cuidando dos vulneráveis.

Aprendi com meu pai que desfrutar das boas dádivas de Deus é uma forma de adoração santa. Ele sempre se deleitou com as pequenas coisas — os sabores, os cheiros e as texturas da vida. Antes mesmo de ouvir o famoso mantra de John Piper, “Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos com ele”, ficava vendo meu pai cozinhar.

Cada erva que ele cortava, cada gota de azeite ou de vinagre que colocava era um ato de alegria tangível. Eu ouvia as cebolas refogando na panela com expectativa, e na minha família não era difícil agradecer a Deus antes do jantar, pois tínhamos sentido o aroma a cada passo da preparação de um prato e já sabíamos que aquilo era um sinal da bondade de Deus.

Sentar e ouvir a pregação de meu pai me deu amor pelo evangelho e uma base teológica firme — mas vê-lo aproveitar a vida também teve um impacto duradouro. Quer estivéssemos comendo mangas maduras, andando por uma floresta de sequoias no condado de Mendocino ou observando as poças que a maré formava em Bodega Bay, ele sempre me ensinou o que significava adorar a Deus através dos cinco sentidos, ao usufruir da natureza.

Minha educação me ensinou que toda a criação declara a glória de Deus e que podemos conhecer algo de seu caráter através da diversidade do mundo criado. Vivenciamos essa teologia quando passávamos horas na praia, em busca de estrelas-do-mar cor de laranja bem vivo, com as costas ásperas e pintadas de branco. Meu pai continuava a tocar e saborear a vida para ver que Deus é bom.

Enquanto poetas como Mary Oliver e William Wordsworth me ensinaram a expressar minha gratidão pela natureza, foi meu pai quem me ensinou a ver a beleza de Deus em cada brisa do mar e em cada curry de coco. Mesmo já adulta, ainda tiro os sapatos sempre que encontro um pedacinho de grama macia ou uma faixa de areia na praia, só para sentir a textura do solo sob meus pés.

Em minha infância e adolescência, nossa casa era um refúgio para todos os tipos de pessoas — adolescentes rebeldes, mães solteiras, casais problemáticos e pessoas sem-teto. Minha mãe me ensinou a cuidar dos solitários, quer eles precisassem de sapatos novos ou de alguém para apoiá-los em um momento de dor. Por causa de seu dom de misericórdia, sempre havia uma cadeira a mais em torno da nossa mesa de jantar.

Minha mãe é o tipo de pessoa que puxa conversa com qualquer um, seja o caixa do Walmart ou um adolescente deslocado na igreja. Ela é o tipo de cristã que sempre carrega brinquedos na bolsa para crianças que ficam inquietas no culto ou em outros locais públicos.

Ela também tinha um coração voltado para aqueles que viviam sem-teto e ministrava a eles quando e onde quer que os encontrasse — fosse nas esquinas ou do lado de fora do McDonalds, onde éramos clientes frequentes.

Como administradora de uma escola charter [mantida com recursos públicos, mas cuja gestão é privada], minha mãe desenvolveu relacionamentos com alunos em risco que permaneceram em sua vida até seus vinte a trinta anos. Ela os levava ao médico, os ajudava a encontrar lugares seguros para viver, trabalhar e garantia que tivessem alimento para comer.

Os cristãos costumam falar sobre a importância de exercer a hospitalidade e de ajudar os pobres, mas minha mãe é alguém que realmente viveu isso. Até hoje, cada pessoa que ela conhece se sente em casa e sabe que tem um lugar ao redor da nossa mesa.

Aprendi com ela que hospitalidade é mais do que apenas limpar o chão da cozinha e colocar algo no forno — é mostrar às pessoas que elas são importantes.

Não sei dizer quão rara foi a minha experiência. Talvez aqueles que estão atualmente desconstruindo sua fé acabem de mãos vazias, quando perguntados: “Qual foi a vantagem de sua educação cristã evangélica?” Mas me considero privilegiada por ter visto meus pais concretizarem a fé cristã em palavras e atos, e quero passar esse mesmo exemplo para minha filha.

Espero que ela aprenda algo de Deus através do sermão de domingo, bem como das flores que brotam entre a cerca e a pilha de madeira em nosso quintal. Espero que ela veja o evangelho quando perdoar alguém por magoá-la ou quando for perdoada por magoar outra pessoa.

Embora fosse maravilhoso se ela memorizasse Filipenses 2.3, quero vê-la viver esse versículo, ao conversar no refeitório da escola com um garoto solitário, cheio de espinhas e cheirando a suor, e oferecer-lhe seu pudim.

Eu sei que aqueles de nós criados na igreja evangélica têm muitas questões para resolver. Não só é bom, mas também necessário que descubramos quais ensinamentos são um reflexo verdadeiro da Palavra de Deus e quais deles são distorções e perversões que devem ser corretamente descartadas.

Mas quando Hildegard crescer e fizer esse mesmo trabalho de discernir — de refletir e reconstruir sobre o fundamento de Cristo — espero que ela também possa enxergar a beleza de ter sido criada na igreja.

Rachel Joy Welcher é autora, poetisa e editora de aquisições da Lexham Press.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Por que é mais fácil aceitar Davi como um assassino do que como um estuprador

O debate atual sobre o que aconteceu com Bate-Seba nos leva a refletir de maneira mais profunda sobre motivações e poder.

Christianity Today July 22, 2022
Sky Light Pictures / Lightstock

Como alguém que cresceu na igreja, eu certamente ouvi muito sobre Jesus. Mas pouco antes do Salvador, ouvi inúmeras histórias sobre o Rei Davi: histórias de bravura, coragem, poder, confiança, riscos, batalhas, guerras, triunfos e conquistas.

