Será que o momento “devocional diário” é suficiente?

O engajamento bíblico eficaz deve ir além da nossa experiência pessoal com as Escrituras.

Christianity Today June 27, 2024
Unsplash / Aaron Burden / Riccardo Mion

A desconexão se cristalizou há 12 anos, quando eu (Dru) comecei a ministrar um curso introdutório sobre Antigo Testamento, para os alunos do primeiro ano. A cada semestre, estudantes cristãos devotos me relatavam que liam a Bíblia todos os dias. Eles conseguiam até recitar versículos-chave que tinham memorizado. Eram fluentes nos clichês teológicos cristãos. No entanto, apesar de seu engajamento constante com a Bíblia, eles ficaram chocados com o que encontramos em Gênesis — como o fato de haver algumas coisas sobre as quais Deus parece não ter ciência (Gênesis 11.5; 18.21; 22.12) —, sem falar de Juízes.

Comecei a perceber que a precária compreensão que eles tinham das Escrituras não se devia necessariamente à falta de leitura, embora isso também seja um grande problema nos EUA. De 2021 a 2022, o engajamento bíblico — medido pela frequência de uso, impacto espiritual e importância moral na vida cotidiana — caiu 21% entre os usuários adultos da Bíblia nos EUA. Foi a maior queda registrada em um ano pela Sociedade Bíblica Americana (ABS), em seu estudo anual State of the Bible. E quase 1 em cada 5 frequentadores de igreja disse que nunca lê a Bíblia.

Mas, no caso dos meus alunos, dos quais muitos leem a Bíblia diariamente e escolheram estudar em uma faculdade cristã, sua precária compreensão e aplicação das Escrituras parece acontecer devido à maneira que se envolvem com a Bíblia. E é dessa maneira que muitos cristãos americanos têm lido a Bíblia por décadas: por meio de “devocionais diários” ou de um “tempo de quietude”.

A maneira como esse tempo diário é em regra praticado hoje em dia dificilmente produzirá a proficiência necessária para entender e aplicar o ensino bíblico. O tempo devocional somente consegue recuperar seu poder de transformar nosso pensamento e nossas comunidades quando está inserido em uma matriz de hábitos de estudo das Escrituras.

Como meus alunos podiam ler tanto a Bíblia, mas terem tão pouco entendimento da Torá, prestarem quase nenhuma atenção ao seu foco no novo céu e na nova terra, e ficarem confusos sobre conceitos como a salvação e o mal? A CT discutiu anteriormente estatísticas da Lifeway Research que revelam essa tendência do analfabetismo bíblico entre a população em geral. Sua devoção diária às Escrituras parecia distanciá-los da compreensão de partes fundamentais da Bíblia.

“Como um todo”, escreveu Ed Stetzer, em 2017, “os americanos, incluindo muitos cristãos, têm uma visão que não é bíblica sobre o inferno, o pecado, a salvação, Jesus, a humanidade e a própria Bíblia”. E da mesma forma que muitos cristãos americanos, meus alunos não pareciam entender detalhes necessários para compreender todo o alcance das Escrituras.

Quando pastoreei uma igreja, no início dos anos 2000, esses conceitos teológicos eram considerados temas básicos que meus paroquianos de 80 e poucos anos (alguns dos quais tinham apenas um simples diploma do ensino médio!) pareciam entender profundamente e aplicar em suas vidas e em seus ministérios. Assim como meus alunos, esses cristãos da Greatest Generation [da geração mais grandiosa] também cultivavam o hábito de fazer leituras devocionais curtas todos os dias.

No entanto, graças a formas variadas de estudo ao longo do tempo, eles frequentemente entendiam o contexto da passagem em que estavam meditando — isto é, entendiam o que vinha antes e depois dela. Eles até podiam ler uma pequena passagem todos os dias, mas a liam de modo a integrá-la em sua compreensão mais ampla das Escrituras, algo que obtinham a partir de um engajamento mais robusto [com a Bíblia], o qual ficava fora do campo da leitura diária.

Contudo, os meus alunos, que não praticam formas mais robustas de engajamento tradicional com a Bíblia — como estudos bíblicos indutivos, planos anuais de leitura da Bíblia, o lecionário ou a lectio divina —, têm poucas ferramentas para ajudar a contextualizar uma meditação diária sobre um versículo isolado como este: “Que diremos, pois, diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Romanos 8.31). Esse contato com as Escrituras em doses pequenas, sem que tenhamos uma compreensão do todo, pode facilmente distorcer nossas interpretações. Tradições — já comprovadas pelo tempo — de formas mais extensas de engajamento com as Escrituras nos expõem o conteúdo bíblico e nos familiarizam com ele.

Quando meus calouros descreveram seus momentos devocionais diários, comecei a entender um pouco da desconexão. O que lhes faltava eram leituras comunitárias mais extensas das Escrituras, nas quais se sentissem seguros para fazer perguntas ao texto e refletir sobre seu significado.

O tempo devocional somente consegue recuperar seu poder de transformar nosso pensamento e nossas comunidades quando está inserido em uma matriz de hábitos de estudo das Escrituras.

Para eles, ler as Escrituras era uma responsabilidade individual que alcançava necessariamente um resultado: Deus mostraria ao leitor algo sobre a passagem que tivesse relevância imediata para a sua vida. Muitos estavam jogando roleta bíblica todas as manhãs, abrindo a Bíblia em uma página qualquer e pedindo a Deus que mostrasse a eles o que deveriam aprender com aqueles versículos. Alguns deles liam um único versículo por dia. Outros liam uma passagem, talvez um capítulo.

Mesmo quando essa prática se assemelha superficialmente ao hábito diário de suas avós ou de seus bisavôs, os efeitos dela podem ser totalmente diferentes. A maioria dos meus alunos, mesmo aqueles que tiveram algum tipo de preparo bíblico na igreja ou em alguma instituição, era pega de surpresa por perguntas básicas que eu lhes fazia sobre a Bíblia que tinham nas mãos. Sem conhecer o contexto e sem ter uma compreensão maior [da Bíblia], com o passar do tempo, seu estudo superficial das Escrituras apenas agravava sua ignorância e sua má compreensão.

Este fenômeno de ler a Bíblia sem entendê-la está se tornando aparente de forma mais ampla. O Center for Hebraic Thought [Centro do Pensamento Hebraico], a organização que Celina e eu lideramos, sediou uma conferência sobre proficiência bíblica, em outubro de 2021, que reuniu líderes especializados em engajamento bíblico e em educação bíblica. Quase duas dúzias de organizações estavam representadas, entre elas, a American Bible Society, The Gospel Coalition, Council for Christian Colleges & Universities e Museum of the Bible, bem como professores de seminário, YouTubers, designers de software e especialistas em programas curriculares bíblicos.

Quando contei a eles histórias sobre meus devotos alunos que não entendiam bem a Torá e os Evangelhos, todos concordaram que tinham visto esse mesmo fenômeno nos lugares que frequentavam, e estavam igualmente preocupados com a aparente ineficácia dos hábitos de leitura devocional de muitos cristãos.

Meus alunos não eram proficientes na Bíblia. Eles não conheciam de fato as histórias, os personagens, as ideias e os temas da Bíblia, e muito menos como os livros em si se encaixam e argumentam em favor de uma visão particular do mundo. E, como cristãos, devemos almejar algo que vá além do conhecimento básico. Esperamos conhecer e praticar o pensamento e a instrução das Escrituras com proficiência, estendendo sua sabedoria a todas as áreas da vida que ela não aborda diretamente.

Por exemplo, alguém que é proficiente na Bíblia saberá que o antigo sistema de justiça de Israel, conforme descrito na Torá, não previa encarceramento nem polícia. Mas alguém que é proficiente na Bíblia saberá que esse fato não significa automaticamente que devemos erradicar todas as prisões e forças policiais. Em vez disso, a pessoa que é proficiente na Bíblia será capaz de discernir os princípios subjacentes na Torá — os temas estruturais profundos e a orientação que informariam e moldariam nosso pensamento sobre crime, policiamento e encarceramento em nossos dias.

A proficiência se concentra em conhecer o vocabulário e a gramática das Escrituras — o que está na Bíblia e como a literatura funciona. A proficiência é a capacidade de pensar junto com o ensino reiterado nas Escrituras, e estender seu pensamento e suas práticas para situações de hoje — nas quais todas as variáveis ​​podem ser diferentes daquelas do contexto antigo, mas os princípios são os mesmos.

Se o mero conhecimento fosse o objetivo, as pessoas precisariam apenas saber a maior parte do que a Bíblia contém. Mas o conhecimento básico de “fatos bíblicos” não é suficiente. A própria Escritura exige que o povo de Deus medite e pratique suas instruções como comunidade, para que se torne sábio (Deuteronômio 4.10, 30.9-10). Deus disse a Israel que sua instrução, por meio de Moisés, era para que todo o Israel — o que abrange homens, mulheres, estrangeiros, nativos, jovens e velhos — se tornasse “um povo sábio e inteligente” (Deuteronômio 4.6). Jesus afirma que praticar sua instrução fará o mesmo (Mateus 7.24), mas meramente conhecer os textos não fará (Lucas 18.18-30).

Se não pudermos aplicar com proficiência os princípios bíblicos, estendendo o pensamento das Escrituras a questões como criptomoeda, reforma policial e prisional, identidade sexual e de gênero e tudo o mais que os autores bíblicos não abordaram diretamente, então, não somos o povo sábio e com discernimento que Deus deseja que sejamos.

Para muitos cristãos, particularmente os evangélicos, esse tempo devocional de manhã é “talvez a mais básica de todas as disciplinas espirituais”, escreve David Parker, em uma edição de 1991 do periódico Evangelical Quarterly. “Devocionais diários” são tão fundamentais para o conceito de relacionamento com Deus de muitos evangélicos que eles não conseguem imaginar um cristianismo fiel sem isso. Mas sua reiteração como algo de uso corrente — pelo menos nos EUA de hoje — tem apenas cerca de 150 anos.

Muitos evangélicos defendem o momento devocional diário citando Mateus 6.6: “vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está no secreto.” Mas esta passagem não leva em conta a forma particular que o tempo devocional geralmente assume.

O momento devocional de hoje normalmente envolve levar a Bíblia para um lugar privado, e “fazer isso logo de manhã, não fazer uso de formas prescritas de oração por escrito, [mas] sentar-se em silêncio e esperar que Deus fale com você, trazendo alguma orientação concreta para o dia”, escreveu em sua dissertação From Morning Watch to Quiet Time [Da vigília matinal ao momento devocional] Greg Johnson, pastor principal da Memorial Presbyterian Church em St. Louis.

Johnson diz que a prática moderna do tempo devocional remonta à década de 1870, quando os evangélicos americanos fundiram duas práticas devocionais puritanas, que antes eram separadas: a oração privada e o estudo bíblico privado. Essa fusão de oração e estudo bíblico se transformou na “vigília matinal”, que enfatizava a oração intercessória. Daí, transformou-se em “tempo de quietude”, que tirou a ênfase da oração intercessória em favor da escuta silenciosa ou da meditação. Essa nova ênfase em indivíduos recebendo insights diários de Deus transformou a natureza do engajamento bíblico que foi ensinado a gerações de cristãos americanos.

Os devocionais diários têm sido caracteristicamente solitários, e em geral não envolvem um estudo rigoroso das Escrituras. Em vez disso, os leitores geralmente se concentram em um capítulo ou mesmo em alguns versículos por sessão, dos quais podem esperar receber alguma orientação de Deus para sua vida pessoal naquele momento. Os devocionais diários geralmente incluem um período de “escuta” orante da voz de Deus, que se manifesta, segundo se acredita, nos versículos lidos naquela sessão ou por meio de comunicação direta com a mente do ouvinte.

Embora essa escuta possa ser expectante, ela é essencialmente passiva. Em geral, é guiada por uma crença tácita de que a Palavra de Deus fala e transforma por meio de percepções repentinas, direcionadas individualmente a quem lê a Bíblia, e não por meio do estudo continuado da Palavra e do questionamento ativo na comunidade.

Esse ritual diário privado se beneficiou grandemente da publicação da Bíblia de Referência Scofield, em 1909, uma Bíblia de estudo individual, acessível e amplamente vendida no mercado. A Bíblia Scofield refletiu e promoveu a disseminação do dispensacionalismo entre os protestantes americanos. O dispensacionalismo tinha um poder de animar, segundo Greg Johnson nos disse em uma entrevista, porque dava às pessoas uma estrutura para ler o Antigo Testamento e sugeria que os leitores estavam se envolvendo novamente com as principais ideias bíblicas que os protestantes haviam ignorado.

O uso da Bíblia Scofield no movimento dispensacionalista encorajou uma abordagem individualista ao estudo da Bíblia. Ou, pelo menos, inflou a confiança que os leitores tinham em fazer sua própria interpretação independente das Escrituras. Mark Noll observa em America’s Book: The Rise and Decline of a Bible Civilization, 1794-1911 [O Livro da América: A ascensão e o declínio de uma civilização bíblica, 1794-1911], “À medida que aprofundavam sua crença na capacidade de pessoas comuns compreenderem o significado claro da Bíblia”, o populismo [desse conceito] da Bíblia somente, pregado pelo movimento dispensacionalista, na verdade sustentou “uma elite composta por um corpo de professores que guiava outras pessoas, passo a passo, na leitura da Bíblia ‘por conta própria’”.

Em outras palavras, a noção de estudo independente [da Bíblia] era sustentada pelo comentário ao lado do texto bíblico. Ironicamente, “a Bíblia Scofield guiava os leitores proclamando justamente sua libertação de um guia”, escreve Noll.

Contrastando com sermões e estudos bíblicos em grupo, os devocionais diários se tornaram exercícios de formação interna e individual, compartilhando tendências com o modernismo secular da época. Os defensores do tempo de quietude começaram a identificar o principal benefício dos devocionais diários como “um eu transformado, em vez de um mundo transformado”, escreve Johnson em sua dissertação.

Embora a formação do caráter pessoal seja essencial, se tomada isoladamente, ela se alinha melhor com as tendências modernistas do que com o foco bíblico na formação do caráter por meio de hábitos, rituais e orientação da comunidade. Esse foco interno também pode moldar a construção da justiça em comunidades e sistemas — uma preocupação primordial dos autores bíblicos — como adesão a princípios éticos individualistas.

Alguns praticantes do tempo devocional começaram a tratar a Bíblia mais como uma ferramenta de meditação do que como o ensinamento autoritativo de Deus e seu povo. Durante o tempo devocional, a contemplação progrediria para a confissão e para a meditação bíblica, que culminaria no registro de qualquer orientação divina recebida naquele dia. A leitura, como Johnson observa, pode ser de apenas uma curta passagem da Bíblia ou de um comentário devocional — não é um estudo extenso da Escritura vista como um corpus literário unificado.

Hoje, o tempo devocional diário geralmente não envolve nem as Escrituras. Como a CT já observou antes, a pesquisa de 2023 da Lifeway Research revelou que, embora 65% dos frequentadores de igrejas protestantes passem um tempo sozinhos com Deus diariamente, apenas 39% leem a Bíblia durante esse tempo. Se essa estatística significa que os cristãos estão trocando a leitura devocional apressada e fragmentada pelo estudo bíblico holístico em grupo, então, talvez isso seja muito melhor. Mas a queda no engajamento geral com a Bíblia, detectada no estudo da ABS, sugere que mais cristãos simplesmente não estão lendo as Escrituras.

