O debate sobre masculinidade precisa de homens como Johnny Cash

Os rapazes estão insatisfeitos e solitários. Mas o problema não é falta de masculinidade.

Christianity Today July 21, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / Archive Photos / Stringer / Getty

Enquanto escrevo, o álbum Johnny Cash at Folsom Prison gira no toca-discos, enchendo a sala de estar com os ritmos potentes e envolventes de um dos maiores contadores de histórias da América. Originalmente lançado em 1968, esse é um dos doze álbuns vintage de Cash que herdamos, quando uma amiga da nossa pequena comunidade de classe média se mudou para mais perto dos filhos.

Depois de alguns minutos escutando a faixa que deu nome ao álbum, “Folsom Prison Blues”, uma letra me chamou a atenção:

Quando eu era ainda um bebê, minha mãe me dizia: “Filho,
Seja sempre um bom menino, nunca brinque com armas.”
Mas eu atirei em um homem em Reno, só para vê-lo morrer,
Quando ouço aquele apito, abaixo a cabeça e choro.

E, de repente, temos uma voz do passado descrevendo as últimas semanas de horror nos Estados Unidos. De Buffalo, Nova York, a Uvalde, Texas, e a Highland Park, Illinois, estamos mais uma vez lutando para entender uma atrocidade que se banalizou: tiroteios em massa, sem sentido, levados a cabo por jovens insatisfeitos e violentos .

Como mãe de um rapaz de 16 anos já bastante maduro, penso muito sobre o estado da masculinidade na sociedade americana e na igreja evangélica. Muito tem sido dito sobre os excessos da masculinidade de John Wayne, mas eu me pergunto se não é hora de uma conversa sobre a masculinidade de Johnny Cash.

Enquanto John Wayne, também conhecido como Duke, é sinônimo de verdadeira coragem, bravura masculina e domínio, Johnny Cash, o famoso “homem de negro”, propicia uma visão alternativa — e, talvez, um caminho a seguir nestes tempos tão profundamente fragmentados.

As raízes de Cash tinham forte ligação com o sul dos Estados Unidos, e temas como pobreza, religião e uma porção de coisas associadas à cultura e à história da América informavam sua música. Seus maiores sucessos incluem baladas sentimentais sobre viajar de trem sem pagar passagem, o lendário Velho Oeste e operários de vida dura que sentem saudade das mães.

Mas ainda que Cash fosse um modelo de um tipo de masculinidade austera, ele também era um homem profundamente falho. Sua vida foi marcada por infidelidade, alcoolismo e abuso de drogas. Ele não era nenhum santo.

E, no entanto, Cash tinha uma vantagem sem igual — algo que falta ao discurso atual em torno da masculinidade. Ele sabia que era um homem profundamente falho. Ele sabia que era um homem que precisava da graça. Assim, embora cantasse sobre tentações que são comuns a todos, ele não justificava nem desculpava seu próprio papel nessas tentações. Pelo contrário, sua discografia tem um tom de confissão, tristeza e clamor por redenção.

Na já mencionada música “Folsom Prison Blues”, ele fala de sua sentença condenatória como algo justo e bom. E confessa: Sei que mereci , sei que não posso ser livre . E apenas ouça Cash cantar “Sunday Morning Coming Down”, de Kris Kristofferson, uma música sobre a alienação espiritual e a profunda solidão de uma vida desregrada, e tente não chorar.

A visão de Cash não é de uma masculinidade sem manchas e controlada. Sua masculinidade não é nem mesmo moral segundo os padrões clássicos, mas contém sementes de virtude porque é humilde e autoconsciente. Como o rei Davi, outro guerreiro e poeta caído, Cash canta e deixa bem claro: “Conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 51.3).

Essa justaposição de uma masculinidade que é austera, mas também profundamente humilde desafia o que David French chama de “o estranho e perigoso culto aos valentões da nova direita”.

Em um ensaio recente no The Dispatch, French observa que “o debate [em torno da masculinidade] é corrompido pela política, com diferentes versões de masculinidade que se identificam de forma tão cabal com o vermelho [a cor do Partido Republicano nos EUA] ou o azul [a cor do Partido Democrata nos EUA] que, muitas vezes, pode-se adivinhar como um homem vota pelas roupas que ele usa, pelo veículo que dirige e pela maneira como descreve o que significa ser homem”.