Os cristãos sempre reconheceram a condição caída de Davi até certo ponto, em particular o fato de ele ter ido atrás de Bate-Seba, algo que normalmente tem sido considerado (e condenado como) adultério. Ultimamente, tem havido um grande debate sobre o que exatamente aconteceu entre Davi e Bate-Seba, e se esse fato deve ser caracterizado como estupro.

Esta não é uma conversa nova, o que é sempre importante lembrar em nossa era de tópicos “quentes”. Denny Burk, professor do Boyce College e presidente do Council on Biblical Manhood and Womanhood, aponta para um artigo de jornal de Alexander Abasili que abordou essa questão em detalhes, em 2011, anos antes do escrutínio do movimento #MeToo.

Nem todo interesse nesta questão decorre da atual pressão cultural ou capitulação; há uma pergunta legítima e importante sobre como entendemos Davi nesta história.

Concordo com a análise de Abasili de que a história não inclui os detalhes que parecem ser específicos para circunstâncias de uma compreensão hebraica de estupro — ou seja, o uso de força física direta e a vítima clamando angustiada por socorro. E, no entanto, a história de Davi e Bate-Seba parece, para muitos leitores modernos, inclusive para mim, atender às definições contemporâneas de estupro.

Então, o que devemos pensar sobre isso? Davi realmente estuprou Bate-Seba? E por que importa que nós, como cristãos, tenhamos uma compreensão correta disso hoje?

Jesus expande a lei

Embora Abasili estabeleça que a história de Davi e Bate-Seba não atende aos critérios de estupro detalhados na lei bíblica, o professor do Antigo Testamento, David Lamb, escreveu anteriormente para a CT sobre isso, descrevendo um argumento básico de que Davi era culpado de “estupro de poder em vez de adultério”, já que Bate-Seba não tinha escolha.

Mas a questão não é apenas se seguimos as leis do Antigo Testamento ou as nossas próprias leis modernas. A própria Escritura nos aponta para que olhemos de forma mais profunda o coração que estava por trás do comportamento de Davi.

No Novo Testamento, Jesus Cristo não diminui o impacto da lei, ele a amplia e intensifica esse impacto: “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Não adulterarás’. Mas eu digo a vocês que todo aquele que olhar para uma mulher com intenção lasciva já cometeu adultério com ela em seu coração” (Mateus 5.28).

De acordo com uma leitura básica da lei do Antigo Testamento, olhar para uma mulher com intenção lasciva não atende aos critérios de adultério. Mas, quando lemos o mandamento contra o adultério através das lentes das instruções de Cristo sobre a lei, descobrimos que olhar com intenção lasciva para alguém que não seja o próprio cônjuge é, e sempre foi, adultério.

Jesus muda o foco dos detalhes da lei para a intenção e a motivação do coração. E ele não faz isso apenas com adultério. Ele o faz toda vez que discute a lei.

Se abordássemos a lei do Antigo Testamento sobre estupro da mesma forma que Jesus aborda vários aspectos da lei, teríamos que olhar para além dos detalhes explícitos, enumerados no código da lei, e perguntar: O que está acontecendo no coração e na mente de Davi, quando se trata de Bate-Seba?

Pensando na questão dessa forma, a defesa de que as ações de Davi não atendem aos critérios para estupro enfraquece consideravelmente e, de fato, perde a razão de ser.

A repreensão de um profeta

Usando o princípio hermenêutico básico de que a Escritura deve interpretar a própria Escritura, encontramos mais contexto sobre as motivações de Davi a apenas alguns parágrafos de distância, em 2Samuel 12, quando ele é repreendido pelo profeta Natã.

Natã descreve um desequilíbrio de poder entre um homem rico e um homem pobre, onde o pobre tinha um cordeiro precioso que ele amava muito, como a um filho, e o homem rico, sem piedade, levara o único cordeiro do pobre homem para preparar para um convidado (uma maneira de ganhar mais capital social recebendo bem este hóspede).

Natã diz a ele: “Você é esse homem!” na história e, em seguida, expande a autocondenação de Davi: Deus fez de você um rei, ele o libertou, ele lhe deu tudo o que você tem, e isso não foi suficiente. Você roubou, explorou, matou e fez isso “secretamente” para proveito egoísta. Mesmo de acordo com Davi e Natã, o pecado de Davi não foi meramente ter dormido com Bate-Seba, mas ter feito isso de maneira a enlamear-se por sua exploração de poder, sua trapaça e em proveito próprio. O desequilíbrio de poder é claramente apontado.

Natã continua a descrever o destino do marido de Bate-Seba, Urias: “Você feriu Urias, o heteu, com a espada e tomou sua esposa para si e o matou com a espada dos amonitas” (2Samuel 12.9).

Talvez mais intrigante do que determinar as motivações de Davi seja a nossa própria determinação de poupá-lo da perda de reputação.

Natã usa uma linguagem de conquista que posiciona Davi como um assassino, aquele que o “feriu” e “o matou”. E, no entanto, sabemos que Urias não morreu pela espada do próprio Davi, mas por uma espada que agiu pela de Davi, depois de ser enviado para as linhas de frente. Embora suas ações não constituam assassinato, segundo os termos detalhados estabelecidos no Antigo Testamento, nós vemos Davi como alguém absolutamente responsável pela morte de Urias.

Quando a questão é se Davi assassinou Urias, os leitores geralmente se sentem à vontade para expandir o modo que deve ser lida a lei que define o assassinato no Antigo Testamento. Mas quando perguntamos se Davi estuprou Bate-Seba, alguns leitores recuam, exigindo precisão sobre o que a lei diz expressamente sobre estupro.