No final do século 20, esse momento devocional diário havia se tornado um elemento fixo da ortodoxia em alguns setores do cristianismo. Christy Gates, diretora nacional de engajamento bíblico da InterVarsity Christian Fellowship, afirma que a prática do “TDD” (tempo devocional diário) no ministério nas universidades acabou se tornando o ponto baixo da vida espiritual de alguém. Perguntar a alguém sobre a sua “caminhada com Deus” passou a significar “você está fazendo seu devocional diário?”

Gates enfatizou que, mesmo quando um ministério ensina a prática do estudo bíblico em grupo junto com o TDD, como a InterVarsity faz, o estudo em grupo normalmente mingua, enquanto o TDD persiste. Por quê? Ela acha que o TDD está relacionado ao nosso individualismo religioso, que deseja que Deus fale conosco diretamente. No passado, o culto diário mostrava famílias ou comunidades pedindo a provisão de Deus; hoje, porém, ele consiste principalmente em indivíduos pedindo a Deus que fale com eles. O perigo é claro: ouvir insights dados por Deus nas Escrituras e em oração, sem que haja uma responsabilidade comunitária, pode gerar uma compreensão do cristianismo muito tênue, frágil.

Cristãos que enfatizam o TDD como uma prática espiritual necessária normalmente apontarão para os momentos em que Jesus se isolava para orar como um modelo para este ritual: “De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus levantou-se, saiu de casa e foi para um lugar deserto, onde ficou orando” (Marcos 1.35). É evidente que, quando foi encontrado por seus frustrados discípulos, Jesus então explica por que ele deixou o povoado: “Vamos para outro lugar, para os povoados vizinhos, para que também lá eu pregue. Foi para isso que eu vim” (v. 38, ênfase acrescentada). Lucas também aponta para o hábito de Jesus: “Mas Jesus retirava-se para lugares solitários, e orava” (Lucas 5.16). Jesus estava, como de costume, em busca de descanso das massas exigentes ou em trânsito para a próxima parada, pois “foi para isso que eu vim”.

É razoável ver a oração privada de Jesus como um ritual que devemos imitar. No mínimo, parece ser uma prática sábia que emerge das Escrituras, mesmo que o tempo devocional de oração e leitura da Bíblia nunca tenham sido ordenados aos hebreus ou aos primeiros seguidores de Jesus.

Mas especialistas contemporâneos em engajamento bíblico concordam que o tempo devocional diário, que acabamos por juntar com a leitura diária da Bíblia, pode distorcer nossa compreensão das Escrituras. Os líderes de ministérios paraeclesiásticos que entrevistamos já haviam identificado que esse tempo diário de quietude e leitura devocional, quando consiste na única forma de absorção das Escrituras, é algo potencialmente problemático nas comunidades em que exercem seu ministério.

Professores que ensinam a Bíblia, administradores de seminários e pastores, assim como integrantes de organizações — como American Bible Society [Sociedade Bíblica Americana], Our Daily Bread [Nosso Pão Diário], Cru [Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo] e InterVarsity — nos disseram, todos eles, que querem promover o engajamento bíblico diário. Mas eles também pretendem remodelar esse engajamento para pessoas como meus alunos do primeiro ano, ou seja, para aquelas pessoas que leem a Bíblia em doses pequenas todos os dias, mas não entendem o que estão lendo.

Não há uma medida universal para aferir a proficiência bíblica. Nem há consenso sobre qual grau de conhecimento constitui essa proficiência. A ABS mede o que chama de “engajamento bíblico” (“engajamento” significa frequência de uso, impacto e centralidade na moralidade) em seus estudos intitulados State of the Bible [Estado da Bíblia]. Mas alguém pode ter uma classificação alta em “engajamento” sem realmente saber muito sobre a própria teologia das Escrituras ou sobre os pressupostos básicos dos autores bíblicos. Além disso, a evidência anedótica sugere que a proficiência bíblica vem passando por um declínio cada vez mais acentuado.

Se a proficiência bíblica está diminuindo, mesmo entre aqueles que fazem uma leitura devocional todos os dias, então, qual é o caminho que devemos seguir? A maioria dos ministérios paraeclesiásticos com os quais conversamos relata que tem considerado métodos que fornecem uma perspectiva mais ampla das Escrituras. Isso inclui rituais antigos de leitura das Escrituras, os quais muitas igrejas evangélicas raramente praticam (como a lectio divina, o ofício diário do Livro de Oração Comum, e assim por diante). Mas a prática mais mencionada pelos líderes de ministério foi a leitura pública, ou comunitária, das Escrituras.

De certo modo, essa forma de engajamento bíblico é o oposto do tempo devocional. Em vez de ler, as comunidades ouvem juntas longos trechos das Escrituras — às vezes a leitura tem a duração de 30 minutos a uma hora — usando Bíblias em áudio ou pedindo que as pessoas leiam a Bíblia em voz alta. Os professores que ensinam a Bíblia há muito notaram que o habitat natural das Escrituras fica nos ouvidos dos cristãos reunidos, não nos olhos dos indivíduos. Neste ponto, os efeitos do engajamento bíblico prolongado sobre a proficiência bíblica são todos anedóticos.

De Moisés a Josias e Neemias, a leitura comunitária das Escrituras foi normal em pontos-chave da história de Israel. Entre outros casos, a leitura pública das Escrituras ocorreu no Sinai (Êxodo 19.7), durante as reformas de Josias (2Reis 23.1+2) e para todos os que retornaram a Judá, nos dias de Esdras (Neemias 8). E a prática nas sinagogas de ler a Torá e os Profetas todo sábado (Lucas 4.16-17; Atos 13.14-15) surgiu por volta do terceiro século antes de Jesus.

Todas essas leituras públicas incluíam explicações e o responso comunitário. Como Brian Wright argumenta em seu livro Communal Reading in the Time of Jesus [Leitura comunitária no tempo de Jesus], a leitura pública de literatura que varreu o Império Romano também incluiu os cristãos e seus textos sagrados. Para a igreja primitiva, isso teria incluído não apenas ouvir juntos [o texto bíblico], mas também questionar e raciocinar juntos sobre o que foi ouvido.

Então, quando Justino Mártir (155 d.C.) relata que os primeiros cristãos se reuniam aos domingos para ler as Escrituras “enquanto o tempo permitia”, devemos imaginar que essas leituras comunitárias não terminavam apenas com um amém em uníssono. Essas primeiras comunidades cristãs judaico-gentílicas provavelmente travavam um embate com o que tinham ouvido, para entenderem aquilo como comunidade.

O engajamento prolongado com as Escrituras não é novidade para a igreja. A seita de Jesus, seita judaica do primeiro século, foi criada com leituras semanais e longas da Torá e da Haftarah (Profetas) junto com o canto dos Salmos. Do lecionário medieval da igreja Católica Romana, também usado pelos reformadores protestantes, ao plano anual de leitura da Bíblia inteira de Robert Murray M'Cheyne, no século 19, a ampla e regular exposição às Escrituras foi um componente crucial do baixo e generalizado índice de proficiência bíblica na história da igreja.

Podemos imaginar o quão estranho o nosso tempo devocional diário pareceria não apenas para os antigos israelitas, mas também para as antigas comunidades cristãs e judaicas. O que eles fariam com um seguidor devoto que lê sozinho algumas frases das Escrituras, diariamente, e então pede a Deus que revele algo para ele e para os dias de hoje? Este ritual parece ficar ainda mais bizarro quando o leitor não tem uma compreensão holística das narrativas, dos temas, da teologia e dos demais aspectos da Bíblia.

Se muitos evangélicos americanos não conseguem imaginar uma vida espiritual próspera sem esta leitura bíblica diária em estilo devocional, então, eles provavelmente não conseguem imaginar a vida espiritual da maioria dos judeus e dos cristãos ao longo da história — e de muitas comunidades cristãs do mundo atual — que não tinham acesso fácil a uma Bíblia pessoal. Devemos repensar nossa imagem do devocional e as maneiras que lemos as Escrituras, e nos familiarizar novamente com os comportamentos essenciais que sempre caracterizaram o povo de Deus.

Mas pode ser que estejamos precisando mudar o centro da gravidade devocional, passando-o das práticas solitárias para as práticas comunitárias.

Talvez devêssemos seguir o exemplo dado pela igreja primitiva, descrito por Justino Mártir, de cristãos que liam longos trechos da Bíblia juntos e discutiam as questões difíceis que o texto suscitava, em vez de ouvirem passivamente ou de confiarem de forma acrítica em comentários teológicos. Podemos aceitar a discordância com amor e humildade, em prol de uma compreensão mútua melhorada. Devemos nos disciplinar para deixar que nossos desconfortos e confusões sobre esse texto tão antigo venham à superfície, para que possamos superar as respostas rápidas e fáceis que muitas vezes varrem nossas maiores questões para debaixo do tapete.

E são precisamente essas questões e as necessidades percebidas que nos guiam em direção a compreender melhor a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento, o caráter consistente de Deus e a relevância das Escrituras para todas as áreas da vida, e não só “para que fale à minha vida hoje”.

Se os rituais comuns de engajamento bíblico que temos hoje não estão funcionando, então, devemos deixá-los em favor de práticas de aprendizado profundo. Esses novos hábitos podem consistir em escuta comunitária, imersão profunda, leitura repetida de livros inteiros da Bíblia ou alguma outra estratégia. Mas a suposição de que o devocional diário por si só trará conhecimento e proficiência nas Escrituras não parece mais ser sustentável, visto que nunca foi.

O objetivo não é abandonar o tempo devocional. A nós foi dado acesso fácil a toda a instrução de Deus, e momentos solitários de oração e de reflexão fazem parte de uma vida cristã plena. Mas pode ser que estejamos precisando mudar o centro da gravidade devocional, passando-o das práticas solitárias para as práticas comunitárias.

Esperamos ver famílias e igrejas cristãs recriarem uma cultura de engajamento bíblico vigoroso e comunitário, que faria com que os tempos devocionais redundassem em práticas que gerem comunidades justas e pacíficas.

Dru Johnson é professor de estudos bíblicos e teológicos no The King's College, na cidade de Nova York. Ele e Celina Durgin dirigem e editam The Biblical Mind [A Mente Bíblica], publicado pelo Center for Hebraic Thought [Centro do Pensamento Hebraico].

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A licença-paternidade fez de mim um pai cristão melhor

Esse “tempo livre” no início da vida dos bebês ajuda os pais a se prepararem para criar seus filhos “na disciplina e na instrução do Senhor”.

Christianity Today June 25, 2024
Redd / Unsplash

Quando nossa primeira filha nasceu, no outono de 2021, ela não conseguia mamar direito. Para minha esposa, alimentá-la era um exercício de pura dor que se repetia num intervalo de poucas horas. Consultamos especialistas em lactação, mas sem sucesso; uma microcirurgia para língua-presa, uma nova tendência para casos como esse, também não ajudou. Pensamos em trocar o leite materno por fórmula, mas minha esposa estava decidida a continuar amamentando.

Então, nós a alimentávamos em três etapas: ela amamentava o bebê com os dentes cerrados [de dor], pelo tempo que conseguisse suportar, enquanto eu fazia o meu melhor para distraí-la — cantava músicas, lia, ligava a TV. Então, eu pegava minha filha e terminava de alimentá-la com a mamadeira, enquanto minha esposa tirava leite. No fim das contas, o bebê só precisou crescer um pouco. Com oito semanas, a dor que a minha esposa sentia tinha sumido.

Quando nossa segunda filha nasceu, no ano passado, o processo parecia que ia se repetir — e então, na segunda semana, inesperadamente desapareceu. O maior desafio, como viemos a descobrir, foi controlar as emoções da minha outra filha, que, de súbito, não era mais o centro do universo que conhecia.

Após um período de protestos, ela se acostumou com o novo equilíbrio. Sim, a mãe tinha um novo bebê, mas ela ainda tinha o pai. Durante aquelas primeiras semanas, minha filha mais velha e eu éramos inseparáveis. (Eu também arranjei tempo para a mãe e o novo bebê!) Logo, ela passou a gostar da irmãzinha o suficiente para que todos nós nos reintegrássemos como uma família feliz.

Ambas as histórias têm um subtexto crucial: eu estava em licença-paternidade. Pela política heroicamente generosa e deliberadamente pró-família do meu empregador da época, eu tinha liberdade para tirar até 12 semanas de folga por filho, para ajudar minha esposa a se recuperar do parto e para criar vínculos com o bebê recém-chegado.

Tive sorte; esse tipo de arranjo é raro. A maioria dos pais americanos tira apenas um curto período de licença-paternidade, quando os filhos nascem, se é que tiram. Apesar de um número crescente de empresas e de estados oferecerem algum tipo de folga para os pais — Washington, por exemplo, implementou um padrão de 12 semanas para todos os funcionários federais, em 2022 — e apesar de pesquisas descobrirem que a maioria dos americanos apoia a prática, o pai americano em média ainda tira apenas uma semana de licença. Sete em cada dez tiram duas semanas ou menos.

Parte disso é simples política corporativa; muitos pais tirariam mais tempo de licença se seu local de trabalho aceitasse bem isso. Mas também há uma razão pela qual tantas empresas escapam [dessa demanda] sem oferecer muito: ainda há, além disso, uma boa dose de complicada resistência cultural a que os novos pais tirem sua licença, e aqui entram em jogo as ansiedades masculinas sobre serem vistos como indivíduos insuficientemente motivados para o trabalho. Mesmo nos países que têm uma licença-paternidade generosa financiada pelo governo — como a Coreia do Sul e o Japão, por exemplo — muitos pais não tiram essa licença.

Para os cristãos conservadores dos EUA, em particular, pode parecer que o conceito de licença-paternidade vai contra vários dos nossos próprios instintos políticos e culturais. Alguns podem revirar os olhos para os empregadores — sem mencionar os contribuintes — ao serem solicitados a pagar a conta para que um pai possa ficar em casa com seu bebê recém-nascido. Afinal, não é ele quem está se recuperando do parto, uma diferença biológica importante e essencial.

Outros podem ver, em uma sociedade que prioriza a licença-maternidade em particular, uma afirmação saudável dos papéis tradicionais de gênero. Isso vale tanto para filhos biológicos quanto para os adotados. As mães ficam em casa com seus filhos — brincando e cuidando deles, banhando-os e alimentando-os. Os pais saem para trabalhar.

Mas a maior fonte do ceticismo de muitos cristãos em relação à licença-paternidade é a mesma que alimenta a cultura em geral: a simples inércia. Argumenta-se que as pessoas não costumavam ter o luxo da licença-paternidade remunerada, e mesmo assim conseguiam se virar. Ter o pai em casa é uma extravagância da qual o bebê sequer vai se lembrar.

Pais que tiram a licença-paternidade frequentemente se deparam com essa inclinação até mesmo por parte de amigos e conhecidos bem-intencionados: Como está indo seu tempo livre? Conseguindo matar as horas? Aposto que você está louco para voltar ao trabalho, não é?

Já passou da hora de os cristãos revisitarem essa atitude. Sabemos que a paternidade não é um chamado de pouca importância, nem um papel secundário. A principla tarefa dos pais não é pagar a alimentação e a educação universitária dos filhos — ainda que isso também seja bom —, mas sim criar seus filhos “na disciplina e na instrução do Senhor” (Efésios 6.4, ESV). O livro de Provérbios é uma longa instrução paterna em retidão: “Ouçam, meus filhos, a instrução de um pai; estejam atentos e obterão discernimento. O ensino que ofereço a vocês é bom; por isso, não abandonem a minha instrução” (4.1-2).

