Três fatores cruciais para uma real recuperação da pandemia

O Antigo Testamento oferece um modelo de como restaurar a comunidade e a vida econômica após um desastre.

Christianity Today June 29, 2021
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Zdenek Sasek / Getty Images / CDC / Unsplash

Com toda a probabilidade, na história da década de 2020, a COVID-19 será uma nota de rodapé. Quando nossos bisnetos pensarem na década de 2020, eles provavelmente se lembrarão da pandemia tão pouco quanto nós, até março do ano passado, nos lembrávamos da gripe espanhola de 1918-1919.

Pandemias e outros desastres naturais são eventos que raramente marcam a história por si próprios. Em vez disso, os desastres naturais aceleram e intensificam realidades e tendências culturais.

É por isso que meus colegas da organização Praxis e eu escrevemos um artigo, em março de 2020, argumentando que a persistente “era do gelo”, os efeitos de longo prazo da COVID-19, seria mais sobre economia do que epidemiologia. A era do gelo de pequenas proporções não seriam tanto os doze a dezoito meses do “inverno” pandêmico em si, mas o deslocamento e a mudança social que seriam deixados em seu rastro.

Hoje vemos três grandes deslocamentos que não foram causados pela pandemia, mas acelerados por ela, e que devem moldar o horizonte da ação cristã na próxima década.

Primeiro, temos a recuperação em forma de K.

Na primavera passada, especulávamos se a recuperação econômica seria em forma de V, U ou L, mas na verdade ela foi em forma de K. Algumas classes de ativos, como grandes ações públicas, têm se saído incrivelmente bem. Enquanto isso, dezenas de milhares de pequenas empresas que eram viáveis antes da pandemia fecharam totalmente as portas.

O trabalho de recuperação tomou a forma de K. Quase ninguém gostou do ano passado, mas se a pessoa pudesse trabalhar em casa com telas, palavras e símbolos seria muito mais suportável e factível do que trabalhar fora de casa com pessoas ou coisas.

Mesmo dentro das empresas, existem dinâmicas em forma de K. Como a Sequoia Capital escreveu em março, “estamos vendo uma diferença entre as métricas de desempenho de alguns negócios e como as pessoas nessas empresas estão se sentindo”. Isso soa verdadeiro.

Isso é uma aceleração de tendências já existentes. Há décadas, a economia capitalista global tem visto algo que os estatísticos chamam de divergência média-mediana, com vastos benefícios para os afortunados e maior precariedade para os demais.

Para muitos, a experiência do ano passado foi em forma de K. A maioria de nós encontrou maneiras de prosperar este ano, até mais do que esperava. Mas outros enfrentam perdas terríveis ou estão inseridos em comunidades que enfrentaram perdas terríveis.

Não vimos a recuperação em forma de K chegar, mas poderíamos e talvez devêssemos ter visto, pois a forma de K é a forma do nosso mundo.

A recuperação em forma de K não é de forma alguma a única história que será contada sobre 2020 e depois.

O recurso mais importante em qualquer sistema, especialmente quando está sob pressão, é a confiança. Este ano, descobrimos de novo quantas de nossas instituições têm a forma de K — atendendo a algumas parcelas da população de maneira bastante eficaz, ao mesmo tempo em que atende a outras de forma desesperadora. Isso dificilmente seria uma novidade. Mas o que se acelerou no último ano foi um colapso da confiança de que essas instituições possam ser redimidas.

Gostaríamos de acreditar que as instituições sociais são construídas sobre os alicerces da justiça, de modo que possam ser aprimoradas para servir bem a todos. Mas na década de 2020 — e esta é a segunda tendência de longo prazo que se acelerou no ano passado — mais e mais americanos acreditam que essas instituições são fundamentalmente injustas, projetadas para servir e proteger apenas a metade superior do K.

Essa era a verdade para muitos dos que invadiram o Capitólio dos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, e estavam convencidos de que as instituições ligadas a eleições democráticas do país haviam sido corrompidas. Também era a verdade para muitos daqueles que protestaram no verão de 2020, após o assassinato de George Floyd, pedindo a abolição de instituições de justiça pública sob o argumento de que são irremediavelmente corruptas.

E, não por coincidência, essa erosão da confiança social ocorreu em uma época de maciça compressão da banda larga — a terceira tendência que a pandemia acelerou.

Quando as pessoas se encontram presencialmente, é bem provável que estejam trocando gigabits por segundo de informação. Por meio de vários canais sensoriais — visão, audição e muitos mais — nós absorvemos e transmitimos o que pensamos e, mais importante, o que sentimos. Durante a pandemia, o fluxo de informações diminuiu drasticamente. Passamos dos gigabits presenciais para os megabits no Zoom — uma redução da ordem de mil vezes. Mensagens de texto, tweets e postagens no Facebook são medidos em kilobits — uma compressão da ordem de mais mil vezes.

Quando comprimimos informações, perdemos o contexto. Perdemos emoção. Podemos transmitir os “fatos”, mas perdemos o significado. Não há problema em enviar uma mensagem de texto a seu cônjuge pedindo para ele comprar leite no mercado. No entanto, quase sempre não é adequado enviar uma mensagem de texto para dizer que você está arrependido por ter esquecido o aniversário dele.

A confiança pode ser quebrada à distância (como naquela mensagem de texto!), mas é quase impossível restaurá-la à distância.

A maior parte do verdadeiro desafio em qualquer conflito se resume a esta questão: Você entende como era estar no meu lugar no momento da ruptura, no momento em que as coisas deram errado? E, quase sempre, para atingir esse nível de empatia (para ter alguma noção de como era estar no lugar do outro) e comunicar essa empatia (para que o outro acredite que eu o entendo) requer presença pessoal.

Essas tendências — a dinâmica em forma de K, a perda da confiança social e compressão da banda larga — já existiam antes da COVID-19, mas o vírus as acelerou. Nenhuma recuperação real desta pandemia será completa sem que tais tendências sejam abordadas.

De fato, tenho me perguntado: “Como se recuperar de uma recuperação em forma de K?”

Existe um modelo bíblico que trata de como se recuperar de um desastre multifacetado. O mundo antigo também tinha essa forma de K. Doenças e fome podiam levar a dívidas incapacitantes. A guerra podia deslocar famílias e comunidades, até mesmo nações inteiras. Tudo isso levava à escravidão — a derradeira perda de liberdade, a derradeira realidade social em forma de K.

E para uma sociedade que estava sempre sob risco de adquirir essa forma de K, Deus prescreveu o Jubileu.

O Jubileu, descrito principalmente em Levítico 25, era uma reinicialização da economia. A cada cinquenta anos, dívidas eram perdoadas para que nenhuma família pudesse acabar permanentemente do lado errado do infortúnio ou mesmo do mau comportamento. A terra deveria ser devolvida às famílias, evitando a concentração de riqueza em um número cada vez menor de mãos e evitando a criação de uma perpétua classe servil de sem-terras.

O Jubileu era uma redefinição institucional. O poder não poderia acabar beneficiando permanentemente uma pequena elite, nem poderia acabar em suas mãos.

O Jubileu era um retorno de pessoas ao lugar em que podiam ser conhecidas. Ao retornar às suas terras sem pendências, mesmo aqueles que haviam perdido tudo poderiam ser livrados da falta de moradia e da alienação, e restaurados ao lar e à reconciliação.

Imagine os efeitos desse tipo de perdão institucional, econômico e nacional. Imagine a alegria quando aqueles que terminaram na escravidão eram libertados. Imagine a liberdade, também, daqueles que eram “vencedores” no antigo sistema, por não ter mais de coagir nem dominar seus irmãos e irmãs.

Este seria um mundo onde, como disse Isaías, as boas novas seriam anunciadas aos pobres. Que boas novas eram essas? Que eles não eram mais escravos por suas dívidas; que sua perda, sua desconfiança, sua vergonha haviam sido apagadas; que o dia do Senhor havia chegado.

O júbilo é fruto do perdão. O júbilo é fruto da misericórdia. O júbilo é fruto de o verdadeiro Deus ser conhecido, adorado e obedecido.

Em seu primeiro discurso público em Lucas 4, Jesus disse que este dia havia se cumprido. Oramos por isso cada vez que fazemos a oração que ele nos ensinou, em Mateus 6. “Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”. Esta é uma oração para que o Jubileu venha. Para que a confiança seja restabelecida por arrependimento, perdão e misericórdia genuínos e de alto preço.

Mas estamos em um momento perigoso — embora o perigo da pandemia pareça estar diminuindo nos Estados Unidos, e estejamos orando para que diminua rapidamente em outras partes do mundo também.

Cem anos atrás, a gripe espanhola, que veio na esteira da Primeira Guerra Mundial, também recuou. E foi seguida pelos loucos anos 20. Podemos entender plenamente o que as pessoas estavam sentindo na época. O verão deste ano será assim em alguns lugares: euforia e júbilo.

Mas os loucos anos 20 foram seguidos pela década mais devastadora do século 20, pelo menos em termos econômicos e geopolíticos. Porque, na verdade, eles foram construídos sobre uma ordem mundial precária em forma de K.

Mais notavelmente, o Tratado de Versalhes impôs à Alemanha uma dívida por reparações de guerra de 132 bilhões de marcos de ouro — 269 bilhões de dólares em valores atuais. Foi um acordo calamitoso que, sem dúvida, representou um fator importante no colapso do sistema financeiro alemão em 1931. Dentro de um ano, isso desencadeou crises semelhantes no Reino Unido e nos Estados Unidos, e desencadeou uma hiperinflação na Alemanha que contribuiu diretamente para a ascensão do nacional-socialismo.

Os loucos anos 20 foram um júbilo sem Jubileu. Cuidado com o júbilo sem Jubileu.

Como serão os nossos anos 20? Muito do que moldará esta década está além de nosso poder. E pode parecer que uma redefinição abrangente, na escala do Jubileu, seja algo inimaginável. Mas também era assim no mundo dos primeiros cristãos. A oração que Jesus ensinou a eles reforçava a necessidade absoluta do perdão no mesmo patamar do Jubileu, e também enfatizava que esse perdão poderia começar com um compromisso pessoal e local: como perdoamos nossos devedores .

Não podemos redefinir todas as dinâmicas em forma de K em ação no mundo, mas podemos empregar nossos recursos pessoais e organizacionais para cuidar especialmente daqueles que estão do lado errado dessa “recuperação”. Restaurar a confiança nas instituições sociais de maior proporção pode parecer algo além da nossa capacidade, mas muitos de nós temos oportunidades todos os dias de tornar mais verdadeiras e confiáveis as organizações e comunidades das quais fazemos parte. E podemos escolher ir na direção oposta à da compressão da banda larga, despendendo tempo e recursos em encontros presenciais, frente a frente, os quais são essenciais para o conflito saudável e a restauração criativa.

Este é um momento de felicidade. Mas também é um momento de ação redentora decisiva — um momento de garantir que todas as nossas estratégias, todas as nossas operações e toda a nossa liderança tenham a forma de J, e não de K.

E, bem mais do que podemos imaginar agora, o transcurso da década de 2020 pode depender de podermos oferecer um sabor de Jubileu a um mundo em forma de K.

Andy Crouch é parceiro de teologia e cultura na organização Praxis. De 2015 a 2017 foi editor executivo da CT.

Este artigo foi adaptado de uma palestra proferida no 2021 Praxis Redemptive Imagination Summit, em 17 de maio. Este episódio do podcast The Redemptive Edge explora essas ideias em maior profundidade.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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A orientação de Moisés para celebrações após a pandemia

Como as orientações bíblicas para celebrações nos ensinam a temer ao Senhor.

Christianity Today June 21, 2021
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiArt / Melissa Walker Horn / Nathan Dumlao / Unsplash / Flashpop / Zu_09 / Getty Images

Quando caminhava para o culto de Páscoa ao ar livre da minha igreja, meu primeiro pensamento foi de alegria: “Senti tanta falta disso”. Mas meu segundo pensamento foi muito mais inquietante: “Esqueci o quanto sentia falta disso”.

A dor da pandemia se estendeu a todas as partes de nossas vidas. Alguns perderam entes queridos. Outros perderam empregos. Coisas que são celebradas uma única vez na vida não foram celebradas. E muitas igrejas fizeram mudanças dolorosas em nossa vida de adoração. Para algumas congregações, isso significou mudar a maior parte do que fazemos nas reuniões presenciais para reuniões via Zoom, transmissões ao vivo e encontros virtuais que tomaram conta das horas em que acordamos, trabalhamos e adoramos.

Essas decisões difíceis, porém necessárias, causaram muitos estragos em nossa vida. Mas naquele momento, no primeiro encontro ao ar livre promovido pela minha igreja, descobri que alguns dos danos causados eram menos óbvios. A decisão de fechar nossas igrejas foi um ato necessário de amor ao próximo em tempos difíceis. Mas os seres humanos não foram criados para adorar a Deus isoladamente. Fazer isso por um ano inteiro pode muito bem ter nos prejudicado de maneiras que ainda não compreendemos totalmente.

O anúncio dos Centros de Controle de Doenças (CDC) de que os americanos vacinados podem parar de usar máscaras na maior parte do tempo é apenas o lembrete mais recente de que, embora a pandemia ainda não tenha ficado completamente para trás, a vida está começando a voltar a algo parecido com o normal. Enquanto muitos americanos estão se preparando para recuperar o tempo perdido com um retorno à vida social ao estilo “estrondoso dos anos 20, após a gripe espanhola”, a igreja tem a oportunidade de abraçar algo muito melhor: um banquete de proporções épicas, consumido na presença de Deus e ao lado de nossos próximos, uma celebração que transborda um estilo de vida justo, misericordioso e generoso.

O problema é que nosso ano de portas fechadas pode trazer novas complicações para as celebrações pós-COVID da igreja. A norma tornou-se a igreja virtual, e, depois, a igreja reunida em pequenos grupos com todos usando máscara. Mas, como descobri no culto ao ar livre de nossa igreja, ao perder o hábito da igreja encarnada, meu desejo de abraçar um irmão idoso ou de partilhar o pão e o vinho com meu próximo na Ceia do Senhor esfriou.

O lockdown anestesiou minha necessidade de comunidade e embotou meu desejo de reunir-me em adoração com o corpo comunitário de Cristo, como um corpo físico entre tantos outros. Aprecio essas ideias na teoria, é claro. Mas não sinto falta delas até a medula, não sinto falta delas da maneira que senti no primeiro mês que passei tentando adorar a Deus na minha sala de estar.

À medida que as igrejas reabrem suas portas, pelo menos nos Estados Unidos, muitos líderes de ministério estão se perguntando se as pessoas voltarão aos bancos das igrejas, ou dependerão mais da igreja online, ou a abandonarão completamente. Nessa volta à normalidade, tanto frequentadores quanto líderes da igreja precisam examinar hábitos problemáticos e lições que aprendemos durante nosso ano de isolamento, para aprendermos a adorar a Deus juntos novamente.

Para nos ajudar, podemos aproveitar algumas dicas nas palavras de Moisés ao povo de Deus, durante outro período de transição, a transição do deserto para a Terra Prometida. Moisés sabia que esses períodos de transição sempre oferecem ao povo de Deus novas oportunidades de rebelião e divisão. O longo sermão mosaico que chamamos de Deuteronômio teve como objetivo preparar o povo para atravessar a transição e viver a vida que Deus tinha para eles, a qual Moisés resumiu reiteradamente como “temer ao Senhor”. Por “temer ao Senhor”, Moisés parecia querer dizer voltar a vida toda em direção a Deus, algo que incluía temor, amor, reverência, compromisso e obediência.

Moisés tinha visto como o temor ao Senhor viera com bastante naturalidade aos israelitas, quando Deus lhes falou do meio de um fogo ardente, no topo do Monte Sinai. Mas ele também reconheceu que a vida cotidiana na Terra Prometida embotaria essas memórias e os sentidos do povo. A tentação de permitir que o conforto de seu “novo normal” na Terra Prometida os levasse ao esquecimento seria intensa. Israel teria de aprender a temer a Deus dia após dia. Como o povo de Deus manteria esse temor vivo nos dias que viriam?

Deuteronômio 14.22-27 nos dá uma estratégia que é tão inesperada quanto encantadora:

Comam perante o Senhor seu Deus, no lugar que ele escolher para estabelecer o Seu nome, todos os dízimos dos seus grãos, do seu vinho e do seu azeite e dos primogênitos das suas manadas e rebanhos, para que aprendam a temer a YHWH seu Deus sempre (v. 23, tradução do autor, do começo ao fim).

Os israelitas sabiam tudo sobre dízimos. Eles também sabiam tudo sobre impostos e tributos. Se eles fossem instruídos a trazer o dízimo ou o primogênito do rebanho a algum local central de adoração, isso só poderia significar uma coisa: Hora do pagamento.

Mas, por trás das cenas, Deus está convidando seu povo para um ritual que os ensinará a temê-lo. Lição número um: O Deus a quem eles devem temer é um Rei tão generoso que recebe o tributo que seu povo lhe deve apenas para devolvê-lo em seguida, como recurso para um generoso banquete em sua presença.

Na verdade, aprender a temer ao Senhor acaba tendo muito a ver com desejo. “Se o caminho estiver longe demais para vocês”, o Senhor lhes diz, “troquem o dízimo por prata e tragam para mim”. Então:

gastem o dinheiro em tudo o que desejarem profundamente, em gado e ovelhas e vinho e bebidas fermentadas, e em tudo o que vocês desejarem profundamente. E comam ali, perante o Senhor, o seu Deus e regozijem-se, vocês e sua casa (v. 26).

