Uma justiça bastante demorada

É hora de a igreja se redimir do pecado racial.

Christianity Today June 17, 2020
Jeremy Cowart

“Da terra o sangue do seu irmão está clamando por mim.” (Gênesis 4.10)

Nós, da Christianity Today, amamos profundamente a igreja. Servir a noiva de Cristo, aumentar seu amor por Deus e contar a história de seu trabalho redentor e transformador no mundo é o cerne do que fazemos. Nós não nos alegramos com os seus pecados ao longo da história. Porém, não podemos amar bem nossos irmãos e irmãs se não pudermos contar a verdadeira história deles. E não podemos contá-la se não pudermos confessar nossa participação nela. A Bíblia é honesta sobre as falhas, mesmo das pessoas mais notáveis. E devemos seguir seu exemplo.

Dois pecados originais atormentaram esta nação desde o seu início: a destruição de seus habitantes nativos e a instituição da escravidão. Ambos nasceram do fracasso em ver a pessoa de outra raça como um igual. Como o bispo Claude Alexander disse, o racismo estava no líquido amniótico do qual nossa nação nasceu. Havia um vírus presente no próprio ambiente que alimentava o desenvolvimento de nosso país, nossa cultura e nosso povo. O vírus do racismo infectou a igreja, a Constituição e as leis, as atitudes e as ideologias. Nós nunca o derrotamos completamente.

Os primeiros escravos chegaram à costa do nosso país antes dos peregrinos, antes de haver Massachusetts ou Connecticut. A escravidão havia sido estabelecida havia 113 anos quando George Washington nasceu e 157 anos quando a Declaração de Independência foi escrita. Nove de nossos primeiros presidentes eram proprietários de escravos. Escravidão significou que maridos e esposas, pais e filhos foram violentamente separados e nunca mais se encontraram. Significou que homens brancos estupraram repetidamente centenas de milhares de meninas e mulheres negras. "American Slavery As It Is" [A escravidão americana como ela é], publicado em 1839, com amplas informações de Theodore Weld e Angelina Grimké, diz que os escravos:

são frequentemente açoitados com terrível gravidade, têm pimenta vermelha esfregada em sua carne lacerada, além de salmoura quente, aguarrás e outros produtos derramados sobre os cortes a fim de aumentar a tortura; muitas vezes são despidos e têm costas e membros cortados com facas, machucados e mutilados por dezenas e centenas de golpes […] são frequentemente caçados com cães raivosos, abatidos como animais selvagens ou despedaçados por cães; são frequentemente suspensos pelos braços e açoitados e espancados até desmaiar e, quando voltam a si, são espancados novamente até desmaiar e, às vezes, até morrer; têm as orelhas frequentemente cortadas, os olhos arrancados, os ossos quebrados, a carne marcada com ferros em brasa; são mutilados e queimados até a morte com fogo.

Esta é a instituição que permaneceu em solo americano por quase 250 anos. Estremecemos quando pensamos não apenas no tormento físico, mas no sofrimento social. No sentimento de humilhação e abandono, uma vez que a sociedade branca ao redor dos escravos era frequentemente surda aos seus gritos e não os via como humanos e dignos de amor. E imaginamos a profunda ferida que essa dor deixou na consciência coletiva de um povo. A escravidão na economia pré-guerra era um dos motores mais poderosos na criação de riqueza na história de nosso povo. Ela gerou capital econômico e cultural que fluía rio abaixo para comunidades ricas, além de oportunidades de trabalho e investimento. Fomentou também instituições educacionais que apoiavam pesquisa, inovação e qualidade de vida. No entanto, deixou os negros americanos totalmente devastados.

Apenas cerca de 42% dos cristãos brancos acreditam que a história da escravidão continua a impactar os negros americanos hoje. No entanto, a escravidão era sintoma do vírus, não o próprio vírus. Mesmo após a abolição da escravatura, a ideologia que havia apoiado e sido formada em torno da escravidão perdurou. O sintoma passou. O vírus persistiu por mutação.