As Escrituras nos mostram bons pais, que estão sempre prontos, e são íntimos, sábios e compassivos — que recebem de braços abertos um filho pródigo com um banquete (Lucas 15.20-24), que estão prontos para morrer em paz, após ver o rosto de um filho amado pela última vez (Gênesis 46.29). Em última análise, é claro, a paternidade é um dever que nos é modelado por Deus, nosso pai — não por um provedor ausente, mas por um pai que calorosamente nos convida a nos aproximarmos dele em amor.

Os pais precisam de licença-paternidade para cumprir esse chamado? Claro que não. Mas obrigar um pai a voltar logo para o trabalho, apenas uma ou duas semanas após o nascimento do filho, joga contra esse chamado de todas as maneiras possíveis, mesmo que, de início, haja mais troca de fraldas do que “disciplina e instrução”. De repente, esse esforço conjunto se torna um projeto solo, a cargo apenas da mãe, no sentido de descobrir os vários desafios do começo da maternidade, transitar por eles e superá-los — e são esses justamente os desafios por meio dos quais se aprende o que é ser pai e mãe.

Quase automaticamente, o pai se torna um espectador desse processo. Longe de desempenhar o papel de liderança espiritual de sua família, ele pode ver-se recuando para um papel secundário como pai, alguém que fica feliz em deixar todas as partes difíceis do trabalho [de criar um filho] para a mãe, especialista forjada nas batalhas, que sabe onde está a pomada para assaduras e como tirar um bebê escorregadio do banho.

Tenho certeza de que, no final das contas, teríamos superado os pequenos desafios que mencionei no início, mesmo sem a bênção da licença-paternidade. Alimentar nossa primeira filha em três etapas não teria sido uma opção; então, teríamos apenas trocado para alimentá-la com mamadeira e fórmula. E não há nada de errado com as fórmulas!

Ainda assim, se tivéssemos desistido da amamentação com a primeira filha, provavelmente teríamos feito o mesmo com a segunda — e depois de dois fracassos desse tipo, por que nos preocuparíamos em tentar novamente no futuro, se fôssemos abençoados com mais filhos?

Nossa filha mais velha teria encontrado outras maneiras de lidar com o fato de ter uma irmã tão cedo, assim como minha esposa também teria encontrado maneiras de lidar com as milhares de pequenas lutas do início da maternidade.

Mas sou grato a Deus e ao meu antigo empregador porque, naqueles primeiros meses formativos, minha família não foi obrigada a entender [sozinha] os meandros de uma nova vida na qual eu seria apenas uma presença ocasional já de início. Sou grato por ter tido a oportunidade de dar uma pausa na vida como eu a conhecia, por algumas semanas, para que nos adaptássemos a nossa nova vida — e também sou grato porque, em vez de aprender como encaixar a paternidade em quaisquer espaços que encontrasse no meu trabalho, eu pude fazer um curso intensivo de paternidade básica e, só então, descobrir como meu trabalho se encaixaria nisso.

Portanto, empresas: ofereçam a licença-paternidade a seus funcionários! E cristãos: abracem-na! Papais: tirem sua licença-paternidade — e depois espalhem a notícia!

Andrew Egger é o correspondente da Casa Branca no The Bulwark.

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Books

Convenção Batista do Sul: Por que a reforma contra os abusos continua esbarrando em obstáculos?

Líderes e defensores da causa são gratos pelo apoio da convenção, mas estão frustrados com a incapacidade de implementar seus planos.

Josh Wester e membros da Força-Tarefa para Implementação da Reforma Contra Abusos (ARITF)

Josh Wester e membros da Força-Tarefa para Implementação da Reforma Contra Abusos (ARITF)

Christianity Today June 24, 2024
Sonya Singh / Baptist Press

Jules Woodson se lembra da faísca de esperança que sentiu, quando um mar de cédulas amarelas surgiu do outro lado do salão, na reunião anual da Convenção Batista do Sul (SBC, segundo a sigla em inglês), em 2022. O voto a favor da reforma contra os abusos, após uma investigação sobre vários casos, foi um divisor de águas e um sinal de que os mensageiros [delegados enviados pelas igrejas da Convenção] se importavam com vítimas como ela e estavam dispostos a ouvir e a fazer mudanças.

Na reunião anual deste ano, em Indianápolis, as recomendações sobre a reforma contra abusos foram aprovadas novamente, com outra onda de milhares de votos, mas Woodson se emocionou por um motivo diferente: sua decepção pelo pouco que havia sido feito [a respeito].

As entidades da SBC prometeram milhões para financiar a reforma. A convenção tem votado repetidamente a favor dos esforços de prevenção e resposta a abusos, com margens esmagadoras de votos. Forças-tarefa, nomeadas pelo presidente da convenção, ofereceram seu tempo para desenvolver recursos para treinamento, um banco de dados dos pastores abusivos e um escritório para supervisionar o trabalho contínuo da reforma contra abusos.

“Aqueles que não têm o abuso como prioridade, pensam: ‘Ah, estamos indo bem’”, disse Woodson, cujo testemunho do abuso sofrido nas mãos de seu pastor de jovens, no Texas, lançou os movimentos #ChurchToo e #SBCToo há seis anos. “Mas ainda há muitas coisas mais a serem feitas.”

As vítimas de abuso e os defensores da causa pedem uma reforma na SBC e estão agora observando os líderes dentro da convenção tentando transitar pelos tipos de obstáculos e barreiras denominacionais que enfrentaram durante anos fora da convenção.

“Disseram-nos repetidamente: ‘Vocês não podem fazer isso, não podem fazer aquilo’”, disse Mike Keahbone, candidato a presidente da SBC que atua na Força-Tarefa para Implementação da Reforma Contra Abusos (ARITF, segundo a sigla em inglês). “É preciso se perguntar: Por que diabos estamos sendo tão duramente combatidos nessa questão? […] Ou você realmente não acha que há um problema [que precisa ser enfrentado] ou tem algo a esconder.”

Na terça-feira (11 de junho), a força-tarefa comemorou um novo programa de ações para ajudar as igrejas da SBC a responder aos abusos, mas o tão esperado banco de dados continua vazio, e não há um “órgão permanente” para supervisionar a reforma contra os abusos, depois que o trabalho da força-tarefa chegar ao fim, ainda na mesma semana.

Os mensageiros em Indianápolis votaram para afirmar essas prioridades e para passar o trabalho da força-tarefa para o Comitê Executivo, o órgão que lida com os assuntos da SBC fora da reunião anual, e para seu novo presidente, Jeff Iorg.

“Os esforços de resposta e de prevenção contra os abusos crescem, à medida que aumentamos a conscientização e, portanto, estou grato por ver o excelente trabalho realizado no programa de ações essenciais”, disse Keith Myer, um pastor de Maryland que defendeu a causa, em uma declaração dada à CT.

“O que me preocupa é que um conjunto de coisas relativamente simples, que compõem um sistema de proteção completo, pareça algo controverso e inatingível. Um banco de dados faz sentido e resolve o problema de comunicar quem são os transgressores para as nossas 50.000 igrejas. Um órgão permanente para tratar de abusos dá às igrejas e aos pastores alguém com quem conversar, quando se deparam com uma crise, e resolve o problema de onde encontrar ajuda, quando não sabem o que fazer.”

O presidente da força-tarefa (ARITF), Josh Wester, explicou que eles ficaram sabendo em janeiro que preocupações com questões de responsabilidade previstas em apólices de seguro impediam que esforços significativos e robustos de reforma — entre eles o banco de dados — fossem realizados pela própria convenção. Depois que a força-tarefa sugeriu a formação de uma nova organização sem fins lucrativos para publicar o banco de dados de forma independente, eles não tiveram mais acesso a recursos financeiros. Os dirigentes da entidade, que ofereceram 3 milhões de dólares, disseram que o dinheiro não poderia ser usado fora da SBC.

Wester, pastor da Carolina do Norte, disse que a força-tarefa fez tudo o que podia e que seus membros estavam “extremamente frustrados” por não apresentarem o banco de dados com mais de 100 nomes, que haviam preparado antes de enfrentar obstáculos dentro da SBC. “Você só tem os meios para dar os passos que consegue pagar”, disse ele aos repórteres. “Tem sido uma verdadeira luta para nós”.

A força-tarefa arrecadou 75.000 dólares por conta própria, para financiar a Comissão Independente de Reforma contra Abusos. Eles estão confiantes de que o Comitê Executivo não permitirá que o site do banco de dados fique vazio por mais um ano, e algumas das vítimas de abuso estão particularmente esperançosas com a liderança de Iorg. Ele assumiu o cargo depois de ter sido presidente do Gateway Seminary da SBC, na Califórnia, e expressou seu compromisso em ajudar [a iniciativa].

Aqueles que estão pressionando pela reforma sabiam que o processo seria lento, mas ainda assim é desanimador ver que até mesmo as coisas mais básicas e os primeiros passos que eles haviam planejado ainda não estejam acontecendo.

Grant Gaines, um pastor do Tennessee, está preocupado com a possibilidade de perder o “momento”, uma vez que a implementação da reforma continua sendo adiada.

“As vítimas nos disseram, desde o início, que isso seria difícil e que esperássemos obstáculos, mesmo por parte de pessoas de quem gostamos e em quem confiamos”, disse Gaines, que apresentou a moção de 2021, que pedia uma investigação sobre a resposta do Comitê Executivo aos abusos.

As preocupações com as questões de responsabilidade [civil e criminal] e o financiamento que a força-tarefa (ARITF) enfrentou, nos últimos dois anos, refletem a permanência de certas reservas relacionadas à tentativa da convenção de tratar da questão dos abusos — especialmente porque as quantias em dólares continuam a crescer.

Em declaração pública, Wester teve que repetir os esclarecimentos de que os esforços da reforma contra os abusos não interferem na autonomia da igreja, e que o abuso não precisa ser generalizado para que a convenção melhore sua resposta.

“Quando se trata de abuso sexual, o problema para a Convenção Batista do Sul nunca foi o fato de termos abusos ocorrendo a taxas extremamente desproporcionais ou o fato de que nossa convenção estivesse repleta de abusadores”, disse ele aos mensageiros. “Em vez disso, o problema que enfrentamos é lidar com o fato de que a Convenção Batista do Sul, que tem mais de 10 milhões de membros e quase 50.000 igrejas, sendo o maior corpo protestante da América, não tivesse um plano significativo para ajudar suas igrejas a prevenir o abuso sexual ou a responder a ele”.

As moções feitas, apenas para contratar advogados que reflitam os valores da convenção, ou para iniciar uma estimativa para contabilizar o total gasto na condução de uma investigação sobre sua resposta a abusos, indicam que uma facção dentro da SBC ainda mantém um sentimento persistente de arrependimento sobre as consequências do relatório da Guidepost Solutions, de 2022.

Iorg mencionou que eles pagaram pelo menos 2 milhões de dólares, apenas para cobrir os custos de indenização, depois que duas pessoas citadas no relatório entraram com processos na justiça (o ex-presidente da SBC, Johnny Hunt, e o ex-professor de seminário David Sills).

“Temos que preparar os pastores para proteger as ovelhas dos lobos. Isso pode ser feito — pode ser feito com uma política, pode ser bem feito. E, por uma série de razões, continuou sendo adiado e pessoas continuaram sendo feridas”, disse Bruce Frank, ex-chefe da Força-Tarefa Inicial sobre Abuso Sexual e pastor na Carolina do Norte. “A quantia de 2 milhões dólares é muito dinheiro? Sim, é, mas não chega nem perto do preço que custou às vítimas [de abuso].”

Os membros da força-tarefa e os defensores da reforma estão gratos por ver o constante apoio a seus esforços no plenário da convenção, mas estão frustrados com o fato de que o entusiasmo dos Batistas do Sul na reunião não superou os desafios que surgem, quando tentam promover mudanças no nível da convenção.

As vítimas de abuso denunciaram o envolvimento legal de líderes da entidade com um parecer de um amicus curiae [uma intervenção de terceiro no processo] do Kentucky, no ano passado, que limitaria a responsabilidade [da SBC] em litígios sobre abuso sexual, e uma moção do plenário pediu que a SBC censurasse Bart Barber, presidente da convenção, Albert Mohler, presidente do Southern Seminary [Seminário do Sul] e Ben Mandrell, presidente da Lifeway, por aprovarem o parecer. Os mensageiros votaram contra a moção de censura [julgando-a fora de ordem], na manhã de quarta-feira.

As entidades da SBC também foram alvo de uma investigação do Departamento de Justiça — iniciada há quase dois anos — que emitiu sua primeira acusação no mês passado.

Frank e Keahbone, ambos candidatos [nas eleições da SBC] que estiveram envolvidos em esforços pela reforma contra os abusos, não chegaram ao segundo turno na corrida presidencial deste ano. Em um fórum, na noite de segunda-feira, Keahbone fez referência a pessoas que “estão nos atrapalhando” e “trabalhando intencionalmente nos bastidores para garantir que [o banco de dados] não venha a público”.

Gaines perguntou à força-tarefa se eles revelariam quem é responsável por obstruir seu trabalho e como [isso acontece], mas, até agora, os envolvidos não citaram nomes. Em comentários à mídia, Wester disse que não queria “agravar ainda mais o problema entrando em muitos detalhes”.

Confira a tradução do tweet acima:



Sou grato pelo trabalho de @jbwester e da força-tarefa (ARITF). Seguem abaixo duas perguntas que eu estava na fila do microfone para fazer a eles. Não deu tempo de perguntar, mas adoraria ver os membros da força-tarefa abordarem essas questões, se estiverem dispostos. @keahbone #sbc24

1. Vocês compartilhariam conosco agora quem é o responsável por colocar esses obstáculos e desafios e o que fizeram para obstruir o trabalho de vocês?

2. Essa força-tarefa estaria disposta a publicar um relatório de longo prazo, após a convenção, detalhando esses obstáculos e desafios e quem é o resposnável por eles?

Por dois anos seguidos, nossa convenção tem votado esmagadoramente em favor de implementar a reforma e temos visto muito pouco ser de fato implementado. Eu adoraria saber porque essa reforma está demorando tanto e quem é o responsável (se é quem tem algum responsável).

Há dois anos, o presidente da Junta de Missões Internacionais, Paul Chitwood, o presidente da Junta de Missões Norte-Americanas, Kevin Ezell, e o presidente da Send Relief, Bryant Wright, ofereceram 3 milhões de dólares, oriundos de fundos não designados da Send Relief, para pagar os programas de reforma contra abuso sexual da SBC. Um porta-voz da Send Relief disse à CT que seus líderes “não rejeitaram nenhum pedido de financiamento que esteja dentro da intenção original de seu compromisso”.

“A Send Relief está totalmente comprometida com a mordomia cuidadosa dos fundos para prevenção de abuso sexual e os esforços de resposta dentro da SBC, em colaboração com o Comitê Executivo”, disse a declaração. “Atualmente, a [Comissão de Reforma contra Abusos] está fora da estrutura da SBC.”

Myer teme que a confusão sobre as decisões de financiamento possa prejudicar o senso de confiança necessário para que os esforços de cooperação mais amplos em torno da questão sejam eficazes.

“Quando falta confiança, você perde parceiros e recursos”, disse ele. “Se não conseguirmos resolver algo fácil, como dizer que é fundamental proteger crianças e adultos de serem abusados por lobos, como poderemos avançar para questões mais complicadas?”