Por que o Senhor convida o povo a celebrar com ele? Porque quer que eles saibam, até os ossos, que seus desejos só podem ser satisfeitos à mesa de seu Rei divino. E a maneira de chegar a esse conhecimento até os ossos é através de seus estômagos. Israel será um povo que experimentou, literalmente falando, a extravagante generosidade do seu Deus.

A lição que o Senhor está ensinando a eles, porém, não pode ser aprendida de forma isolada. A celebração para a qual o Senhor os convida é uma celebração na sua presença e ao lado de toda a comunidade. Deuteronômio deixa claro que a família que celebra na presença de Deus deve incluir “seu filho e sua filha, seus servos e servas”, os “levitas em suas cidades”, o “estrangeiro, o órfão e a viúva” (Deuteronômio 12.18; 16.11).

Aprender a temer ao Senhor todos juntos, regozijando-se com ele nessa celebração, é o que preparará esta comunidade para temer ao Senhor, obedecendo seu estilo de vida contracultural durante todo o ano. É por isso que a comunidade que aprende a temer ao Senhor celebrando junta, em Deuteronômio 14.22, é imediatamente desafiada a temer ao Senhor criando também a primeira rede de segurança social do mundo, financiada pelo dízimo, ao abraçar a prática do perdão de dívidas no ano sabático, e até mesmo ao colocar limites dramáticos na escravidão por dívida para com seus irmãos e irmãs (Deuteronômio 14.28-15.18). As pessoas que celebram juntas tornam-se uma família de pessoas tementes a Deus. A família que teme a Deus unida segue a Deus, criando um mundo justo e misericordioso para todos os seus membros.

Muitos cristãos e igrejas lutavam antes da pandemia para reconhecer o quão central esse celebrar juntos é para nossa vida com Deus. Uma versão ocidental hiperindividualista do cristianismo ensinou muitos de nós a ir à igreja principalmente em busca de um sermão ou de uma experiência de adoração que nos “alimente” com uma porção “espiritual”, em vez de ir à igreja à procura de uma família com quem termos nossos desejos mais profundos satisfeitos pela vida encarnada, vivida em comunidade na presença de Deus. Dentro da igreja e na comunidade religiosa, já vínhamos frequentemente nos apoiando em artifícios tecnológicos cultivados nas câmaras de eco da mídia social fora da igreja, em vez de nos apoiarmos na rica balbúrdia do compartilhar de mesas reais, com irmãos e irmãs de todo o espectro socioeconômico.

Deveríamos saber que, dado que nos reunimos para adorar o Deus que se fez carne por nós, a igreja na internet só poderia ser igreja com um asterisco. Mas nosso antigo caso de amor com a tecnologia nos preparou para o isolamento muito antes que a pandemia o impusesse a nós.

Muitos de nós, líderes de igrejas, já sabíamos que estávamos tendo dificuldades para promover uma comunidade autêntica entre nossos fiéis. Agora, a maioria dos cristãos americanos passou um ano inteiro aprendendo a viver sem a balbúrdia da vida da igreja como corpo, e consumindo uma dieta constante de igreja pela Internet e, assim como eu, achando muito fácil esquecer por que precisamos sentir o toque da mão do nosso próximo quando oramos ou ouvir o som da sua voz quando cantamos louvores.

E se levássemos Deuteronômio a sério? Vamos trabalhar essa ansiedade social que adquirimos com todo o nosso isolamento e essa inércia de ser capaz de fazer tudo virtualmente, e fazer da celebração a prioridade máxima da igreja. Vamos por fim a esta peregrinação pelo deserto da COVID-19 com uma temporada de celebração em conjunto com o povo de Deus.

Nós estivemos separados por tanto tempo, forçados a comer o pão e a beber o vinho em circunstâncias tão estranhas. Por que não retomar a vida da igreja após a pandemia com rituais que se deleitam em nossa existência como corpo? Podemos celebrar a Ceia do Senhor como uma ceia real, com comida e bebida e outros celebrando ao nosso lado. E em vez de nos deleitarmos com a capacidade de nossa tecnologia de nos ajudar a “alcançar" pessoas cada vez mais distantes, podemos nos concentrar em encontrar maneiras de nos reunirmos ao redor da mesa com órfãos, imigrantes e viúvas que estão próximos, embora muitas vezes não se encontrem entre nós.

Mesmo que ainda não estejamos fora da pandemia, é apropriado que, ao vislumbrar o fim dela, a igreja se veja em meio à festa da Páscoa, e antecipando a festa repleta de alegria do Pentecostes.

Talvez seja hora de começarmos a cozinhar.

Michael J. Rhodes é professor do Antigo Testamento no Carey Baptist College e pastor assistente na Downtown Church. Ele é o co-autor de Practicing the King’s Economy: Honoring Jesus in How We Work, Earn, Spend, Save, and Give .

Traduzido por Eduardo Fettermann

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Passada a pandemia, os líderes de adoração estão se preparando para a batalha ou para a cura?

Nas conferências de verão deste ano, nos Estados Unidos, pastores de louvor e músicos se preparam para uma série de emoções, com as congregações de volta aos templos, louvando juntas novamente.

Christianity Today June 14, 2021
Terry Wyatt / Getty Images

A primavera e o verão marcarão o retorno de um elemento fundamental da cultura de louvor e adoração: as conferências. Esses eventos de grande proporções oferecem treinamento, ensino e novos cânticos a líderes e músicos, bem como uma oportunidade de participarem de cultos de adoração cuidadosamente planejados e produzidos, liderados por personalidades nacionalmente conhecidas.

Em 2021, mais de um ano após a COVID-19 haver silenciado os cultos religiosos, as mensagens que anunciam essas conferências vão de terapêuticas a desafiantes.

“Enquanto adorarmos, virão profecias e ouviremos ordens de marcha para um exército que se levanta”, proclama a página inicial da Unveiled Worship Conference. “Redefinir. Restaurar. Reunir.” é o tema da conferência Getty Music’s annual Sing!. O tema da National Worship Leader Conference deste ano (organizada pela revista Worship Leader ) é “Redescobrindo a comunidade”.

As conferências são transitórias, mas sua influência se estende por toda a indústria da música de adoração e pelas próprias igrejas locais. Esses encontros apresentam artistas proeminentes — entre os que se apresentarão nas conferências deste ano estão Chris Tomlin, CeCe Winans, Bethel Music, Trip Lee e Christy Nockels.

As conferências deste ano assumem um significado especial na esteira de 2020. Durante a pandemia, os cultos de adoração presenciais tornaram-se politizados, com alguns líderes vocais defendendo reuniões presenciais, independentemente das restrições locais, e outros defendendo cautela e estrita observância das determinações e diretrizes [estipuladas pelas autoridades].

À medida que as igrejas retomam as atividades pré-pandemia, a postura adotada em nossas reuniões diz muito às nossas comunidades. Embora não haja uma só postura ou um único tom emocional corretos para este momento, os organizadores dessas conferências de adoração são desafiados a considerarem o papel da adoração na recuperação posterior à pandemia. Será que os líderes estão moldando a adoração de forma a permitir que os membros da congregação se dirijam a Deus com sinceridade, a partir de sentimentos como medo, celebração, luto ou esperança?

Batalha, cura e reunião

“Sabemos que a igreja precisa disso agora”, disse Chris Clayton, pastor da Igreja Gateway em Franklin, Tennessee, e um dos líderes da National Worship Leader Conference deste ano, a ser realizada em Nashville, em julho. “Acho que todo o objetivo desta conferência é ser um espaço de cura.”

Ele acrescentou: “Todo mundo está chegando com diferentes pontos de vista, feridas e cicatrizes da batalha”.

Metáforas de batalha parecem captar o que alguns adoradores estão sentindo nesta temporada: que o ano passado foi uma luta constante, que a igreja está emergindo e pronta para “lutar” ou simplesmente que Deus está lutando por nós. Canções como “Battle Belongs”, de Phil Wickham; “Surrounded (Fight My Battles)”, de UPPERROOM e “Marching On”, do Rend Collective foram todas escritas antes da pandemia, mas continuam populares. Clayton observa que, pelo menos entre os líderes e músicos que ele conhece, esse tema foi particularmente poderoso no ano passado.

The Unveiled Worship Conference, que ocorreu em Colorado Springs, em maio deste ano, apresentou em destaque o músico e influenciador Sean Feucht, cujo perfil cresceu nacionalmente durante a pandemia, por meio de uma série de eventos “Let Us Worship”, às vezes realizados em franco desafio a regulamentos de saúde pública locais. Feucht denunciava como censura as restrições a reuniões [presenciais], insistindo que “a liberdade de adorar a Deus e obedecer à sua Palavra estão sob ataque sem precedentes” e que “é hora de a igreja se levantar”.

The Unveiled Worship Conference adotou parte da retórica de Feucht. A página inicial do evento descreve a conferência como tendo sido concebida à medida que “a mídia estava espalhando um vírus mortal, dizendo que ‘não é seguro nos reunirmos’”. O site promove a conferência como um evento mobilizador. “Estamos profetizando que o sopro de Deus virá dos quatro ventos e dará vida a um exército de adoradores nesta hora!”

O que significa, quando os adoradores se imaginam como alguém que está correndo para a batalha, se arrastando para longe dela ou assistindo com confiança, enquanto Deus luta suas batalhas por eles? Isso certamente transmite um senso generalizado de conflito e divisão, na igreja e em outros espaços.

“Houve tantas divisões tristes no ano passado”, disse Keith Getty, ao discutir o planejamento para a conferência Sing!. Coautor da música “In Christ Alone”, ele tem esperança de que a “força unificadora” de cânticos amados em um ambiente comunitário ajudará a curar algumas das fissuras que se formaram ou se aprofundaram.

A linguagem de guerra e de batalha pode perder parte de seu apelo, à medida que as congregações se reunirem novamente e descobrirem que as comunidades precisam ser cultivadas de novo, e que os relacionamentos precisam ser restaurados. Depois de um ano de incertezas e restrições, muitos de nós nos vemos com elevada sensibilidade à uma perspectiva de guerra. Talvez estejamos vindo à tona em um estado de luta ou de fuga espiritual. O retorno à adoração presencial não será uma panaceia, mas pode ajudar a acalmar nossa ansiedade e diminuir nosso impulso de identificar inimigos dentro e fora da igreja.

À medida que as igrejas locais se reunirem e os eventos nacionais convocarem congregações temporárias, o difícil trabalho será nos unirmos em adoração para responder ao Criador, em vez de nos mobilizarmos ou nos unirmos contra uma ameaça comum, seja ela uma percepção de exageros cometidos pelo governo ou de um vírus mortal. Podemos nos unir em adoração não para disfarçar a divisão ou encobrir nossos conflitos, mas para restaurar e restabelecer relacionamentos, e assim abraçar e afirmar a diversidade de experiências e emoções que trazemos ao retornar.

Louvor no vale da sombra e da morte

“Em qualquer domingo, sempre haverá alguém presente que está passando pelo pior momento da vida”, disse Tom Trenney, ministro de louvor, professor e instrutor na conferência deste ano da Presbyterian Association of Musicians, que acontecerá no final de junho, em Montreat, na Carolina do Norte. A igreja, acrescentou ele, “se torna o lugar que acolhe tudo isso e mantém viva a esperança”.

Trenney foi rápido em apontar que essa tensão em que nos encontramos entre a celebração e o luto não é nova. Ele se sentiu atraído por hinos como “Grande é a tua fidelidade” e “Ó Deus, nosso socorro em tempos passados” porque “esses hinos nos ancoram; são hinos de alegria e tristeza ao mesmo tempo.”

Refletindo sobre a própria experiência durante o ano que passou, Keith Getty disse que encontrou encorajamento em um novo hino que escreveu em coautoria e lançou em 2020, “Christ Our Hope in Life and Death” [Cristo, nosso esperança na vida e na morte]. A letra convida quem canta ou ouve esse hino a refletir simultaneamente sobre o temporal e o eterno.

Getty também disse que o hino “How Can I Keep From Singing” [Como posso deixar de louvar] será apresentado na conferência Sing!. O refrão do hino — “Nenhuma tempestade pode abalar minha calma mais íntima, / Enquanto estiver agarrado àquela rocha. / Visto que o Amor é o Senhor dos céus e da terra, / Como posso deixar de louvar? ” — fala não apenas sobre a capacidade de persistir na fé durante as provações, mas também sobre a necessidade e o impulso de adorar, louvando mesmo em circunstâncias difíceis.

A Rev. Anna Traynham, liturgista da conferência da Presbyterian Association of Musicians, planejou os cultos em torno da observância dos dias sagrados que as congregações perderam durante a pandemia. No Dia de Todos os Santos, os participantes da conferência poderão apresentar nomes de pessoas que perderam durante o ano passado.

Traynham e os outros organizadores da conferência intencionalmente abriram espaço para o luto coletivo, que não pôde ser compartilhado em comunidade [durante a pandemia], da mesma forma que estão abrindo espaço para a celebração.

Conferências de louvor e adoração de grande proporções inevitavelmente parecerão eventos de comemoração, cheios de energia, mesmo que ainda na incerteza de uma pandemia em andamento. Líderes como Getty, Traynham e Trenney não estão inclinados a adotar uma abordagem de adoração de uma nota só, quando milhares de pessoas viajarão para louvarem juntas e desfrutarem da comunidade novamente. Pelo contrário, eles veem isso como uma oportunidade para nos lembrar que a adoração deve sempre refletir as muitas facetas da nossa jornada e experiência da fé.

Os cânticos de adoração populares geralmente não evitam temas como o juízo ou a morte; várias das músicas mais tocadas no CCLI Top 100 — como “Living Hope”, de Phil Wickham, e “10,000 Reasons (Bless the Lord)”, de Matt Redman — abordam o pecado, a morte e a vulnerabilidade do ser humano. Mas Getty argumenta que há uma perigosa falta de profundidade em muitas músicas de adoração. “A superficialidade do que está sendo cantado nas igrejas é trágica”, disse ele, sugerindo também que agora talvez seja o momento de “recomeçar”, de reavaliar o conteúdo de nossa música.

Sem entrar nesse constante debate sobre a percepção de superficialidade e a música de louvor e adoração, posso concordar que agora talvez seja mesmo um bom momento para mirar com novos olhos a nossa música e os nossos hábitos, a fim de ver se eles conseguem suportar o peso de nossas circunstâncias atuais. Se parecerem inadequados, banais ou vazios, talvez estejam precisando ser aprofundados há muito tempo.

Recentemente, conversei com minha mãe sobre o retorno de sua igreja à adoração presencial. Líder que já ocupou várias funções, oficiais e não oficiais, no ministério de louvor e adoração, desde que me entendo por gente, ela falou sobre uma determinada semana em maio, na qual sua igreja lamentou a perda repentina de vários fiéis.

Pensei imediatamente no lembrete de Tom Trenney: “Em qualquer domingo, sempre haverá alguém presente que está passando pelo pior momento da vida, que teve a sua maior perda ou está enfrentando o maior desafio à sua fé”.

As igrejas locais já estavam abrindo espaço para as dores e as alegrias de suas congregações muito antes de 2020. Enquanto reaprendemos a louvar juntos, talvez um dos maiores serviços que conferências e líderes nacionalmente conhecidos possam prestar seja o cultivo de práticas e a promoção de músicas que ajudem a igreja a continuar abrindo espaço para aqueles que atravessam vales e montanhas.

Kelsey Kramer McGinnis é musicóloga, educadora e escritora. Ela tem um PhD pela University of Iowa e pesquisa música em comunidades cristãs.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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A CRU dividiu-se em torno da ênfase na temática racial

No âmbito do ministério paraeclesiástico, críticos alegam que sua abordagem recente à diversidade se baseou na teoria crítica da raça e resultou em uma “perda de rumo da missão”.

Christianity Today June 8, 2021
Photo courtesy of Guy Gerrard / Worldwide Challenge via Guardian PR

O debate sobre a teoria crítica da raça chegou a CRU (Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo), um dos ministérios paraeclesiásticos mais proeminentes do país, quando uma carta de 179 páginas, que alega haver uma ênfase exagerada na questão da justiça racial, exacerbou tensões que vinham fermentando silenciosamente dentro da organização há anos.

Intitulado “Buscando Clareza e Unidade”, o documento foi submetido ao presidente da CRU, Steve Sellers, em novembro de 2020, e se difundiu dentro da organização, antes de aparecer onli-ne, em maio deste ano. Seus autores, um grupo de pessoas da equipe da CRU que integram a base da organização, levantam preocupações de que uma “visão de mundo vítima-opressor” tenha se incorporado por toda a organização, dividindo a equipe e diminuindo o verdadeiro evangelho.

“Na busca pela [diversidade], inadvertidamente adotamos um sistema de conceitos antibíblicos que nos levaram à desunião”, diz o documento. “Esses conceitos geraram desconfiança, desânimo e uma série de outros problemas.”

Fundada em 1951 como Campus Crusade for Christ, a declaração de missão da CRU é “ganhar, edificar e enviar discípulos multiplicadores centrados em Cristo” através de seus notórios programas de ministério em campus de universidades e outros esforços evangelísticos. A carta recente sugere que há uma “lacuna” entre esta declaração de missão e seu trabalho ministerial atual, e afirma que a abordagem da CRU para lidar com questões de racismo e opressão levou a uma “perda de rumo da missão”.

O documento, que é contrário à teoria crítica da raça, diz que “pelo menos 1.000 funcionários da organização” compartilham das preocupações do grupo e apresenta dezenas de depoimentos de funcionários e de mantenedores, embora a maioria seja de depoimentos anônimos. Apenas 11 colaboradores são citados nominalmente e não há uma lista completa dos signatários.

A CRU continua sendo uma organização predominantemente branca. De cerca dos 8 mil funcionários americanos, 22% se identificam como BIPOC, a sigla em inglês que identifica o grupo composto por negros, indígenas ou outras pessoas de cor, de acordo com os cálculos da própria organização. Desde 2015, o ministério tem colocado uma ênfase crescente na competência cultural e na reconciliação racial.