O colapso da reconstrução e a ascensão de Jim Crow impuseram a segregação racial e a opressão no Sul até 1965. Como os proprietários das plantações ainda precisavam de mão-de-obra barata, após a Guerra Civil, eles exploravam seus agricultores meeiros e arrendatários e os tratavam com tanta brutalidade quanto antes. Os linchamentos aterrorizaram as famílias negras e impuseram um regime de dominação e controle, enquanto os legisladores do sul encontraram formas cada vez mais criativas de impedir que os negros votassem ou defendessem a si mesmos e suas propriedades. Também no Norte, especialmente quando um grande número de negros fugiu da opressão do Sul e procurou trabalho em fábricas nas cidades, a discriminação sistemática nos mercados habitacional e de trabalho tornou praticamente impossível para os negros americanos financiar a compra de casas e construir riqueza geracional.

Muitas políticas progressistas apenas aprofundaram a divisão social e econômica entre negros e brancos. As leis de previdência social na era do New Deal excluíram efetivamente a maioria dos negros da assistência federal à aposentadoria, e o plano GI Bill para veteranos da Segunda Guerra era completamente ineficaz no apoio à compra de casas. Só funcionava bem no financiamento da educação universitária para veteranos negros que retornavam da guerra. Por uma questão de política e preconceito, os negros foram forçados a viver em bairros de pobreza cada vez maior e pouquíssimos conseguiram sair deles. Os jovens que cresceram perto da violência criminal, cercados por desemprego, desagregação familiar, vícios e desespero, não conseguiram garantir uma educação de qualidade, um lar ou uma oportunidade justa no mercado de trabalho. Tudo isso sem contar com o colapso do sistema de justiça criminal americano na segunda metade do século 20, que levou ao encarceramento excessivo e a confrontos cada vez mais violentos entre os agentes da lei e as comunidades a que servem.

Outros contaram essa história com mais detalhes. Acreditamos que é importante continuar tratando do assunto nas páginas da Christianity Today. O resultado dessa história é uma lacuna catastrófica: o patrimônio líquido médio das famílias negras nos Estados Unidos hoje é um décimo do patrimônio líquido médio das famílias brancas. Das crianças negras nascidas entre 1955 e 1970, 62% foram criadas em bairros pobres, em comparação com 4% das crianças brancas. Os resultados para a geração nascida entre 1985 e 2000 foram ainda piores, com 66% das crianças negras criadas em bairros pobres, em comparação com 6% das crianças brancas.

A única maneira de explicar essa história é a persistência do preconceito racial e sua consagração no aparato do governo. Permita-me pegar emprestado (mas usar de uma maneira diferente) uma metáfora da professora e pesquisadora Wendy Doniger. Dois exploradores entram em uma caverna cheia das teias de aranha muito bem elaboradas. Um deles não consegue localizar nenhuma aranha e, por isso, se recusa a acreditar que ela existe. Veja as teias, diz o outro. A aranha está implícita. O preconceito racial é a aranha implícita que tece a teia de políticas, práticas, desigualdades e abusos que tem oprimido os negros americanos por quatrocentos anos.

Que papel a igreja desempenhou?

Certamente, alguns cristãos brancos se esforçaram bastante e se arriscaram muito para abolir a escravidão, e muitos derramaram sangue na guerra que emancipou escravos nos estados do Sul. Corretamente interpretada, a Bíblia, que está no centro da igreja, tem sido uma força enorme, não apenas para a redenção dos pecadores, mas também para o avanço da justiça e da misericórdia. Mas as exceções eram muito poucas. Uma enorme quantidade de comunidades cristãs, incluindo evangélicas, ficou calada diante da escravidão ou até foi cúmplice dela.

De fato, cumplicidade não é um termo suficientemente forte. Muito embora nos entristeça como pessoas que amam a igreja, pode ser que o pecado mais monstruoso da igreja dos brancos nos Estados Unidos tenha moldado uma teologia da superioridade racial, para legitimar e até incentivar a instituição da escravatura. A escravidão não era apenas permitida, argumentavam muitos cristãos brancos, mas benéfica, na medida em que levava o evangelho e a cultura para um povo que era considerado primitivo e ignorante. Mesmo às vésperas da Guerra Civil, os pregadores estimularam a causa separatista, argumentando que fazia parte da “confiança na providência” de Deus nos estados do Sul “conservar e perpetuar a instituição da escravidão doméstica como ela existe agora”. Se Deus ordenou a hierarquia racial, quem éramos nós para derrubá-la?