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Como ser um influenciador digno de ser chamado cristão

Quem bajula e flerta com valores seculares não merece exercer influência sobre a igreja.

Christianity Today June 20, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty, Unsplash, Wikimedia Commons

Há uma boa razão para a igreja ser cautelosa com influenciadores de redes sociais — particularmente com aqueles que falam sobre assuntos espirituais. Não há nada de errado em ficarmos desconcertados com a ideia de cristãos serem liderados por celebridades do mundo online que podem ser mais carismáticas do que teologicamente sólidas, ou mais criativas do que confiáveis, especialmente quando esses influenciadores estão desconectados do discipulado e da disciplina de uma igreja. Algoritmos, monetização e viralizações criam tentações infinitas e incentivos adversos, os quais podem seduzir até mesmo os criadores mais bem-intencionados a servirem a si mesmos e ao que há de pior na cultura pop.

No entanto, também estou convencido de que, em meio a essa tensão, é possível os cristãos serem fiéis naquilo que falam. Estou convencido ainda de que não fazemos nenhum bem a nós mesmos quando fugimos da realidade dessa influência das redes sociais.

Lembrei-me disso ao participar da Black Christian Influencers Conference [BCI , Conferência de influenciadores cristãos negros) deste mês, cuja criadora, Jackie Horbrook, foi bem-sucedida em criar uma atmosfera que era, ao mesmo tempo, esteticamente incrível e substantivamente centrada no evangelho. Criadores cristãos das mais diversas áreas, como teologia, ativismo e moda, reuniram-se para discutir sobre como usar suas plataformas para glorificar a Deus — e sobre como lidar com os riscos que surgem, quando estamos na vanguarda da cultura e, ao mesmo tempo, colocamos Cristo no centro.

Esses riscos não são assim tão novos quanto parecem. Em João 7, os irmãos de Jesus essencialmente disseram a ele que não estava aproveitando ao máximo seu potencial como influenciador num mundo pré-digital. Argumentavam que Jesus precisava se voltar mais para fora e exibir ao público seus milagres com mais frequência, porque “Ninguém que deseja ser reconhecido publicamente age em segredo” (v. 4).

Esse conselho expôs a dificuldade que eles tinham de entender a verdadeira missão de Jesus. Embora ele tenha se tornado uma figura pública popular, seu propósito era muito mais importante do que uns meros “momentos de viralização”. Jesus não estava buscando a influência pela influência; sua mensagem e seu tempo de fazer as coisas tinham que estar alinhados com o plano de salvação do Pai. “O meu ensino não é de mim mesmo”, disse ele a seus ouvintes surpresos. “Vem daquele que me enviou.”(v. 16).

Esse texto deve orientar aqueles cristãos que têm algum ministério nas redes sociais e influenciam a vida de milhares ou milhões de pessoas. Nunca devemos estar mais preocupados em fazer crescer nossas plataformas do que em ser fiéis na gestão da nossa influência. Deus não nos colocou nessa posição em que estamos para nos exibirmos e nos deleitarmos com a admiração [voltada para nós]. A influência cristã vem com uma cruz. Seu propósito tem muito mais a ver com autossacrifício do que com autoindulgência.

Ou deveria ter, em todo caso. O design do meio [de comunicação que utilizamos para transmitir a mensagem] sempre tornará esse modelo de fidelidade contraintuitivo. Influenciadores bem-sucedidos são proficientes em proteger sua plataforma e em saber o que seu público quer, e isso os coloca sob constante risco de se tornarem reféns de sua audiência. Isso acontece quando bajulamos nosso público, dando a eles apenas o que esperam ver e o que querem ouvir de maneira sagaz — e [acabamos] seguindo sua liderança, talvez até mais do que eles seguem a nossa.

Um ministério fiel não pode fazer isso. Devemos dizer a verdade ao nosso público, em vez de agradar seus ouvidos (2Timóteo 4.3).

Isso pode ser ruim para os negócios. Atacar um oponente sempre atrairá mais curtidas do que críticas do seu público. Os conservadores querem ouvir sobre como os programas sobre diversidade, igualdade e inclusão estão arruinando a América, e a turma da justiça social quer uma avaliação interminável dos erros do evangelicalismo branco. Mas nenhum dos dois quer ouvir sobre como eles próprios falham em quesitos como a compaixão ou a verdade do evangelho.

Entretanto, se nosso testemunho público for ditado por recompensas no mundo digital, estamos muito longe de sermos semelhantes a Cristo. Um capítulo antes do conselho confuso que recebeu de seus irmãos, à medida que seu ministério estava atraindo grandes multidões, Jesus fez algo que seria impensável para alguns dos nossos influenciadores: ele pregou à multidão um ensinamento tão duro que fez com que muitos de seus seguidores o abandonassem (João 6.53-66). O propósito de seu ministério nunca foi pacificar ou bajular seu público, reafirmando todas as percepções que tinham de si mesmos e suas noções preconcebidas. Jesus estava lá para edificá-los e levá-los à cruz. Da mesma forma, um influenciador que não esteja disposto a perder seguidores por causa da verdade não pode estar fielmente envolvido [com o propósito de Jesus].

Muitos influenciadores também enfrentarão a tentação de imitar e endossar a cultura popular. Influenciadores engajados em justiça e ação social muitas vezes podem achar nossa teologia frágil e ambígua. Mensagens sobre a ética sexual cristã e a santidade da vida começam a desaparecer de nossas plataformas. Ninguém quer perder aliados políticos seculares, nem ofender os guardiões da cultura e muito menos viralizar por ter uma visão “retrógrada”. Eu mesmo me lembro de hesitar em criticar a alternativa à ética da família tradicional defendida pelo movimento Black Lives Matter [Vidas Negras Importam]. Eu apoiava a mensagem de justiça racial em princípio, mas sabia que muitos dos colegas do movimento interpretariam qualquer discordância como deslealdade.

Poucos de nós têm a ousadia de se envolver com ativistas e acadêmicos seculares e, ao mesmo tempo, defender a autoridade das Escrituras. Ficamos muito ocupados tentando nos encaixar [no grupo]. Alguns já ficam felizes só de terem sido convidados para sentar à mesa e estar associados a determinada pessoa ou instituição. Mas a verdade é que quem bajula e flerta com valores seculares não merece exercer influência sobre a igreja.

Essa não é uma descrição nem exagerada nem hipotética. Já vi influenciadores cristãos apagarem conteúdos que produziram com irmãs como Jackie Hill Perry, depois de saberem que muitos estavam achando “ofensivo” vê-los compartilhar a tela com Perry, enquanto ela falava a verdade do evangelho. Eles se parecem mais com o feiticeiro Simão do que com Jesus — estão usando a igreja para promover suas carreiras à custa do evangelho (Atos 8.9-25).

Um influenciador, para ser digno do nome cristão, deve ser um mestre com uma cruz. Devemos usar nossos talentos e o reconhecimento que conquistamos para levar as pessoas a Cristo, e não para levá-las a nós mesmos.

Este é um padrão alto, mas é um padrão que os cristãos podem alcançar, e de fato alcançam, como vi em primeira mão na Conferência de Influenciadores Cristãos Negros (BCI). Do comediante Matthew Hudson, que espalha o evangelho por meio da sátira, a Ekemini Uwan, que ama seu próximo por meio do ativismo, influenciadores cristãos estão usando as redes sociais para promover a Grande Comissão. Este é um novo meio de comunicação para a igreja — e para que haja transparência por parte da igreja —, mas é também uma oportunidade de seguir Jesus apontando aqueles que ficam maravilhados com nossos ensinamentos para Deus.

Justin Giboney é ministro ordenado, advogado e presidente da AND Campaign, uma organização cívica cristã. Ele é coautor de Compassion (&) Conviction: The AND Campaign’s Guide to Faithful Civic Engagement [Compaixão (&) Convicção: O Guia da Campanha AND para um Engajamento Cívico Fiel].

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Como os cristãos podem se libertar de uma visão de mundo guiada por maldições

Um pastor nigeriano se recusa a viver dessa forma — e quer ajudar a igreja africana a fazer o mesmo.

Christianity Today June 19, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty

Godwin Adeboye percebeu algo intrigante no local onde moradores de Ibadan, uma cidade no sudoeste da Nigéria, estavam despejando seu lixo.

No local onde as pessoas deixavam o lixo, o governo havia colocado uma placa que dizia: “Não jogue seu lixo aqui. Se fizer isso, o governo multará você.”

Em outro local, alguém havia escrito uma mensagem diferente: “Se você despejar seu lixo aqui, eu o amaldiçoo em nome do meu deus ancestral.”

“Se alguém disser: ‘Se jogar lixo aqui, você morrerá jovem, perderá sua fortuna ou perderá todos os seus filhos em um só dia’, ninguém vai jogar lixo lá, porque as pessoas têm medo de maldições”, disse Adeboye, pastor e diretor de pesquisa do Seminário Teológico Evangelical Church Winning All [ECWA] em Igbaja, Nigéria.

O peso das maldições não era algo que Adeboye via de longe apenas. Quando vários membros da sua família morreram, aparentemente de causas misteriosas, muitos sugeriram que as maldições poderiam ser as responsáveis [pelas mortes]. Esses argumentos levaram Adeboye a estudar esse fenômeno de uma perspectiva bíblica e a escrever a obra Can a Christian Be Cursed? [Um cristão pode ser amaldiçoado?, Langham, 2023].

“Escrevi este livro a partir da minha própria experiência e do que vejo meus irmãos e irmãs africanos vivenciando”, disse ele. “Muitos africanos, até mesmo cristãos, às vezes acreditam que seus problemas financeiros, morais ou conjugais acontecem porque alguma maldição ‘espiritual’ específica os atormenta, em vez de assumirem a responsabilidade pessoal que deveriam.”

Além disso, Adeboye se sentiu compelido a abordar uma questão significativa no cristianismo africano a partir de uma perspectiva cristã africana.

“Li vários livros escritos sobre o cristianismo africano, e muitos autores não são empáticos com a experiência africana”, disse ele. “Para tornar o evangelho cristão concreto para os africanos, devemos dialogar com a experiência africana.”

Confira a seguir a conversa de Adeboye com Geethanjali Tupps, editora global de livros da CT.

Conte-nos um pouco sobre o lugar de onde você veio na Nigéria.

Eu venho do estado de Kwara, que fica no centro-norte da Nigéria e é o berço de centenas de grupos etnoculturais, de várias tradições religiosas e de fortes tensões inter-religiosas. O povo iorubá é um grande grupo étnico na Nigéria. Existem redes de igrejas africanas carismáticas e pentecostais profundamente religiosas que foram fundadas e lideradas por muitos integrantes do povo iorubá. A maioria dos cristãos de origem iorubá, como eu, tem profundas raízes religiosas baseadas nas tradições africanas.

Kwara não é apenas um estado iorubá, mas um estado com uma mescla religiosa e cultural composta pelos grupos étnicos hausa, fulani, nupe e iorubá, bem como por muçulmanos, cristãos, tradicionalistas e outros grupos religiosos.

Na minha comunidade, as pessoas têm explicações metafísicas para experiências da vida. Como tive o privilégio de aceitar o Senhor em uma idade muito tenra, tenho uma resposta diferente para as questões da vida. Quando enfrento situações desafiadoras, não sigo a interpretação tradicional que atribui os desafios da vida a maldições ou ao diabo.

O que é uma maldição? Como ela se manifesta na vida cotidiana africana?

Muitos africanos interpretam diferentes circunstâncias da vida como expressões de maldições. Quando um casal não consegue ter filhos, por exemplo, eles acham que sua família ou seu casamento está amaldiçoado. Alguém que luta contra o alcoolismo pode acreditar que seus pais são amaldiçoados.

Além disso, muitos acreditam que nomes podem ser amaldiçoados. Eles acreditam que as maldições podem ser passadas de geração em geração [de uma família], e por isso, às vezes as pessoas mudam de nome. As sociedades africanas têm uma rica tradição ligada a essa questão de dar nomes. Um nome reflete certas coisas sobre a pessoa que o carrega. Portanto, muitos africanos acreditam que seu nome é uma entidade espiritual que deve ser purificada e abençoada. Quando algumas pessoas se tornam cristãs, por exemplo, elas mudam o nome que lhes foi dado por seus “pais não cristãos”. Muitos cristãos temem que maldições sejam transferidas por meio de nomes de família.

Na cultura autóctone africana, muitas coisas podem ser amaldiçoadas: a família, o casamento, as terras de alguém, um prédio, o local de trabalho, até mesmo uma igreja.

Os cristãos africanos ficam confusos, pois a Bíblia ensina que eles são nova criatura, mas, quando passam por situações difíceis, eles se perguntam se o que aconteceu com seus pais, antes de se tornarem cristãos, está impactando negativamente suas vidas.

Como a Bíblia aborda a questão das maldições?

Para os cristãos, a resposta às maldições deve ser cristológica. A cruz de Cristo pagou todas as nossas dívidas. No entanto, a Bíblia nos mostra claramente que tanto a graça humana quanto o livre-arbítrio individual são vitais para o propósito humano; isto é, a maneira como as coisas acontecerão para os seres humanos [é] determinada pela graça de Deus e pela resposta humana. Quando um ser humano aceita Cristo, é purificado das maldições ou dívidas geracionais.

O primeiro passo para a libertação das maldições geracionais/ancestrais é viver uma vida transformada, que tome como modelo a Palavra de Deus. Mas o fenômeno das maldições pode ser complexo, e meu livro descreve como lidar com essas questões complexas relacionadas a maldições.

Qual é a relação entre maldição e família?

Maldições geracionais, ou maldições herdadas, são uma crença de que coisas negativas que aconteceram aos antepassados ​​de alguém também podem acontecer a pessoas da mesma família (como morte súbita, pobreza, acidentes, falta de emprego, instabilidade financeira, desintegração familiar).

Entrevistei colegas do Zimbábue, Quênia, Malawi, Moçambique, Gana, República do Benim, Nigéria e Congo, e descobri que pessoas de toda a África temem maldições, e que muitos cristãos acreditam que são afetados por maldições herdadas.

A família não é apenas uma instituição social na África; ela também é uma instituição espiritual. O casamento também é uma instituição espiritual. Há uma conexão espiritual entre pai e filho, entre mãe e filho, e eles acreditam que algo que aconteça ao pai também pode acontecer ao filho, pois ambos estão conectados espiritualmente.

Hoje existem maldições geracionais, mas somente para aqueles que não aceitaram o Senhor Jesus. Se uma pessoa se encontra em Cristo, ela é nova criatura. Essa liberdade em Cristo não nega a responsabilidade moral cristã, porém. Quando um filho de Deus, que é genuíno de fato e nascido de novo, passa por desafios na vida, isso não se deve a maldições, mas é para a glória do Senhor e o crescimento espiritual desse crente.

O que são bruxas?

Em geral, para que as maldições sejam eficazes, a maioria dos africanos acredita que a pessoa “amaldiçoada” deve ter ofendido a pessoa que a “amaldiçoa”. No entanto, as bruxas são indivíduos cujas maldições podem atuar sem que haja nenhuma ofensa prévia. Naturalmente, as pessoas as temem.