O foco de Jesus e de Natã na intenção e nas motivações do coração nos dá uma boa razão para olhar além da letra da lei. A história de Davi e Bate-Seba não é uma história de adultério ou de um caso amoroso, mas sim a história em que um homem poderoso está explorando sexualmente uma mulher vulnerável e está disposto a usar o poder coercitivo para trazê-la ao seu quarto e encobrir suas ações.

Nossa defesa de Davi

Talvez mais intrigante do que determinar as motivações de Davi seja a nossa própria determinação de poupá-lo da perda de reputação. Não queremos que Davi seja um estuprador. Na verdade, achamos mais fácil suportar a ideia de que ele seja um assassino de um homem do que um abusador de uma mulher.

E, se a preponderância dos sermões é alguma indicação, os cristãos historicamente têm estado dispostos a comprometer a reputação de Bate-Seba para manter qualquer má reputação (tirando o adultério) bem longe de Davi. Isso não faz o menor sentido, principalmente porque na Escritura, Bate-Seba nunca é acusada, julgada ou nem mesmo difamada de alguma forma pelo que aconteceu.

Davi, porém, não é apenas mais uma figura na Bíblia. Ele é o “homem segundo o coração de Deus”, defendido tanto como uma figura heróica para meninos na escola dominical quanto como objeto de estudos cristãos sobre virilidade e masculinidade.

A frase que tantas vezes associamos ao rei bíblico não é um endosso irrestrito ao exemplo de Davi, nem a ideia de que ele representa, como homem, o que significa ser como Deus. A frase significa que Davi foi o homem escolhido por Deus como rei de Israel. John Woodhouse diz que esta frase “fala sobre o lugar que o homem tem no coração de Deus, e não do lugar que Deus tem no coração do homem”.

A Escritura está cheia de pessoas caídas, e o Rei Davi, apesar de todas as suas virtudes, é um homem caído. Então, por que essa história em particular se tornou tão controversa para nós? Estou convencido de que não queremos que Davi seja um estuprador porque não queremos confrontar o pecado do abuso de poder.

Se Davi foi tão-somente um homem fraco que caiu vítima de uma mulher tentadora em uma noite solitária, então, não temos de lidar com a realidade muito mais insidiosa: a de que Davi foi um dos muitos (em sua maioria, homens) ao longo da história que usaram seu poder para cometer exploração sexual. Ele aproveitou-se de sua posição como rei para matar um homem inocente, depois de ter usado seu poder para convocar e explorar sexualmente a esposa desse mesmo homem.

É de admirar que esse grande mal tenha permanecido amplamente inexplorado na história de Davi, quando a maioria daqueles encarregados de contar a história tinham alguma vantagem para não apontá-la? Quando chegamos à história de Davi e Bate-Seba, os que mais se beneficiariam de se sentar sob um impacto contido da história são aqueles que eram responsáveis ​​por contá-la. Os líderes espirituais em nossas igrejas, principalmente pastores do sexo masculino, devem estar dispostos a contar a história do jeito que está escrita: como uma acusação de abuso de poder espiritual para exploração. Eles devem pesar sua vida e a cultura de liderança em sua igreja por essa balança.

Temos de considerar que podemos ter interpretado mal esta história de maneira grave. Nosso mal entendimento e a deturpação do que aconteceu com Davi e Bate-Seba podem resultar em uma compreensão truncada da boa visão de Deus sobre poder e sexo, justamente quando precisamos tão desesperadamente de uma visão santa para essas coisas.

Talvez a história de Davi não seja somente uma história legal sobre gigantes derrotados e batalhas vencidas, mas seja também uma história de advertência sobre a maneira como o poder pode corromper até mesmo os mais nobres. E que o mesmo poder que um rei havia usado anteriormente para defender os vulneráveis ​​pôde ser usado para explorar os vulneráveis.

A história de Davi e Bate-Seba convida a todos nós, mas particularmente àqueles que ocupam posição de autoridade e liderança espiritual, para que consideremos se estamos fazendo uso do dom de Deus da maneira que ele pretende. O poder é um dom de Deus, mas a tentação de usá-lo em proveito próprio e egoísta é infinitamente sedutora e está sempre presente. Aqueles a quem foi confiado o poder devem olhar para o Filho de Deus, Jesus Cristo, como o paradigma do exercício fiel do poder.

Ele, que possuía tudo por direito, entregou tudo por amor. Cristo, a quem pertencia o mundo inteiro, abordou os vulneráveis ​​com cuidado e honra. Cristo usou seu poder para dignificar os vulneráveis ​​e defender os envergonhados. E nós, o que faremos com o poder que nos foi dado?

Kyle Worley plantou e serve como um dos pastores da Mosaic Church em Richardson, Texas. Ao lado de Jen Wilkin e JT English, ele atua como um dos apresentadores do podcast Knowing Faith . Você pode segui-lo no Twitter @ kyleworley.

Traduzido por: Mariana Albuquerque

Editado por: Marisa Lopes

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O debate sobre masculinidade precisa de homens como Johnny Cash

Os rapazes estão insatisfeitos e solitários. Mas o problema não é falta de masculinidade.

Christianity Today July 21, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / Archive Photos / Stringer / Getty

Enquanto escrevo, o álbum Johnny Cash at Folsom Prison gira no toca-discos, enchendo a sala de estar com os ritmos potentes e envolventes de um dos maiores contadores de histórias da América. Originalmente lançado em 1968, esse é um dos doze álbuns vintage de Cash que herdamos, quando uma amiga da nossa pequena comunidade de classe média se mudou para mais perto dos filhos.

Depois de alguns minutos escutando a faixa que deu nome ao álbum, “Folsom Prison Blues”, uma letra me chamou a atenção:

Quando eu era ainda um bebê, minha mãe me dizia: “Filho,
Seja sempre um bom menino, nunca brinque com armas.”
Mas eu atirei em um homem em Reno, só para vê-lo morrer,
Quando ouço aquele apito, abaixo a cabeça e choro.

