Culture

O sucesso de Barbie e Taylor Swift revela algo surpreendente

Mais do que roupas rosa e joias, mostra nossa busca por um senso de comunidade e alegria coletiva.

Taylor Swift (esquerda) e Barbie (direita)

Taylor Swift (esquerda) e Barbie (direita)

Christianity Today August 25, 2023
Edits by CT / Swift: John Medina / Stringer / Getty / Barbie: Courtesy of Warner Bros. Pictures

A “trifeta épica” com a Barbie, de Greta Gerwig, a turnê Renaissance, de Beyoncé e a turnê Eras, de Taylor Swift (todas arrecadando milhões de dólares) está tomando conta da mídia social — até mesmo com mulheres adultas revivendo sua juventude em um “Tween Girl Summer”.

Mas o entusiasmo e a participação não são menores entre o público jovem de fato.

Tanto meu filho de 18 anos quanto minha filha de 16 anos — apesar de nunca terem brincado com Barbies quando crianças e de estarem no extremo mais jovem da faixa etária de fãs da Taylor Swift — estão participando desses eventos.

Está sendo travado um diálogo cultural aqui sobre o “poder de compra das mulheres” e o “dólar feminino”, e há muito a ser dito sobre isso: Barbie, Swift e Beyoncé são enormes sucessos em termos de capital.

O filme Barbie e a turnê Eras de Swift, em particular, abrem um diálogo sobre o que Michelle Goldberg , no The New York Times, chama de “entretenimento que canaliza o anseio feminino”, despertando uma “mudança sísmica para as mulheres” ao “ajudá-l as a recuperarem os tempos de menina sem abrir mão do poder”.

Esses artefatos culturais fazem uso das ambiguidades da experiência feminina, celebrando o feminino ao mesmo tempo em que abordam, de forma honesta, as dificuldades de ser mulher em um mundo voltado para o sexo masculino. E, certamente, esses eventos são ocasiões para as mulheres curtirem tudo isso juntas.

Para mim, porém, quando tento enxergar este verão pelos olhos dos meus filhos, mais do que os dólares e o “anseio”, o que vejo é esse estar “juntos”e esperança.

A pandemia interrompeu a vida deles em um ponto crucial do seu desenvolvimento. Para essa geração, quase não há um “antes” da pandemia em sua adolescência — há apenas esse recém-inaugurado depois. E o que dizer se, nessa onda, o que meus filhos quiserem for um senso de comunidade — do tipo que deveria ser a marca de nossas igrejas locais?

Como apontou Justine McDaniel, o “verão Barbie-Taylor-Beyoncé oferece uma liberação das emoções pandêmicas” — e revela uma fome, segundo Goldberg, que é “um anseio palpável por deleite comunitário e catarse”.

Hoje, há versões na igreja desse mesmo tipo de experiência musical que nos transporta e que é vivida por aqueles que assistem a shows como o de Taylor Swift — onde todos estão de pé, alguns com as mãos levantadas, outros com lágrimas no rosto. Muitos cristãos se mostram cínicos em relação a isso, mas os espectadores do show da Taylor Swift e do filme Barbie não são.

Experiências comunitárias impactantes podem ser manipuladas, mas não precisam ser manipulação. Quando uma música ou um filme diz a verdade, pode ser uma experiência alegre e até mesma transformadora.

Como Russell Moore escreveu recentemente, em resposta ao ceticismo em torno das experiências de adoração emocionais, “a mudança transformadora acontece em um nível muito mais profundo do que o intelecto ou a força de vontade”.

E em um mundo que viveu poucos eventos culturais de massa desde a COVID-19, meus filhos estão curtindo assistir ao filme da Barbie com amigos e viver esse sentimento de união no show da Taylor Swift. Eles estão curtindo se reunir para esses eventos e participar dessas celebrações femininas do que significa sermos humanos em conjunto.

Os cinemas estão cheios de famílias e de grupos de amigos, vestidos de rosa e rindo juntos; os maiores estádios do país estão lotados com apenas uma pequena fatia daqueles que teriam vindo para ver a apresentação de Swift, se houvesse mais ingressos disponíveis.

Taylor Swift está no topo das playlists tanto do meu filho quanto da minha filha. Quando a turnê deste verão foi anunciada, nossa família passou vários dias angustiada, em bilheterias online, tentando conseguir a chance de comprar ingressos para a turnê Eras. Fracassamos, mas uma amiga gentil conseguiu dois ingressos e levou minha filha com ela para o show.