O medo de maldições rogadas por bruxas não se dá apenas por elas serem bruxas; há muitos africanos que também temem as palavras negativas de qualquer líder religioso. Os cristãos africanos temem que seus pastores os amaldiçoem em orações. Além disso, nas orações feitas em muitas igrejas na África, maldições invocadas sobre os inimigos têm prioridade. Em meu livro, chamo isso de “usar maldições para curar maldições”.

No Antigo Testamento, frequentemente vemos Deus proclamar bênçãos ou maldições sobre as gerações futuras. Como você concilia essas crenças de seus conterrâneos africanos com as palavras de Deus no Antigo Testamento?

À primeira vista, a noção africana sobre maldições é semelhante aos exemplos do Antigo Testamento (AT) em que Deus coloca maldições sobre as pessoas. Mas um olhar mais atento revela diferenças críticas. As maldições de Yahweh no AT são em grande parte maldições condicionais e relacionadas à santidade de Deus. Na África, porém, a maioria das maldições é incondicional. Em meu livro, argumento que Deus não amaldiçoa seus filhos, nem mesmo no AT. As famosas maldições de Gênesis 3, por exemplo, não são maldições, mas sim punições. Deus não amaldiçoou Adão ou Eva. Ele amaldiçoou a terra, o trabalho humano e o parto. No próprio pronunciamento da punição também está a promessa da bênção mais significativa de todas: a promessa da vinda de Cristo.

Meu livro argumenta que as maldições e as bênçãos de Yahweh no AT não são automáticas nem incondicionais; elas invocam responsabilidade moral, justiça e santidade divina. As maldições de Yahweh no AT não devem nos fazer ver Deus como um Ser terrível, mas sim como um Deus justo. Elas mostram que as ações humanas determinam suas consequências. A sociedade africana precisa libertar a mente sobre essa questão, pois muitos acreditam que, mesmo quando a pessoa se torna cristã, as maldições familiares ainda atuam.

Você acredita que as bênçãos geracionais existam hoje?

Eu vi montes de oração, centros de oração e casas de oração por todo o continente, e todos receberam nomes baseados em maldições. Na Nigéria, a igreja é chamada centro de libertação de maldições. Já testemunhei atividades da igreja nas quais, em vez de pregar a Palavra de Deus, o pregador pedia aos membros que lavassem a cabeça com água, para que pudessem ser libertos de maldições.

Os cristãos africanos oram de forma negativa, e não positiva. Não é como no Ocidente, onde as pessoas dizem: “Que Deus te abençoe. Que Deus possa prover tuas necessidades.” Em vez disso, os africanos fazem orações amaldiçoando o inimigo, algo como “Deus, que meus inimigos morram. Deus, que meus inimigos durmam e nunca mais acordem.”

Por isso, levantei uma questão no meu livro: É bom fazer uso de maldições para resolver maldições? E minha resposta é não; preferimos usar a Palavra de Deus para explicar e conhecer Deus e sua Palavra.

O que você acha das orações imprecatórias da Bíblia?

Em muitos aspectos, os cristãos africanos estão particularmente interessados ​​em usar salmos imprecatórios para refletir sobre os desafios da vida e responder a eles. Esses salmos frequentemente reaparecem na liturgia, nos sermões e nos livros de oração de muitas denominações, especialmente nas igrejas autóctones africanas. Esses salmos fornecem para muitos cristãos africanos um recurso bíblico para refletir sobre a experiência existencial e os desafios da vida.

No entanto, muitos desses salmos são frequentemente lidos, aplicados e interpretados sem levar em conta seu contexto histórico e teológico. Eles não são meros “pronunciamentos de teor negativo”, mas sim reflexões pessoais sobre a justiça divina feitas pelos salmistas sobre aqueles que [estes] consideravam inimigos de Deus.

Muitos africanos, porém, usam esses salmos como recurso para a vingança pessoal, como invocar o nome dos que consideram seus inimigos humanos, enquanto recitam um salmo imprecatório específico (por exemplo, Salmos 35) por um certo número de vezes que é prescrito. Em muitos casos, se um africano tem um conflito com um colega, ele ou ela pode escolher alguns salmos imprecatórios para amaldiçoar seu oponente.

Chamo isso de “usar maldições para curar maldições”. Na tentativa de lidar com o medo de maldições, eles amaldiçoam seus amaldiçoadores. Os livros de oração de muitas igrejas autóctones africanas têm pontos de oração relacionados a amaldiçoar os inimigos, em vez de orações por bênçãos de Deus.

Teólogos cristãos africanos conceituaram a relevância dos salmos imprecatórios para refletir sobre a experiência no contexto africano, mas guias práticos sobre como usar adequadamente esses salmos [são] escassos. Meu livro preenche as lacunas que existem na teologia cristã africana, fornecendo orientação teológica e prática, e tem uma seção com passos práticos e exemplos sobre como interpretar e aplicar os salmos imprecatórios corretamente.

Como você vê a ideia de maldição existindo em um contexto ocidental?

O fenômeno das maldições não se limita ao contexto africano. Primeiro, o contexto ocidental não é mais puramente ocidental, devido à imigração e às interações interculturais. Segundo, as crenças religiosas institucionais do Ocidente podem não ter um conceito de maldições claramente definido, mas é possível discernir a noção de maldições e o medo delas nas experiências vividas por algumas pessoas no Ocidente. A hipótese do secularismo — a tese de que, à medida que as sociedades crescem rumo ao avanço tecnológico, os seres humanos se tornam menos religiosos — falhou. Ser ocidental não necessariamente equivale a ser menos religioso ou menos espiritual.

Futuramente investigarei e compararei as noções ocidentais de maldições com as do contexto africano.

Como superarmos esses tipos de maldições, especialmente de acordo com a visão que você tem delas em sua própria cultura?

Primeiro, precisamos acreditar na Palavra de Deus e nos envolver com ela. O cristianismo está crescendo na África. Alguns preveem que, nas próximas décadas, o centro do cristianismo será na África. Mas tenho minhas preocupações.

O cristianismo africano está crescendo em quantidade, mas não em qualidade. O crescimento quantitativo do cristianismo africano deve ser sustentado por um crescimento qualitativo: as pessoas precisam conhecer a Palavra de Deus.

No cristianismo africano, os principais líderes às vezes se colocam acima da Palavra de Deus. Isso confunde os membros da igreja. Devemos dar primazia à Palavra de Deus — não apenas na teoria, mas por meio de práticas em nossa liturgia, em nossos programas de aconselhamento, em outras atividades e no estudo individual.

Segundo, devemos enfatizar a doutrina da expiação. Os cristãos africanos devem ser lembrados de que a expiação de Cristo é definitiva e suprema. Eles devem ser centrados na cruz e centrados em Cristo. Além disso, Jesus disse a seus discípulos que eles deveriam carregar sua cruz e segui-lo.

O sofrimento e a pobreza podem fazer parte da nossa cruz; portanto, quando os cristãos africanos enfrentam desafios, estes podem ser uma cruz que eles devem carregar, e não uma maldição.

Terceiro, os líderes africanos devem enfatizar o contato pessoal e a experiência confessional. Se um indivíduo é verdadeiramente regenerado pelo Espírito Santo, então, a possibilidade de ele ser atormentado por maldições é algo incomum.

Por fim, os líderes da igreja cristã africana devem dar ênfase a missões, evangelismo e discipulado. Devemos ser intencionais em discipular novos cristãos. Se fizermos isso, os cristãos africanos estarão preparados para lidar com o medo das maldições.

Um cristão pode ser amaldiçoado?

Se for comprometido com a formação espiritual bíblica e a responsabilidade cristã, um cristão não pode ser amaldiçoado. A formação espiritual bíblica abrange conhecer, apreciar, aceitar e reconhecer continuamente a obra da salvação de Cristo.

A vitória cristã sobre as maldições, sejam elas herdadas, familiares ou pessoais, é baseada em Cristo porque ele é a solução para todos os nossos desafios individuais e coletivos. Ainda assim, temos papéis a desempenhar em nossa vida cristã pessoal e coletiva, para nos apropriarmos de nossa vitória em Cristo. É neste ponto que devemos entender e nos apropriar do conceito cristão de responsabilidade moral.

A teologia da responsabilidade moral não está adequadamente arraigada no cristianismo contemporâneo. A responsabilidade moral implica ter consciência de que devemos melhorar em nossa vida espiritual, enquanto seguimos a Cristo. A Bíblia é clara sobre os mecanismos de recompensa e punição para nós, cristãos. Não devemos fazer certas coisas; se as fizermos, pode haver repercussões negativas. Às vezes, as pessoas se referem a essas repercussões como maldições.

Os cristãos não podem ser amaldiçoados, pois Cristo se fez maldição por nós. Contudo, se ultrapassarmos as linhas dos preceitos de Cristo, poderemos sofrer as consequências. A vida cristã tem certas exigências, e os cristãos devem segui-las.

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Books

Sim, Paulo realmente ensinou a submissão mútua

Por que a interpretação que Wayne Grudem faz de Efésios 5.21 é insustentável?

Christianity Today June 13, 2024
WikiMedia Commons / Edits by CT

Em Efésios 5.21, Paulo instrui os cristãos para que “sujeitem-se uns aos outros”. Essas palavras têm sido tradicionalmente entendidas como algo que exige submissão mútua, mesmo entre membros da família. O reformador João Calvino, por exemplo, reconheceu que a noção de um pai se submetendo ao filho ou de um marido se submetendo à esposa pode parecer “estranha à primeira vista”; porém, ele nunca questionou que tal submissão é de fato o que Paulo prescreve.

Mais recentemente, no entanto, essa leitura de Efésios 5.21 tem sido questionada — ironicamente, em nome do conservadorismo teológico. Muitos eruditos evangélicos agora afirmam que a submissão neste versículo não é uma submissão mútua (pela qual todo mundo se submete a todo mundo), mas uma submissão unidirecional àqueles que estão em posição de autoridade (pela qual uns se submetem a outros). O defensor mais declarado dessa visão é Wayne Grudem, um teólogo proeminente que ajudou a criar o Conselho sobre Masculinidade e Feminilidade Bíblicas.

Grudem, que recentemente anunciou que está se aposentando das salas de aula, tem argumentado por mais de três décadas que Efésios 5.21 poderia ser parafraseado da seguinte forma: “Aqueles que estão sob autoridade devem sujeitar-se àqueles entre vocês que têm autoridade sobre eles.” Pela leitura de Grudem, este versículo requer que a esposa se submeta ao marido, mas não requer de forma alguma que o marido se submeta a esposa.

Em defesa dessa interpretação, Grudem apela para o significado de hypotassō, o verbo grego traduzido por “submeter-se” ou “sujeitar-se”. Grudem alega que esse verbo “em toda a literatura grega, cristã e não cristã, sempre significa sujeitar-se à autoridade de outra pessoa”.

“Em todos os exemplos que podemos encontrar”, segundo Grudem argumenta, “quando se diz que a pessoa A ‘está sujeita’ à pessoa B, a pessoa B tem uma autoridade única que a pessoa A não tem. Em outras palavras, hypotassō sempre implica uma submissão unidirecional a alguém que está em [posição de] autoridade”.

O problema com esse argumento é que as alegações a respeito de hypotassō simplesmente não são verdadeiras. Considere as oito passagens da literatura antiga transcritas a seguir, que contêm o verbo hypotassō. Cada uma delas refuta de forma cabal a alegação de Grudem de que hypotassō “sempre implica uma submissão unidirecional a alguém que está em [posição de] autoridade”. Em diversos textos, hypotassō é usado para descrever uma submissão que é explicitamente mútua, e não unidirecional. E em todas as oito passagens a seguir, hypotassō é usado para descrever uma submissão a pessoas que não estão em posição de autoridade. (Todas as traduções são minhas. Uma discussão extensa desses e de outros textos relevantes aparecerá em meu artigo que será publicado na Lexington Theological Quarterly.)

  1. Antíoco da Palestina, um monge do século 7, dá o seguinte conselho àquele que busca humildade: “Que ele se submeta a seu próximo, e que seja um escravo dele, lembrando-se do Senhor, que não desdenhou por lavar os pés dos seus discípulos” (Pandectes 70.75-77).
  2. Gregório de Nissa, um bispo do século 4, explica que todo membro de uma comunidade monástica deve se considerar “um escravo de Cristo que foi comprado para a necessidade comum dos irmãos” e deve, portanto, “submeter-se a todos” (De instituto Christiano 8.1:67.13-68.12).
  3. Em uma carta pessoal, um bispo do século 4, Basílio de Cesareia, fala de alguém “que, segundo o amor, submete-se a seu próximo” (Cartas 65.1.10-11).
  4. Em um tratado que estabelece regras para a vida em uma comunidade monástica, Basílio cita a exortação de Paulo em 1Coríntios 10.24: “Ninguém deve buscar o seu próprio bem, mas sim o dos outros.” Basílio conclui, então, que é necessário “submeter-se a Deus, segundo o seu mandamento, ou aos outros, por causa do seu mandamento” (Patrologia Graeca 31:1081.30-38).
  5. Em um tratado que é atribuído a Basílio, o autor descreve os membros de uma comunidade monástica como “escravos uns dos outros” e “senhores uns dos outros”. Essa “escravidão de uns aos outros” não é instaurada por coerção, mas feita por espontânea vontade, com “o amor submetendo [aqueles que são] livres uns aos outros” (Patrologia Graeca 31:1384.7-14).
  6. Em um sermão que aborda a promiscuidade sexual, o arcebispo do século 4, João Crisóstomo, afirma que “o noivo e a noiva” que não tiveram experiência anterior com outros parceiros sexuais “se submeterão um ao outro” no casamento (Patrologia Graeca 62:426.33-35).
  7. Em uma exortação à submissão mútua, Crisóstomo considera como se deve tratar um companheiro cristão que não tem intenção de retribuir [a submissão]: “Mas ele não pretende se submeter a você? Ainda assim você se submete; não apenas obedece, mas se submete. Tenha esse sentimento em relação a todos, como se todos fossem seus senhores” (Patrologia Graeca 62:134.56-59).
  8. Em um tratado que é atribuído a um monge do século 4, Macário do Egito, o autor exorta os membros de uma comunidade monástica a permanecerem “nesta boa e edificante escravidão” e a renderem “toda submissão a cada um”. O autor tem a visão de “todos os irmãos se submetendo uns aos outros com toda a alegria” e os exorta “como imitadores de Cristo” a abraçarem “a submissão e a aprazível escravidão para refrigério uns dos outros” (Grande Carta 257.22–261.1).

A interpretação que Grudem faz de Efésios 5.21 é, portanto, fundada em uma má compreensão do verbo grego hypotassō. Conforme foi ilustrado pelas passagens citadas acima, esse verbo não é usado apenas para descrever a submissão a pessoas em posição de autoridade; ele também é usado para descrever a submissão a próximos, a irmãos e a esposas.

Além disso, usando o Thesaurus Linguae Graecae — uma enorme biblioteca digital que contém essencialmente toda a literatura grega que restou do mundo antigo — analisei todas as citações e alusões a Efésios 5.21 anteriores a 500 d.C. Não encontro evidências de que a igreja de língua grega estivesse sequer ciente da interpretação [de submissão] de uns a outros defendida por Grudem. As palavras de Paulo em Efésios 5.21 são uniformemente entendidas pelos antigos cristãos como palavras que exigiam submissão a todos na comunidade, independentemente da posição, e são, portanto, rotineiramente associadas a passagens como Marcos 10.44 (“deverá ser escravo de todos”) e Gálatas 5.13 (“sede […] servos uns dos outros”, ARA).