Os líderes começaram a falar sobre racismo mais abertamente durante as conferências internas, e o ministério oferece um treinamento que se chama “Lentes” e trata da “unidade” étnica e cultural para funcionários. Ambos os esforços foram destacados no documento como “ensinamentos de justiça social”.

Vários depoimentos anônimos disserram que o treinamento sobre competência cultural da organização é “político” e tem uma “retórica supostamente contrária a americanos brancos”. Uma equipe anônima (referenciada como Staff de minorias n. 30) disse que a tendência dentro da CRU e da igreja em geral representa “uma nova religião de racismo sistêmico, privilégio branco e sistemas de poder” que “aplica a toda a teologia cristã o rótulo de ideologia racista opressora da raça branca. ”

Ao longo do documento, os colaboradores caracterizam a abordagem à raça que veem nos líderes como um “falso evangelho”, “antibíblica” e uma ameaça ao evangelismo.

Rompendo a unidade

Pessoas em toda a CRU, tanto os autores do documento que é contrário à teoria crítica da raça quanto outros, viram, no ano passado, uma escalada das tensões de longa data sobre a abordagem do ministério à questão racial. O que começou como uma pequena reunião presencial de cinco pessoas na sede da CRU em Orlando, Flórida, para discutir a ênfase do ministério na justiça racial, em janeiro de 2020, rapidamente se transformou em uma reunião semanal pelo Zoom, com mais de 350 funcionários, em sua maioria brancos, no início da pandemia de COVID-19.

Sessenta pessoas desse grupo decidiram redigir o documento contrário à teoria crítica da raça, tendo como pano de fundo os apelos nacionais por justiça racial que abalaram todo o país, após os assassinatos de George Floyd, Ahmaud Arbery e Breonna Taylor em 2020.

Um dos organizadores do grupo é Scott Pendleton, chefe de equipe do Jesus Film Project da CRU. Ele se preocupa, como afirma o documento, que a ênfase em justiça racial afaste a CRU do cerne do seu trabalho, que é o evangelismo.

“Podemos estar unidos e mostrar ao mundo que nos amamos por meio de nossa identidade em Cristo”, disse ele. “Não por estarmos tentando desmantelar as estruturas racistas, embora isso tenha o seu lugar, mas por nos concentrarmos em quem somos em Jesus.”

Pendleton e os autores do documento contrário à teoria crítica da raça dizem que compartilham das preocupações em torno da necessidade de diversidade e reconciliação racial, mas que os esforços nos últimos cinco anos na realidade prejudicaram a “unidade racial” que antes havia na CRU. Pendleton disse que alguns dos funcionários do grupo composto por negros, indígenas ou outras pessoas de cor que se juntaram às críticas foram particularmente expressivos quanto às suas preocupações.

Outros, porém, acreditam que o impulso dado pela organização para destacar a sensibilidade étnica e inclusão tem sido fundamental para aumentar sua fé, oferecendo passos pequenos, mas significativos, para abordar o que é visto como um problema mais amplo dentro da CRU.

Darryl Smith foi um dos muitos integrantes da CRU que foi pego de surpresa pelo documento. Smith está na CRU desde 1996 e tem atuado como diretor de unidade e diversidade para o ministério nos últimos quatro anos.

Smith disse que orientou várias iniciativas citadas e criticadas no documento, embora os autores do documento não o tenham contatado para expressar suas preocupações. Uma vez que partes da carta chamavam o treinamento de competência cultural da CRU e os esforços para tratar das questões raciais de “mundanos”, “enganosos” e “antibíblicos”, ele disse que se sentia como “se tivessem dito a mim que minha própria presença como homem negro poderia fazer com que CRU perdesse o rumo da sua missão. ”

O diretor nacional da CRU, Mark Gauthier, deu reconhecimento a respostas como a de Smith em um vídeo de março de 2021 compartilhado esta semana pela blogueira e estudiosa Valerie Hobbs.

“A distribuição da análise causou uma quebra de confiança entre alguns de nossos funcionários, em particular, entre os do grupo composto por negros, indígenas ou outras pessoas de cor. Embora suas preocupações com o grupo possam ter tido boas motivações, a maneira como o relatório foi redigido e a distribuição das informações foi algo avassalador para muitos de nossos funcionários do grupo composto por negros, indígenas ou outras pessoas de cor. A análise questionou efetivamente todos os espaços da CRU em que estávamos falando sobre diversidade”, disse ele.

“Em particular para o nosso grupo composto por negros, indígenas ou outras pessoas de cor, isso levantou a questão de saber se estávamos recuando, se estávamos retrocedendo ou não em nossa busca bíblica por unidade e diversidade”, disse ele. “Bem, na medida em que a análise levantou questões reais, gostemos ou não, isso é muito útil. No entanto, as implicações que são extraídas da análise podem levar alguém a acreditar que muitas de nossas iniciativas na área de diversidade são indesejáveis, ineficazes e constituem um desvio de rumo da missão. ”

Josh Chen, diretor de área em Portland, vê o documento como uma tentativa de “estreitar o escopo da ortodoxia”, minimizando a importância de se buscar justiça.

“Acho que a maneira que falamos sobre o evangelho por décadas é uma contextualização do evangelho para a geração baby boomer”, disse Chen, que ministra principalmente para jovens pós-graduados. “E para aqueles que estão tentando fazer o trabalho árduo de reconstruir a imagem das boas novas para esta geração, estamos sendo considerados antibíblicos.”

Pendleton disse à CT que ele e seu grupo, que tende para os mais velhos, estão “tristes” com as tensões provacadas por causa da carta. “Queremos ser diversos. Queremos apenas ser fiéis para fazer isso de uma forma que esteja de acordo com as Escrituras. E sei que [aqueles que discordam de nós] querem o mesmo. O que torna tudo ainda mais complicado.”

Debatendo a Teoria Crítica da Raça

A teoria crítica da raça tem tido uma ascensão recente e rápida à vanguarda do discurso público conservador, tanto dentro quanto fora da igreja. Tendo se originado como um nicho, relativamente, da teoria legal dos anos 70 que sugere que as desigualdades de poder estão profundamente enraizadas na sociedade e se aglutinam ao longo de linhas raciais, a teoria crítica da raça tornou-se assunto frequente de conversa entre analistas conservadores e republicanos.

Em novembro passado, os seis presidentes de seminários da Convenção Batista do Sul divulgaram uma declaração chamando a teoria de “incompatível” com a mensagem da denominação, o que levou pelo menos quatro pastores negros a romperem com a denominação. Oklahoma, Idaho e Tennessee, todos eles estados de maioria republicana na câmara legislativa, proibiram recentemente as escolas públicas de ensinar essa teoria, com quase uma dúzia de outros estados aprovando legislação semelhante.

O documento contrário à teoria crítica da raça compartilhado pela liderança da CRU extrai sua definição do termo de um artigo escrito pelo pastor de uma mega-igreja, John MacArthur, somado a outros recursos de apologistas também contrários a essa teoria, como o químico teórico Neil Shenvi e o ateu James Lindsay. Não faz menção alguma a proeminentes estudiosos da teoria crítica da raça, como o falecido professor Derrick Bell da Harvard University ou o professor de direito da UCLA Kimberlé Crenshaw.

“É uma peça de propaganda”, disse Matt Mikalatos, um ex-diretor do programa que ajudou a organizar as conferências de equipe da CRU. “Não é reportagem. Não foi concebido para mostrar os dois lados da questão. Ele foi pensado para dar impulso a uma agenda bem específica.”

Muitos consideram a conferência de 2015 para funcionários da CRU um ponto de virada, pois palestrantes abordaram as questões de justiça e diversidade étnica de forma mais direta. Mikalatos disse que os organizadores queriam garantir que a conferência fosse “significativa e transformadora” para todos os participantes, e não apenas uma programação para a maioria.

“Isso significa que a maioria, que está acostumada a ter tudo sempre programado para eles, ainda teria algo que apreciaria, mas alguém que fosse de um espectro teológico diferente também se sentiria representado”, disse ele.

A conferência, que, segundo o documento crítico alegou, teria sido “entregue a comunicadores mais radicais da justiça social e da Teoria Crítica da Raça”, contou com palestrantes como Christena Cleveland, que na época era colunista da CT e professora da Duke Divinity School, bem como Andy Crouch, Francis Chan, e John Perkins.

As conferências posteriores incluiriam um grupo de cristãos nativos americanos dando as boas-vindas à equipe em suas terras, uma mensagem da pastora Joyce Emery (a primeira pastora a ser apresentada no evento bienal) e um apelo ao arrependimento coletivo pelo racismo, feito pela coach cristã em competência cultural, Latasha Morrison, autora de Be the Bridge.

“Aprendi muito ouvindo as experiências de meus irmãos e irmãs em Cristo pertencentes a minorias, e com eles lamentei por suas experiências”, disse Pendleton. “Era uma mensagem que muitos funcionários do grupo da cultura majoritária precisavam ouvir, mas depois de cinco anos em que [a mesma mensagem] foi repetida continuamente, não houve uma mensagem de união para perdoar uns aos outros.”

Os principais líderes da CRU disseram que a teoria crítica da raça não tem feito parte das discussões internas da liderança, e Gauthier observou que a organização não “adere a quaisquer ideologias mundanas nem as ensina”.

Revisitando estruturas bíblicas

Gauthier diz que a CRU deve lançar um documento robusto abordando a estrutura teológica da organização nos próximos meses.

“Não tínhamos uma estrutura bíblica claramente definida de como estávamos abordando tudo isso”, disse Gauthier. Ele enfatizou a importância de fundamentar o ministério da CRU na ideologia bíblica, uma ênfase que, segundo ele reconhece, pode ter se perdido na tentativa de combater o racismo.

Embora alguns tópicos sejam difíceis de discutir, especialmente entre um grupo que abrange várias gerações, ele espera que uma ênfase maior nas instruções diretas da Bíblia sobre o racismo ajude funcionários de ambos os lados da discussão a encontrar um terreno em comum.

O documento contrário à teoria crítica da raça não é a única carta com críticas que circulou no espaço on-line da CRU no ano passado. Após a nomeação de três indivíduos brancos para cargos de liderança de alto escalão (entre eles Gauthier, que já havia servido como diretor executivo da CRU), uma carta pública intitulada “Um humilde pedido de transparência do processo de liderança e fidelidade organizacional” foi postada em um quadro de mensagens dentro do Facebook Workplace da organização, em outubro de 2020. Chamando as promoções de uma “oportunidade perdida” de promover a ascensão de líderes não-brancos, a carta foi redigida e editada por 14 funcionários que integram a lista de assinaturas do documento.

Essa carta (à qual o documento contrário à teoria crítica da raça se refere como uma “revolta de funcionários”) pedia que a liderança da CRU mostrasse maior transparência em seu processo de contratação, bem como oferecesse etapas concretas de como os novos nomeados “trabalhariam para combater a discriminação de negros e indígenas, bem como outras formas de opressão.” E diferentemente do documento anônimo contrário à teoria crítica da raça, 574 funcionários assinaram publicamente essa carta.

“De várias maneiras, o documento [Buscando Clareza e Unidade] foi prejudicial por seu alto grau de anonimato”, disse Nich Beebee, um membro da equipe que redigiu o rascunho inicial da carta “Um humilde Pedido”. “Ninguém tinha ideia de quem fez parte dele, a não ser as poucas pessoas que tomaram a frente.”

De acordo com Pendleton, os que contribuíram para o documento contrário à teoria crítica da raça permaneceram em sua maioria sem se identificar porque muitos dentre eles ficaram “com medo” de serem vistos como associados ao grupo, e alguns funcionários chegaram inclusive a aparecer em reuniões pelo Zoom com nomes falsos e suas câmeras desligadas.

Tensões em ambos os lados

Gauthier disse que ambos os documentos “captam as tensões que temos de abraçar enquanto buscamos nossa missão”.

Funcionários disseram à CT que postagens no Workplace do Facebook da CRU revelam as divisões nítidas dentro da organização. Após a morte de George Floyd, o presidente da CRU, Steve Sellers, travou debate aberto no fórum sobre como responder à tragédia. “Se eu destacar isso especificamente, por que não [destacar também] todos os exemplos de racismo”, escreveu ele. “Por que não denunciar pública e abertamente o pecado do aborto, os horrores sofridos pelas mulheres que são vítimas do tráfico ou os ataques à visão bíblica da sexualidade humana?”

Alguns comentaram que a postagem pareceu insensível, provocando o sentimento de que “qualquer pecado importa”.

À medida que essas tensões se tornaram mais evidentes, as divergências sobre o tratamento dispensado pela CRU às questões de justiça e diversidade fizeram com que líderes antigos e recém chegados renunciassem ao cargo.

Em uma carta pública, Rasool Berry, funcionário da CRU há 19 anos, escreveu que “um ataque violento de resistência ao trabalho em torno da competência cultural, da justiça e da integração da fé” foi uma das razões para sua saída no início deste ano. Ele citou o movimento #LeaveLoud, do Pass the Mic, uma iniciativa que incentiva cristãos negros a compartilhar suas histórias sobre por que deixaram certos espaços evangélicos, que serviu de inspiração para sua carta pública.

Diretor de campus de longa data, Dan Flynn fez parte da equipe da CRU com sua esposa, Paula, por mais de 30 anos, mas eles optaram por deixar o cargo em 2019, devido a preocupações quanto aos novos “valores fundamentais sobre consciência social” da organização. Em um depoimento pessoal incluído no documento SCU, Flynn citou as recentes oradoras da conferência e o fracasso da CRU em “educar” a equipe sobre os papéis tradicionais de gênero, depois que uma ex-funcionária se declarou gay, em 2019. (Na época, ela disse que era celibatária “pelo bem de seu ministério” na CRU, mas optou por deixar a organização vários meses depois.)

A funcionária Jocelyn Chung, há dois anos na organização,publicou sua própria carta de demissão no início deste ano, na qual destacou que ela perdeu apoiadores do ministério e foi forçada a passar a trabalhar meio período depois que começou a “abraçar um evangelho mais holístico” que enfatizava “a perigosa cumplicidade da Igreja americana com a supremacia branca, o nacionalismo cristão e a desigualdade sistêmica.”

A CRU não é o único grupo paraeclesiástico com foco em missões a enfrentar escrutínio em relação a sua forma de responder às recentes questões sociais. A InterVarsity recebeu críticas em 2015, após convidar Michelle Higgins do Faith for Justice para falar sobre o Black Lives Matter, em sua conferência Urbana. Higgins recebeu ameaças de morte após sua palestra e a InterVarsity foi forçada a esclarecer que “não endossa tudo” sobre o movimento Black Lives Matter.

Depois de ter postado um quadrado preto on-line durante um “apagão” na mídia social, promovido após a morte de George Floyd, o que levantou questionamentos sobre o posicionamento da organização sobre justiça racial, o ministério Navigators divulgou uma declaração semelhante, em que expressa seu desejo de “empoderar pessoas de cor”, mas, ao mesmo tempo, também se distancia do movimento Black Lives Matter.

As organizações paraeclesiásticas têm historicamente oferecido a cristãos de todas as denominações um espaço para colaborar em questões consideradas de importância primordial. Mas, à medida que as tensões culturais continuam a aumentar, a viabilidade de tais colaborações continuará a ser testada.

“O grande ministério dos fazedores de tendas requer uma generosidade, um amor e uma habilidade de conviver com o que nos incomoda que nós, do evangelicalismo, ainda não conseguimos dominar”, disse Mikalatos. “E, de várias maneiras, a CRU é em grande medida um reflexo do evangelicalismo.”

Curtis Yee é um repórter de Sacramento, Califórnia, que escreve sobre fé e cultura.

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Books

Mísseis, tumultos, sermões e futebol: perspectivas cristãs sobre o conflito em Gaza e Israel

Como uma dúzia de judeus messiânicos e cristãos palestinos estão tentando ministrar ao longo dessa divisão, enquanto o Hamas e as forças de defesa de Israel entram em guerra mais uma vez.

Mísseis são lançados da Faixa de Gaza em direção a Israel, em 10 de maio de 2021.

Mísseis são lançados da Faixa de Gaza em direção a Israel, em 10 de maio de 2021.

Christianity Today May 26, 2021
Imagem: Khalil Hamra/AP

Bombas caem em Gaza, enquanto mísseis têm como alvo Israel. Manifestantes árabes frustrados são recebidos por colonos judeus extremistas. E em meio a tudo isso, Danny Kopp mandou seus meninos jogarem futebol. A quantidade de pessoas diminuiu no parque que fica em um bairro de Jerusalém, frequentado por judeus e árabes, mas seus meninos, de 13, 10 e 8 anos ainda transitavam entre os dois lados. “Esses encontros, por menores que sejam, lembram aos beligerantes que a coexistência ainda é viável”, disse o presidente da Aliança Evangélica em Israel. “Transformar todos em vilões é algo simplesmente falho.”

Contudo, é fácil de fazer, se vier acompanhado da narrativa da nossa preferência. Desde o início dos combates em 10 de maio, bombas israelenses destruíram cerca de 450 prédios em Gaza, incluindo seis hospitais, nove centros de saúde e a sede da Associated Press. As autoridades do Hamas contabilizam 232 mortos, entre eles 39 mulheres e 65 crianças. Mais de 1.900 pessoas ficaram feridas e 52 mil ficaram desabrigadas. Mas 160 delas são combatentes militantes, disseram as autoridades israelenses. A barragem indiscriminada do Hamas lançou mais de 4 mil mísseis e matou 12 pessoas, entre elas duas crianças, e feriu centenas. O sistema de defesa Iron Dome, de Israel, interceptou a maioria dos mísseis, mas o patrocínio do Hamas pelo Irã levou a um aumento dramático de mísseis capazes de atingir Jerusalém.