E, de repente, temos uma voz do passado descrevendo as últimas semanas de horror nos Estados Unidos. De Buffalo, Nova York, a Uvalde, Texas, e a Highland Park, Illinois, estamos mais uma vez lutando para entender uma atrocidade que se banalizou: tiroteios em massa, sem sentido, levados a cabo por jovens insatisfeitos e violentos .

Como mãe de um rapaz de 16 anos já bastante maduro, penso muito sobre o estado da masculinidade na sociedade americana e na igreja evangélica. Muito tem sido dito sobre os excessos da masculinidade de John Wayne, mas eu me pergunto se não é hora de uma conversa sobre a masculinidade de Johnny Cash.

Enquanto John Wayne, também conhecido como Duke, é sinônimo de verdadeira coragem, bravura masculina e domínio, Johnny Cash, o famoso “homem de negro”, propicia uma visão alternativa — e, talvez, um caminho a seguir nestes tempos tão profundamente fragmentados.

As raízes de Cash tinham forte ligação com o sul dos Estados Unidos, e temas como pobreza, religião e uma porção de coisas associadas à cultura e à história da América informavam sua música. Seus maiores sucessos incluem baladas sentimentais sobre viajar de trem sem pagar passagem, o lendário Velho Oeste e operários de vida dura que sentem saudade das mães.

Mas ainda que Cash fosse um modelo de um tipo de masculinidade austera, ele também era um homem profundamente falho. Sua vida foi marcada por infidelidade, alcoolismo e abuso de drogas. Ele não era nenhum santo.

E, no entanto, Cash tinha uma vantagem sem igual — algo que falta ao discurso atual em torno da masculinidade. Ele sabia que era um homem profundamente falho. Ele sabia que era um homem que precisava da graça. Assim, embora cantasse sobre tentações que são comuns a todos, ele não justificava nem desculpava seu próprio papel nessas tentações. Pelo contrário, sua discografia tem um tom de confissão, tristeza e clamor por redenção.

Na já mencionada música “Folsom Prison Blues”, ele fala de sua sentença condenatória como algo justo e bom. E confessa: Sei que mereci , sei que não posso ser livre . E apenas ouça Cash cantar “Sunday Morning Coming Down”, de Kris Kristofferson, uma música sobre a alienação espiritual e a profunda solidão de uma vida desregrada, e tente não chorar.

A visão de Cash não é de uma masculinidade sem manchas e controlada. Sua masculinidade não é nem mesmo moral segundo os padrões clássicos, mas contém sementes de virtude porque é humilde e autoconsciente. Como o rei Davi, outro guerreiro e poeta caído, Cash canta e deixa bem claro: “Conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 51.3).

Essa justaposição de uma masculinidade que é austera, mas também profundamente humilde desafia o que David French chama de “o estranho e perigoso culto aos valentões da nova direita”.

Em um ensaio recente no The Dispatch, French observa que “o debate [em torno da masculinidade] é corrompido pela política, com diferentes versões de masculinidade que se identificam de forma tão cabal com o vermelho [a cor do Partido Republicano nos EUA] ou o azul [a cor do Partido Democrata nos EUA] que, muitas vezes, pode-se adivinhar como um homem vota pelas roupas que ele usa, pelo veículo que dirige e pela maneira como descreve o que significa ser homem”.

Mas Cash acaba com essa política da masculinidade americana. Ele não é um homem dócil nem domado — afinal, sempre cultivou a imagem de um fora da lei. Mas ele também não seguiu a linha dos partidos e, pelas definições contemporâneas, provavelmente teria sido considerado um “woke” [um ativista ou alguém sensível às causas sociais]. Sua música reflete uma profunda compaixão por aqueles que estão à margem. É quase como se o fato de ele conhecer as próprias falhas o tornasse lento para julgar as dificuldades dos outros.

Enquanto os aspirantes a líderes populistas afirmam estar lutando pelos humildes, Cash sabia que era mais provável encontrar esses necessitados em uma prisão, na linha de frente de uma guerra, no chão de fábrica ou negligenciados em alguma reserva. E não tinha medo de dizer isso. Sua gravação de 1964 da música “The Ballad of Ira Hayes” desafiou o tratamento que o governo dos EUA dispensava aos povos indígenas, e foi inicialmente banida pela gravadora de Cash e pelas estações de rádio em todo o país.

E talvez na música que mais representa a essência de Cash, o sucesso de 1971, “The Man in Black”, ele canta sobre a injustiça social que tanto impede que as pessoas prosperem:

Pelos pobres e abatidos
Que vivem no lado desesperado e faminto da cidade
Eu uso [preto] pelo prisioneiro que há muito pagou por seu crime
Mas está lá porque é uma vítima dos tempos. […]

Pelo velho doente e solitário
Pelos insensatos, cujos maus passos na vida fizeram deles homens frios
Eu uso o preto do luto pelas vidas que poderiam ter sido
A cada semana perdemos cem bons jovens

E eu uso [preto] pelos milhares que morreram
Acreditando que o Senhor estava ao lado deles
Eu uso [preto] pelos outros cem mil que morreram
Acreditando que todos nós estávamos ao lado deles.

Hoje, mais de 50 anos depois, arrogância e bravatas muitas vezes se disfarçam de masculinidade, e as pessoas dirão que há uma guerra contra a masculinidade. Mas acredite em mim, alguém que cresceu cercada por homens do tipo “sal da terra”, imperfeitos, mas humildes: o problema não é a masculinidade. O problema é essa versão de masculinidade que se recusa a assumir responsabilidades pessoais e celebra um triunfalismo de vencer a qualquer preço.