Por exemplo, imediatamente após citar Efésios 5.21, Crisóstomo faz a seguinte exortação à submissão mútua: “Que haja um intercâmbio de escravidão e submissão. Pois assim não haverá escravidão. Que um não se assente na posição de livre e o outro na posição de escravo; antes, é melhor que tanto senhores como escravos sejam servos uns dos outros” (Patrologia Graeca 62:134.28-32).

Observe que, ao expor Efésios 5.21, Crisóstomo usa a linguagem de Gálatas 5.13: “sede […] servos uns dos outros”. Embora esses dois versículos sejam rotineiramente associados na literatura patrística grega, os leitores de língua inglesa dos livros de Paulo muitas vezes perdem essa conexão. As Bíblias em língua inglesa geralmente traduzem Gálatas 5.13 como “servi uns aos outros”, mas a linguagem de Paulo é mais forte do que essa tradução sugere. O substantivo grego para o termo “escravo” é doulos, e o verbo usado em Gálatas 5.13 é o cognato douleuō, que significa “ser um escravo [servo]”.

Os verbos douleuō e hypotassō são, portanto, bastante semelhantes e às vezes são usados em conjunto, praticamente como sinônimos. Considere as quatro passagens a seguir, nas quais o verbo hypotassō é emparelhado com o verbo douleuō.

  1. Plutarco, um autor romano do século 2, cita o conselho de Platão para não “se submeter e ser escravo” da paixão (Moralia 1002E).
  2. Epiteto, filósofo grego e um contemporâneo mais jovem do apóstolo Paulo, critica duramente quem não consegue atingir o ideal estoico: “Você é um escravo, você é um súdito” (Discursos 4.4.33).
  3. O Pastor de Hermas, um texto cristão do século 2, descreve o que acontecerá “se você for escravo de bom grado e se submeter a ele” (45.5).
  4. Na primeira das oito passagens citadas mais acima, Antíoco escreve: “Que ele se submeta ao seu próximo, e que ele seja escravo deste.”

Em seus argumentos contra a submissão mútua, Grudem ignorou a similaridade entre esses dois verbos. Ele observa corretamente que hypotassō implica uma hierarquia na qual uma pessoa é posicionada abaixo de outra. Como duas pessoas não podem estar simultaneamente abaixo uma da outra, Grudem e outros críticos da submissão mútua descartam esse conceito como algo que é autocontraditório.

No entanto, esses eruditos falham em observar que o verbo douleuō, em Gálatas 5.13, também implica uma hierarquia na qual uma pessoa é posicionada abaixo de outra. No entanto, como todos os comentaristas reconhecem, Paulo obviamente está usando o verbo douleuō em Gálatas 5.13 para descrever uma ação que é mútua, e não unidirecional. Assim, embora a linguagem de Paulo sobre submissão mútua, em Efésios 5.21, seja de fato (deliberadamente) autocontraditória, ela não é mais autocontraditória do que sua linguagem de escravidão mútua, em Gálatas 5.13.

A igreja antiga tinha o entendimento uniforme de que Efésios 5.21 exigia uma submissão mútua, e a rejeição moderna dessa interpretação entre alguns evangélicos está enraizada em alegações espúrias sobre o verbo grego hypotassō. Jesus assumiu “a forma de servo” (Filipenses 2.7, ARA), e todos os que o seguem, tanto homens quanto mulheres, são chamados a abraçar a submissão também.

Murray Vasser é professor assistente de Novo Testamento no Wesley Biblical Seminary. Este artigo resume a pesquisa acadêmica que foi apresentada na reunião de 2023 da Society of Biblical Literature [Sociedade de Literatura Bíblica] e será publicada em breve na Lexington Theological Quarterly.

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Books

Adeus pós-modernismo, olá metamodernismo

A nossa apologética deve evoluir para poder lidar com o novo clima cultural das próximas gerações.

Christianity Today June 12, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty, Unsplash

Há anos que os estudiosos anunciam a morte do pós-modernismo. Depois de décadas dominando o clima cultural, a famosa postura intelectual cínica e relativista finalmente esgotou-se. Outra perspectiva ideológica está tomando o seu lugar — como já devem ter notado todos aqueles que passam um tempo significativo com as próximas gerações (Z e Alfa).

Portanto, a questão é esta: que novas disposições de pensamento estão tomando conta [da cultura] — e como os cristãos poderão falar com essa fronteira cultural em transição?

Metamodernismo é um termo que os estudiosos têm usado para identificar o novo clima cultural. Foi usado pela primeira vez em 1975, para descrever uma mudança na literatura, mas o conceito tornou-se mais proeminente no início dos anos 2000, graças ao trabalho dos analistas culturais Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker. No seu artigo de 2010, “Notas sobre o Metamodernismo”, eles defenderam de forma convincente o novo zeitgeist [termo utilizado para definir o estado de espírito de um determinado período] e forneceram uma análise cultural das suas características.

O metamodernismo, de acordo com Vermeulen e Van Den Akker, é uma “estrutura de sentimentos” marcada por “esperança (em geral cautelosa) e sinceridade (por vezes fingida)” — derivada da compreensão de que “a história está avançando rapidamente para além do seu tão proclamado fim”. Embora existam muitas respostas acadêmicas ao seu trabalho, o termo não ganhou muita força na esfera pública.

Como professor do ensino médio, pastor de jovens e membro mais velho da Geração Z, não apenas cresci respirando os ares ideológicos do metamodernismo, mas também vi como ele é na prática. Pode manifestar-se de algumas formas tangíveis, entre elas o que chamo de esperança apocalíptica, construção invertida de visão de mundo e identidades altamente expostas.

A esperança apocalíptica (ou o que Vermeulen e Van Den Akker chamam de “esperança cautelosa”) surge do pessimismo sóbrio do pós-modernismo e com ele se contrasta. Reconhece que o mundo está, em certo sentido, “condenado” ou ao menos em crise, mas responde a este fato com humor negro, esperança sincera (que muitas vezes é expressa através de ironia) e um espírito revolucionário que rejeita ativamente a resignação passiva das décadas passadas.

A próxima geração de jovens habituou-se a ver o seu futuro em cores sombrias, esperando resultados distópicos do tecnologismo e do alcance excessivo do governo, dos desastres naturais resultantes da crise climática e da instabilidade global diante de visões de futuro conflitantes, nacionalistas e globalistas.

Apesar de tudo isto, a maioria dos jovens não adotou uma mentalidade que se recusa a lidar com a realidade, no intuito de preservar a inocência da sua juventude, nem respondeu com óbvio desespero. Em vez disso, a minha geração muitas vezes enfrenta o futuro com a postura externa de quem conta uma piada sombria, mas tendo por dentro uma feroz determinação de mudar o mundo.

Em contraste com um dos aspectos característicos do pós-modernismo — aquilo que Ag Apolloni, professor e teórico cultural, chamou de “a era dos fins” — a geração metamodernista anseia por um novo começo.

Vermeulen e Van Den Akker descreveram o metamodernismo como uma constatação de que a história ainda não acabou. Se isso for verdade, então, ainda há esperança de mudança — e é por isso que a próxima geração tem zelo por soluções para problemas aparentemente insolúveis. Quando se trata de questões ambientais, econômicas ou sociais, é muito mais provável que os jovens de hoje se identifiquem com uma causa e procurem agir a respeito dela — talvez de formas drásticas, que podem parecer alarmismo ou até mesmo uma reação exagerada. Por terem crescido acreditando que o nosso futuro só poderá ser salvo por meio de ações drásticas, para essa geração faz sentido saudá-lo com uma dose de humor irônico e um forte impulso de recriar o mundo.

Por que isso deveria ser importante para a igreja? É importante porque um dos elementos mais essenciais de uma cosmovisão são as suas expectativas para o futuro. Os jovens de hoje esperam que as coisas piorem antes de melhorarem, e sentem um verdadeiro peso para agir rapidamente, a fim de evitar os numerosos desastres que a humanidade trouxe sobre si mesma. E acontece que as Escrituras podem falar e repercutir de forma significativa sobre essa atitude.

Em Romanos 8, Paulo escreve que toda a criação geme enquanto aguarda sua redenção e recriação. Este gemer não é uma característica natural do nosso mundo — é consequência constante do pecado humano e do seu impacto destrutivo sobre o mundo bom que Deus criou. A narrativa cristã da realidade fala diretamente à frustração e ao medo que assola as gerações metamodernistas: o nosso mundo está devastado pelos males que nós causamos.

Felizmente, as Escrituras não se detêm nesse diagnóstico do problema. O evangelho também prescreve uma solução muito real — a promessa da recriação, inaugurada pela ressurreição de Jesus, enquanto os pecadores desfrutam de uma antecipação dessa nova vida que se encontra em Cristo e aguardam a própria ressurreição, que segue os mesmos moldes da ressurreição dele. Visto através desta lente, o evangelho dá substância real à esperança apocalíptica do metamodernismo.

Outra faceta fundamental do metamodernismo do mundo real é a que gosto de descrever como construção invertida de visão de mundo.

A norma histórica tem sido a de fundamentar a nossa visão de mundo em alicerces metafísicos e chegar a conclusões éticas. Em outras palavras, ao menos no papel, começamos pelas questões de significado último antes de passarmos para questões de propósito temporal. Como escreveu o filósofo Alasdair MacIntyre em After Virtue [Depois da virtude]: “Só posso responder à pergunta ‘O que devo fazer?’ se puder responder anteriormente à pergunta ‘De que história ou histórias faço parte?’”

Entretanto, entre as gerações metamodernistas emergentes, parece que esta ordem convencional foi invertida. Em resposta ao relativismo moral dos antecessores pós-modernos, a geração metamodernista procura primeiro basear-se em certos princípios éticos essenciais, e só então seleciona o melhor arcabouço ideológico para se adaptar a essa ética. É uma geração que coloca “a carroça na frente dos bois”, no sentido de que muitas vezes baseamos nossos posicionamentos religiosos ou filosóficos em pressupostos éticos prévios, e não o contrário.

O novo impulso, então, é retroceder, partindo de uma espécie de certeza ética até chegar a quaisquer alegações religiosas alinhadas com as consequências éticas preferidas pelo seu grupo — e rejeitar aquelas cujas consequências éticas são consideradas “problemáticas”. De acordo com este novo absolutismo ético, alguns descartam e denunciam qualquer perspectiva religiosa que pareça gerar conclusões éticas impopulares.

Enquanto antes a verdade e a moralidade eram rejeitadas, consideradas pouco mais do que meras preferências pessoais, hoje vemos pessoas condenarem explicitamente muitos aspectos do ensino cristão ortodoxo por suas falhas éticas. Isso também significa que a “tolerância” pós-moderna está decididamente fora de moda. No seu livro Confrontando a injustiça sem comprometer a verdade, Thaddeus Williams observou que “desde [a década de 1990] temos assistido a uma cultura que se orgulhava de sua postura de não julgamento transformar-se numa das sociedades mais críticas da história”.

Mas embora isso possa criar alguns desafios novos para o evangelismo cristão, este novo clima cultural tem lá seus benefícios. Depois de décadas de pretensos embates contra oponentes ideológicos que alegavam rejeitar qualquer realidade moral ou padrão ético, a igreja pode achar revigorante apresentar suas alegações de verdade a pessoas que reconhecem que o nosso mundo é frequentemente imoral, em vez de tentarem defender um mundo supostamente amoral.

Do ponto de vista apologético, esta mudança na ideologia popular também exige uma mudança na abordagem evangelística. Em vez de ensinar os jovens cristãos a meramente defenderem a existência da verdade, deveríamos ensiná-los a compreender e a articular melhor os fundamentos e benefícios da ética bíblica. Na comunicação com a geração metamodernista, é vital defender uma visão completamente bíblica da ética cristã.

Como Rebecca McLaughlin aponta em seu livro The Secular Creed [O credo secular], os secularistas e aqueles que vieram de uma cosmovisão cristã baseada em consequências éticas frequentemente ainda se apegam a outros princípios éticos (como o do fraco responsabilizar o forte), pensando que tais princípios são ‘senso moral comum’, sem perceberem que muitas dessas “verdades chegaram até nós através do cristianismo”.

Grande parte da ética da cultura pop de hoje pode ser reduzida ao “princípio do dano”, um componente essencial do liberalismo moderno articulado pelo filósofo John Stuart Mill. O filósofo cristão Charles Taylor descreve o princípio do dano como a noção “de que ninguém tem o direito de interferir em minha vida para o meu próprio bem, mas somente para evitar danos a outros”. Alguns vão além e confundem o princípio do dano com a ética bíblica, imaginando que tudo o que Deus quer é que nos abstenhamos de ferir uns aos outros — uma releitura simplista da Regra de Ouro. Quando filtrado pelo clima metamodernista, isto pode levar a uma condenação contundente dos cristãos que ensinam que há algo mais na moralidade.

“A injunção ‘seja feita a tua vontade’ não é equivalente a ‘deixe que os seres humanos floresçam’”, salienta Taylor, “mesmo sabendo que Deus deseja o florescimento humano”. As Escrituras não nos chamam apenas para ficarmos fora do caminho uns dos outros e fazermos o que nos parece natural — elas nos chamam para um modo de vida que vai além do que é meramente “natural” e muitas vezes nos leva a abrir mão de nossos próprios desejos e até mesmo de nossa própria vida. Cristo nos chama para sermos transformados e, nas palavras de Taylor, “Esta transformação envolve vivermos para algo que vai além do florescimento humano definido segundo a ordem natural, seja isso o que for”.

O último componente influente do metamodernismo, segundo a minha observação, é a tendência para identidades altamente expostas.

Uma das maiores diferenças práticas entre as gerações mais jovens (dos millennials à geração Alpha) e seus antecessores é o nível de conforto e familiaridade com temas de saúde mental e desenvolvimento psicológico. De acordo com a Associação Americana de Psicologia, os membros da Geração Z são “significativamente mais propensos (27%) […] a relatar que sua saúde mental é regular ou ruim” e são “também mais propensos (37%) […] a relatar que receberam tratamento ou terapia de um profissional de saúde mental.”

Esse aumento do conforto e da familiaridade com tópicos historicamente estigmatizados de diagnóstico e desenvolvimento de saúde mental certamente não é uma coisa ruim. Ele tem sido correlacionado com o aumento da empatia e da transparência sobre as lutas internas e já está remodelando o local de trabalho atual. Mas também existem efeitos colaterais, em especial devido à influência distorcida da psicologia pop.

A psicologia pop de hoje inclui a disseminação em larga escala de opiniões e conselhos psicoadjacentes, que são oferecidos em pequenas doses nas plataformas de mídia social. Madison Marcus-Paddison, terapeuta e conselheira na área de traumas, aponta que esse tipo de conteúdo muitas vezes peca por simplificação excessiva, falta de contexto, credenciais profissionais limitadas e falta de personalização, quando trata de questões reais e complexas de saúde mental.

No mundo real, o impacto deste conjunto de mudanças positivas e negativas resulta em um clima cultural caracterizado por um autodiagnóstico generalizado, que pode gerar uma exposição exagerada da identidade de uma pessoa, sob o pretexto de melhorar a sua saúde mental.

A terapeuta Jessica Jaramillo, que trabalha principalmente com estudantes da Universidade do Colorado, apontou o perigo desenfreado entre os jovens do autodiagnóstico de transtornos de saúde mental e da identificação excessiva com seus diagnósticos. Mesmo sem um rótulo de diagnóstico técnico, os jovens demonstram uma tendência de analisar excessivamente a própria história para explicar, justificar ou resolver os seus problemas.