Essas armas de longo alcance representam 17% dos milhares de mísseis disparados neste mês. Nove anos atrás, elas representavam apenas 1%.

Um cessar-fogo está em vigor. O presidente Joe Biden prometeu trabalhar por meio das Nações Unidas e da Autoridade Palestina para reconstruir Gaza. Os EUA impediriam que tal ajuda reabastecesse o arsenal do Hamas, ao mesmo tempo que permitiriam o reabastecimento das defesas do sistema Iron Dome. As armas evoluem, embora a animosidade seja velha conhecida.

A fumaça sobe, após ataques aéreos israelenses contra um prédio, na cidade de Gaza, em 13 de maio de 2021.Imagem: Hatem Moussa/ AP
A fumaça sobe, após ataques aéreos israelenses contra um prédio, na cidade de Gaza, em 13 de maio de 2021.

Mas o que chocou e entristeceu dúzias de fontes entrevistadas pela CT — metade judias e metade palestinas — foi a violência étnica que devastou cidades de coexistência antes pacífica. Em Lod, Haifa, Nazaré e em outros lugares, manifestantes árabes colocaram fogo em 10 sinagogas e em mais de 100 casas de judeus, enquanto saqueavam ou danificavam outras centenas.

Israel convocou 7 mil reservistas para reprimir a violência. Mas relatos dizem que a polícia tem sido bem mais tolerante com os colonos judeus que responderam na mesma moeda, embora com menos danos. Gravações de vídeo, no entanto, mostram tentativas de colonos de confiscar propriedades de cidadãos árabes de Israel. O surto de violência está ligado a procedimentos legais israelenses para expulsar palestinos de suas casas, no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental. As famílias residem ali há gerações e a disputa de terras tem explicações alternativas.

Os protestos foram recebidos com violência, que então se espalhou para a mesquita de al-Aqsa. O Hamas lançou foguetes, em solidariedade. E em meio a este atoleiro, Kopp enviou seus meninos. No sábado, ele pregou a mesma mensagem para sua congregação mista de judeus e árabes, que fica na rua Narkis, em Jerusalém, pedindo a seu rebanho que intencionalmente ouvisse os dois lados. “Jesus constantemente escapava de sua bolha de informações”, disse ele, “e se relacionava com todo tipo de pessoa imaginável e de forma consistente”. Do outro lado do muro de separação, no entanto, o sermão de domingo de Munther Isaac tinha um tom diferente.

“O que precisamos não é de calma e moderação”, disse o pastor da Igreja Evangélica Luterana do Natal, em Belém. “O que precisamos é chamar as coisas por seus nomes.” Isso inclui o antissemitismo, disse Isaac à CT. No entanto, ele também destacou a Declaração de Jerusalém de 2020, criada por estudiosos judeus para esclarecer, quando críticas a Israel ou ao sionismo ultrapassam os limites, ao mesmo tempo em que especifica que a crítica em si não é antissemitismo.

Mas o foco de Isaac estava nas questões da “ocupação” e da “limpeza étnica” — e no “apartheid”. B’Tselem, uma importante organização israelense de direitos humanos, publicou recentemente que o controle efetivo do Estado sobre a Cisjordânia e Gaza torna o termo controverso apropriado. Isaac, então, pediu aos cristãos palestinos que agissem de maneira apropriada: com resistência não violenta.

E ele pediu aos crentes no Ocidente que agissem da mesma forma: com defesa vocal. “Cristo morreu vítima de violência raivosa e extremismo religioso”, ele pregou. “Mas porque acreditamos na ressurreição, a última palavra é justiça.” Essa pregação, no entanto, irrita o colega evangélico palestino, Khalil Sayegh. “A resposta da igreja palestina tem estado amplamente alinhada com o estado polarizado de nossa sociedade”, disse o bolsista do Projeto Philos.

“Narrativas unilaterais apenas inflamam a raiva das pessoas.” Nascido e criado na Faixa de Gaza, Sayegh reconhece o apelo apropriado por justiça. Mas é simultaneamente necessário que cada grupo alcance o outro. Israel e o Hamas chegarão a um cessar-fogo. Mas, devido ao conflito étnico, as notórias feridas agora estão mais profundas do que antes. “Se não nos consolarmos uns aos outros enquanto sofremos”, disse Sayegh, “não estaremos mais perto de uma solução quando a situação começar a melhorar”.

Palestinos caminham ao lado dos escombros de um prédio de 15 andares, atingido por ataques aéreos israelenses à cidade de Gaza, em 13 de maio de 2021.Imagem: Khalil Hamra / AP
Palestinos caminham ao lado dos escombros de um prédio de 15 andares, atingido por ataques aéreos israelenses à cidade de Gaza, em 13 de maio de 2021.

Fontes disseram à CT que estão fazendo isso, mas o impacto tem sido mesclado. Sayegh tem sentido uma falta da empatia por parte de alguns. Ron Cantor disse que um pastor cristão palestino enviou-lhe felicitações pelo seu aniversário.

Mas a reconciliação é difícil. “Fizemos tentativas”, disse Cantor, presidente da Shelanu TV, o único canal gospel hebraico digital, que funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana. “Mas, com toda a franqueza, há desconfiança de ambos os lados.” No sábado passado, congregações de judeus messiânicos pregaram contra o racismo e pela união árabe-judaica, disse Cantor. Os colonos que provocam a violência estão ligados a um movimento político que, segundo ele acredita, é rejeitado pela vasta maioria dos israelenses.

Mas, enquanto a maioria dos árabes — que constituem um quinto da população de Israel — e judeus se dão bem, a maioria dos cristãos palestinos não acredita em um papel divino singular para Israel.

E embora Cantor compreenda — mas rejeite — a afirmação deles de que os sionistas roubaram seu país, a maioria dos palestinos discorda do que ele diz ser uma regra clara. “É importante que as pessoas se atenham à Bíblia e não às notícias”, disse ele. “Israel é o cumprimento de uma profecia.” Mas isso não significa que os judeus messiânicos não tenham medo. Ao discipular crentes nas Forças de Defesa de Israel, Eli Birnbaum os protege do ódio e do ressentimento. “Quando se cresce em Israel, você se acostuma com o fato de que há um grupo de terroristas que o matará se tiver chance”, disse o diretor do ministério Judeus por Jesus em Israel, observando que isso não é verdade para os palestinos em geral.

“Esses foguetes não têm como alvo os militares; eles têm a mira voltada para meus filhos.” Dessa forma, os judeus que acreditam em Jesus e estão frustrados com a guerra têm outro recurso que não seja se voltar contra os líderes políticos ou odiar os inimigos. Pastor de uma pequena congregação em Tel Aviv, Birnbaum está preparando um sermão sobre 1Samuel 30, passagem em que os homens de Davi queriam apedrejá-lo, depois que os amalequitas queimaram Ziclague e levaram cativos suas esposas e filhos.

“David direcionou essa frustração para a oração”, disse Birnbaum. “E, em última instância, Jesus deu sua vida na cruz para que possamos ser fortalecidos nele, não importa a situação em que estivermos.”

Membros da família Sror inspecionam os danos em seu apartamento, situado em Petah Tikva, no centro de Israel, após ser atingido por um foguete disparado da Faixa de Gaza, em 13 de maio de 2021.Imagem: Oded Balilty / AP
Membros da família Sror inspecionam os danos em seu apartamento, situado em Petah Tikva, no centro de Israel, após ser atingido por um foguete disparado da Faixa de Gaza, em 13 de maio de 2021.

Mas isso não elimina a “aversão” que a maioria dos judeus messiânicos tem pelo Hamas e por seu respectivo desdém pelas vidas de judeus e árabes, disse David Friedman. Em contraste, em suas congregações, crentes judeus e árabes têm orado juntos — sem culpa. “Estou impressionado com a sinceridade de nossa união”, disse o professor do Instituto Teológico Judaico Messiânico e ex-reitor do King of Kings College, em Jerusalém. “Não importa de que lado do espectro político estejamos, a atual guerra de foguetes não é um ponto de ruptura.” Da mesma forma, David Katz, vice-gerente geral da Sar-El Tours, empresa que atende muitos clientes evangélicos, disse acreditar que a maioria das congregações de judeus messiânicos justificaria a resposta de Israel aos ataques do Hamas contra Israel.

Muitos judeus messiânicos vivem em Ashkelon e Ashdod, dentro do alcance dos mísseis de menor alcance.

Mas eles também estão orando por Gaza, lamentando a perda de vidas e ansiando por uma solução duradoura para o conflito. Katz participou das manifestações de solidariedade que se seguiram à violência. Árabes e judeus que vivem em bairros mistos se uniram para limpar suas ruas, reparar danos e arrecadar dinheiro para as vítimas. Em Jerusalém, eles criaram uma “corrente de paz”.

A solidariedade, no entanto, só consegue ir até esse ponto.

“Expressamos amor e oramos, mas não nos aprofundamos muito na fonte do conflito”, disse Katz. “Agora não é o momento para essa discussão.” Lisa Loden, com muita frustração, concorda. “Nesta fase, falar com aqueles que têm pontos de vista políticos diferentes é inútil”, disse a copresidente da Iniciativa Lausanne para a Reconciliação Israel/Palestina (LIRIP). “É momento de intercessão e lamentação. Que o Senhor tenha misericórdia de todos nós.” Iniciado em 2010, depois que uma onda semelhante de mísseis e mortes em Gaza, em 2009, minou o ministério na Terra Santa, LIRIP procurou promover discussões honestas, mas intensas sobre as diferentes perspectivas que judeus messiânicos e evangélicos palestinos têm em relação ao conflito.

Uma década depois, Loden vê esse relacionamento mais perto de um ponto de ruptura do que de melhora. Embora os crentes cantem e orem nas línguas uns dos outros, “o que foi ganho corre o risco de se perder.” Seu copresidente no LIRIP, Botrus Mansour, está um pouco mais otimista. Suas recentes interações com judeus messiânicos encorajaram-no a trabalhar em direção à reconciliação.

Como diretor de operações da Nazareth Baptist School, Mansour disse que os programas conjuntos com escolas judaicas ajudam a promover os valores do amor e da tolerância. A mesma atmosfera está presente na Hand in Hand School, uma escola pública mista e bilíngue, em Jerusalém. Os pais ligaram freneticamente, disse a diretora, preocupados com o impacto dos confrontos. Olhando pela janela, ela via os alunos jogando futebol. Outros jovens, no entanto, estão indo na direção errada. Em fevereiro, a Universidade Hebraica entrevistou mais de 1.000 alunos de 16 a 18 anos. Quase metade dos judeus nacionalistas ultraortodoxos e religiosos disseram que “odiavam” os árabes e eram a favor de cassar sua cidadania.

Aproximadamente um quarto dos judeus seculares disse o mesmo. Entre os estudantes árabes israelenses 22% sentiam ódio contra os judeus religiosos e 12% contra os judeus seculares. Mas, em março, o Centro Palestino de Políticas e Pesquisas descobriu que 37% de pessoas de todas as idades eram favoráveis à resistência armada. “A atmosfera está contaminada por racismo”, disse Mansour. “A começar pelos líderes de Israel e desce até as pessoas comuns.” Ele insiste em mais análises das causas profundas da violência em vez do foco atual nos sintomas. Shadia Qubti, coprodutora do podcast Women Behind the Wall, que usa a contação de histórias para destacar a experiência de mulheres palestinas cristãs sob a ocupação, disse que os palestinos vêm sofrendo anos de incitação política e desumanização. “Se você está cansado dessas notícias repetitivas sobre Israel e a Palestina, eu simpatizo com você”, disse ela. “Como seus irmãos e irmãs palestinos, estamos cansados de suportar isso.” A organização de direitos humanos Adalah — que significa justiça em árabe —conta 65 leis discriminatórias em Israel, cerca de metade das quais foram promulgadas desde 2009. Para Loden, essa é a principal causa dos tumultos.

Os árabes israelenses enfrentam desigualdade e uma cidadania de segunda classe não declarada, disse ela.

Isso foi consagrado especialmente na lei do Estado-Nação, de 2018, que priorizou o caráter judaico de Israel. “A dor, a raiva e o sentimento de traição na comunidade árabe não foram resolvidos”, disse Loden. “Foram enterrados.” E os jovens cristãos estão ficando frustrados com suas igrejas, disse Salim Munayer. “A maioria das igrejas evangélicas tem limitado sua mensagem a ‘vamos orar pela paz’, e algumas afirmam que não querem se envolver na política, se apegando apenas a questões espirituais”, disse o diretor executivo do ministério de reconciliação Musalaha, com sede em Jerusalém. (Ele explica mais sobre o assunto no podcast Quick to Listen da CT.) “O silêncio fala alto.” Presos em suas próprias narrativas, os jovens recorrem às redes sociais. Tem havido alguma interação entre as comunidades, e Munayer tem visto discussões sobre políticas adequadas em vista da mensagem do evangelho. Mas nas áreas das cidades mistas, a realidade não facilita a reconciliação. O governo, disse ele, colocou ativamente alunos da yeshivá sionista lá para “judaizar” os bairros. Jack Sara, presidente do Bethlehem Bible College, disse que a convivência alardeada nas cidades mistas nunca foi construída sobre as bases da paz e da justiça, mas apenas do pragmatismo. A reconciliação não pode ser construída entre relacionamentos desiguais. Por exemplo, o governo investe 8 mil dólares por ano por estudante árabe do ensino médio nessas áreas, em comparação com os 13 mil dólares por estudante judeu. Sara citou Sheikh Jarrah como um exemplo dos esforços judaizantes. Como Acabe e Jezabel da Bíblia, os colonos judeus encontraram uma maneira “legal” de roubar terras.

“Hoje, os palestinos estão clamando por um ‘Elias’ do mundo para confrontar ‘Acabe’ por seus crimes”, disse Sara. “Nesse caso, talvez ele se arrependa e devolva o que roubou.” Mas, enquanto Isaac apelou contra a calma em face da injustiça, Sara — igualmente decidida em uma carta aberta , como coordenadora do Oriente Médio para a Aliança Evangélica Mundial — aprecia os esforços conjuntos para diminuir o ódio. O Conselho Nacional de Pastores e Presbíteros em Israel divulgou um comunicado. “À luz da situação atual… [de] polarização e ódio entre cidadãos árabes e judeus, nós, judeus e árabes israelenses, que compartilhamos a mesma fé em Jesus como Messias e Senhor, declaramos que estamos unidos em amor fraternal”, afirmaram, expressando sua agonia. “Com bênçãos e esperança por dias mais tranquilos e melhores.” As igrejas árabes promoveram reuniões de oração online pedindo a Deus que proteja as cidades árabes e judaicas. Congregações judaicas pediram a Deus para interceder por ambas as comunidades. Jamie Cowen, um advogado que é judeu messiânico, disse que, em sua congregação, o líder testemunhou que Deus mudou seu coração em relação aos árabes quando ele se tornou crente. “Para aqueles com quem estou em contato, há uma sensação de que algo precisa mudar no país”, disse ele, “para curar as feridas e lidar com as questões palestinas”. Para Katz, atuante no movimento pela paz, isso não será fácil. A expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia tornou uma solução de dois Estados quase impossível.

Mas uma solução de Estado unilateral trará problemas demográficos para o Estado judeu, uma vez que todos os palestinos sob seu domínio devem receber passaportes e o direito a voto. “Reconciliação, igualdade e respeito entre os filhos de Abraão”, disse Katz. “Essa é uma grande decisão. Mas é disso que precisamos.” E não vai acontecer, disse Kopp, a menos que soluções criativas possam ser encontradas para atender às principais preocupações de cada grupo.

Deus tem um chamado único tanto para judeus quanto para palestinos. Mas cada lado deve abrir mão de suas estimadas narrativas em uma busca conjunta da verdade. O disparo indiscriminado de foguetes do Hamas não deve ser equiparado à autodefesa precisa de Israel, disse ele. Mas a democracia falha de Israel também não deve ser considerada irrepreensível. E até que se chegue a um consenso, uma bola de futebol ajudará. “É um esforço mundano de Sísifo, são pequenos passos”, disse Kopp, ao terminar o sermão para sua congregação. “Mas é a única maneira de reduzir nossa luta por grandeza e nos transformarmos nos filhos humildes, pacificadores e misericordiosos que Deus deseja ver em seu reino.”

Reportagem adicional de Jeremy Weber

Traduzido por Mariana Albuquerque

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J. I. Packer: O Guia da Bíblia para o Ativismo Cristão

Tentar melhorar a sociedade não é mundanismo, mas amor.