São esses vícios que estão impossibilitando o diálogo e a cooperação. São esses vícios que estão destruindo famílias, igrejas, comunidades e países.

Se quisermos fazer algum progresso na questão da violência armada ou em uma série de outras questões que destroem nosso país, devemos identificar a verdadeira fonte do problema. O conflito se dá entre arrogância e humildade. O conflito se dá entre aqueles que reconhecem suas falhas e as confessam e aqueles que se recusam a admitir seus erros. O conflito se dá entre corações sensíveis à situação de seu próximo e corações endurecidos.

Mais tarde na vida, Johnny Cash teve seu “encontro com Jesus”. Embora tenha sido batizado e criado em uma igreja batista do sul, ele redescobriu a fé pessoal após o casamento com sua segunda esposa, June Carter Cash.

Ele excursionou com Billy Graham, fez vários álbuns gospel e fez uma viagem à Terra Santa, a expressão máxima da cultura evangélica de raiz. A frente do álbum comemorativo desta viagem é estampada com uma imagem holográfica de Cash no Monte das Bem-Aventuranças.

É difícil saber quanto da persona pública de Cash se expressou em sua vida privada; se você ler o conjunto de suas músicas, provavelmente encontrará mais de uma letra censurável. Como nossa sociedade atual, ele era um homem de profundos desafios e contradições.

Mas você também encontrará uma visão de masculinidade honesta e humilde. Você encontrará uma visão de masculinidade que abraça a complexidade da condição humana enquanto se recusa a transferir a culpa, lamentar ou desviar a responsabilidade. Você encontrará uma visão de masculinidade que conhece sua necessidade de graça.

Em resumo, você encontrará um homem de verdade.

Hannah Anderson é a autora de Made for More, All That ' s Good e Humble Roots: How Humility Grounds and Nourishes Your Soul.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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Aprendendo a amar os medos do nosso próximo

Não temos todos os mesmos medos. Mas a sabedoria das Escrituras pode ser aplicada a todos nós.

Christianity Today July 18, 2022
Illustration by Klaus Kremmerz

A viagem de 10 minutos de casa para o meu escritório, na igreja, sempre teve seus riscos. Dirigir já tem seu perigo inerente. Então, preciso encontrar uma vaga no estacionamento (às vezes está escuro, e muitas vezes o meu carro é o primeiro a chegar lá); descobrir como funciona o alarme; e se um colega de trabalho chegar, ainda considero o risco de eu ser uma mulher sozinha em um prédio com um homem.

Vinte anos atrás, eu achava que dirigir era um pouco assustador e atravessar o estacionamento sozinha, aterrorizante; mas estar no escritório com um irmão cristão não me preocupava nem um pouco. Hoje, no entanto, enquanto dirigir continua sendo algo com o qual sou cuidadosa, dificilmente penso em sair do meu carro, uma vez estacionado, e estou consideravelmente mais ciente da dinâmica entre homens e mulheres no escritório. O que causou essa mudança?

Aproximadamente 16 mil quilômetros.

De muitas maneiras, mudar da África do Sul para os EUA diminuiu meus níveis de medo, porque os riscos reais eram menores. Dirigir na África do Sul é estatisticamente mais perigoso do que nos Estados Unidos. Para uma mulher, andar sozinha é menos perigoso no norte da Califórnia (a África do Sul regularmente alega ter a maior taxa de estupro do mundo). Com o tempo, meu medo diminuiu, e foi se recalibrando para os novos níveis de risco.

Mas as preocupações que eu percebia quanto a ficar sozinha com um colega de trabalho aumentaram quando nos mudamos para os EUA, mesmo que eu não tivesse motivos para pensar que o risco de impropriedades havia realmente mudado. Eu me vi em uma cultura de igreja local muito mais ansiosa sobre a interação homem-mulher, e precisava adaptar minha consciência de acordo com essa mudança.

O lugar em que vivemos influencia o que tememos e o quanto tememos. É claro que o tamanho de nossos medos é afetado pelo tamanho do risco; temos mais medo de mordidas de tubarão do que de lesões provacadas por águas-vivas. Mas nossos medos são moldados ainda mais por nossa percepção do tamanho do risco. O filme Tubarão condicionou uma geração inteira a ter cuidado com as barbatanas de tubarão em qualquer praia, embora haja uma média de 71 ataques de tubarão por ano em comparação com uma média anual de 150 milhões de picadas de água viva.

No caso da COVID-19, os debates sobre os níveis apropriados de cautela estão repletos de tensões entre percepção e realidade: os americanos vacinados estão mais preocupados em contrair a doença do que seus concidadãos não vacinados, apesar do menor risco de serem seriamente afetados. Como se vê, o lugar em que vivemos tem um impacto significativo em nossa percepção das ameaças. Estudos descobriram que o medo do vírus varia de região para região.

Essas diferenças na forma como avaliamos o risco afetam a forma como tratamos os outros. Grande parte de aprender a ouvir e amar direito os nossos próximos tem a ver com a forma como respondemos aos seus medos, quer tenhamos esses mesmos medos ou não. Mas e se nós, julgando os outros por nossos próprios níveis pessoais de medo, acreditarmos que eles têm muito medo de coisas insignificantes ou que seus medos são infundados? Ou se acreditarmos que os outros estão sendo indiferentes sobre coisas que sentimos serem perigos reais?

A geografia do medo

Precisamos perguntar de onde vêm nossos medos e o quanto o lugar em que estamos os influencia. Sabemos que nossas próprias experiências pessoais moldam nossos medos para o bem e para o mal: nosso corpo mantém uma classificação para experiências saudáveis ​​e traumáticas. Experiências adversas na infância, problemas de saúde mental e diferenças de personalidade (neuroticismo, por exemplo) desempenham papéis significativos na formação de nossos medos.