Tal como outras tendências metamodernistas, esta dinâmica traz consigo mudanças culturais positivas e negativas com as quais os cristãos devem lidar de forma significativa.

Do lado positivo, esta mudança significa que os jovens estão muito mais dispostos a falar abertamente sobre os desafios mentais e emocionais que enfrentam e os fardos que carregam. Esta abertura pode assumir (e muitas vezes de fato assume) a forma de uma autodepreciação sarcástica, mas ainda assim representa uma vulnerabilidade maior que pode ser um ponto de partida para conversas mais honestas — e que pode ser um caminho para compartilhar o evangelho.

O lado ruim desta mudança, contudo, é a sensação de paralisia que muitas vezes a acompanha. Quanto mais você atribuir seu senso de identidade às experiências negativas do passado parecerá menos possível esperar por mudanças significativas no futuro. Talvez este senso de determinismo fatalista ajude a explicar por que a taxa de suicídio triplicou entre os adolescentes e aumentou quase 80% entre os estudantes do ensino médio na última década.

Na minha experiência como professor e pastor de jovens, esta característica do metamodernismo é provavelmente a que tem o maior impacto nas minhas interações com os estudantes com quem trabalho diariamente. Soterrados debaixo de um humor irônico e autodepreciativo, muitos dos estudantes com quem lido sentem que é impossível escapar das falhas que o seu passado lhes incutiu.

Mais uma vez, porém, o evangelho pode trazer uma palavra de esperança a esse clima cultural metamodernista. Sim, você tem falhas; sim, você é um pecador, é incapaz de simplesmente corrigir a si mesmo e se tornar a pessoa que deseja ser. Mas as misericórdias de Deus “renovam-se a cada manhã” (Lamentações 3.23), e encontramos esperança profunda e permanente em Jesus, aquele em cuja imagem estamos diariamente “sendo transformados” (2Coríntios 3.18), e na qual, um dia, “todos seremos transformados” (1Coríntios 15.51).

A identidade que você tem hoje não é uma armadilha da qual não se pode escapar. Com isso não precisamos minimizar as patologias reais e seu respectivo tratamento — é simplesmente um lembrete de que somos mais do que as histórias que contamos sobre nós.

Há certamente mais a ser dito sobre o metamodernismo hoje em dia; a minha esperança, porém, é ajudar a desviar o diálogo de nível mais popular de uma apologética pós-moderna obsoleta. E enquanto trabalhamos juntos para proclamar as boas-novas num mundo em transformação, pela graça de Deus, oro para que possamos ver em breve um reavivamento na era metamoderna.

Benjamin Vincent é pastor e professor no sul da Califórnia. Ele atua como pastor assistente na Journey of Faith Bellflower e como chefe do departamento de história e teologia na Pacifica Christian High School, em Newport Beach, Califórnia.

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Não se entristeçam como aqueles que não têm esperança

Decisões relativas a cuidados de fim de vida são dolorosas e cada vez mais complexas. Mas é possível honrar a Deus e a nossos entes queridos, à medida que a morte se aproxima.

Christianity Today June 12, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Unsplash / Getty

Quando Roger, um senhor de quase 80 anos, chegou à UTI, ele já estava sofrendo os efeitos terminais de várias doenças. Sua saúde havia piorado tanto que até mesmo ler a Bíblia era difícil para ele. Já desgastado pela doença, ele concordou com uma tentativa de uma cirurgia para a retirada do câncer, apenas para agradar a família, e pediu à esposa que não permitisse [o uso de] RCP [reanimação cardiopulmonar] ou ventilador, se o estado dele piorasse após a operação. “Quero que vocês me deixem estar com Deus, quando ele me chamar”, disse Roger a ela.

Tragicamente, após a cirurgia, seus pulmões falharam. Respeitando seu desejo, em vez de prosseguir com um ventilador, o foco de seu tratamento mudou para deixá-lo confortável. Sua esposa passou aquela noite ao lado dele, acariciando sua mão, orando por ele e cantando suavemente.

No entanto, mais tarde naquela noite, um filho do casal, que estava afastado da família, invadiu intempestivamente a UTI. “Vocês não vão matar meu pai!”, ele gritou para a equipe. “Eu conheço meu pai. Ele era um homem temente a Deus que até seis meses atrás ia à igreja todo domingo. Ele não concordaria com isso!”

O que aconteceu com a família de Roger é de cortar o coração, e é também assustadoramente comum. O aparato de tecnologia médica que cerca a morte confronta cada vez mais as famílias com dilemas desconcertantes sobre os cuidados de fim da vida, também chamados paliativos. Até 70% das pessoas não conseguem responder por si mesmas no fim da vida e, nesses casos, o fardo da tomada de decisões recai sobre os entes queridos, muitos dos quais já estão sofrendo com medo e tristeza. O preço pago pelas famílias é muito alto; os entes queridos geralmente sofrem de depressão, ansiedade e mesmo de TEPT [transtorno de estresse pós-traumático] pelo período de até um ano após tomarem tais decisões.

Como apenas um terço dos norte-americanos tem uma diretriz antecipada, a maioria das famílias transita por esses conflitos sem um rumo. Aqueles de nós que seguem a Cristo instintivamente se apoiam em nossa fé para nos guiar em meio a essas tempestades; contudo, esse cenário de morrer em um hospital é algo tão distante de nós que, como aconteceu com a família de Roger, podemos ter dificuldades para aplicar as verdades que proclamamos todos os domingos às duras realidades [encontradas] ao lado de um leito de morte.

Como podemos honrar a Deus e também a nossos entes queridos nessas decisões de fim da vida, quando todos os caminhos parecem estar repletos de dor?

Embora a Bíblia não mencione ventiladores ou RCP, ela continua sendo lâmpada para nossos pés e luz para nosso caminho (Salmos 119.105). Uma abordagem para os cuidados de fim de vida vista através de uma lente cristã exige reflexão sobre os seguintes princípios-chave:

1. A vida mortal é sagrada

Como seres criados à imagem de Deus, cada um de nós possui um valor inabalável; o Senhor nos confia a vida e nos ordena que a valorizemos (Gênesis 1.26-28; Êxodo 20.13; 1Coríntios 6.19-20). O caráter sagrado da vida mortal exige que o ser humano defenda os nascituros e os proteja contra o suicídio assistido por médico. Em razão dessa nossa preocupação com a vida, quando estivermos lutando com uma série de decisões sobre medidas de suporte à vida, devemos considerar tratamentos que tenham potencial de curar.

2. A autoridade de Deus sobre a vida e a morte

A morte continua a existir neste reino terrestre como o salário do nosso pecado (Romanos 6.23) e, até que Cristo volte, ela atingirá todos nós (Isaías 40.6-8; Romanos 5.12). Quando ficamos cegos para a nossa própria mortalidade, corremos o risco de rejeitar o poder de sua graça em nossas vidas por meio da ressurreição de Cristo. O caráter sagrado da vida mortal não refuta a inevitabilidade da morte, nem a obra de Deus por meio dela, nem a sua autoridade sobre ela.

3. Misericórdia e compaixão

Como cristãos que refletem sobre a graça de Deus para conosco em Cristo, devemos estender misericórdia aos oprimidos e aflitos (João 13.34; 1João 3.16-17; Lucas 6.36). Embora ventiladores e RCP possam socorrer pessoas com doenças reversíveis, no final da vida tais medidas correm o risco de trazer sofrimento, mas sem o benefício de salvar vidas. A misericórdia não justifica a eutanásia ativa nem o suicídio assistido por médico, mas ela certamente nos afasta de intervenções agressivas, invasivas e dolorosas, se tais medidas forem inúteis [ou seja, não tiverem potencial de curar].

4. Esperança em Cristo

O amor de Deus por nós é tão grande que, em Cristo, nada pode nos separar desse amor — nem mesmo a morte! Mesmo enquanto sofremos, saboreamos a promessa da ressurreição do corpo e a esperança da união eterna com Deus (João 11.25-26; 1Tessalonicenses 4.14). Em vez de ser o último inimigo a ser temido a todo custo, por meio de Cristo, a morte é um fim para nossos pecados e a entrada para a vida eterna. Ainda que morramos, estamos vivos em Cristo.

Em resumo, nos dilemas relacionados a questões sobre o fim da vida, a Bíblia nos orienta a:

  1. Buscar a cura, quando a recuperação for possível, mas também
  2. Aceitar a morte, quando ela chegar;
  3. Ter preocupação com o sofrimento e;
  4. Enquanto passarmos por tudo isso, devemos nos apegar à nossa esperança em Cristo, aquele que transforma a morte.

Esses princípios parecem claros no papel, mas ficam emaranhados e confusos ao lado de um leito de morte. Uma pergunta-chave pode nos ajudar a decifrá-los: o processo que ameaça a vida do meu ente querido é reversível? Em outras palavras, o tratamento promete preservar a vida dele ou prolongar a morte e o sofrimento?

É crucial esclarecer que as medidas de suporte à vida são de suporte, não são curativas. Ventiladores, RCP e intervenções semelhantes a essas não curam doenças, mas ganham tempo, ajudando o funcionamento dos órgãos, enquanto os médicos trabalham para tratar a doença principal. Para obter discernimento sobre se tais medidas prometem salvar a vida ou prolongar a morte, faça as seguintes perguntas à equipe médica:

  • Qual é a condição que ameaça a vida do meu ente querido?
  • Por que ela é uma ameaça à vida?
  • Qual é a probabilidade de recuperação?
  • Há algo nas condições médicas anteriores do meu ente querido que influencie a sua probabilidade de recuperação?
  • Os tratamentos disponíveis podem trazer a cura?
  • Os tratamentos disponíveis piorarão o sofrimento dele e têm pouca chance de trazer algum benefício?

Quando a recuperação é possível, deve-se buscar um tratamento. Em contraste, quando uma doença não puder ser curada nem mesmo alcançar alguma melhora, procedimentos agressivos e invasivos podem prolongar a morte e submeter o paciente a um sofrimento desnecessário.

Quando a eficácia do tratamento for ambígua, a tarefa fica ainda mais difícil. A pergunta-chave a ser feita é o que meu ente querido diria sobre essas opções? Tal abordagem requer que vejamos nosso ente querido como Deus o vê: como alguém que é amado, perdoado, maravilhosamente criado e único, como ninguém mais na face da Terra (Salmos 139.13-14; Efésios 1.7). À medida que a responsabilidade confundir nossa mente, outra série de perguntas pode nos guiar:

  • O que mais importa para meu ente querido? O que o motiva a viver?
  • Quais comentários ele fez no passado sobre cuidados de fim de vida [se é que fez algum comentário desse tipo alguma vez]?
  • Quais são seus objetivos a curto prazo? E para a sua vida em geral?
  • O que ele está disposto a suportar para atingir esses objetivos? O que ele não estaria disposto a enfrentar?
  • No passado, meu ente querido tolerou bem a dor? E a dependência? A incapacidade física? O medo?
  • Se ele pudesse falar por si mesmo, o que diria sobre a situação atual?

Essas perguntas visam trazer à tona a personalidade, as experiências e os valores de um ente querido, para que, ao tomar essas decisões tão devastadoras, você fale por ele ou ela, e não por si mesmo.

Mesmo enquanto você luta contra a tristeza e as incertezas, quando dá voz a um ente querido que está morrendo, você lhe oferece um presente de despedida. Você honra essa pessoa como alguém que é digno de amor e, ao fazê-lo, serve como um instrumento de Cristo (João 13.34-35). Lembre-se de que você serve Aquele que vitoriosamente já tragou a morte (1Coríntios 15.54). E embora até agora toda a criação ainda gema (Romanos 8.22), Cristo está fazendo novas todas as coisas (Apocalipse 21.4-5).

Kathryn Butler, médica formada pela Universidade de Columbia, afastou-se da profissão como cirurgiã de traumas para educar seus filhos em casa. É autora de vários livros, entre eles Between Life and Death: A Gospel-Centered Guide to End-of-Life Medical Care [Entre a vida e a morte: Um guia centrado no evangelho para os cuidados de fim da vida] e Glimmers of Grace: A Doctor’s Reflections on Faith, Suffering, and the Goodness of God [Vislumbres de graça: reflexões de uma médica sobre fé, sofrimento e a bondade de Deus].

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Books

Tony Evans se afasta do ministério alegando um pecado do passado

Ele disse que se submeterá ao “padrão bíblico de arrependimento e restauração”.

Tony Evans pregando em um culto de domingo.

Tony Evans pregando em um culto de domingo.

Christianity Today June 11, 2024
YouTube screenshot / Tony Evans

Tony Evans, líder de longa data de uma megaigreja em Dallas e autor de vários best-sellers, anunciou que está se afastando de seu ministério devido a um pecado que cometeu anos atrás.

“A base do nosso ministério sempre foi um compromisso com a Palavra de Deus como o padrão supremo e absoluto da verdade, ao qual devemos conformar nossas vidas”, disse Evans, em uma declaração feita em 9 de junho e publicada no site de sua igreja, a Oak Cliff Bible Fellowship Church.

“Quando ficamos aquém desse padrão, devido ao pecado, somos obrigados a nos arrepender e a restaurar nosso relacionamento com Deus. Alguns anos atrás, fiquei aquém desse padrão. Portanto, sou obrigado a aplicar a mim mesmo o padrão bíblico de arrependimento e restauração que já apliquei a outros.”

Evans, que tem 74 anos, não entrou em detalhes sobre suas ações, mas disse que elas não foram criminosas.

“Embora eu não tenha cometido nenhum crime, não usei de justo juízo em minhas ações”, disse ele. “À luz disso, estou me afastando de meus deveres pastorais e me submetendo a um processo de cura e restauração estabelecido pelos presbíteros.”

Evans, fundador do ministério de ensino bíblico cristão The Urban Alternative, lidera a congregação há mais de 40 anos e tem um programa de rádio chamado The Alternative with Tony Evans [A Alternativa, com Tony Evans], que é transmitido por centenas de emissoras de rádio ao redor do mundo.

Uma declaração adicional postada no site de sua igreja, uma congregação não denominacional e predominantemente composta por pessoas negras, disse que Evans fez o anúncio sobre esse afastamento de suas funções como pastor sênior nos dois cultos da congregação, no domingo.

“Esta difícil decisão foi tomada após muita oração e várias reuniões com o Dr. Evans e os presbíteros da igreja”, diz outra declaração. “O conselho de presbíteros é obrigado a governar a igreja de acordo com as Escrituras. O Dr. Evans e os presbíteros concordam que, quando qualquer presbítero ou pastor fica aquém dos elevados padrões das Escrituras, os presbíteros são responsáveis ​​por chamar essa pessoa a responder [por seus atos] e a manter a integridade na igreja.”

A segunda declaração disse que Bobby Gibson, principal pastor associado da igreja, e os presbíteros fornecerão mais detalhes sobre as etapas futuras relativas à liderança interina.

Evans disse em sua declaração que havia compartilhado esse desdobramento com sua família e os presbíteros da igreja que, segundo ele, “amorosamente estenderam seus braços de graça ao meu redor”.

A esposa de Evans há 49 anos, Lois, morreu em 2019. Ele se casou novamente em novembro, e a igreja anunciou seu casamento com Carla Crummie em dezembro, apresentando-a como “Sra. Carla Evans”.

Tony Evans, o primeiro afro-americano a ter uma Bíblia de estudo e um comentário bíblico intitulados com o seu nome, já pediu que outros fossem responsabilizados.