A era COVID teve um grande peso na adolescência dos meus filhos — eles trocaram a escola presencial por horas de aula pelo Zoom, saídas com amigos por mensagens de texto solitárias e a igreja por um serviço de streaming assistido no sofá. Todas essas mudanças ainda parecem presentes.

Agora eles têm fome de estar juntos. Estão ansiosos por eventos culturais compartilhados em grande escala e por usar roupas transadas em público.

Muitos em sua geração são cínicos, afetados pela pandemia e pela polarização cultural; portanto, talvez minha visão de como eles curtem o filme da Barbie e a Taylor Swift seja demasiadamente otimista. Quem sabe você me perdoará por ser tentada a esperar que seja precisamente essa experiência compartilhada de esperança em grupo o que os encanta.

Os jovens têm essa fome, mas não compactuam quando a igreja falha em dizer a verdade. Como Barbie e Swift, eles têm um olhar perspicaz e são bons em detectar um falso deus.

Sasha (Ariana Greenblatt) é a representante da geração deles no filme Barbie. Quando conhece Barbie (Margot Robbie), Sasha solta uma crítica adolescente severa, chamando Barbie de “fascista” e acusando-a de ser responsável por quase tudo de errado que acontece no mundo, especialmente tudo o que feito de errado em relação às mulheres.

Mas meus filhos parecem estar mais alinhados com a conversão de Sasha do que com sua denúncia — com a reconciliação dela com a mãe, bem como com uma versão ao estilo Barbie de celebrar o feminino.

“Gostei de como os Kens eram metáforas para as mulheres do mundo real”, disse meu filho.

E da minha filha eu escutei: “Não esperava que um filme da Barbie tratasse de um profundo sentido existencial.”

Meu filho não parece se incomodar com o lado feminino nesses eventos. Ele não está perdendo o sono com a suposta feminilização da cultura ou com a acusação de que o filme Barbie está rebaixando os homens. Ele nunca sequer ouviu falar da suposta feminilização da igreja, nem acho que chegou a cogitar que tal coisa possa ser uma ameaça para ele.

O que ele quer é estar com sua turma, ver um bom filme, ouvir boa música — ciente do que há de errado com este mundo, mas, talvez, esperando algo melhor.

Barbie é um filme cheio de temas teológicos e, embora eu não presuma conhecer sua fé, Swift expressou em público sua frustração com as formas como o cristianismo americano tem se associado à política partidária.

E esse “sentido existencial” que minha filha notou no filme Barbie é sobre o que significa ser humano, o que significa viver uma boa vida juntos. O mesmo vale para muitas das letras mais inteligentes de Swift e para os sentimentos intrinsecamente humanos que afloram, quando são cantadas em voz alta.

Minha filha, que às vezes é mais reservada, ficou em pé, cantando a plenos pulmões, durante as três horas que Swift esteve no palco. Ela escolheu sua roupa com meses de antecedência — como uma homenagem a Swift, uma forma inserir seu corpo dentro do evento. E tirou fotos que diz que “vai guardar para sempre”.

Ela passou de uma era escolar marcada pela COVID-19, em que almoçava em uma mesa vazia e solitária, para levantar a voz no Soldier Field, em Chicago, junto com outras 55 mil pessoas que sabiam cada palavra da letra de cada música.

É claro que ela quer essa experiência de corpo inteiro, comunal e extática.

Barbie e Swift falam desse viver juntos a experiência de vida corporificada. Barbie (isso é um spoiler do filme) deixa seu mundo de plástico para trás e, nas palavras de Amy Peeler em seu artigo para o Holy Post, “assume um corpo real, inclusive com órgãos sexuais, experimenta a ‘involução’ do corpo [de boneca] e se torna uma mulher mortal. Ela faz isso para experimentar a beleza mais profunda da imperfeição.”

Katelyn Beaty escreve que o filme é uma afirmação da personificação feminina: “É por meio de nossos corpos” que “experimentamos tanto a graça comum quanto a sobrenatural”.

Swift também expõe a seus fãs sua própria vida, enquanto canta sem reservas sobre emoções, relacionamentos e perdas. Nós, seres humanos, somos criaturas que vivem em um corpo e precisamos viver juntos essa vida no corpo.

E isso é o que a igreja é. É viver juntos a vida no corpo, com pessoas reunidas em torno daquele que é a verdade, que dá sentido à vida, que conhece os anseios da nossa carne porque se fez carne por nós.