Mas o lugar em que estamos também tem grande influência. Em uma pesquisa multinacional do início dos anos 2000, Daniel Treisman, do National Bureau of Economic Research, descobriu que, quer o objeto do medo fosse global, como a guerra nuclear, ou pessoal, como o medo de erros médicos graves, os entrevistados em Portugal tinham uma probabilidade duas a três vezes maior de dizer que estavam com medo do que os da Holanda.

E enquanto mais de 80% dos gregos diziam se preocupar com armas, alimentos geneticamente modificados e novos vírus, menos de 50% dos finlandeses diziam o mesmo. Treisman conclui que “é claro que alguns países são mais perigosos do que outros. Seus habitantes podem ter mais medo simplesmente porque eles têm mais a temer”.

No entanto, segundo ele argumenta, isso explica apenas parte da variação. Embora os pesquisadores pudessem comparar os níveis de medo que as pessoas sentiam de alguns perigos ao seu risco objetivo, os resultados mostraram que “as correlações entre essas duas coisas (eram) muitas vezes fracas, inexistentes ou até mesmo negativas”. Em outras palavras, algumas comunidades tinham muito mais medo de certas coisas, mesmo quando não havia maior risco de que elas acontecessem.

Outro exemplo de diferenças culturais: a cada ano, a Chapman Survey of American Fears [Pesquisa Chapman dos medos dos americanos] faz perguntas a uma amostragem aleatória de entrevistados nos EUA sobre cerca de 95 medos diferentes, desde o meio ambiente e desastres naturais até o governo e a COVID-19. A pesquisa mais recente da Chapman revelou que, pelo sexto ano consecutivo, o medo número um dos americanos (80%) foi de servidores públicos corruptos.

Meu cérebro sul-africano engasgou, quando li este relatório. Estudei filosofia política e direito na universidade e, do meu ponto de vista, o sistema democrático americano, com seus freios e contrapesos, me parecia ser o que deveria gerar menos medo a um cidadão americano. Liguei para meu colega de trabalho nigeriano e perguntei o que ele achava disso.

“Estou estupefato”, respondeu ele. “O governo corrupto é uma preocupação real no meu país de origem; mas aqui? Por que tantas pessoas têm medo disso?”

Formados pelo medo

Certamente, o medo brota de dentro de nós. Mas também se infiltra ao nosso redor. O lugar em que estamos no mundo faz mais do que nos ensinar maneiras particulares de viver e pensar; também molda nossas maneiras de amar e de temer.

Ler relatos como esses me faz pensar: se eu morasse em um país diferente, ou em uma costa diferente, ou em um estado diferente, como isso me afetaria? Como posso processar os desastres, doenças e medos deste mundo de maneira diferente? E como, por sua vez, isso mudaria minha maneira de me relacionar compassivamente com os outros que me cercam?

Em Fearing Bravely: Risking Love for our Neighbors, Strangers, and Enemies, Catherine McNiel argumenta que subestimamos o quanto nossa cultura imediata — seja ela o bairro em que vivemos ou a comunidade digital de que participamos virtualmente — impacta nossos medos. Somos discipulados pelo medo, diz McNiel. Um discípulo é um aprendiz, e aprendemos muito com as histórias e as emoções das pessoas ao nosso redor.

Devemos discipular as pessoas para amar a Deus e amar nosso próximo, mas, a menos que abordemos as maneiras como nossos ambientes nos ensinaram a temer “o outro”, nossas tentativas de amar esse próximo serão trôpegas.

Jesus nos chama a entrar neste mundo, amar nosso próximo, cuidar do estrangeiro e orar por nossos inimigos também.

Somos criaturas maleáveis, moldáveis. Gostamos de pensar que lemos notícias e histórias para coletar informações, colher fatos para avaliar imparcialmente as coisas e, depois, aceitá-las ou rejeitá-las. O que subestimamos é como essa informação também é formação: ela inflama nossos afetos por algumas coisas e alimenta nossos medos por outras. Os fatos vêm com chamados à ação e apelos aos nossos afetos, e essas coisas têm um sabor local.

Como James K. A. Smith disse em uma entrevista da CT, nossos hábitos nos formam, e isso inclui nossos hábitos de leitura, nosso consumo de mídia e os parceiros regulares de conversa com quem compartilhamos nossas preocupações do dia a dia.

O boca a boca é a maneira mais rápida de divulgar boas notícias (considere a sabedoria de Deus em como ele envia a salvação ao mundo), mas também é a maneira mais rápida de introduzir e aumentar preocupações. Eu nunca tinha passado um minuto da minha vida me preocupando com uma proposta de novo currículo escolar, por exemplo, até ouvir outros pais cochichando sobre isso na fila da escola.

Durante semanas, esse foi o assunto em vários jantares e nos grupos locais de pais no Facebook. De conversa em conversa e de comentário em comentário, enquanto trocávamos anedotas e análises, atiçamos o medo também.

Há um nome para esse fenômeno em que o medo se propaga como um incêndio: cascatas sociais. Cass Sunstein, professor de direito de Harvard, economista comportamental e autor de Laws of Fear, explica: “Através de cascatas sociais, as pessoas prestam atenção ao medo expresso pelos outros, de uma forma que pode levar à rápida transmissão de uma crença de que um risco é bastante sério, mesmo que a crença seja falsa. […] O medo […] pode ser contagioso, e as cascatas ajudam a explicar o porquê.”

Também somos suscetíveis à polarização grupal, escreve Sunstein, tanto que grupos costumam ter mais medo do que indivíduos. Podemos ter um pouco de medo — ou não — de algo individualmente, mas podemos nos ver profundamente mergulhados em pânico moral quando nos reunimos e juntamos nossos medos.