Muitos dos mesmos ministros que defenderam a escravidão no Sul pré-guerra também defenderam os sistemas racistas que se seguiram após a Guerra Civil. Muitas denominações protestantes se dividiram quando seus ramos do Sul defenderam a escravidão e a supremacia branca, antes e depois da guerra. Ministros cristãos e líderes leigos participaram de linchamentos, da Ku Klux Klan e da defesa da segregação. Embora um número crescente de evangélicos tenha vindo a apoiar o movimento dos direitos civis, muitos evangélicos, com nossas fortes crenças no individualismo, estavam mal equipados para reconhecer e desmantelar as maneiras pelas quais as desigualdades raciais haviam sido sistematizadas no governo e no mercado.

Mesmo depois que a instituição escravocrata foi enfraquecida, a teologia permaneceu. Ela pronunciou a aprovação divina sobre o viés racial e racionalizou inúmeros meios de impor preconceitos contra os negros americanos. Bryan Stevenson explica isso bem: “O grande mal da escravidão americana não era a servidão involuntária; era a ficção de que os negros não são tão bons quanto os brancos, não são iguais aos brancos e são menos evoluídos, menos humanos, menos capazes, menos dignos, menos merecedores do que os brancos”. As igrejas brancas não eram apenas cúmplices na narrativa dessa ficção; elas a validaram em nome de Deus.

O nome Fálaris não é muito lembrado no século 21, mas, na antiguidade clássica, era infame. Tirano de Agrigentum, na ilha da Sicília, Fálaris é conhecido por ter implementado um terrível instrumento de tortura: um enorme touro de bronze, oco por dentro, sob o qual acendiam uma fogueira. Enquanto as vítimas eram forçadas a entrar no touro para serem assadas vivas, as narinas do touro transformavam os gritos dos moribundos em um gemido sonoro que enchia o palácio de música. Você pode ser convidado para uma festa, sem saber que seu entretenimento é fruto da agonia de outras pessoas.

As gerações de hoje podem dizer que não inventamos o touro da injustiça racial. Mas nós nos beneficiamos dele. A resiliência, a criatividade, a capacidade laboral e a fé indomável dos negos americanos, apesar de tudo o que sofreram, é milagrosa. Todos nós nos beneficiamos não apenas de seu trabalho, mas também de suas inovações e seu empreendedorismo, de sua arte e música, de seus filmes, poesias e livros, de seus hinos e pregações. A transformação do sofrimento negro em abundância econômica para os Estados Unidos, assim como seu brilhantismo, arte e paixão, enriqueceu nosso banquete no palácio. Talvez possamos dizer honestamente que não sabíamos o que nossos irmãos e irmãs estavam sofrendo. Agora nós sabemos. Portanto, há apenas uma coisa a fazer: mudar de atitude e tirar nossos irmãos e irmãs da barriga do touro.

Essas são realidades dolorosas em um mundo complexo. Os Estados Unidos têm sido uma força extraordinária para o bem, um poderoso defensor da democracia, dos direitos humanos e das oportunidades econômicas. Os ideais que o país defende tiraram centenas de milhões da pobreza e da opressão. Suas tecnologias, inovações e arte mudaram a vida de praticamente todas as pessoas no planeta. Da mesma forma, a igreja americana avançou a causa do evangelho de Jesus Cristo de inúmeras maneiras, desde o envio de missionários até a tradução da Bíblia, passando pelo apoio e pela equipe de ministérios que levam luz e vida a todos os cantos do mundo. E, no entanto, historicamente, e com frequência, o evangelicalismo americano tem permanecido silenciado, sendo cúmplice ou apologista da desigualdade racial. Como Alexander Solzhenitsyn escreveu: “A linha que separa o bem e o mal não passa pelos estados, nem pelas classes, nem pelos partidos políticos, mas, diretamente por todo coração humano, e por todos os corações humanos”.