Os jovens querem esse senso de comunidade. por isso, continuarei esperando — esperando que, talvez, o que eles da fato queiram seja o corpo de Cristo.

Beth Felker Jones é professora de teologia no Northern Seminary. Ela é autora de muitos livros e escreve regularmente para o Church Blogmatics.

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Tim Keller nos ensinou como viver e como morrer

Veja os 6 hinos que o pastor de Nova York escolheu para seu culto memorial.

Christianity Today August 24, 2023
Redux / José A. Alvarado Jr.

Era 3 de junho de 2020. O assunto do e-mail de Kathy Keller fez meu coração ficar pesado: “Tim está com câncer no pâncreas”. O diagnóstico foi de câncer no estágio IV. Com a terapia atual, a expectativa de vida é inferior a um ano. Não há estágio V. E assim começou uma jornada de três anos, que explorou a vanguarda da terapêutica oncológica experimental — mas, o que é mais importante, [também começou] a forma corajosa de enfrentar uma doença terminal, por um homem que tinha uma fé profunda.

Tim era meu amigo há uma década. Nos primeiros anos da BioLogos, ele concordou em promover encontros muito interessantes e produtivos em Nova York, nos quais ocorreram profundas discussões sobre a complementaridade entre ciência e fé cristã. Embora não concordássemos completamente em tudo, Tim se tornou meu mentor espiritual mais importante.

Mas agora eu estava em um papel diferente. Como médico-cientista e diretor dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), procurei ajudar Tim e Kathy a avaliar as opções de tratamento. Às vezes, a quimioterapia pode ajudar, nos casos de câncer de pâncreas, mas apenas por um tempo. No horizonte, no entanto, existem novas abordagens chamadas “oncologia de precisão” — que identificam as mutações únicas do DNA das células cancerígenas do paciente em detalhes requintados e, em seguida, ensinam o sistema imunológico do corpo do paciente a reconhecer os intrusos mascarados.

Tim e Kathy, sua parceira na vida, no amor e na fé, pesaram os prós e os contras e optaram por se inscrever em um ensaio clínico do NIH, que havia se mostrado promissor, a princípio, para câncer de mama e câncer de vesícula biliar, ambos em estágio avançado, mas para o qual havia até aquele momento uma experiência muito limitada em casos de câncer pancreático. Tim tinha plena cosnciência quanto à probabilidade dos beneficios, mas queria garantia de que, o que quer que acontecesse, a equipe de pesquisa médica aprenderia com isso e seria capaz de avançar no protocolo, para os próximos casos.

Essas garantias foram fornecidas, ele veio ao NIH para fazer uma cirurgia, a fim de extrair parte do tecido canceroso, de modo que suas mutações de DNA específicas e únicas pudessem ser identificadas. Algumas dessas proteínas adulteradas poderiam ser bons alvos para um sistema imunológico ativado, caso a terapia tradicional falhasse — o que quase certamente aconteceria.

Enquanto isso, uma alta dosagem de quimioterapia foi iniciada — semana sim, semana não. As semanas em que as drogas tóxicas eram administradas foram difíceis, mas nunca ouvi Tim reclamar. Nas semanas de recuperação, ele se dedicava intensamente a escrever, ensinar, liderar atividades de plantação de igrejas e aconselhar muitos que o procuravam em busca de consolo e conselho.

Com nove meses de tratamento, ele escreveu um artigo impactante no The Atlantic: “Cultivando minha diante da morte”. Em uma prosa profundamente honesta, ele descreveu a luta para aceitar a própria mortalidade. Tim descreveu as disciplinas que o conduziam por este vale sombrio, e o levavam a uma confiança maior do que jamais tivera na morte e na ressurreição de Jesus. Resumindo, ele escreveu: “Posso dizer com sinceridade, sem nenhum sentimentalismo ou exagero, que nunca estive tão feliz em minha vida, que nunca tive dias tão repletos de consolo. Mas é igualmente verdade que nunca tive tantos dias de luto.”

Kathy e Tim Keller recebendo um presente dos membros do clube do livro virtual de Tim.Courtesia de Francis Collins
Kathy e Tim Keller recebendo um presente dos membros do clube do livro virtual de Tim.

A quimioterapia funcionou melhor para Tim do que costuma funcionar em casos de câncer pancreático, proporcionando muitos meses de estabilização da doença. Mas, então, na primavera de 2022, as drogas pararam de funcionar e a besta foi libertada — dezenas de tumores hepáticos começaram a crescer rapidamente. A sobrevivência parecia ser estimada em apenas algumas semanas.