Christianity Today May 26, 2021
Illustration by Rick Szuecs / Source image: Genesis Photos

O teólogo J. I. Packer, que morreu em 17 de julho de 2020, aos 93 anos, ajudou milhões de protestantes evangélicos a articular e a entender aquilo em que acreditam. Seus livros, como O conhecimento de Deus, de 1973, não apenas explicavam a doutrina — eles reacendiam a paixão pela autoridade das Escrituras, pela maravilha da cruz e por uma vida de santidade. Mas a Christianity Today também se lembra de Packer como um colega. Ele contribuiu para algumas de nossas primeiras edições e, a partir da década de 1980, atuou como editor da revista por mais de três décadas. “Empenhem-se em anunciar a verdade”, ele nos incitava, como demonstrou em mais de 70 artigos que escreveu sobre sofrimento, livros de mistério, jazz, ecumenismo, oração e dezenas de outros tópicos. Sua foto acompanhava a maioria deles, embora em um artigo de 1991, ele tenha dito que queria ser lembrado por desafiar o culto à personalidade no evangelicalismo: “Espero ser lembrado como uma ‘voz’ (que clama no deserto, como João Batista) que encoraja as pessoas a pensar, e não como uma personalidade cujo status e carisma os impeçam de pensar.” Uma voz, dizia ele, “que chamou as pessoas de volta às antigas veredas da verdade e da sabedoria”. Então, com esse espírito, em vez de outro longo tributo (você encontrará vários deles, muito bons, no site da CT ), estamos republicando um dos artigos clássicos de Packer, empenhados em anunciar a verdade que é tão desesperadamente necessária hoje quanto era em 1985. — Os editores

No Novo Testamento, a obrigação cívica é enfaticamente ordenada lado a lado com a obrigação de servir a Deus — na verdade, como parte dela. Quando Jesus respondeu à pergunta sobre o pagamento de impostos com as palavras “Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Marcos 12.17), isso não foi uma evasiva inteligente para fugir da questão, mas um claro reconhecimento de que prestar o que é devido ao regime político vigente é parte da vocação cristã. Quando Pedro disse de um só fôlego “temam a Deus e honrem o rei”(1Pe 2.17), ele destaca a mesma verdade; assim como fez Paulo, quando, no decorrer da visão geral [que ele dá] sobre a vida de gratidão pela graça que é o verdadeiro cristianismo, ele ensina os cristãos romanos que “Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais” (Rm 13.1) e lhes diz que “por questão de consciência”, devem “[dar] a cada um o que lhe é devido: Se imposto, imposto; se tributo, tributo; se temor, temor; se honra, honra” (v. 5,7).

Paulo refere-se a cada autoridade do Estado como “serva de Deus para o seu bem” (Rm 13.4). Observe que ele está falando de oficiais romanos pagãos, hierarquicamente situados do imperador para baixo! E ele explica ainda que Deus instituiu o Estado da forma que é para manter a lei, a ordem, a justiça e o “bem”. Esse “bem” evidentemente abrange proteção e bem-estar e, portanto, não está muito distante da oportunidade de buscar a felicidade, que a Constituição americana consagra.

Consequentemente, embora os cristãos nunca devam pensar em si mesmos como se estivessem em casa neste mundo, mas sim como forasteiros de passagem, peregrinos que atravessam uma terra estrangeira para chegar ao lugar em que estão seus tesouros, aguardando sua chegada (veja 1Pe 2.11; Mt 6.19–20), as Escrituras os proíbem de serem indiferentes aos benefícios que fluem de um bom governo. Nem devem eles, portanto, hesitar em fazer sua parte para maximizar esses benefícios para os outros, bem como para si próprios. O apoio a um governo estável por meio de uma vida que cumpre a lei e o ajuda a cumprir seu papel por meio da participação pessoal, sempre que possível, é tão adequado para nós hoje quanto foi para José, Moisés, Davi, Salomão, Neemias, Mordecai e Daniel (para não me alongar mais). Devemos ver isso como serviço a Deus e ao próximo.

Como membro cristão do Parlamento Europeu, Sir Frederick Catherwood disse com veemência: “Tentar melhorar a sociedade não é mundanismo, mas amor. Lavar as mãos em face da sociedade não é amor, mas mundanismo. ”

Alguns desdobramentos cristãos equivocados

Neste ponto, entretanto, devemos observar três desdobramentos na cristandade moderna que criaram desconcertantes correntes contrárias no que diz respeito ao dever político. Cada um deles requer um pouco de discussão, para podermos depois prosseguir.

1. As intenções politizadas de alguns cristãos relativistas. Quando falo de cristãos “relativistas”, tenho em mente certos protestantes que tratam o ensino bíblico não como a verdade revelada de Deus, mas como um indicador errático do ser humano para a autorrevelação de Deus, que é expressa em termos culturalmente relativos que os cristãos de hoje não são obrigados a usar e que dá voz a muitos sentimentos que os cristãos de hoje não são obrigados a endossar.

Quando falo de “intenções politizadas”, quero dizer que seus objetivos reduzem a fé cristã e a transformam de um caminho de peregrinação para o céu em um esquema sociopolítico para o mundo presente. Este esquema é frequentemente aludido como o estabelecimento do reino de Deus na terra, acabando-se com os pecados coletivos da sociedade — racismo, exploração econômica e cultural, divisão de classes, negação de direitos humanos — e situando o shalom (a palavra hebraica para bem-estar comunitário sob o domínio de Deus) em seu lugar.

O que há de errado aqui? Não é errado orar por shalom, nem o é trabalhar por ele quando tiver oportunidade. O amor ao próximo na aldeia global requer que todo cristão faça isso — e o faça em uma escala internacional e também doméstica. Mas é certamente desastroso quando a fé cristã (nossa compreensão dos propósitos revelados de Deus entre os homens) e a obediência cristã (nossos esforços para fazer a vontade revelada de Deus) são reduzidas a tentativas humanas de melhoria social e com elas identificadas. Arranca-se o coração do evangelho quando se concebe Cristo como Redentor e Senhor, Libertador e Humanizador apenas em relação a privações e abusos específicos neste mundo. Esta, porém, tornou-se a visão padrão de liberais e radicais entre a liderança protestante.

Arranca-se o coração do evangelho quando se concebe Cristo como Redentor e Senhor, Libertador e Humanizador apenas em relação a privações e abusos específicos neste mundo.

O que aconteceu, para ser franco, é que clérigos e leigos clericalizados se permitiram reinterpretar e redefinir seus valores religiosos básicos como valores políticos. Assim, eles secularizaram o cristianismo sob o pretexto de aplicá-lo à vida. Uma enxurrada de livros semitécnicos que expressam esse ponto de vista, o seu entrincheiramento nos seminários liberais e sua dignificação verbal como uma disciplina, a “teologia política”, conferiram-lhe respeitabilidade. A propaganda constante em seu favor, pelas mãos de sedes denominacionais protestantes, agora leva muitos leigos a igualarem o papel do cidadão cristão a levar esse programa a todos os confins da terra.

O erro básico em tudo isso é que se perdeu de vista o ponto de referência transcendente do cristianismo. Aqueles que reverenciam o ensino da Bíblia como verdade divina, que veem Jesus nos termos do Novo Testamento — ou seja, primeira e principalmente como nosso Salvador que nos livra do pecado, da ira vindoura, que nos renova em justiça e abre o céu para nós —, e que veem o evangelismo como a dimensão básica do amor ao próximo devem se opor aos males sociais com tanto vigor quanto qualquer outra pessoa. Fazer isso faz parte da prática samaritana para a qual todos os cristãos são chamados — isto é, aplacar a necessidade e a miséria de todas as maneiras possíveis. Mas tudo deve ser feito a serviço de um Cristo cujo reino não é deste mundo, e que requer que a humanidade compreenda esta vida, com suas alegrias e riquezas de um lado, e suas adversidades e tristezas do outro, como um campo de treinamento moral e espiritual, uma disciplina preparatória para a eternidade. Perca essa perspectiva, entretanto, como perderam os relativistas de quem estou falando, e todo o empreendimento do amor ao próximo perde o rumo.

2. As inibições pietistas de alguns cristãos absolutistas. “Absolutistas”, no sentido que emprego a palavra aqui, são aqueles cristãos protestantes, católicos romanos ou ortodoxos que acreditam que a verdade imutável de Deus é revelada à igreja nas Escrituras, e que só se pode agradar a Deus obedecendo a essa verdade. Entre os protestantes absolutistas, muitos, talvez a maioria, prefeririam ser chamados de evangélicos, visto que o evangelho de Cristo é central para o seu cristianismo.

O termo “pietista” aponta para uma preocupação em alcançar a santidade, evitar o pecado, ganhar almas, praticar a comunhão com os cristãos e se opor a todas as forças do anticristianismo em termos pessoais. As inibições pietistas assumem a forma de passividade política e falta de disposição para se envolver em qualquer nível de governo civil. Sua postura como cidadãos cristãos é, portanto, de retirar-se, ao invés de envolver-se no processo político.

Por quê são assim? Vários fatores parecem estar em ação aqui. Um deles é uma reação contra o “evangelho social” do protestantismo mais liberal, como foi descrito acima. O segundo fator é uma inferência errônea de sua escatologia (ou seja, de sua visão do futuro), que vê o mundo como um lugar que vai ficando inevitável e inexoravelmente pior, à medida que a vinda de Cristo se aproxima, e que nos diz que nada pode ser feito a respeito; portanto, não importa quem está no poder politicamente. Um terceiro fator, vinculado a isso, é a ênfase colocada em separar-se “do mundo”, com suas impurezas morais, seus princípios comprometidos e seu estilo de vida voltado para este mundo, para o prazer e o egocentrismo. A política, considerada por eles como um meio tenebroso em cujo altar princípios são constantemente sacrificados, a fim de angariar votos e manter a posição no jogo do poder, é vista como uma atividade eminentemente “mundana” e, portanto, completamente fora dos limites para os cristãos. Um quarto fator, potente embora imponderável, é um individualismo que decompõe todos os problemas sociais em problemas pessoais, e acha que o governo civil não é importante, pois não pode salvar almas e, portanto, fundamentalmente não há interesse no processo político de forma alguma.

Mas nada disso adianta. Sejam quais forem os erros que o “evangelho social” possa consagrar, e por mais verdadeiro que seja o fato de que o ministério na igreja e no evangelismo deva ser nossa principal preocupação, resta uma tarefa social e política para os cristãos enfrentarem.

Mesmo que a segunda vinda esteja próxima, não precisamos pensar que não podemos, sob a direção de Deus, tornar este mundo temporariamente um pouco melhor se tentarmos; de qualquer modo, o medo de não sermos bem sucedidos não é desculpa para não tentarmos, quando é Deus, na verdade, que nos diz para fazer essa tentativa.

A política é certamente um jogo de poder, mas que deve ser jogado, se quisermos que as estruturas sociais sejam aprimoradas e, embora seja uma arena que pertence a este mundo, é uma esfera de serviço a Deus e aos homens que não é intrinsecamente “mundana” em sentido proscrito. Além disso, o acordo político, as manobras básicas, é algo bem diferente do sacrifício de princípios, como veremos.

Finalmente, o individualismo que destrói a preocupação política é uma espécie de miopia, que turva a percepção dos benefícios que um bom governo traz e dos danos que um mau governo causa. Não. A passividade pietista não pode ser justificada, e seus atuais praticantes precisam ser instruídos a abandoná-la. Esta postura não é mais válida para o cidadão cristão do que a postura politizada que rejeitamos acima.

3. O imperialismo político de alguns cristãos biblicistas. Tenho em mente o espírito de cruzada que atualmente anima certos membros de igrejas e comunidades que amam a Bíblia. Entre este grupo não há qualquer hesitação em anunciar objetivos e mergulhar na balbúrdia do mundo político para conquistá-los. Os problemas surgem, entretanto, por causa da tentação de ver o jogo de poder da democracia como o equivalente moderno da guerra santa do Antigo Testamento, na qual Deus convocou seu povo a derrotar os pagãos e tomar seu reino pela força.

Os problemas surgem, por causa da tentação de ver o jogo de poder da democracia como o equivalente moderno da guerra santa do Antigo Testamento.

Na guerra santa da Bíblia, os pagãos não tinham direitos e não recebiam nenhum quinhão, pois Deus estava usando seu povo como algozes divinos, como um meio humano de infligir o juízo merecido. Vista como uma revelação da justiça retributiva de Deus (um aspecto de seu caráter que resplandece por toda a Bíblia), a guerra santa tinha um sentido moral coerente, ainda que terrível. Mas a guerra santa não faz parte do projeto de Deus para a igreja cristã. Deixem a vingança para Deus, diz Paulo em Romanos 12.19. E não faz absolutamente nenhum sentido moral ou prático, se for tomada como modelo para a ação cristã na arena política de uma democracia pluralista moderna.

Em uma democracia, só se pode governar quando se tem o apoio da opinião pública e ela o mantém no cargo. Portanto, a busca de consenso e a prática da persuasão com vistas a alcançar esse consenso são de extrema importância. Atropelar os outros como se eles não contassem sempre terá um efeito bumerangue autodestrutivo. Grupos de pressão que buscam agarrar e usar o poder sem ganhar o apoio da opinião pública para o que pretendem provocarão uma oposição igualmente autoritária e em geral terão vida curta. Os cidadãos cristãos, que devem ter fortes convicções sobre o certo e o errado em termos coletivos, sempre precisarão ter cuidado aqui.

Fazendo a democracia funcionar

A democracia representativa como a conhecemos — na qual os poderes legislativo, judiciário e executivo têm status separados, os serviços de informação pública (a mídia) não estão sob controle do governo, a administração eleita sempre enfrenta uma oposição eleita, e as eleições populares, com base no princípio um homem, um voto, ocorrem a intervalos regulares — não é a única forma de governo sob a qual os cidadãos cristãos já viveram e serviram a Deus. No entanto, não há dúvida de que, do ponto de vista cristão, a democracia é uma forma de governo mais adequada e sábia do que qualquer outra.

O aval cristão à democracia baseia-se em duas percepções. A primeira é a consciência de que um governo do povo, pelo povo, para o povo, em um sistema coletivo aberto que, em princípio, permite a qualquer pessoa se qualificar para qualquer cargo, expressa melhor em termos políticos a dignidade e o valor concedidos por Deus a cada indivíduo . A segunda percepção é de que, uma vez que neste mundo decaído, como disse Lord Acton, todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, a separação de poderes e a construção de um sistema de freios e contrapesos nas estruturas executivas limitarão os perigos da corrupção, ainda que tais procedimentos de contenção nunca os eliminem inteiramente.

Essas percepções cristãs se mesclam com a sabedoria secular, que percebe que quanto mais os cidadãos podem sentir que participaram na tomada de decisões que agora moldam suas vidas, mais resolutamente eles irão aderir a elas. O padrão de governo, portanto, que maximiza o consentimento público será normalmente mais estável do que qualquer outro sistema.

Portanto, pode-se esperar que os cidadãos cristãos demonstrem um firme compromisso com os princípios democráticos e se considerem obrigados a fazer tudo o que puderem para que a democracia funcione. Mas isso significa compromisso consciente com o processo democrático, como a melhor forma de tomada de decisão dentro do corpo político.

Em democracias que são filosófica e religiosamente pluralistas, como as do Ocidente, o processo democrático que consegue alcançar o consentimento a partir do conflito é de vital importância. Neste mundo decaído, o conflito decorrente da visão limitada e de interesses conflitantes é uma parte inevitável da cena política. A intensidade e integridade do embate público, por meio do qual um equilíbrio é alcançado entre as partes em conflito, torna-se, então, um indicador da saúde e do moral da comunidade.

O nome que se dá à solução de conflitos políticos por meio do debate é acordo. Sejá lá o que for verdade no campo da ética, o acordo na política não significa o abandono de princípios, mas sim a prontidão realista para se contentar com aquilo que considera ser menos do que o ideal, quando isso é tudo o que se pode obter no momento. O princípio que o acordo político expressa é que meio pão é melhor do que pão nenhum.

Dar e receber é o coração do acordo político, assim como este último é o coração da política em uma democracia. Perceber isso é sinal de maturidade política. Em contraste, uma rigidez doutrinária que assume uma postura adversária em relação a todos os que não endossarem totalmente suas próprias visões e objetivos implica imaturidade política.

A tomada de decisão na democracia é um processo mais público possível, e espera-se que as autoridades tornem públicas suas razões para a ação, onde quer que isso possa ser feito sem prejudicar o futuro. Contudo, todas as principais decisões políticas revelam-se complexas em si mesmas e controversas para a comunidade. Isso é inevitável por pelo menos três razões.

Primeiro, o conhecimento que todos têm sobre os fatos pertinentes a cada caso é sempre parcial e seletivo.

Em segundo lugar, os valores, as prioridades e as opiniões sobre a importância relativa dos resultados de longo e curto prazo variam.

Terceiro, o cálculo das consequências, particularmente das consequências não intencionais e indesejadas, também varia, e muitas ações que parecem certas para alguns parecerão erradas para outros, porque preveem consequências diferentes. Como as decisões executivas regularmente têm subprodutos indesejáveis, elas se tornam escolhas entre dois males — isto é, escolher o mal menor e evitar males maiores.

O cidadão cristão deve aceitar que na política não há respostas do tipo preto ou branco disponíveis, mas Deus deseja simplesmente que todos sejam guiados pelos ideais mais elevados e pela sabedoria mais madura que possam encontrar. O caso de Salomão (1Reis 3) mostra que o dom de Deus aos governantes assume a forma de sabedoria para lidar criativamente com o que vier, e não de soluções prontas para todos os problemas.

O que o cidadão cristão deve fazer?

O Novo Testamento não fala sobre participação política ativa, e por uma razão muita boa: esta não era uma alternativa disponível para os cristãos do primeiro século. O Império Romano não era uma democracia, e muitos, se não a maioria dos cristãos, não eram cidadãos romanos. Eles eram uma pequena minoria que ocupava a posição mais baixa do espectro socioeconômico, e eram vistos como dissidentes excêntricos da velha excentricidade do judaísmo. Não tinham a menor influência política, nem perspectiva de ganhá-la. Portanto, as únicas coisas politicamente significativas que eles podiam fazer eram pagar seus impostos (Mt 17.24-27; 22.15-21;Rm 13.6-7), orar por seus governantes (1Tm 2.1–4) e manter a paz (Rm 12.18; 1Ts 5.13-15).

A democracia representativa de hoje, entretanto, abre a porta para uma gama mais ampla de possibilidades políticas e, portanto, exige mais de nós, em termos de um compromisso responsável, do que exigiam as circunstâncias nos tempos do Novo Testamento.

