Como meu colega Stefani McDade escreveu em um artigo publicado pela CT em setembro, a Lifeway Research divulgou uma pesquisa realizada para os Ministérios Ligonier. Nela se conclui que uma porcentagem surpreendentemente alta de evangélicos americanos defende crenças sobre Jesus e a salvação que todas as alas da igreja cristã definiriam como heresia.
Se esses resultados forem precisos, o que isso revela sobre o rumo que o cristianismo evangélico americano está tomando?
Recapitulando um pouco, a pesquisa mostrou que os entrevistados evangélicos expressaram um cojunto confuso e às vezes incoerente de crenças. A maioria afirmou crer na Trindade, mas 73% deles concordaram, ao menos em parte, com a afirmação de que “Jesus foi o primeiro e maior ser criado por Deus Pai”, o que é, naturalmente, o ensinamento do herege Ário.
Geralmente sou um pouco cético em relação a esse tipo de pesquisa, pois muitas vezes ela parece filtrar e deixar de fora aquelas pessoas que creem, mas não conseguem articular suas crenças em termos abstratos. Não tenho certeza se algum dos professores de escola dominical que me deram aulas na infância teria concordado com uma declaração de pesquisa do tipo “a justificação é somente pela fé”, muito embora todos eles acreditassem nisso. Dito isso, a Lifeway parece ter levado em conta e filtrado muitos desses problemas comuns em pesquisas.
Suspeito que a maioria de nós, no entanto, não está surpresa com os resultados. O cristianismo evangélico americano de hoje parece estar mais preocupado em caçar hereges internamente do que talvez em qualquer outra geração. A diferença, no entanto, é que as excomunhões estão acontecendo não por uma questão de visão teológica, mas sim de política partidária ou por causa das últimas discussões nas mídias sociais.
Sempre achei um tanto desconcertante ver colegas evangélicos, por um lado, buscarem a expulsão daqueles que não votam da mesma maneira ou não conseguem fingir indignação com controvérsias de Internet, mas, por outro lado, acolherem líderes cristãos que ensinam visões heréticas da Trindade ou que aderem ao evangelho da prosperidade.
Mas parece que algo mais está acontecendo aqui — algo que envolve uma secularização furtiva e generalizada do evangelicalismo conservador. O que me preocupa não é tanto que os cristãos evangélicos não consigam articular a ortodoxia cristã em uma pesquisa. O que me preocupa é que, para muitos deles, a ortodoxia cristã pareça aborrecida e irrelevante quando comparada à atitude de reivindicar um status de religião para tribos políticas, culturais ou etnonacionais já existentes.
Há vários anos, um ateu combativo escreveu que seus colegas ateus deveriam abandonar a palavra ateísmo porque esta dava muito peso ao teísmo. O objetivo final, segundo ele argumentava, não era difundir o ateísmo, mas sim enfatizar que a crença em Deus carece tanto de credibilidade que não merece ser seriamente considerada.
Seus argumentos incluíam muito sarcasmo sobre a perceptível estupidez do cristianismo, juntamente com estratégias para afastar as pessoas de seus “mitos” sobrenaturais e redirecioná-las para o que ele via como realismo — um mundo sem Deus.
Esse mesmo ateu falou em uma recente conferência para pastores. Ele apareceu em vídeos produzidos por grupos evangélicos, nos quais ele acusa outros evangélicos de serem “woke” [alguém ativo nas lutas contra problemas sociais, em especial o racismo] e — em uma ironia atordoante e inconfessa — de negarem a suficiência das Escrituras. Na opinião desse ateu, a linha que separa as “ovelhas” dos “bodes” é [ter] a visão “correta” a respeito das causas políticas, e não a crença em Cristo ou a fidelidade ao evangelho.
Suponho que a estratégia dele funcione a longo prazo. Não há necessidade de dissuadir as pessoas de acreditarem em Deus nem de pregar a Cristo crucificado, quando se muda o foco para a política. Nesse sentido, o teísmo — e o próprio cristianismo — de fato não podem ser levados suficientemente a sério para que alguém a eles se oponha.