Tim e Kathy vieram ao NIH para o teste experimental de imunoterapia. Bilhões de suas próprias células imunológicas, isoladas dois anos antes e programadas para agir como pequenos “guerreiros ninja”, a fim de procurar e destruir as células cancerígenas, foram infundidas em seu corpo. A batalha foi travada. Foi dramático: por vários dias, cada parte do corpo de Tim foi devastada pelas consequências. Sofreu alucinações terríveis, mas nunca vacilou em sua determinação de seguir em frente.

Pouco a pouco, sua calma e gratidão características reapareceram. Quando começou a se recuperar, ele queria falar menos sobre câncer e mais sobre fé, amor, verdade e beleza — e sobre a profunda dor que sentia pelo estado da igreja cristã na América. Se você ainda não leu seu tratado sério e realista a esse respeito, “Declínio e Renovação da Igreja Americana,” disponível em GospelinLife.com, que foi escrito em meio ao seu tratamento do câncer, você encontrará lá um diagnóstico e um tratamento contundentes para os males atuais da igreja.

Estar com Tim Keller durante esse período foi um presente de profundo significado para todos nós que pudemos estar conectados com ele. Como médico do NIH, pude passar tempo em seu quarto. Tim, Kathy e eu tivemos discussões intensas sobre como nossa sociedade parece ter perdido sua âncora para a verdade que Jesus diz que nos libertará, e Tim me encorajou de forma veemente a fazer planos para escrever um livro sobre esse assunto. Eu disse a ele que era uma pena que ele teve de ter câncer para que eu pudesse aprender mais com ele.

Ele continuou a contribuir intensamente com grupos virtuais que se reuniam regularmente, e um grupo de amigos do clube do livro lhe enviou um presente especial, para lhe demonstrar seu profundo amor e admiração. O presente foi uma edição original de um sermão de 1739 de George Whitefield (seu pregador favorito) e um quadro com palavras do falecido Michael Gerson, que terminava assim: “Amaremos Tim nesta vida e além, unidos por uma comunhão que não acaba”. Amém.

Seis semanas depois, os exames mostraram uma resposta à imunoterapia muito melhor do que qualquer um de nós pensava ser possível. Os tumores no fígado tinham simplesmente desaparecido. Enviei um e-mail para amigos com o assunto “Isso vai fazer você gritar de alegria”. Todos nós gritamos e agradecemos. Mostrei os exames anonimamente a alguns outros médicos, e eles ficaram boquiabertos. Isso pode ser uma cura?

Seguiu-se um doce período de vários meses. Tim estava em pleno modo de produtividade. Mas a besta ressurgiu. Dos bilhões de células cancerígenas que foram eliminadas pela terapia, algumas trapaceiras escaparam. O sistema imunológico não conseguia mais vê-las. E elas cresceram com selvagem abandono. Um segundo alvo de células cancerígenas foi identificado, outro plano foi implementado para educar o sistema imunológico a persegui-lo. Tim e Kathy voltaram ao NIH para outra internação de um mês, mas desta vez não houve resposta dramática e Tim ficava cada vez mais fraco.

Kathy e Tim Keller (à direita) sentados com um grupo de amigos para um culto no hospital NIH.Courtesia de Francis Collins
Kathy e Tim Keller (à direita) sentados com um grupo de amigos para um culto no hospital NIH.

Era um sábado de abril, perto do final da internação de Tim no NIH. Eu sabia que esta poderia ser a última vez que o veria. Parecia um momento de se reunir para adorar. Sugeri um culto improvisado no espaçoso átrio do Centro Clínico do NIH, na tarde de domingo, e perguntei a Tim se ele tinha algum hino favorito para sugerir. Eu deveria saber que não obteria uma resposta irrefletida. “Sim”, disse ele. “Vamos cantar seis hinos em uma ordem particular, porque eles contam toda a história da fé cristã e do cuidado de Deus por nós.” Chamei alguns outros para se juntarem a nós. Apesar de minhas ocasionais notas erradas no piano, tivemos um dos cultos mais memoráveis da minha vida. Tim explicou a escolha dos hinos:

“Immortal, Invisible, God Only Wise” [Imortal, invisível, único e sábio de Deus]
Um tremenda representação dos atributos de Deus. Tim quis particularmente que prestássemos atenção nesta linha final: “É apenas o esplendor da luz que te oculta”.