Esse compromisso pode ser assim resumido:

  1. Todos devem se manter informados; do contrário, não podemos julgar bem as questões, votar bem nos candidatos ou orar bem pelos governantes. A ignorância política nunca é uma virtude cristã.

  2. Todos devem orar pelos que estão no poder. A eficácia secreta da oração, como a Escritura revela, é enorme.

  3. Todos devem votar em eleições e plebiscitos, sempre que a opinião pública seja convocada a se manifestar. Ao votar, devemos ser guiados por questões temáticas, e não por personalidades, nem por questões específicas tomadas isoladamente, mas sim pela visão do que seja o bem-estar de toda a coletividade. Esta é uma maneira real, ainda que modesta, pela qual podemos exercer influência como sal da terra e luz do mundo (Mt 5.13-16).

  4. Alguns devem buscar influenciar politicamente participando de debates, escrevendo e trabalhando dentro do partido político com o qual mais se alinharem. O clero normalmente não deve fazer isso, visto que será uma barreira para a aceitação de seu ministério por parte de pessoas que discordarem de sua visão política. É, entretanto, altamente desejável que os leigos que tenham interesse pela política sejam encorajados a ver a conquista e o exercício de influência política como um campo de serviço cristão, ao lado de outros campos como a vida da igreja, a adoração e o testemunho.

  5. Alguns deveriam aceitar uma vocação política. Quem deve fazer isso? Aqueles em quem coincidirem o interesse, a habilidade e a oportunidade, e que não tenham um chamado mais forte para nenhuma outra carreira; aqueles que tenham uma visão de melhorar a sorte das pessoas de modo global, promovendo a paz internacional, substituindo a discriminação sem princípios pela justiça e fomentando a decência pública; e, por fim, aqueles que estiverem preparados para trabalhar arduamente, com paciência, humildade, tolerância e integridade, fugindo do fanatismo, enfrentando rejeições e colocando o interesse público antes dos interesses pessoais. As histórias bíblicas mencionadas anteriormente mostram que Deus quer alguns de seus servos como políticos profissionais, liderando e moldando bem a sociedade, e a descoberta de que alguém está apto para o papel é uma convocação prima facie de Deus para que vá em frente e abrace essa tarefa.

Que ninguém, entretanto, pense que será uma mar de rosas: essa escolha tem um alto custo. A estrada da política é difícil de trilhar. O aquário da vida pública expõe a pessoa constantemente a críticas impiedosas, e viver dentro dele exige resiliência e envolve grandes doses de autossacrifício. A política é um jogo de poder, e a inveja, o ódio, a malícia e a dubiedade egoísta, coisas que o jogo de poder em regra extrai do coração humano pecaminoso, são por demais conhecidas para que seja preciso comentá-las aqui. Nenhum político que tenha princípios pode esperar uma caminhada fácil, e certamente nenhum que seja cristão.

Mas quem já pensou que o cumprimento de qualquer aspecto da vocação cristã seria fácil? As palavras com as quais Sir Frederick Catherwood termina seu livro, The Christian Citizen, merecem constante reflexão:

“Devemos ser humildes, não inflexíveis. Devemos estar preparados para descobrir que às vezes estamos completamente errados, e devemos ser capazes de admitir isso. Servimos ao próximo por causa de nosso amor a um Senhor que deu sua vida por nós, uma dívida que, por melhor que sirvamos, jamais poderemos pagar. Portanto, tudo o que fizermos, façamos motivados por um senso de dever e porque é certo. Diferentemente dos homens ilustrados, não buscamos satisfação instantânea. Diferentemente dos vendedores, não garantimos o sucesso. O período de tempo do cristão não é o dos mortais. Um semeia e outro colhe. Um faz o trabalho árduo e outro usufrui do trabalho dele. Para Deus, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O cristão sabe o que significam paciência e perseverança. Mas ele também sabe o que significa ação. Esta é a fórmula certa para a política cristã, simplesmente porque é a fórmula certa para cada parte da vida cristã. ”

Este artigo foi publicado originalmente na edição de 19 de abril de 1985 da Christianity Today, e foi ligeiramente editado por questão de espaço.

Traduzido por: Marisa Lopes

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Os céticos em relação às vacinas precisam de uma dose de teologia da criação

A medicina tem seus limites. Mas, como já sabia João Calvino, ela pode ser uma dádiva extraordinária de Deus.

Christianity Today May 26, 2021
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Macau Photo Agency / Unsplash / Anastasia Shuraeva / Pexels

À medida que a vacina contra a COVID-19 se torna disponível em larga escala para os americanos, uma alta proporção de cidadãos evangélicos brancos dizem que “provavelmente” ou “definitivamente” não tomarão a vacina. Meios de comunicação como o The New York Times e a CNN expressaram temor de que a hesitação em se vacinar possa ser um obstáculo para que a América alcance a imunidade de rebanho e coloque em risco os que não se vacinaram e suas comunidades.

Em meio a esse alerta, o grande e diversificado grupo demográfico de evangélicos brancos tem sido rotulado como “anticiência”, reforçando ainda mais a suspeita daqueles que hesitam em se vacinar no sentido de que uma mensagem pró-vacina esteja ligada a uma “mídia hostil” e a excessos do governo. À medida que abismos cada vez mais profundos de desconfiança separam os seguidores de Jesus de todas as origens em tribos ideológicas de sua própria escolha, enfrentamos a pergunta: podemos encontrar uma maneira de demonstrar amor uns aos outros e ao próximo, como testemunhas das boas-novas de Jesus Cristo?

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A realidade é que as pessoas são mais complexas do que a demografia. O rótulo de “anticientífico” geralmente gera mais calor do que luz. Como paciente com câncer, aprendi que não é anticientífico pensar com cuidado sobre uma intervenção médica. Existe uma diferença entre aceitar um tratamento recém-aprovado e pedir aos médicos para engessar um braço quebrado. Como explorei em meu livro recente, exercitar discernimento para com a medicina moderna faz parte de nossa vocação como mortais que são seguidores de Jesus. Somente Deus pode nos livrar do pecado e da morte. Mas o Senhor também pode oferecer a medicina como uma dádiva extraordinária nesta curta jornada mortal.

Para os evangélicos, o ponto crucial da questão da vacina não depende da confiança em algum partido ou alguma agenda política em particular, mas sim em nossa resposta à obra de Deus na criação. Com a confiança de que Deus é o criador da complexa harmonia que observamos na criação, podemos receber a vacina como uma dádiva divina.

Como muitos evangélicos, fui criado para ser profundamente sensível à declaração do salmista: “Quão múltiplas são as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A terra está cheia de seres que criaste”(104.24, NRSV). A conexão estava clara: como cristãos, adoramos o Senhor e nos deleitamos com a ordem, a complexidade e a harmonia sublime de sua criação.

Só mais tarde vim a descobrir que essa piedade evangélica sobre a criação se alinha com uma tradição bíblica mais antiga de teologia da criação. De Agostinho no Ocidente a Gregório de Nissa no Oriente, e do cristianismo primitivo à Reforma e ao Iluminismo, muitos cristãos compartilharam esta teologia. Baseando-se nas Escrituras, a teologia da criação se regozija nas “múltiplas […] obras” de Deus, na ordem e na complexidade da criação, e insta os seres humanos a crescerem em sua compreensão das maravilhas da criação. Como mostraram os estudos na área de história da ciência, ao longo dos séculos essa teologia encorajou muitos a buscar a pesquisa e a investigação científica sérias.

O reformador do século 16, João Calvino, ensinou essa teologia criacional com particular entusiasmo. “Para onde quer que se olhe”, escreveu ele em suas Institutas, “não há lugar no universo onde não se possa discernir ao menos algumas centelhas da glória de Deus”. O que muitos hoje chamam de “mundo natural” foi, para Calvino, um “teatro deslumbrante” da glória de Deus. Ele lamentava que “somente um a cada cem homens é um verdadeiro espectador desse teatro!”

Como tudo isso se relaciona com nosso discernimento sobre vacinas em nosso momento contemporâneo? Muitos de meus irmãos evangélicos hesitam sobre a vacina contra a COVID-19 porque se preocupam com os excessos do governo. Eles observam as dolorosas consequências econômicas das paralisações impostas pelo governo e temem que as “mensagens” do governo tenham sido inconsistentes durante os diferentes pontos da pandemia. Se alguém desaprova a resposta do governo à pandemia, por que confiar na vacina?

Embora essas preocupações possam brotar de dificuldades genuínas, se acreditarmos em uma “teologia da criação” bíblica, elas não vêm ao caso. Sim, o desenvolvimento, a testagem e a distribuição das várias vacinas contaram com o apoio e a coordenação do governo — primeiro, de um presidente republicano; depois, de um democrata; bem como de outros governos ao redor do mundo que não se enquadram nas categorias partidárias americanas. Mas nenhum presidente, governador ou prefeito fez o árduo trabalho de investigação científica — as milhares de horas de investigação, observação e testagens realizadas por cientistas em todo o mundo.

De forma verdadeiramente surpreendente, proeminentes cientistas do mundo todo e de vários contextos políticos, trabalharam em conjunto para reunir um enorme corpo de conhecimentos sobre a COVID-19. Isso ocorreu em um período de tempo relativamente curto, mas eles partilharam uns com os outros suas hipóteses, percepções, dados e dilemas de maneira sem precedentes.

Como The Atlantic mostrou, o ano de 2020 foi como o projeto Apollo, ao inspirar um imenso número de cientistas e de estudos, com arquivos online que compartilhavam os resultados dos estudos de forma imediata com cientistas de outros lugares, deixando para trás os processos de publicação impressa e em sites com acesso pago caríssimo. No início de 2020, um arquivo para pesquisa biomédica tinha 1 mil artigos que forneciam dados sobre os resultados de investigações. Em outubro, por causa da COVID-19, ele já tinha mais de 12 mil artigos.

Os cristãos podem se alegrar com o fato de que uma solução para uma doença disseminada foi investigada tão profundamente por esses cientistas em 2020. E os cientistas não precisavam ser cristãos para que seu trabalho comungasse de algumas convicções-chave com a teologia da criação: a convicção de que a ordem e a simetria caracterizam o mundo natural de maneiras profundas e a de que a mente humana pode compreender aspectos desse cosmos complexo. Conforme observaram cientistas não cristãos, como Albert Einstein, há uma harmonia profunda e uma “ordem maravilhosa” no universo, sem a qual a investigação científica e o progresso não seriam possíveis.

Como evangélicos, que afirmam que essa ordem e complexidade são parte do design de Deus e que os seres humanos são criados à imagem de Deus para se alegrar na criação e desvendá-la, temos ainda mais razões para valorizar o progresso científico do ano que passou. A decisão sobre tomar as vacinas feitas com base nesta pesquisa não é uma questão de aprovarmos o presidente, o governador ou o prefeito. Para os seguidores de Jesus, é uma questão de saber se confiamos na ordem e no design da criação que tornam a compreensão científica possível, visto que cientistas de todo o mundo têm prestado atenção profunda e cuidadosa no “teatro da glória de Deus” na criação.

Neste ponto, alguns leitores farão a seguinte objeção: Estou presumindo que nosso conhecimento atual sobre a COVID-19 é perfeito? E estou garantindo que não existam possíveis riscos em tomar essas vacinas que o Centro para Controle de Doenças diz serem “seguras e eficazes”?

Não estou assumindo uma resposta positiva para nenhuma das duas perguntas. A ciência é um empreendimento humano falível, que busca compreender a extraordinária ordem e complexidade da criação de Deus; nossa compreensão sobre essas coisas está sempre progredindo. E embora as vacinas sejam relativamente seguras e eficazes, acho que é sábio reconhecer que a certeza absoluta simplesmente não é possível. Para mortais como nós, simplesmente não há maneira de superar essa pandemia que seja “segura”. A opção de não tomar a vacina está longe de ser isenta de riscos. Como fez o salmista, é hora de apresentarmos nossos temores a Deus e pedirmos ao Senhor que nos ajude a “contar os nossos dias”, pois somos meros mortais (Salmos 90.12).

Em dezembro, um pastor que é amigo meu contou que foi convidado a ser um dos primeiros a tomar a vacina em seu estado, porque desenvolvia um trabalho importante no hospital local. Ele foi honesto comigo e com os outros: tinha aquela sensação de medo de injetar essa vacina em seu corpo. Conversou com seu médico, confiou em amigos cristãos e procurou discernir o assunto em espírito de oração. No final, tomou a vacina pela fé de que tanto na vida quanto na morte ele pertence a Jesus Cristo. Ele tinha o direito de se recusar a tomar. Mas o mais importante foi seu reconhecimento de que ele é um mortal que pertence a Jesus — aquele que abriu mão de seus próprios direitos para nos mostrar seu amor. Por amor a seu Deus e aos outros, ele se recusou a deixar que seu medo desse a última palavra.

Nosso conhecimento sobre a COVID-19 não é perfeito, e não precisamos presumir que a ciência seja infalível para receber a vacina como uma dádiva. Mas medicamentos e vacinas perfeitos nunca foram uma opção. Considere Calvino, que aplicou sua teologia da criação para insistir que a medicina, como “conhecimento que maneja com cuidado os dons da criação”, é de fato uma dádiva divina.

Será que Calvino presumiria que esses medicamentos são isentos de risco? Certamente que não. Calvino encorajava seus ouvintes a tomar remédios com base na melhor compreensão disponível (ainda que provisória) do mundo. Imagine o que ele poderia dizer sobre os extensos testes de segurança para tratamentos como a vacina contra a COVID-19. Mas, mesmo sem a testagem em larga escala, Calvino insistia que, por meio da medicina, Deus “nos dá a capacidade de tratar nossas doenças”. Na verdade, ele exclama, “todo aquele que não leva em conta os meios [medicamentos] que Deus ordenou não tem confiança em Deus, mas se ensoberbece com falso orgulho e audácia”.

Podemos dar graças pelo maravilhoso teatro da glória de Deus na criação e pelas dádivas advindas de sua exploração. À medida que nossas congregações aprendem mais sobre a vacina nesta época tumultuada, podemos nos lembrar da exortação de Paulo para “sejam pacientes, suportando uns aos outros com amor” (Efésios 4.2-3). Nossos corpos não são nossos, mas pertencem a Jesus, aquele por meio de quem “todas as coisas foram criadas” (Colossenses 1.16).

Mesmo quando reconhecemos nossos próprios direitos e temores, somos chamados a considerar o corpo em que servimos, os corpos daqueles em nossa família espiritual e os corpos de nossos próximos a quem Jesus nos chama a amar. Que possamos mostrar o amor e a confiança que vêm de Deus de modo que, com um amor que parece estranho à nossa era tão cheia de divisões, possamos nos unir em um só canto: “Eles saberão que somos cristãos pelo nosso amor”.

J. Todd Billings é o Professor Pesquisador de Teologia Reformada na cátedra Gordon H. Girod, do Western Theological Seminary, em Holland, Michigan. Seu livro mais recente é The End of the Christian Life: How Embracing Our Mortality Frees Us to Truly Live.

Speaking Out é uma coluna da Christianity Today em que autores convidados manifestam sua opinião sobre determinado assunto, a qual não necessariamente representa a opinião da revista.

Traduzido por: Mariana Albuquerque

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A prova de que o privilégio político é prejudicial ao cristianismo

Um estudo analítico de 166 nações sugere que a maior ameaça à vitalidade cristã não é perseguição, riqueza, educação nem pluralismo. É o apoio do Estado.

Christianity Today May 26, 2021
Illustration by Rick Szuecs / Source Images: NurPhoto / Contributor / Getty / Ross Sokolovski / Eva Dang / Unsplash / Artdesigner Geno / Luis Quintero / Pexels

Por que o cristianismo está crescendo em alguns países, mas diminuindo em outros?

Durante grande parte do século 20, os cientistas sociais responderam a essa pergunta apelando para a chamada tese da secularização: a teoria de que a ciência, a tecnologia e a educação levariam ao declínio da influência social do cristianismo.

Mais recentemente, alguns estudiosos sugeriram que a causa na verdade era o acúmulo de riqueza. Acreditava-se que o aumento da prosperidade livraria as pessoas de terem de buscar um poder superior para atender às suas necessidades cotidianas. Em outras palavras, havia uma ligação direta entre riqueza e ateísmo.

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Em um estudo revisado por pares, publicado este mês na revista Sociology of Religion, escrito em coautoria, Stuti Manchanda e eu desafiamos a percepção de que a educação e a riqueza significam o fim do cristianismo.

Em nossa análise estatística de uma amostra global de 166 países, feita de 2010 a 2020, descobrimos que o fator determinante mais importante para a vitalidade cristã é até que ponto os governos dão apoio oficial ao cristianismo por meio de suas leis e políticas. No entanto, a questão não é bem da maneira que crentes devotos possam esperar.

À medida que o apoio governamental ao cristianismo aumenta, o número de cristãos diminui significativamente. Essa relação se mantém mesmo quando se leva em consideração outros fatores que podem estar impulsionando as taxas de crescimento cristão, como as tendências demográficas gerais.

Reconhecemos que nossa metodologia e conjuntos de dados não podem explicar um fator de grande importância para os cristãos: o mover do Espírito Santo. No entanto, nossos numerosos testes estatísticos com os dados disponíveis revelam que a relação entre privilégios estatais ao cristianismo e o declínio de cristãos é causal, e não apenas uma correlação.

Nosso estudo detectou três paradoxos diferentes da ressonância do cristianismo: o paradoxo do pluralismo, o paradoxo do privilégio e o paradoxo da perseguição.

1. O paradoxo do pluralismo

Muitos cristãos acreditam que a melhor maneira de o cristianismo prosperar é barrando todas as outras religiões. Ironicamente, porém, o cristianismo é com frequência mais forte em países onde tem que competir com outras tradições de fé em igualdade de condições.