Em 2021, em uma entrevista ao Religion News Service, ele falou sobre como “corrigiu” o músico gospel Kirk Franklin, que na época se desculpou por um áudio cheio de obscenidades, que foi divulgado pelo filho mais velho de Franklin, após os dois terem discutido.

Evans disse, na época, que Franklin “foi desafiado e corrigido pelo que fez. E que isso faz parte do dever de responder por seus atos, algo que todo homem precisa fazer na vida.”

Agora, o pastor disse à congregação que está entrando em um período de “recuperação espiritual e cura.”

“Durante este tempo, serei um adorador como vocês,” disse ele. “Eu nunca os amei mais do que os amo agora, e confio que Deus vai me guiar por este vale.”

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Books

Morre Jürgen Moltmann, o teólogo da esperança

Após se converter a Cristo em um campo de prisioneiros de guerra, ele tornou-se um renomado estudioso cristão e ensinou que “Deus chora conosco para que um dia possamos rir com ele”.

Christianity Today June 6, 2024
Bernd Weissbrod/picture-alliance/dpa/AP Images / edits by Rick Szuecs

Jürgen Moltmann, teólogo que ensinava que a fé cristã é alicerçada na esperança da ressurreição do Cristo crucificado, e que o reino vindouro de Deus atua sobre a história humana a partir do futuro escatológico, morreu no dia 3 de junho, em Tübingen, Alemanha. Ele tinha 98 anos.

Moltmann é amplamente considerado um dos teólogos mais importantes desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com o teólogo Miroslav Volf, a sua obra foi “existencial e acadêmica, pastoral e política, inovadora e tradicional, fácil de ler e ao mesmo tempo exigente, contextualizada e universal”, pois ele mostrou como os temas centrais da fé cristã falavam às “experiências humanas fundamentais” de sofrimento.

O Conselho Mundial de Igrejas relata que Moltmann é “o teólogo cristão mais lido” dos últimos 80 anos. Martin Marty, um estudioso da religião, disse que seus escritos “inspiram uma Igreja incerta” e “livram as pessoas das mãos sem vida de um passado morto”.

Moltmann era luterano, mas muitos adeptos do evangelicalismo se engajaram profundamente em sua obra. O popular autor cristão Philip Yancey chamou Moltmann de um de seus heróis, e disse, em 2005, que ele havia “trabalhado duro” [para ler] quase uma dúzia dos livros dele.

Os editores da Christianity Today criticaram a teologia de Moltmann, quando a abordaram pela primeira vez, na década de 1960, mas ainda assim elogiaram o seu trabalho.

“Como resultado do livro de Moltmann, ficamos sem palavras”, escreveu G. C. Berkouwer [em um artigo da CT de 1968], “e somos lembrados de pensar e de pregar sobre o futuro numa perspectiva bíblica. Se isso acontecer, todas as interações teológicas deram bons frutos”.

Hoje, os evangélicos que são fundamentalmente críticos das opiniões de Moltmann — e discordam com veemência de um ou outro aspecto —; ainda assim, encontram muita coisa a ser valorizada e com frequência encorajam outros a lê-lo.

“Moltmann foi um ponto de referência constante para mim”, escreveu Fred Sanders, teólogo sistemático da Universidade Biola, na plataforma social X. “No ano passado, ensinei um pouco sobre seu livro O Deus crucificado, e fiquei impressionado com o quanto sua voz ainda é poderosa para os estudantes. […] E mesmo para mim, que estou aqui do outro lado de divergências que permanecem, reler Moltmann significa encontrar, linha após linha, maneiras cativantes de colocar as coisas.”

Wesley Hill, professor de Novo Testamento, disse que discordava de Moltmann “no que parecem ser todas as principais doutrinas cristãs”. No entanto, “poucos teólogos me comoveram, me provocaram e me inspiraram como ele. Sua obra toda gira em torno do Jesus crucificado e ressurreto”.

Moltmann nasceu em uma família não religiosa, em 8 de abril de 1926. Seus pais, segundo ele escreveu em sua autobiografia, eram adeptos de um movimento em prol da “vida simples”, comprometido em levar “uma vida simples e cultivar pensamentos elevados”. Eles moravam em um assentamento de pessoas com ideias semelhantes, numa área rural, nos arredores de Hamburgo. Em vez de ir à igreja, os Moltmann trabalhavam no jardim, nas manhãs de domingo.

Mesmo assim, a família colocou o filho nas aulas de crisma, na igreja estatal local, quando ele atingiu a idade exigida. Isso era visto como um rito de passagem. Moltmann lembra-se de ter aprendido muito pouco sobre Jesus, ou sobre a Bíblia ou a vida cristã. O pastor concentrou suas aulas na tentativa de provar que Jesus não era judeu, mas era, na verdade, fenício e, portanto, ariano, ensinando às crianças a teologia antissemita promovida pelos nazistas.

“Era um total absurdo”, disse Moltmann.

Mais ou menos na mesma época, em outro rito de passagem, Moltmann foi enviado para a Juventude Hitlerista. Embora os uniformes e os hinos o fizessem sentir-se muito patriótico, como lembrou mais tarde, ele era péssimo para marchar e odiava os exercícios militares. Em um acampamento, ele se viu amontoado em uma barraca com dez meninos. A experiência deixou-o com a forte sensação de que gostava de estar sozinho.

Apesar do antissemitismo desenfreado da época, o herói da infância de Moltmann foi Albert Einstein, que era judeu. Moltmann queria ir para a universidade e estudar matemática. Esse sonho foi interrompido pela Segunda Guerra Mundial.

Aos 16 anos, Moltmann foi convocado para servir na Força Aérea e designado para defender Hamburgo com um canhão antiaéreo de 88 mm. Ele e um colega de escola chamado Gerhard Schopper ficavam estacionados em uma plataforma, que fora montada sobre palafitas em um lago. À noite, olhavam para as estrelas e aprendiam sobre as constelações.

Então, os britânicos atacaram. Eles enviaram 1.000 aviões, em julho de 1943, para lançar explosivos e bombas incendiárias sobre a cidade, iniciando uma tempestade de fogo que derreteu metal, asfalto e vidro. Qualquer coisa orgânica — madeira, tecido, carne — foi consumida por aquele mar de fogo. As temperaturas acima de 760 graus Celsius sugavam o ar das ruas, de modo que a cidade soava, segundo um sobrevivente, “como um velho órgão de igreja, quando alguém toca todas as notas ao mesmo tempo”.

A operação — que não tinha como alvo instalações militares nem fábricas de munições, mas sim “o ânimo da população civil inimiga” — recebeu o codinome “Gomorra”, em homenagem à cidade bíblica destruída por Deus em Gênesis 19. Cerca de 40 mil pessoas foram mortas.

Quando o ataque terminou, Moltmann se viu flutuando no lago, agarrado a um pedaço de madeira que partiu-se da sua plataforma de canhão, a qual fora explodida. Seu amigo Schopper estava morto.

Tempos mais tarde, ele descreveria isso como sua primeira experiência religiosa.

“Enquanto milhares de pessoas morriam na tempestade de fogo ao meu redor”, disse Moltmann, “clamei a Deus pela primeira vez: Onde está você?

Ele não obteve resposta naquele dia. Mas, dois anos depois, ele foi capturado na linha de frente e enviado para um campo de prisioneiros de guerra, na Escócia. Um capelão deu-lhe um Novo Testamento que também tinha o livro de Salmos, e ele começou a ler o Salmo 39 todas as noites:

Ouve a minha oração, Senhor;
escuta o meu grito de socorro;
não sejas indiferente ao meu lamento. (v. 12)

Ele leu o Evangelho de Marcos e sentiu-se profundamente atraído por Jesus. A crucificação o deixou sem chão.

“Eu não encontrei Cristo. Ele é que me encontrou”, disse Moltmann mais tarde. “Lá, naquele campo de prisioneiros de guerra escocês, no fosso escuro da minha alma, Jesus me procurou e me encontrou. ‘Ele veio buscar e salvar o que estava perdido’ (Lucas 19.10), e foi assim que Jesus veio até mim.”

Aos 22 anos, quando regressou à Alemanha —– um país em ruínas —– foi para a escola estudar teologia. Os nazistas foram expulsos das universidades, durante a reconstrução liderada pelos americanos, e entre os expulsos estava o teólogo da Universidade de Göttingen, Emmanuel Hirsch, que cantarolava o hino nacional nazista entre as aulas, e certa vez afirmou que Adolf Hitler foi o maior estadista cristão da história do mundo.

Em Göttingen, Moltmann estudou com pessoas alinhadas à Igreja Confessante e que ensinavam a teologia de Karl Barth. Ele escreveu uma dissertação sobre um calvinista francês do século 17, concentrando-se na doutrina da perseverança dos santos.

Enquanto estava na escola, Moltmann se apaixonou por outra estudante de teologia, Elisabeth Wendel. Eles concluíram o doutorado juntos e se casaram em uma cerimônia civil, na Suíça, em 1952.

Depois de se formar, Moltmann foi enviado para pastorear uma igreja em um vilarejo remoto na Renânia do Norte-Vestefália. Ele deu aulas para uma turma de confirmação [crisma] de “50 meninos selvagens” e, no inverno, fazia visitas domiciliares sobre esquis. As pessoas pediam que ele trouxesse arenque, margarina e outros alimentos da loja, quando ele viesse.

“A primeira pergunta que me faziam em todos os lugares era se eu acreditava no Diabo”, lembrava Moltmann, anos mais tarde. Ele ensinava às pessoas que elas poderiam afastar o Diabo recitando o Credo Niceno. Mas não estava convencido de que elas lhe davam ouvidos.

A segunda igreja para onde enviaram Moltmann também foi um desafio. Ele foi mandado para uma pequena aldeia no norte do país, perto de Bremen. Havia ratos no porão da casa paroquial, camundongos na cozinha, e morcegos e corujas no sótão. Cerca de 100 pessoas frequentavam a igreja — mas não vinham todas juntas, nem regularmente. Nas manhãs de domingo, o jovem ministro ficava esperando na janela, perguntando-se se alguém viria à igreja.

No entanto, ele conquistou algum respeito entre os agricultores, por sua habilidade num jogo de cartas chamado Skat, e aprendeu a pregar sermões que se conectavam com as pessoas. Moltmann aprendeu que, se os agricultores mais velhos revirassem os olhos enquanto ele pregava, era porque a sua teologia tinha se distanciado muito das preocupações da vida real.

“A menos que a teologia acadêmica se volte continuamente para esta teologia do povo, ela torna-se abstrata e irrelevante”, escreveu ele mais tarde. “Eu não estava totalmente preparado para ser pastor, mas estava feliz por ter experimentado a vida humana em toda a sua plenitude e profundidade: crianças e idosos, homens e mulheres, saudáveis ​​e enfermos, nascimento e morte, etc. Eu me daria por feliz se tivesse continuado a ser um teólogo/pastor.”

Em 1957, Moltmann deixou o ministério pastoral para ensinar teologia. Ele deu aulas sobre vários tópicos, mas ficou especialmente interessado na história da esperança cristã pelo reino de Deus.

Ao mesmo tempo, começou a se envolver com a obra de um filósofo marxista chamado Ernst Bloch. Moltmann escreveu diversas resenhas críticas dos livros de Bloch, mas achava suas ideias instigantes. Bloch argumentava que a vida caminhava dialeticamente em direção a uma utopia final. Na sua obra-prima de três volumes, Das Prinzip Hoffnung [O princípio da esperança], ele defendia a esperança revolucionária, alegando que o marxismo era guiado por um impulso místico e antecipatório de um cumprimento final.

Embora fosse ateu, Bloch citava frequentemente as Escrituras. Ele dizia que estava tentando articular a “consciência escatológica que veio ao mundo através da Bíblia”.

Moltmann observou que, embora muitos teólogos tivessem escrito sobre fé e amor, havia pouca coisa escrita na tradição protestante sobre esperança. A teologia “abandonou seu próprio tema”, dizia ele, e Moltmann, então, decidiu assumir a tarefa.

Ele começou a lecionar sobre o tema primeiramente na Universidade de Bonn, e, depois, na Universidade de Tübingen, onde passaria o resto de sua carreira.

Moltmann publicou Theologie der Hoffnung [Teologia da esperança] em 1964. A obra foi recebida com intenso interesse. O livro teve seis edições em dois anos e foi traduzido para vários idiomas estrangeiros. Em 1967, foi lançado em inglês pela primeira vez, e ganhou tanta atenção dos teólogos que atraiu o interesse do The New York Times.

Numa matéria de primeira página, publicada em março de 1968, o jornal noticiou que os debates voltados para a teologia da moda, que falava sobre a “morte de Deus”, tinham sido substituídos por uma discussão sobre a ideia de Moltmann, teólogo alemão de 41 anos, de que Deus “atua sobre a história humana a partir do futuro escatológico”. Citaram isto como palavras ditas por Moltmann: “o cristianismo é escatologia do início ao fim, e não apenas no epílogo”.

O jornal maravilhou-se com o fato de esta “teologia da esperança” ter como fundamento a crença na ressurreição, “algo que muitos outros teólogos consideram hoje um mito”.

Alguns críticos da época, no entanto, temiam que esta ênfase na escatologia ofuscasse a obra de Cristo na cruz. Eles disseram que o foco de Moltmann nas coisas últimas ignorava ou até mesmo minimizava a importância da crucificação.

Moltmann chegou a pensar que havia algo naquela crítica, durante um simpósio sobre a Teologia da Esperança, na Universidade Duke, em abril de 1968. Durante uma das sessões, o teólogo Harvey Cox entrou correndo na sala e gritou: “Martin Luther King foi baleado”.

A conferência rapidamente se desfez, enquanto os teólogos lutavam para voltar para casa, em meio a relatos de tumultos em todo o país. Mas os alunos da Duke — que pareciam não se importar nem um pouco com a teologia da esperança — reuniram-se para uma vigília espontânea no pátio da escola. Eles choraram a morte de Martin Luther King por seis dias. No último dia, estudantes negros de outras escolas juntaram-se aos estudantes brancos, e, juntos, cantaram o hino dos direitos civis “We Shall Overcome” [Nós vamos vencer].

Moltmann, comovido pelo poder transformador do sofrimento, começou a trabalhar em seu segundo livro, Der gekreuzigte Gott [O Deus crucificado]. Foi publicado em 1972, e lançado em inglês dois anos depois.

“A identidade cristã só pode ser entendida como um ato de identificação com o Cristo crucificado”, escreveu Moltmann. “A ‘religião da cruz’[…] não eleva e edifica no sentido habitual, mas escandaliza; e, acima de tudo, escandaliza os “correligionários” do seu próprio círculo. Mas, por meio deste escândalo, traz libertação para um mundo que não é livre.”

Moltmann uniu as duas ideias — o sofrimento de Cristo e a esperança dos cristãos — e isso se tornou o cerne da sua teologia. Ele ensinava que as pessoas deveriam “acreditar na ressurreição do Cristo crucificado e viver à luz de sua realidade e futuro”.

Ou dito de forma mais simples: “Deus chora conosco para que um dia possamos rir com ele”.

Moltmann aposentou-se em 1994, mas continuou a trabalhar com estudantes de pós-graduação por muitos anos. Quando sua esposa morreu, em 2016, ele escreveu seu último livro sobre morte e ressurreição.

Moltmann deixa quatro filhas.

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