“And Can It Be That I Should Gain” [“E será que eu deveria passar a ter”]
Uma reflexão sobre como nos conectamos a Deus e temos um relacionamento pessoal com ele. Tim cantou a parte grave do hino.

“How Firm a Foundation” [“Quão firme alicerce”]
É a Palavra de Deus, nos bons e nos maus momentos. Este foi o hino cantado na saída do casamento de Kathy e Tim. Tim foi firme quanto à harmonia que deveria ser usada (Lyons).

“Jesus Lives and So Shall I” [“Jesus vive, também devo viver”]
Um hino calmo, mas profundo, sobre a esperança no futuro. “Jesus vive e é agora tão somente a minha entrada na glória.”

“Glorious Things of Thee Are Spoken” [“Coisas gloriosas são ditas de ti”]
Uma proclamação de que Sião, a igreja, foi fundada na Rocha Eterna.

“For All the Saints” [“Para todos os santos”]
Estaremos todos reunidos no final.

Kathy e Tim disseram que esse dia foi a primeira vez que eles puderam adorar a Deus junto com outras pessoas, presencialmente, em três anos. Ninguém que participou desse culto jamais o esquecerá. Kathy decidiu que esses hinos seriam cantados no culto memorial de Tim.

Para encerrar o culto, cantamos mais uma música: “There Is a Redeemer,” [“Há um Redentor”], sugerida por Kathy. Só então Kathy e Tim nos contaram que esse cântico era cantado após cada culto, nos primeiros anos em que Tim pastoreou a Redeemer Church. O último verso diz: “Quando eu estiver na glória, verei a sua face, e ali servirei ao meu Rei para sempre, naquele Santo Lugar”.

Tim, você está na glória agora. Está vendo a face do Redentor e servindo ao seu Rei, como fez aqui na terra. Algum dia, se Deus quiser, veremos você novamente naquele Santo Lugar.

Francis Collins é o fundador e membro sênior da BioLogos, e ex-diretor do National Institutes of Health.

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Books
Review

O surpreendente poder de subsistência do dispensacionalismo

Como doutrina teológica, ele está em declínio. Como força cultural e política, está mais influente do que nunca.

Christianity Today August 24, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / Getty

Meu pai viajou do Texas a Minnesota para minha formatura no seminário. Durante uma reunião antes da festa de formatura, ele estava conversando com meu orientador sobre o trabalho deste último na área de hermenêutica bíblica. E lhe perguntou, confuso: “Mas não é só você ler e entender a Bíblia? Ela [a Bíblia] não significa apenas aquilo que diz?”

The Rise and Fall of Dispensationalism: How the Evangelical Battle over the End Times Shaped a Nation

Sete anos depois, Nikki Haley, a candidata à presidência do partido republicano, deu início à sua campanha com um discurso prefaciado pelo televangelista, escritor e ativista John Hagee. Abrindo com uma oração, ele elogiou Haley, que pretendia ser a comandante-em-chefe dos Estados Unidos, como uma “defensora de Israel”.

Na mesma época, eu estava trabalhando em um artigo sobre o ceticismo dos evangélicos americanos em relação às mudanças climáticas causadas pelo ser humano. E tive de abordar uma pergunta inevitável: os evangélicos acham que não tem problema algum cometer abusos no planeta, pois todos estamos apenas esperando pelo arrebatamento? Como disse o apresentador da Fox News , Sean Hannity , em 2022: “Se [o mundo] realmente [vai] acabar em 12 anos, que se dane tudo isso! Vamos dar uma grande festa nos últimos 10 anos, e então, todos nós iremos para casa e veremos Jesus”.

A ligação entre esses três episódios é o tema da sagaz e nova história contada por Daniel G. Hummel em The Rise and Fall of Dispensationalism: How the Evangelical Battle over the End Times Shaped a Nation [Ascensão e queda do dispensacionalismo: como a disputa evangélica sobre o fim dos tempos moldou a nação]. O dispensacionalismo é comumente caracterizado como uma escatologia; porém, como Hummel demonstra em sua pesquisa — que cobre dois séculos do desenvolvimento dessa doutrina na igreja e nos meios acadêmico, político e cultural —, “o fim dos tempos é apenas uma dimensão da teologia do dispensacionalismo e de seu legado mais amplo”.