Curiosamente, a pesquisa da Lifeway não revela essa mesma falta de ortodoxia, quando se trata de questões éticas sobre a vida humana ou a sexualidade. Será que isso acontece porque as igrejas fazem um bom trabalho de catequizar as pessoas em uma “visão bíblica de mundo” nessas áreas? Pode ser. Ou talvez essas questões estejam em primeiro plano por serem frequentemente discutidas em um contexto político ou cultural, e não em contextos estritamente teológicos.
Alguns que (com razão) veem tendências preocupantes em pesquisas como essa argumentariam que precisamos de mais livros, de mais conferências de teologia e de mais pequenos grupos que tratem de teologia sistemática em nossas igrejas. Eu me pergunto, porém, se o problema não é maior do que isso. Talvez, em lugar de um problema de informação, tenhamos um problema de afeições. Talvez, antes de termos um problema de teologia, tenhamos um problema de prioridades.
A peça que falta no momento não é tanto a capacidade de articular doutrinas, mas um nível de instrução mais fundamental nas Escrituras. Meus colegas teólogos sistemáticos muitas vezes se irritam com o discurso de que “precisamos voltar à Bíblia”, apontando, em vez disso, para a ignorância em relação à tradição dos credos cristãos e à própria história da igreja.
Vimos esse tipo de desequilíbrio na erudição evangélica há alguns anos, quando a tentativa de interpretar a Bíblia sem refletir sobre o Concílio de Niceia levou alguns teólogos a rejeitarem doutrinas cristãs básicas como a geração eterna do Filho.
Essa preocupação é justa, mas não vai fundo o bastante.
David Nienhuis, um erudito em Novo Testamento, afirma que temos uma geração de “citadores da Bíblia, e não de leitores da Bíblia”. Às vezes, até mesmo as pessoas mais inclinadas para a teologia sabem como usar a Bíblia, dentro e fora da igreja, em debates que giram em torno de controvérsias sobre gênero, predestinação e assim por diante. Mas elas não sabem a diferença entre Melquisedeque e Mardoqueu, entre Josias e Josafá. E veem o enredo real das Escrituras como um detalhe “menor”.
A Bíblia faz muito mais do que responder a questões que lhe são feitas por controvérsias do momento, e faz muito mais do que apenas reforçar a doutrina. A Bíblia molda e forma seus ouvintes e leitores. A Palavra de Deus não volta vazia. Ela reorienta nossas prioridades e nossas afeições — até mesmo antes de sabermos que elas precisam ser ajustadas, reorientadas. Nós, como igreja e como famílias, precisamos de muitos ministérios e dons diferentes — mas, talvez, aulas de memorização da Bíblia ou competições na escola dominical para ver quem é capaz de encontrar versículos bíblicos mais rápido sejam mais importantes do que conferências sobre cosmovisão.
Quando Jesus foi tentado pelo Diabo no deserto, ele respondeu com as Escrituras. Mas ele não estava apenas usando textos-prova contra falsos ensinos. Ao citar essas passagens específicas de Deuteronômio, Jesus mostrou que sabia o que o Diabo estava querendo — ele o estava tentando a buscar alimento, proteção e glória em outro lugar que não em Deus, do mesmo modo que os israelitas foram tentados a fazer, no tempo de Moisés.
O povo de Deus havia falhado no deserto antes; o Filho de Deus não falharia.
Jesus — o unigênito de Deus, gerado e não criado, Luz da Luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, da mesma essência do Pai, encarnado pelo Espírito Santo e a virgem Maria — conhecia sua Bíblia e sabia o que importava. Se não seguirmos sua liderança, podemos acabar com nossos “valores” de cabeça para cima e nossa teologia de cabeça para baixo.
Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today.
Traduzido por Mariana Albuquerque.
Editado por Marisa Lopes.
–