Talvez a melhor explicação para isso seja derivada de A Riqueza das Nações, a obra mais importante de Adam Smith. O famoso economista argumentou que, assim como uma economia de mercado incentiva a concorrência, a inovação e o vigor entre empresas, forçando-as a competir por participação no mercado, um mercado religioso não regulamentado teria o mesmo efeito sobre as instituições religiosas.

Assim como o ferro afia o ferro, a concorrência afia a religião. Contextos de pluralismo forçam os cristãos a apresentar os melhores argumentos possíveis para suas crenças, enquanto outras tradições religiosas são forçadas a fazerem o mesmo. Isso requer que os cristãos tenham um conhecimento profundo de suas crenças e as defendam no mercado de ideias.

Nosso estudo mostra que, à medida que aumenta o compromisso de um país com o pluralismo, também aumenta o número de adeptos cristãos. Sete dos 10 países em que a população cristã cresce mais rápido oferecem pouco ou nenhum apoio oficial ao cristianismo. Paradoxalmente, o cristianismo se sai melhor quando precisa se defender sozinho.

10 Principais Populações Cristãs de Crescimento Mais Rápido


(Em negrito, as que têm baixo/nenhum apoio oficial para o cristianismo)

1) Tanzânia

2) Malawi


3) Zâmbia

4) Uganda
5) Ruanda
6) Madagascar
7) Libéria


8) Quênia

9) República Democrática do Congo
10) Angola

O paradoxo do pluralismo pode ser visto nas duas regiões do mundo onde o cristianismo está crescendo mais rapidamente: Ásia e África.

O maior crescimento do cristianismo no século passado foi na Ásia, continente em que a fé cresceu duas vezes mais do que a população. O crescimento explosivo do cristianismo nessa parte do mundo é ainda mais notável quando se considera que a região possui apenas um país de maioria cristã: as Filipinas.

Como explicamos esse paradoxo? Em contraste com a Europa, o cristianismo nos países asiáticos não tem desfrutado da posição de receber tratamento preferencial do Estado, e essa realidade resultou em taxas de crescimento do número de cristãos impressionantes. A fé cristã, na verdade, tem se beneficiado do fato de não estar institucionalmente ligada ao Estado, o que alimenta seu crescimento e sua vitalidade.

Considere o caso da Coreia do Sul, que no decorrer de um século deixou de ser um país em que não havia cristianismo para se tornar um de seus maiores exportadores. Atualmente, a Coreia do Sul é o segundo país que mais envia missionários, atrás apenas dos Estados Unidos.

Esse exemplo ilustra bem o paradoxo do pluralismo. Como a Coreia do Sul não é um país cristão, o cristianismo não desfruta de nenhuma relação especial com o Estado. De fato, o cristianismo na Coreia sofreu perseguição brutal do domínio colonial japonês, período durante o qual igrejas foram fechadas à força e tiveram suas propriedades confiscadas. Na verdade, a igreja persistiu durante tempos de pobreza, guerra, ditadura e crises nacionais ao longo da história coreana.

Desde a Segunda Guerra Mundial, o cristianismo coreano cresceu exponencialmente, com dezenas de milhares de igrejas sendo construídas e seminários formando milhares de graduados todos os anos. Hoje, cerca de um terço do país é cristão.

A África é a outra região do mundo em que o cristianismo tem tido um crescimento impressionante, particularmente nas últimas décadas. Hoje, há quase 700 milhões de cristãos na África, o que o torna o continente mais cristão do mundo em termos de população. De fato, os 10 países mencionados acima em que a população cristã teve crescimento mais rápido no mundo, de 2010 a 2020, estão todos localizados na África Subsaariana.

O cristianismo fez avanços na África não porque desfruta de uma posição privilegiada perante o Estado, mas porque tem de concorrer com outras tradições de fé em um campo de interação equilibrado. Dos países em que o cristianismo teve um crescimento notável, apenas um, a Tanzânia, tem um nível de apoio oficial à religião que está na média global. No restante dos casos (incluindo Quênia e Zâmbia, com classificação moderada), o apoio ao cristianismo estava abaixo — e geralmente bem abaixo — da média global.

Em suma, o cristianismo na África, como na Ásia, está prosperando não porque tem o apoio do Estado, mas sim porque não o tem.

2. O paradoxo do privilégio

Nove dos 10 países em que a população cristã está em declínio mais rápido no mundo propiciam níveis moderados a altos de apoio oficial ao cristianismo. Enquanto a concorrência entre religiões fomenta a vitalidade cristã, o favoritismo estatal à religião inadvertidamente suprime essa vitalidade.

10 Principais Populações Cristãs em Declínio Mais Rápido


(Em negrito, as que têm moderado/alto apoio oficial para o cristianismo)

1) República Tcheca
2) Bulgária
3) Letônia
4) Estônia


5) Albânia

6) Moldávia
7) Sérvia
8) Alemanha
9) Lituânia
10) Hungria

Quando os cristãos percebem alguma ameaça proveniente de minorias religiosas, eles podem contar com o Estado para lhes dar uma vantagem competitiva nessa concorrência. Esse privilégio pode incluir financiamento estatal para fins religiosos, acesso especial a instituições do Estado e isenções de regulamentos impostos a grupos religiosos minoritários. Paradoxalmente, porém, o privilégio estatal ao cristianismo outorgado dessa maneira acaba não ajudando a igreja, segundo nossos dados.

Os cristãos que tentam obter o favor do Estado se distraem de suas missões para manter sua posição privilegiada, na medida em que se envolvem com as coisas de César, e não com as coisas de Deus.

Sim, as igrejas favorecidas podem usar suas posições privilegiadas para exercer influência sobre o restante da sociedade; no entanto, isso é feito principalmente por meio de rituais e símbolos — a religião civil —, em vez de fervor espiritual. Por esse motivo, as igrejas apoiadas pelo Estado frequentemente perdem a substância espiritual tão valorizada pelos praticantes da fé, o que leva os leigos a abandoná-la.

Curiosamente, algumas pesquisas sugerem que os missionários de igrejas apoiadas pelo Estado são menos eficazes do que os missionários enviados por igrejas independentes do Estado.

Estudiosos da religião há muito observam que as tendências em direção à secularização parecem ser mais fortes nos países do Ocidente, particularmente na Europa, onde a igreja por séculos desempenhou um papel importante na vida das pessoas. Numerosas pesquisas documentaram os níveis comparativamente fracos de crença religiosa e frequência a cultos religiosos nessa parte do mundo.

O fato de a Europa ser a região mais secular do mundo — e também a mais rica — levou muitos a postularem uma relação causal entre a riqueza e o declínio do cristianismo.

Nosso estudo argumenta, em vez disso, que a secularização da Europa decorre principalmente do amplo apoio dado ao cristianismo pelo Estado.

No Reino Unido, por exemplo, a lei estabeleceu a Igreja Anglicana como a igreja oficial e o cristianismo como a religião oficial, conferindo-lhe privilégios não concedidos a grupos religiosos minoritários. O declínio cristão também ocorreu nas nações protestantes da Escandinávia, onde as relações Igreja-Estado foram marcadas por privilégios (que incluíram subsídios públicos no passado). Por exemplo, a Igreja da Suécia tem um relacionamento próximo com o Estado: o rei sueco atua como chefe da igreja e nomeia bispos para o cargo.

Um padrão semelhante pode ser visto em Estados de maioria católica. Durante grande parte do século 20, países como Portugal, Espanha, Bélgica e Itália ofereceram forte apoio à Igreja Católica Romana e discriminaram ativamente os não católicos nas áreas de direito de família, radiodifusão religiosa, política tributária e educação. Embora o privilégio católico nesses países tenha enfraquecido em muitas partes da Europa, o campo de atuação religioso continua desequilibrado de maneiras importantes, especialmente no que diz respeito às barreiras à entrada de novos movimentos religiosos.

A relação entre privilégio político e declínio cristão é mais forte em países dominados por formas ortodoxas orientais de cristianismo. Por exemplo, a Rússia concedeu inúmeros privilégios à Igreja Ortodoxa Russa — como financiamento para locais sagrados, acesso a instituições do Estado e autonomia sobre seus próprios assuntos — ao mesmo tempo em que impôs restrições aos concorrentes da Igreja Ortodoxa, que incluem a negação de vistos para clérigos estrangeiros, deportação de missionários e negação dos direitos à terra. Países cristãos ortodoxos como a Rússia são os mais propensos a integrar igreja e Estado.

O resultado é que as igrejas na Europa não precisam se preocupar em competir com concorrentes religiosos em igualdade de condições. Em decorrência disso, essas igrejas se tornaram letárgicas, pois dependem do Estado para se manter.

A frequência à igreja nesses países continua a ser a mais baixa de todo o mundo cristão, apesar do fato de a vasta maioria dos cidadãos desses Estados manterem sua membresia oficial à igreja. As igrejas europeias assumiram uma função amplamente cerimonial, mas desempenham um papel pequeno na vida cotidiana das pessoas. Catedrais resplandecentes, projetadas para congregar centenas de pessoas, geralmente recebem apenas um punhado de fiéis em seus cultos dominicais regulares.

Em suma, o cristianismo na Europa está diminuindo não apesar do apoio do Estado, mas justamente por causa dele.

3. O paradoxo da perseguição

No segundo século, Tertuliano, um dos primeiros pais da igreja, chegou à surpreendente conclusão de que “o sangue dos mártires é a semente da igreja”. Surpreendentemente, nosso estudo descobriu que contextos de discriminação anticristã geralmente não têm o efeito de enfraquecer o cristianismo; em alguns casos, a perseguição até fortalece a igreja.

Assim como a concorrência religiosa saudável, a perseguição religiosa — por razões totalmente diferentes — não permite que os cristãos se tornem complacentes. Certamente, em alguns casos, a perseguição anticristã prejudicou muito o cristianismo, como a perseguição no Norte da África, no século 7; ou a no Japão, no século 17; ou ainda a na Albânia, no século 20; e a no Iraque, nos dias atuais. Ainda assim, em muitos outros contextos de discriminação e perseguição (excetuando a violência genocida), a igreja desafiou as probabilidades — e não apenas continuou a existir, mas também, em alguns casos, até mesmo prosperou.

Nesses ambientes, os crentes se voltam para sua fé como uma fonte de força, e essa devoção atrai os de fora da sua fé.

Ao redor do mundo, centenas de milhões de cristãos vivem em países em que sofrem altos níveis de perseguição. Mesmo assim, o cristianismo continua a se mostrar extraordinariamente resiliente, tal como a Igreja primitiva sob o domínio de César.

Hoje o cristianismo está crescendo rápido em certos países muçulmanos como o Irã e o Afeganistão, nos quais a fé sofre um alto nível de perseguição. A organização Portas Abertas classifica o Irã como o oitavo pior lugar do mundo para ser cristão, com um nível “extremo” de perseguição. Na República Islâmica do Irã, o governo proíbe o abandono do Islã, aprisiona quem faz proselitismo e manda para a detenção aqueles que frequentam igrejas domésticas clandestinas ou imprimem e distribuem literatura cristã.

No entanto, apesar de o governo ameaçar, pressionar e coagir os cristãos, a igreja no Irã se tornou uma das que mais cresce no mundo em termos de conversão. Embora seja difícil determinar com exatidão quantos cristãos vivem no Irã, visto que a maioria mantém sua fé em segredo, por medo de perseguição, estima-se — com base em dados de pesquisa — que pode haver perto de um milhão de crentes iranianos. O crescimento surpreendente da fé cristã no Irã gerou uma preocupação generalizada entre os legisladores iranianos de que o cristianismo ameace os alicerces da República Islâmica.

Uma história semelhante está ocorrendo no vizinho ao leste do Irã, o Afeganistão. A Portas Abertas classifica o país como o segundo pior lugar para ser cristão, atrás apenas da Coreia do Norte. Como no Irã, é ilegal no Afeganistão abandonar o islamismo, e aqueles que o fazem enfrentam prisão, violência e até a morte. Os cristãos enfrentam perseguição não apenas por parte do governo islâmico, mas também de militantes islâmicos que têm como alvo as minorias religiosas. Comunidades cristãs afegãs têm sido castigadas por décadas de guerra.

É impossível determinar um número preciso de cristãos no Afeganistão. No entanto, as evidências disponíveis indicam que o cristianismo continua crescendo, sustentado pela existência de uma igreja clandestina, apesar da repressão intensa e generalizada que os cristãos enfrentam. Alguns relatos indicam que o cristianismo se espalhou até mesmo entre as elites afegãs e membros do parlamento do país. Um exemplo declarado: Rula Ghani, a primeira-dama do país, é uma cristã maronita do Líbano.

Fora do mundo muçulmano, a experiência da maior igreja perseguida do mundo — a igreja chinesa — reflete a da Igreja primitiva sob o domínio de César, período em que também a igreja teve um crescimento exponencial.

Durante as primeiras três décadas do regime comunista na China, a igreja foi submetida a severa perseguição, especialmente durante a era conhecida como Revolução Cultural, de 1966 a 1976. Lançada por Mao Tse-tung, a campanha buscava preservar o comunismo na China, travando uma guerra contra aqueles que via como seus inimigos, incluindo a religião. Centenas de milhares de cristãos, católicos e protestantes, morreram durante esse período.

No entanto, o cristianismo persistiu, refugiando-se na clandestinidade. Incrivelmente, os protestantes até mesmo testemunharam um crescimento considerável no final da Revolução Cultural. Fenggang Yang, sociólogo da religião, observa que, desde 1950, o cristianismo protestante cresceu 23 vezes. Pelo menos 5% da população da China, que é de quase 1,5 bilhão de pessoas, hoje é adepta do cristianismo.

Yang prevê que essa porcentagem crescerá exponencialmente nos próximos anos, de modo que, em 2030, a China terá mais cristãos do que qualquer outro país. Em 2050, metade da China poderá ser cristã.

É possível que os anos futuros provem que essas projeções são muito otimistas, à medida que o Partido Comunista Chinês continua sua repressão maciça a grupos religiosos. Mas é improvável que a repressão na China será capaz de cercear totalmente o crescimento cristão.

Em suma, é a tentação do privilégio político, e não a ameaça de perseguição, que parece ser o maior obstáculo à fé cristã.

Lições para a cristandade

Esses paradoxos têm desdobramentos importantes para as comunidades cristãs em todo o mundo.

Na Europa, políticos e partidos políticos na Hungria, Itália, Polônia, Eslovênia, França, Áustria, Itália, Alemanha, Holanda e Suíça pleitearam o aprofundamento da relação entre o cristianismo e seus respectivos Estados. Alguns políticos bem-sucedidos se posicionaram como defensores do cristianismo contra uma fé islâmica estrangeira que ameaça a integridade cristã de seus respectivos países.

Em muitos casos, partidos populistas de direita provaram ser capazes de aumentar sua participação nos votos, em parte devido à sua defesa da “nação cristã”. Se essas tendências continuarem, podemos esperar ver mais erosão e declínio do cristianismo nesta parte do mundo, pelas razões descritas acima.

Uma história semelhante pode ser vista do outro lado do Atlântico. O cristianismo nos Estados Unidos, e em particular o movimento evangélico, está hoje em uma encruzilhada muito precária.

Embora os Estados Unidos, ao contrário de seus pares europeus, não tenham um apoio oficial do Estado à religião, isso não significa que o cristianismo não se enredou com o Estado. À medida que o cristianismo fica cada vez mais entrelaçado com a política partidária, os Estados Unidos estão passando por um declínio simultâneo da religiosidade que já dura décadas — uma tendência confirmada por vários estudos acadêmicos.

Nos últimos 30 anos, os Estados Unidos testemunharam um aumento acentuado no número de americanos não filiados à religião alguma, de 6% em 1991 para 23% hoje, mesmo que a população americana como um todo tenha tido um crescimento significativo durante esse período. Nosso argumento sugere que esse aumento no número de não filiados à religião se deve, em parte, às tentativas dos cristãos de obter o favor do Estado (e às vezes de recebê-lo).

Os cristãos conservadores inicialmente se envolveram na política, na década de 1970, como uma forma de lutar contra a erosão dos “valores cristãos” na sociedade e “levar a América de volta para Deus”. Para tanto, eles se envolveram em políticas partidárias.

O entrelaçamento de religião e política dessa forma, no entanto, afastou do cristianismo pessoas que veem o cristianismo como uma fé que apoia certo tipo de política da qual discordam pessoalmente. Como resultado, o cristianismo politizado consegue atrair um grupo cada vez mais restrito de indivíduos, ao mesmo tempo em que afasta liberais e moderados da igreja.

A sacralização da política sugere que os Estados Unidos podem estar trilhando o mesmo caminho para o declínio que seus pares europeus. A boa notícia para os cristãos que estão preocupados é que, se nossa pesquisa e análise estiverem corretas, pode ser possível reverter essas tendências em direção à secularização.

Isso exigiria que as instituições ligadas à fé evitassem a tentação do privilégio [estatal] e não considerassem a concorrência religiosa como uma ameaça a ser eliminada. Tal abordagem não exigiria que os cristãos se afastassem da vida pública nem que abandonassem totalmente a política; no entanto, ela alertaria enfaticamente os cristãos contra a atitude de equiparar qualquer partido político, ideologia política ou mesmo nação com os planos de Deus.

Nossa pesquisa sugere que a melhor maneira para as comunidades cristãs recuperarem seu testemunho do evangelho é rejeitando a busca por privilégios políticos como algo inconsistente com os ensinamentos de Jesus. Ao fazer isso, eles mostrariam que levam a sério a promessa de Cristo de que nenhuma força será capaz de prevalecer contra a sua igreja. Rejeitar privilégios também tornará os crentes mais dependentes do Espírito Santo na tarefa de abrir corações à mensagem do evangelho.