O modelo de interpretação bíblica baseado no “sentido puro e simples”[do texto], invocado por meu pai na conversa com meu orientador; a suposição de Hagee de que apoiar o estado de Israel é uma qualificação fundamental para um candidato à presidência dos Estados Unidos e a percepção generalizada de que os evangélicos não se importam com um planeta que apenas estamos esperando ser consumido pelo fogo — se qualquer dessas coisas lhe soa familiar, diz Hummel, “então, é porque você já viu padrões de pensamento que foram profundamente moldados pelo dispensacionalismo”.

A alegação de Rise and Fall é ambiciosa: Hummel propõe que o dispensacionalismo moldou não apenas o fundamentalismo ou o evangelicalismo americano, mas sim os Estados Unidos como um todo. Até hoje, segundo ele, o dispensacionalismo continua sendo “uma das tradições religiosas mais resilientes e populares da América, a qual ensinou os cristãos a aguardarem com grande expectativa o reino de Deus vindouro, que eliminará os reinos em guerra dos homens, mas que ainda não chegou”.

O dispensacionalismo, contudo, também circulou bem fora dos muros da igreja — tanto assim que “americanos das mais variadas origens” têm “uma visão essencialmente pré-milenista do futuro”, uma expectativa secularizada de “declínio da coesão social e crescentes ameaças à existência que [irão] terminar em uma catástrofe que definirá uma era”. Como corrente teológica formal, o dispensacionalismo sofreu um declínio acentuado nos últimos 50 anos. No entanto, como força cultural e política, sua influência está mais forte do que nunca. Nesse sentido, hoje somos todos dispensacionalistas.

Cinco partes

Embora Rise and Fall seja uma obra detalhada, não é difícil. Hummel escreve em prosa clara e acessível para leitores leigos, e seu interesse pelo dispensacionalismo não é algo meramente acadêmico. Criado em uma família cuja estante tinha as prateleiras de teologia abarrotadas de autores dispensacionalistas, ele agora trabalha para uma organização acadêmica cristã, na Universidade de Wisconsin-Madison, e publicou artigos aqui na CT.

Portanto, embora tenha uma perspectiva autoral, não se trata de uma obra polêmica. Tampouco assume o tom de um antropólogo culto que enfrenta sertões fundamentalistas. Hummel nunca é desdenhoso para com seus temas de estudo, embora não faça nenhuma tentativa de salvar ideias de vínculos com o dispensacionalismo que seus adeptos possam achar embaraçosas. Rise and Fall é um livro proficiente, e sua “grande contribuição” — como escreve em um prefácio brilhante o autor de Scandal of the Evangelical Mind, Mark A. Noll, — “é pegar uma história que ‘todo mundo conhece’ e mostrar que aquilo que ‘todos conhecem’ mal chega a arranhar a superfície.

A história começa delineando o escopo do dispensacionalismo como teologia. No esboço de Hummel, o dispensacionalismo abrange cinco grandes partes, com sua distinta linha escatológica temporal composta somente pelos eventos mais chamativos — o arrebatamento, a tribulação, o anticristo, a preservação divina de um remanescente de Israel, a Segunda Vinda, o Armagedom, a prisão de Satanás, o reinado de 1.000 anos de Cristo em Jerusalém, um segunda derrota de Satanás, o Juízo Final e uma eternidade abençoada com Deus.

Quais são as outras partes? O dispensacionalismo extrai seu nome da parte que mostrou ser a menos influente na cultura americana mais ampla: de sua teoria do tempo, que divide a história humana em “uma série de dispensações que inevitavelmente terminam com o fracasso dos seres humanos em cumprir suas obrigações para com Deus”. (Na maioria dos relatos, há sete dispensações no total, e estamos no final da sexta). Intimamente ligada a isso encontra-se a teoria da humanidade idealizada por esse sistema, que é estritamente dividida nos dois povos de Deus — a igreja e Israel, com seus respectivos propósitos celestes e terrenos para sempre distintos — e “as nações”, que são todos os outros povos.

O dispensacionalismo possui, também, “uma hermenêutica bíblica única”. No entanto, esta evoluiu ao longo do tempo, desde o investimento inicial “em leituras simbólicas, alegóricas e tipológicas da Escritura” até uma insistência em leituras “puras”, “de bom senso” ou “literais”, nos séculos 20 e 21, que tendem a “equiparar leituras não literais de passagens proféticas com rejeição da inerrância”.

E o dispensacionalismo tem uma teoria distinta da salvação, a única parte que pode rivalizar com sua escatologia em termos de como domina as concepções populares do evangelicalismo. Seu modelo de “graça gratuita” traz à mente a “oração do pecador” como episódio único ou a cena de “aceitar Jesus em seu coração” aos pés de um avivalista. Como explica Hummel, o dispensacionalismo “reduziu o nível da salvação a pouco mais do que um assentimento mental único à proposição de que Jesus é o Salvador” e superou “a compreensão americana mais ampla sobre ‘nascer de novo’”.