Os cristãos, no entanto, são chamados a falar com Deus em secreto, citando nossas preocupações diante dele em oração (Mt 6.5-8). Mas não podemos confessar o que não nomeamos, e a dificuldade de lidar com nossos medos é que, muitas vezes, eles são subliminares. Podemos nem saber do que realmente temos medo bem lá no fundo. E mesmo se soubermos, o que podemos fazer a respeito?

A Bíblia repetidamentenos diz para não temermos (Dt 31.6; Is 41.10; Lc 12.32). “Porque Deus nos deu espírito não de medo, mas de poder, amor e domínio próprio”, escreveu o apóstolo Paulo em 2Timóteo 1.7 (ESV). “Não temerei mal algum, porque tu estás comigo”, escreve Davi em Salmos 23.4. As Escrituras deixam claro que as pessoas de fé são comandadas e capacitadas para erradicar o medo.

Mas o medo é um tópico cheio de nuances. A Bíblia não diz que todo medo está errado; em vez disso, nos adverte a não temer erroneamente.

Alguns temores são pecaminosos, mas o temor do Senhor é recomendado como sabedoria. “O medo pecaminoso faz com que desprezemos a Deus e transfiramos nossas afeições, esperanças e medos para outro lugar. Saúde, riqueza, relacionamentos e reputação são apenas algumas das coisas que assumem esse ‘caráter último que é divino’”, diz Michael Reeves, autor de Rejoice and Tremble: The Surprising Good News of the Fear of the Lord.

O próprio Jesus advertiu que podemos estar temendo da forma errada — e, como resultado, priorizando da forma errada (Mt 10:28) —, e nos convida a não ficarmos presos a nossos medos, que muitas vezes são muito mais alimentados pelas pessoas ao nosso redor do que pela verdade. Podemos estar correndo o risco de temer as coisas completamente erradas, ou podemos temer as coisas certas, mas na dose errada.

Contudo, como sabe bem qualquer pessoa que já lutou contra a ansiedade, ter alguém dizendo “não se preocupe” não elimina o medo num passe de mágica. O crescimento espiritual não pode vir do gaslighting emocional; negar ou reprimir nossos medos não os erradica. Então, como devemos aprender a não temer as coisas erradas?

Diante da tarefa de confortar uma congregação assustada em meio à turbulência política, a resposta do pastor Dietrich Bonhoeffer foi: Pregue! Ou, ao menos, ouça uma boa pregação.

“O medo secretamente rói e corrói todos os laços que unem uma pessoa a Deus e aos outros” até que “o indivíduo afunda em si mesmo, desamparado e desesperado”, disse Bonhoeffer.

O ensino regular e fiel voltado para o caráter e o poder de Deus, as promessas de que Jesus venceu o mundo e de que o Espírito Santo está presente conosco ao longo de tudo comunicam uma mensagem poderosa para nos ancorar na esperança, quando as tempestades da vida procurarem nos jogar de um lado para o outro.

Nós, a igreja unida, podemos encorajar uns aos outros na esperança (Hb 10.23), e isso nos ajuda a enfrentar nossos medos. Mas também temos trabalho a fazer em uma escala muito menor, e o fato de perceber o quanto o lugar em que estamos impacta nossa formação pode nos ajudar a discipular as pessoas para longe do medo e em direção ao amor.

Práxis e proximidade

O crescimento pode vir do fato de aprendermos a ser curiosos sobre por que pensamos da maneira que pensamos, e de estarmos dispostos a duvidar disso, argumenta Adam Grant em seu best-seller Think Again: The Power of Knowing What You Don’t Know. Aprender a sermos curiosos — e até céticos — sobre nossos medos é um primeiro passo significativo para sermos capazes de lidar com eles.

Isso não é algo intuitivo. Geralmente acho que meus medos são razoáveis ​​e racionais; caso contrário, eu não os teria. Mas mudar de país e visitar grupos de diferentes igrejas revelou que, muitas vezes, tenho muito mais ou muito menos medo de uma coisa do que os crentes com quem estou adorando. Isso, por sua vez, tornou-se um convite para avaliar com humildade e oração o que amo e temo, e por que amo e temo.

A prática espiritual de discernir nossos desejos diante de Deus pode incluir perguntas que questionam nossos medos. O exame de consciência de Inácio de Loyola oferece uma dessas ferramentas para a introspecção, convidando-nos a discernir onde experimentamos consolo e onde experimentamos desolação. O medo seria algo que contribui com firmeza para a desolação.

O escritor Brendan McManus explica, em um post de blog, como aprender a “estar ciente de seus sentimentos e, então, usar a cabeça” pode ser uma fórmula simples, mas útil para uma abordagem espiritualmente sofisticada: “O primeiro passo é refletir sobre a experiência ou decisão e perguntar: ‘Como me sinto sobre isso?’, enquanto a segunda parte é olhar para frente, perguntando: ‘Onde isso está me levando?‘ e ‘Qual é o resultado ou fruto provável?’ Explorando essas perguntas, podemos sintonizar mais o que Deus deseja, sermos instrumentos mais sintonizados para Deus no mundo e, finalmente, tomarmos melhores decisões.”

Podemos baixar a guarda, mesmo se discordarmos em baixar nossas máscaras.

Ao olhar para o mapa do medo em meu próprio coração, diminuir o zoom para ouvir histórias da igreja mais ampla me ajuda a recalibrar minhas preocupações, para que eu possa fazer este convite a Deus: “prova-me e conhece meus pensamentos ansiosos. Vê se há em mim algum caminho ofensivo e guia-me pelo caminho eterno” (Sl 139.23-24).