Nilay Saiya é professor assistente de políticas públicas e assuntos globais na Universidade Tecnológica de Nanyang, em Cingapura. Ele é autor de Weapon of Peace: How Religious Liberty Combats Terrorism (Cambridge University Press, 2018).

Speaking Out é uma coluna da Christianity Today em que autores convidados manifestam sua opinião sobre determinado assunto, a qual não necessariamente representa a opinião da revista.

Correção: uma versão anterior deste artigo afirmava equivocadamente que o rei sueco continua a ser o chefe da Igreja da Suécia e indica os bispos. A igreja e o Estado se separaram em 2000.

Metodologia: Nosso índice de taxa de crescimento cristão foi obtido do Projeto Global de Futuros Religiosos Pew-Templeton, enquanto nosso índice de favoritismo ou discriminação do Estado contra o cristianismo foi obtido do Projeto Religião e Estado. Os dados econômicos e populacionais foram obtidos dos Indicadores de Desenvolvimento Mundial do Banco Mundial.

Traduzido por: Mariana Albuquerque

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A COVID-19 traz sofrimento. Mas a Bíblia traz esperança.

Novo estudo de Harvard mostra forte correlação entre a leitura das Escrituras e índices de prosperidade humana.

Christianity Today May 25, 2021
Illustration by Keith Negley

Em tempos de provações e problemas, muitos americanos recorrem à Bíblia em busca de encorajamento. E com razão, de acordo com um novo estudo. Em meio a uma pandemia global, uma eleição contenciosa e agitação social, a American Bible Society (ABS), com a ajuda do Programa de Prosperidade Humana da Universidade de Harvard, encontrou uma forte correlação entre a leitura das Escrituras e a esperança.

Os leitores frequentes da Bíblia foram avaliados 33 pontos mais esperançosos do que os leitores que não leem as Escrituras com regularidade, em duas pesquisas com mais de mil pessoas, feitas com seis meses de intervalo. O estudo também descobriu que as pessoas ficam mais esperançosas quando leem as Escrituras com mais frequência .

Em uma escala de 1 a 100, com 100 sendo o mais esperançoso que há, os americanos que relatam ler a Bíblia três ou quatro vezes por ano pontuaram 42; as pessoas que leem mensalmente pontuaram 59; semanalmente, 66; e várias vezes por semana, 75.

Pessoas que nunca leram a Bíblia são pouca coisa mais esperançosas do que aquelas que raramente a leem, de acordo com o estudo. Mas as pessoas que não leem a Bíblia são cerca de 5 pontos menos esperançosas do que aquelas que leem as Escrituras mensalmente.

A leitura da Bíblia — em conjunto com outras formas de vida em comunidade e discipulado, como frequentar a igreja ou participar de um pequeno grupo — parece contribuir para a sensação de bem-estar e felicidade das pessoas, disse Tyler VanderWeele, diretor do Programa de Prosperidade Humana da Escola de Saúde Pública T.H Chan, da Universidade de Harvard.

“As igrejas têm um papel importante e profundo na contribuição para o bem-estar das pessoas em geral, especialmente durante tempos como este”, disse ele.

Essas descobertas são consistentes com outros estudos sobre o impacto da filiação religiosa para a prosperidade humana, de acordo com VanderWeele. As pessoas que frequentam a igreja e leem a Bíblia tendem a ser mais felizes, têm menos probabilidade de cometer suicídio e têm maior senso de propósito na vida.

Este estudo de duas fases é algo sem igual, pois avaliou pessoas antes e depois que a pandemia de coronavírus atingiu os Estados Unidos. A primeira pesquisa foi feita em janeiro e a segunda, em junho, quando o número total de casos confirmados passava de 2,5 milhões e a Organização Mundial da Saúde contabilizava mais de 125 mil mortes de cidadãos americanos.

Uma pesquisa que destacasse o impacto da COVID-19 não era o plano original, disse John Plake, diretor de inteligência ministerial da ABS. Contudo, os pesquisadores reconheceram que, mesmo com todas as coisas ruins trazidas pela pandemia, eles foram presenteados com essa oportunidade.

Em janeiro de 2020, Plake e seus colegas da American Bible Society decidiram expandir o número de perguntas que faziam em sua 10ª pesquisa anual sobre o Estado dos estudos bíblicos. Eles estavam pensando em termos de um índice de prosperidade humana desenvolvido em Harvard, e decidiram incluir algumas perguntas sobre segurança, felicidade e saúde mental no estudo sobre o uso da Bíblia.

Eles coletaram informações de mais de mil pessoas e começaram a processá-las, como fizeram nos anos anteriores.

Antes de terminarem, os casos de COVID-19 começaram a disparar. O vírus se espalhou tão rápido que foi considerado uma pandemia, a National Basketball Association (NBA) suspendeu sua temporada, o presidente Donald Trump declarou estado de emergência nacional e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças pediram às pessoas que não se reunissem em grandes grupos.

Os pesquisadores da ABS, prestes a publicar seu estudo sobre o uso da Bíblia, mudaram de ideia: e se, em vez de divulgar seus novos dados na semana da Páscoa, eles os retivessem e fizessem uma segunda pesquisa? Eles poderiam obter uma visão crítica de como uma crise nacional afeta a maneira como as pessoas se envolvem com a Bíblia — e como o envolvimento com a Bíblia afeta as pessoas em tempos de crise.

Os pesquisadores logo perceberam que, uma vez que usaram os índices de prosperidade humana no estudo de janeiro, eles tinham inadvertidamente estabelecido um ponto de comparação para medir como as pessoas estavam se saindo durante a COVID-19.

VanderWeele participou desse estudo. Ele disse que o estudo é importante porque ajuda a revelar o número de vítimas da pandemia de COVID-19 e os lockdowns correlacionados — algo que não pode ser medido por dados do mercado de ações ou pelo produto interno bruto. O Human Flourishing Program fez parceria com a ABS para o segundo estudo, realizado em junho.

As descobertas foram publicadas em outubro no Journal of General Internal Medicine em um relatório feito em coautoria por VanderWeele, Plake, Jeffery Fulks da ABS e Matthew Lee de Harvard. O relatório intitulado “Índices nacionais de bem-estar, antes e durante a pandemia de COVID-19, em amostras on-line” mostra que questões como felicidade e satisfação com a vida, saúde mental e física, sensos de significado e propósito, bem como estabilidade financeira e material diminuíram drasticamente entre janeiro e junho. O vírus assolou o país e as paralisações afetaram a economia e isolaram as pessoas em suas casas.

O estudo em sua maior parte confirma o que todos sabem. A estabilidade financeira e material, como era de se esperar, foi o golpe mais pesado para muitas pessoas, caindo 16,7%. VanderWeele observa, porém, que os dados mostraram uma grande variação no impacto econômico. Algumas pessoas não perderam seus empregos e economizaram, por ficar em casa, o que as deixou em uma condição financeira relativamente melhor, enquanto outras sofreram muito com a paralisação da economia.

A felicidade e a satisfação com a vida caíram 9,6% entre os entrevistados, e a saúde mental e física diminuiu 7,4%.

O estudo também descobriu que a conexão social não diminuiu tanto quanto se poderia esperar. Isso pode ser porque, embora muitas pessoas estivessem em isolamento social, elas construíram relacionamentos mais próximos com aqueles que estavam em seus círculos imediatos.

A própria família de VanderWeele passou mais tempo junto e seus filhos começaram a se comunicar com os avós regularmente pela Internet.

“Acho que esse tempo mostrou-se um período de reflexão sobre o que realmente importa na vida”, disse VanderWeele. “De uma perspectiva cristã, muitas vezes crescemos por meio do sofrimento."

Mas o dado mais interessante, do ponto de vista da ABS, foi como a Bíblia, a igreja e as disciplinas cristãs pareceram ajudar as pessoas neste período sombrio. Esses dados mostraram que o declínio nos índices de prosperidade humana foi menos pronunciado entre pessoas que liam a Bíblia regularmente e participavam de uma igreja, seja presencialmente ou via on-line.

O envolvimento com as Escrituras parece ter atingido o pico logo após o início da COVID-19 — tendo sido o mais alto em anos —, mas depois caiu significativamente no final de junho. Essa é uma tendência comum quando as pessoas passam por traumas, de acordo com Scott Ross, que trabalha na ABS, com igrejas, a questão da cura de traumas. Embora muitos se voltem para a Bíblia em busca de respostas em tempos difíceis, em geral param de ler com tanta regularidade depois de um tempo. O que está acontecendo agora parece ser uma resposta de toda a sociedade ao trauma, de certa forma.

Mas a evidência mostra que os americanos que se envolvem ativamente com a Bíblia e no culto comunitário têm uma pontuação mais alta em todos os índices de prosperidade humana, inclusive melhor saúde física e mental e um senso mais profundo de caráter e virtude. Eles têm até um sensação maior de estabilidade financeira e material em comparação com aqueles que não frequentam igrejas nem se envolvem com a Bíblia.

Os cristãos também são consideravelmente mais esperançosos. Numa escala de 1 a 100, os não-cristãos pontuaram cerca de 50, os cristãos não praticantes pontuaram 57 e os cristãos que participam regularmente da vida de uma congregação local pontuaram 66.

A conexão é apenas uma correlação. Os pesquisadores não demonstraram que a leitura da Bíblia ou o culto cristão causam prosperidade humana, mas apenas que as duas coisas acontecem de maneiras correlacionadas. No entanto, eles pensam que os dados dão uma ideia melhor de como é uma sociedade saudável, bem como dão às pessoas razões de cunho prático e social para encorajar a participação na igreja e o estudo da Bíblia.

“Acho que a pesquisa sobre o Estado dos estudos bíblicos me mostrou empiricamente tudo o que eu sabia intuitiva e existencialmente”, disse Ross.

Ele acredita que as igrejas podem usar essa informação para fazer a diferença em como ministram às pessoas.

“O que estamos vendo é que, à medida que as pessoas simplesmente recebem uma oportunidade de compartilhar e ouvir umas às outras, bem como de processar e se envolver com as Escrituras em grupo, podemos observar que os sintomas de trauma diminuem.”

Adam MacInnis é jornalista e vive em Nova Scotia, no Canadá.

Traduzido por: Mariana Albuquerque

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Ainda devemos ser chamados de “evangélicos”?

Talvez haja um termo melhor, em nossos tempos polarizados e politizados.

Christianity Today May 10, 2021
Pearl / Lightstock / Edits by Rick Szuecs

Será que existe uma palavra melhor para descrever os cristãos que defendem a autoridade da Bíblia em todas as questões de fé e prática?

Talvez seja hora de um novo termo para captar a autocompreensão dos cristãos, um substantivo diferente, que abranja todos os crentes e seguidores de Jesus, no qual todas as teologias e denominações evangélicas poderiam confortavelmente se enxergar. Será que um novo substantivo plural pode nos libertar de tipificações negativas no ambiente cultural em que vivemos?

Vocês me permitem recomendar uma palavra que os evangélicos não podem recusar, se formos sérios como cristãos e ainda quisermos dar e fazer sentido para o mundo em que vivemos — e também alcançar pessoas com a mensagem de salvação eterna de Jesus? Um substantivo difícil de rejeitar, enquanto buscamos consistência na crença e a autenticidade no comportamento?

Tendo celebrado o 500º aniversário da Reforma não muito tempo atrás,e a tradição de Lutero, um homem que não possuía autoridade mas sentiu a responsabilidade de desafiar as sensibilidades teológicas predominantes, que tal um novo substantivo? Proponho, então, o termo "bíblicos".

O substantivo "cristãos" carrega certa bagagem emocional fora do arco de abrangência do Atlântico Norte. Na Índia (minha terra natal), argumentos antigos e equivocados ainda geram uma antipatia conveniente para com os cristãos, vistos como ocidentais. O fato de o cristianismo não ter sido ocidental, desde a origem, e agora ter mais adeptos não ocidentais pode ajudar a recuperar a designação inicialmente dada aos crentes e seguidores de Jesus no Novo Testamento (At 11.26), mas ainda não chegamos lá.

O primeiro uso da palavra evangelium, por Martinho Lutero, no século 16, levou ao termo evangélico cem anos depois, durante o Grande Despertamento. Que termo sublime, transliterado de forma criativa e naturalmente adaptado a partir de uma palavra composta em grego (eu + angelion), tendo bondade e alegria como algo intrínseco a sua própria natureza. Tornou-se um termo de amplo uso nos Estados Unidos, nos anos de 1800, e em 1976 foi declarado “o Ano do Evangélico”. Embora carregado de conteúdo para pessoas que são da igreja, o substantivo era — e ainda é — menos ofensivo do que "cristão" para pessoas não cristãs, em grande parte do mundo. Na rua Villat, em Aleppo, na Síria, evangélico soa bonito para quem é novo nas igrejas e tem necessidades econômicas. A igreja evangélica, ali, é a única igreja conhecida por acolher todos a quem as demais rejeitam.

Ainda assim, nos Estados Unidos, o termo evangélicos foi contaminado por estereótipos cruéis — especialmente durante os períodos eleitorais recentes. Nosso hábito sociológico de rotular as pessoas — por geração (boomers ou millennials), convicção (calvinista ou arminiano) e cor (por exemplo, “vermelho e amarelo, preto e branco, todos são preciosos à sua vista”) — fixa na mente das pessoas significados não intencionais das palavras.

Já o termo "bíblicos" ainda não permite o apelo falacioso à emoção dos não evangélicos. É um conceito que não desperta visões competitivas contra um grupo eleitoral que parece ser de direita. Também consegue reunir as muitas correntes consonantes e dissonantes de cristãos evangélicos, e se aplica a todas as gerações, convicções e etnias que acreditam e seguem seu Senhor Jesus Cristo, no que diz respeito tanto à conversão pessoal quanto à expressão pública das convicções bíblicas.

O termo certamente requer ajustes de caráter pessoal e público. Deixe-me simplificar as compensações linguísticas com um gráfico:

Evangélicos vs bíblicos

Opções Prós Contras
Evangélicos
  1. Historicamente suficiente
  2. Teologicamente rico
  3. Tomado geograficamente (ou seja, onde a igreja de Cristo está crescendo)
  1. Incompreensão contemporânea
  2. Sociologicamente pobre
  3. Marginalizado onde a Igreja de Cristo está em declínio
Bíblicos
  1. Menos emocionalmente carregados (no momento)
  2. Naturalmente alinha os evangélicos
  3. Potencial razoável de aceitação
  1. Neologismo para acomodar o ambiente cultural
  2. Pode levar tempo para ficar de uso comum

Detesto pensar em perder a palavra "evangélico". Uma vez que se refere, essencialmente, àqueles que aceitam a pessoa, a obra e a missão de Jesus como o evangelho, o termo evangélico é o que sou em termos de identidade teológica. É também o que sou em termos de propósito pessoal — alguém que compartilha as boas-novas de Deus sobre a salvação eterna, assegurada no Senhor Jesus, que a oferece a toda a humanidade. Eu sou um cristão evangélico.

Ao mesmo tempo, detesto continuar usando esse termo nos Estados Unidos, minha terra por adoção. Um sentimento míope vem crescendo no país, por várias décadas. Evangélico passou a significar muito do que não é. Essa saudável descrição de cristãos que creem na Bíblia (mas não usam a Bíblia para agredir) é definida politicamente como antipovo, antiprogresso, anticiência e assim por diante. Vários setores da população se tornaram antievangélicos, na medida em que os evangélicos são acusados de ser contra tudo.

Poderíamos abolir o substantivo "evangélicos" nos Estados Unidos altamente politizados, onde a frequência à igreja estagnou. E ainda poderíamos reter sua maravilha e verdade no restante do mundo, onde a igreja está se multiplicando — e onde os crentes têm poucas restrições sobre o conteúdo e a expectativa bíblica do termo.

Talvez usar o termo "bíblico" permita a autoidentificação sem constrangimento nem mal-entendidos. Isso poderia gerar confiança entre os seguidores, sem o receio de que a mídia empregue argumentos estereotipados ou informações falhas a seu respeito. Poderíamos ter a esperança de que esse termo subsistisse por, pelo menos, algumas décadas — ou mais.

Talvez o termo evangélicos sobreviva ao uso indevido e à percepção equivocada para quem sabe, no futuro, nos levar de volta à extensão original do significado do conceito. Pois, então, poderíamos nos distanciar dos evangélicos políticos e nos tornarmos, redundantemente, evangélicos bíblicos. E, eventualmente, conforme se fizer necessário, cortaremos essa palavra mal-interpretada do conceito principal e simplesmente seremos chamados de bíblicos. Enquanto o substantivo "evangélico" é usado para se referir a uma pessoa específica, "bíblico" ainda é estritamente um adjetivo. Mas podemos ser chamados coletivamente de "bíblicos". Este substantivo, como outros substantivos sagazes, desencoraja o uso de um epíteto singular, pelo menos por enquanto. Ele poderia ajudar a esclarecer para todos que, entre os bíblicos, há muitos evangélicos de convicções compatíveis, embora diferentes. Vai levar algum tempo para que as pessoas se acostumem, como ocorre com a maioria dos adjetivos transformados em substantivos. Se Deus quiser, não levará mais 500 anos.

Um pós-escrito para amigos (não inimigos) do termo evangélicos, que sejam comprometidos em acreditar no evangelho, amar Jesus e seguir a Bíblia: o que você acha? Devemos apenas esperar sem fazer nada a respeito? Aguardo seus insights e suas opiniões em ramesh@rreach.org.

Ramesh Richard atua como presidente do RREACH, ministério de proclamação global, e professor de engajamento teológico global e ministérios pastorais no Seminário Teológico de Dallas.

Traduzido por Maurício Zágari

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