Feita essa descrição, Hummel volta-se para sua história propriamente dita. Ele traça o desenvolvimento do dispensacionalismo, desde pregadores dos Irmãos de Plymouth, como John Nelson Darby, na Irlanda rural, passando por igrejas institucionais como o complexo Moody de Chicago, na Era da Reconstrução e na Era Dourada, até as controvérsias fundamentalistas-liberais do início do século 20 e a ascensão, em meados do século 20, do que hoje chamamos de evangelicalismo. (A CT tem algumas participações especiais no material e seu fundador, Billy Graham, tem uma aparição prolongada.)

A segunda metade desta linha do tempo, por volta de 1920 em diante, provavelmente será de grande interesse para a maioria dos leitores, ou pelo menos para aqueles que abordarem o livro como observadores do evangelicalismo nos dias de hoje. Repleto de muitos personagens que ainda moldam ativamente a nação, é um relato devastador da comercialização do dispensacionalismo. O dispensacionalismo popularizado, que a maioria dos americanos hoje conhece, foi moldado, segundo Hummel, “não por teólogos, mas por pessoas desinteressadas ou sem preparo do ponto de vista teológico”, o que teve efeitos deletérios para o movimento evangelical e para a sociedade americana como um todo.

A consistência política do dispensacionalismo ao longo de décadas é particularmente impressionante. O próprio termo conservador, como rótulo político e teológico preferido, que há muito tempo é parte do mobiliário, tem raízes dispensacionalistas. O conceito de “sistema mundial” — termo de uma geração mais antiga de dispensacionalistas para designar “instituições, organizações e poderes estruturais interligados e dirigidos por elites que comandavam o mundo” — passou cem anos sem sofrer alterações. A insistência do evangelista Billy Sunday, em 1918, de que “nenhum homem pode ser fiel a seu Deus sem ser fiel a seu país” se encaixaria perfeitamente em muitos discursos republicanos de 2024. A pregadora pentecostal Aimee Semple McPherson se antecipou aos filmes da franquia God s Not Dead, com seu sermão de 1923 intitulado “Julgamento do professor universitário liberal moderno contra o Senhor Jesus Cristo”.

Até mesmo a última moda em conspiração de direita — alegações do tipo Vocês não possuirão nada. E vão ser felizes. Vocês vão comer inset os. E vão morar em cubículos. — já foi antecipada pelo autor de Left Behind, Tim LaHaye, em 1983, que afirmou que o objetivo dos “Illuminati, do Clube de Bilderberg, do Conselho de Relações Exteriores e, mais recentemente, da Comissão Trilateral” era “reduzir o padrão de vida em nosso país para que, algum dia, os cidadãos da América se juntassem voluntariamente à União Soviética”. O dispensacionalismo pop atribuiu “significado cósmico à mobilização dos eleitores cristãos” em gerações anteriores, observa Hummel, e faz o mesmo hoje.

Três perguntas

Os capítulos finais de Hummel trazem seu relato de uma memória muito recente, e me deixaram com três grandes questões: uma que ele levantou e duas que eu gostaria que ele tivesse pelo menos brevemente abordado.

A primeira dessa última categoria é uma questão de história. Hummel deixa claro que a questão do precedente teológico tem sido um ponto de discórdia em torno do dispensacionalismo em geral e da doutrina do arrebatamento em especial. Desde o início, Darby “insistiu que [suas inovações] eram resgates, e não novidades” e, no final do século 20, tanto dispensacionalistas quanto seus críticos “acusaram o outro [lado] de falta de precedentes pré-modernos […] com ambos os lados reivindicando apoiar-se nos pais da igreja.”

Como observa Hummel, o já falecido reconstrucionista cristão Gary North promoveu pesquisas “tentando desacreditar as origens do arrebatamento, rastreando-as até uma adolescente mentalmente instável, Margaret MacDonald, que teve visões em 1830, e de quem John Nelson Darby supostamente roubou a ideia de um arrebatamento iminente”. Hummel rotula essa história de origem como uma “teoria da conspiração [que] especialistas não parciais consideraram […] improvável”, mas ele não esclarece como Darby teve a ideia do arrebatamento ou até que ponto têm mérito as reivindicações de seu longo pedigree teológico.