Além do mais, podemos precisar fechar fisicamente lacunas. Se a geografia — ou seja, a distância física entre as comunidades — tem um papel a desempenhar na cura de nossos medos, também devemos considerar como diminuir essa distância pode nos ajudar a curá-los. Tyler Merritt, autor de I Take My Coffee Black: Reflections on Tupac, Musical Theatre, Faith, and Being Black in America, defende a proximidade como ferramenta para lidar com suspeitas raciais. “A distância gera suspeita. Mas a proximidade gera empatia”, escreve ele, um conceito que atribui ao pastor e autor Bryan Loritts. “E com empatia, a humanidade tem uma chance de lutar.”

Em 1Coríntios 10, o apóstolo Paulo se dirigiu a igreja coríntia nascente, ansiosa e dividida, que estava enfrentando preocupações que não haviam surgido em Jerusalém. Alguns novos crentes coríntios vieram de um ambiente pagão, onde a carne era sacrificada a ídolos em adoração. Ao comer na casa de um incrédulo, eles temiam estar comendo algo que fazia parte de uma tradição demoníaca.

Outros tinham uma visão mais ampla: “Do Senhor é a terra e tudo o que nela há” (v. 26), para que pudessem participar das refeições sem medo. Como esses crentes iriam comer e adorar juntos, se tinham avaliações tão diferentes sobre os riscos do cardápio?

A resposta de Paulo fornece uma aula magistral sobre como podemos trabalhar com graça e verdade nossos próprios medos, bem como com os medos dos outros. Primeiro, ele reconheceu a realidade das preocupações deles: sim, para muitos, esta prática não tem a ver apenas com comida, mas também com a participação em um reino perigoso e demoníaco (v. 20-22). Então, ele ofereceu o contexto bíblico, para ajudá-los a lidar com as questões específicas decorrentes de sua formação cultural: Já que a terra é do Senhor, tudo o que é vendido em um mercado de carne pode ser comido sem levantar questões de consciência (v. 23-26).

Mas mesmo que Paulo, vindo de onde ele veio, não compartilhasse dessas preocupações, ele chamou os outros a fazerem concessões para aqueles irmãos em amor . Respeitem a consciência dos outros, ele aconselhou (v. 27-33). As Escrituras nos chamam a sermos gentis e respeitosos em relação aos medos das pessoas, deixando espaço para seus medos, mesmo que não compartilhemos deles.

Assumindo o risco de amar

Cientistas sociais mostraram que o partidarismo negativo — a animosidade e o medo que temos do “outro” lado — dirige nosso comportamento político muito mais do que a confiança que de fato temos nas políticas e nas filosofias do “nosso” lado.

“Como nos sentimos importa muito mais do que aquilo que pensamos”, observou Ezra Klein em seu livro Why We’re Polarized. Somos primordialmente criaturas sociais que se baseiam em sentimentos e, no caso de eleições, por exemplo, Klein diz: “Os sentimentos que mais importam são geralmente nossos sentimentos sobre o outro lado”.

Isso significa que o cristão que deseja viver sua fé em praça pública precisa fazer mais do que apenas pensar biblicamente nas coisas, antes de escolher. Precisamos ser capazes de reconhecer e, em seguida, de abordar como nos sentimos sobre as coisas, antes de escolher. Quem e o que tememos? Quem e o que amamos?

E, assim como sabemos que é sábio identificar a fonte dos fatos quando refletimos, a sabedoria nos convida a considerar a fonte e as motivações de nossos sentimentos.

Diminuir o zoom para ouvir histórias da igreja mais ampla me ajuda a recalibrar minhas preocupações.

Medos profundos e locais sobre a comida sacrificada aos ídolos impediam os coríntios de amar seus próximos e de compartilhar com eles da mesa da comunhão. No século 21, medos profundos continuam a nos impedir de amar direito nosso próximo.

Imagino que Paulo pudesse ter palavras muito semelhantes para escrever para os crentes da minha comunidade, onde o medo da COVID-19 é alto (e o uso de máscaras é muito comum), quando interagimos com alguns crentes que estão a apenas 240 quilômetros ao sul de nós, em uma comunidade onde o medo de reações adversas à vacina supera significativamente o medo da COVID-19 (e o uso de máscaras é baixo).

Como ele pode nos ensinar a reconhecer as preocupações de nossos irmãos crentes, em vez de descartá-las, e nos chamar a dar espaço uns aos outros em amor, para que possamos desfrutar da comunhão à mesa e da parceria no trabalho do reino? Podemos baixar a guarda, mesmo se discordarmos em baixar nossas máscaras.

Assim como meus irmãos e irmãs americanos me ajudaram a nomear, contextualizar e processar alguns dos medos que adquiri na África do Sul, talvez meu colega de trabalho nigeriano e eu possamos ajudar nossa igreja americana a lidar com alguns de seus medos locais. Não podemos fazer nada para diminuir o risco real de servidores públicos corruptos, mas talvez possamos mitigar um pouco do medo que 80% dos americanos têm, compartilhando nossas histórias de como aprendemos a confiar em Deus, quando vivíamos em países com menos estabilidade no governo.

Jesus nos chama a entrar neste mundo, amar nosso próximo, cuidar do estrangeiro e orar por nossos inimigos também. Fazer isso e assumir o risco de amar, como escreve Catherine McNiel, exigirá que façamos uma jornada através de nossos medos, nomeando-os, antes de poder achar que conseguiremos domá-los. Mas, antes ainda de poder nomeá-los, talvez precisemos desdobrar o mapa de nossas vidas e começar humildemente a espetar alfinetes nos lugares onde nossos medos se formaram.

Bronwyn Lea é pastora de discipulado e de mulheres na First Baptist Church of Davis, e autora de Beyond Awkward Side Hugs: Living as Christian Brothers and Sisters in a Sex-Crazed World .

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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