Mas Cash acaba com essa política da masculinidade americana. Ele não é um homem dócil nem domado — afinal, sempre cultivou a imagem de um fora da lei. Mas ele também não seguiu a linha dos partidos e, pelas definições contemporâneas, provavelmente teria sido considerado um “woke” [um ativista ou alguém sensível às causas sociais]. Sua música reflete uma profunda compaixão por aqueles que estão à margem. É quase como se o fato de ele conhecer as próprias falhas o tornasse lento para julgar as dificuldades dos outros.

Enquanto os aspirantes a líderes populistas afirmam estar lutando pelos humildes, Cash sabia que era mais provável encontrar esses necessitados em uma prisão, na linha de frente de uma guerra, no chão de fábrica ou negligenciados em alguma reserva. E não tinha medo de dizer isso. Sua gravação de 1964 da música “The Ballad of Ira Hayes” desafiou o tratamento que o governo dos EUA dispensava aos povos indígenas, e foi inicialmente banida pela gravadora de Cash e pelas estações de rádio em todo o país.

E talvez na música que mais representa a essência de Cash, o sucesso de 1971, “The Man in Black”, ele canta sobre a injustiça social que tanto impede que as pessoas prosperem:

Pelos pobres e abatidos
Que vivem no lado desesperado e faminto da cidade
Eu uso [preto] pelo prisioneiro que há muito pagou por seu crime
Mas está lá porque é uma vítima dos tempos. […]

Pelo velho doente e solitário
Pelos insensatos, cujos maus passos na vida fizeram deles homens frios
Eu uso o preto do luto pelas vidas que poderiam ter sido
A cada semana perdemos cem bons jovens

E eu uso [preto] pelos milhares que morreram
Acreditando que o Senhor estava ao lado deles
Eu uso [preto] pelos outros cem mil que morreram
Acreditando que todos nós estávamos ao lado deles.

Hoje, mais de 50 anos depois, arrogância e bravatas muitas vezes se disfarçam de masculinidade, e as pessoas dirão que há uma guerra contra a masculinidade. Mas acredite em mim, alguém que cresceu cercada por homens do tipo “sal da terra”, imperfeitos, mas humildes: o problema não é a masculinidade. O problema é essa versão de masculinidade que se recusa a assumir responsabilidades pessoais e celebra um triunfalismo de vencer a qualquer preço.

São esses vícios que estão impossibilitando o diálogo e a cooperação. São esses vícios que estão destruindo famílias, igrejas, comunidades e países.

Se quisermos fazer algum progresso na questão da violência armada ou em uma série de outras questões que destroem nosso país, devemos identificar a verdadeira fonte do problema. O conflito se dá entre arrogância e humildade. O conflito se dá entre aqueles que reconhecem suas falhas e as confessam e aqueles que se recusam a admitir seus erros. O conflito se dá entre corações sensíveis à situação de seu próximo e corações endurecidos.

Mais tarde na vida, Johnny Cash teve seu “encontro com Jesus”. Embora tenha sido batizado e criado em uma igreja batista do sul, ele redescobriu a fé pessoal após o casamento com sua segunda esposa, June Carter Cash.

Ele excursionou com Billy Graham, fez vários álbuns gospel e fez uma viagem à Terra Santa, a expressão máxima da cultura evangélica de raiz. A frente do álbum comemorativo desta viagem é estampada com uma imagem holográfica de Cash no Monte das Bem-Aventuranças.

É difícil saber quanto da persona pública de Cash se expressou em sua vida privada; se você ler o conjunto de suas músicas, provavelmente encontrará mais de uma letra censurável. Como nossa sociedade atual, ele era um homem de profundos desafios e contradições.

Mas você também encontrará uma visão de masculinidade honesta e humilde. Você encontrará uma visão de masculinidade que abraça a complexidade da condição humana enquanto se recusa a transferir a culpa, lamentar ou desviar a responsabilidade. Você encontrará uma visão de masculinidade que conhece sua necessidade de graça.

Em resumo, você encontrará um homem de verdade.

Hannah Anderson é a autora de Made for More, All That ' s Good e Humble Roots: How Humility Grounds and Nourishes Your Soul.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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