E como devemos responder a tudo isso?

Duas narrativas bíblicas têm estado em nossa mente. A primeira (de Atos 10) diz respeito ao apóstolo Pedro, que acredita que, como judeu, ele não deve se associar com pessoas de outras nações. Judeus e gentios, ele pensa, devem permanecer divididos. No entanto, Deus lhe mostra, em uma visão, que ele não deve chamar de impuro o que Deus purificou. Pedro vai para a casa de um gentio chamado Cornélio, prega o evangelho e o Espírito Santo vem sobre as pessoas. Este é um momento decisivo na propagação do evangelho a não judeus, quando Pedro reconhece que o que ele achava justo era, na realidade, injusto.

Da mesma forma, é hora de os evangélicos brancos confessarem que não enxergamos o pecado do racismo com a gravidade e a seriedade que ele merece. A profunda tristeza e ira pela morte de George Floyd é mais que brutalidade policial. É sobre uma sociedade e uma cultura que permitiram o abuso e a opressão dos negros repetidas vezes. Fizemos parte dessa sociedade e cultura e, às vezes, fomos os últimos a ingressar na luta pela justiça racial. O histórico da Christianity Today a respeito desse assunto é misto. Os neo-evangélicos em geral acreditavam que era suficiente pregar a mensagem da salvação e confiar que a justiça surgiria naturalmente. Isso não aconteceu. O que pensávamos ser justo era injusto. Nos arrependemos do nosso pecado.

Mas esse arrependimento não é suficiente. A outra narrativa bíblica que vem à mente é a história de um coletor de impostos de Jericó. Zaqueu era um colaborador da autoridade romana dominante e, ao impor taxas extorsivas, ele saqueou a riqueza de seus vizinhos e enriqueceu. Jesus o encontrou e chocou a multidão ao seguir para sua casa. A salvação chegou à casa de Zaqueu naquele dia. Ele proclamou: “Olha, Senhor! Aqui e agora dou metade dos meus bens aos pobres, e se enganei alguém com alguma coisa, devolverei quatro vezes a quantia” (Lucas 19.8).

Zaqueu não havia idealizado pessoalmente o sistema injusto de tributação romana. Mas ele também não o havia denunciado; antes, havia participado e lucrado com ele. Então, Zaqueu não se arrependeu apenas de seus caminhos; ele fez restituição. Ele montou o que poderíamos chamar de “fundo Zaqueu” para restaurar o que pertencia a seus vizinhos. Estamos dispostos a fazer o mesmo? As vidas dos negros são importantes. Elas são tão importantes que Jesus sacrificou tudo por elas. Também estamos dispostos a sacrificar?

Os Estados Unidos talvez não estejam prontos para fazer reparações. Mas a história da injustiça racial exige resposta pessoal e corporativa. Talvez a igreja possa liderar o caminho da restituição bíblica. Estou ciente de um “fundo Zaqueu” em Atlanta, pelo qual os cristãos que acreditam que os negros americanos foram submetidos a quatro séculos de injustiça e roubo estão começando a fazer sua humilde parte para fazer a coisa certa. Um comitê majoritariamente de negros designa os fundos para apoiar seus líderes em ascensão na igreja e no mercado de trabalho. Ainda não será suficiente, mas será alguma coisa. E se houvesse "fundos Zaqueu" em todas as cidades e os crentes doassem sacrificialmente, para que nossos irmãos e irmãs pudessem ser restaurados e nossos vizinhos pudessem ver mais uma vez o amor cristão que venceu o mundo?

Temos esperança. Cremos no Deus que traz a cura onde há quebrantamento e que traz vida onde há morte. Acreditamos que o amor é mais forte que a morte. Temos servido em igrejas de todas as cores e temos visto o Espírito de Jesus em ação.

A noiva de Cristo é linda. Ela pode superar esta praga. Vamos todos fazer a nossa parte.

Timothy Dalrymple é presidente e CEO da Christianity Today.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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