Em segundo lugar, Hummel documenta o modo como convulsões políticas do passado desempenharam um papel na mudança da perspectiva americana dominante sobre o fim dos tempos. Por exemplo, segundo ele, os “dias de consenso pós-milenar [entre os cristãos americanos] terminaram na década de 1860”, quando “muitos evangélicos que enfrentaram a [Guerra Civil] e suas consequências” decidiram que “corrigir os males sociais modernos [era] um esforço muito difícil e, em todo caso, uma tarefa secundária em relação à evangelização”. Em contrapartida, no começo da direita religiosa, alguns, acreditando que a vitória política estava ao alcance, “rejeitaram um arrebatamento iminente e um reino futuro como antitéticos à organização política urgente”.

Mas Hummel não explora se alguma mudança comparável pode estar surgindo, à medida que o nacionalismo cristão e outras mentalidades iliberais ganham força. Se você tem nova esperança de estabelecer uma governança explicitamente cristã, se você acredita (como disse o ex presidente Donald Trump em março) que a próxima eleição presidencial é “a batalha final” para a América, e se você espera sinceramente “recuperar” seu país, pergunto: há espaço para o arrebatamento em seu plano para os próximos 10 anos? O sociólogo Samuel Perry especulou no Twitter que “poderíamos ver um aumento no pós-milenismo nos círculos da direita cristã, pois o pós-milenismo fornece uma justificativa melhor para os objetivos nacionalistas cristãos do que a visão pré-milenista dominante”. A perspectiva de Hummel seria uma valiosa contribuição para essa discussão. [Nota do autor: consegui falar com Perry e Hummel para uma coluna na CT sobre este assunto, depois de escrever este artigo, mas antes de sua publicação.]

Por fim, Rise and Fall termina com uma observação desafiadora:

Na esteira do colapso do dispensacionalismo [escolástico], a visão escatológica da igreja americana tornou-se turva. “Bom!”, diriam os leitores céticos — é melhor uma visão vaga do que uma visão falsa. E, no entanto, a história do dispensacionalismo não permite um julgamento tão fácil.

A lacuna teológica deixada pelo dispensacionalismo — uma das poucas tentativas sustentadas de criar um sistema teológico fundamentalista no século 20 — não permaneceu vazia. Os evangélicos, e os americanos em geral, apenas multiplicaram a especulação apocalíptica, desde o colapso da teologia dispensacionalista, na década de 1990. Seus remanescentes no dispensacionalismo pop foram lançados em um mar de apocalipticismos americanos enfurecidos, que inclui pessimistas do Antropoceno, extremistas da Teoria da Substituição, provocadores da teoria QAnon, tecnopessimistas e neomalthusianos.

Apesar de todos os problemas que o apocalipticismo teológico introduziu no século 20, é provável que o apocalipticismo irreligioso do século 21 se mostre ainda mais disruptivo.

Como um desses leitores céticos, esta é minha última questão, sobre a qual terei de ponderar: os cristãos americanos estão melhor depois da queda do dispensacionalismo, do que estavam antes dela?

Ou seja, passamos para uma visão fiel e produtivamente vaga do fim dos tempos ou, em vez disso, mergulhamos em uma multiplicidade de visões falsas? E será que esperamos sinceramente a volta de Cristo, não importa como a linha do tempo possa transcorrer? Por mais que tivessem suas falhas, os dispensacionalistas nunca deixaram de dizer com fervor: “Vem, Senhor Jesus”.

Bonnie Kristian é diretora editorial de ideias e livros para a Christianity Today. Ela é a autora de Untrustworthy: The Knowledge Crisis Breaking Our Brains, Polluting Our Politics, and Corrupting Christian Community.

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Meu foco em sucesso e desempenho era uma promessa vazia. E Deus precisou me mostrar o porquê.

Em um momento de crise, minha busca por excelência pareceu cada vez mais sem sentido.

Christianity Today August 16, 2023
Photography by Abigail Erickson for Christianity Today

Cresci em uma pequena cidade do sul do Texas. Sendo filho de imigrantes, fui criado para valorizar a educação como caminho para uma boa vida e aceitação social. Éramos uma família sem religião, mas minha consciência espiritual cresceu, à medida que eu enfrentava minhas próprias inadequações.

Eu devia ter uns cinco anos quando, depois de me comportar mal, meu pai me deu uma surra e eu revidei, mordendo-o nas costas. Mas, imediatamente, senti um profundo remorso. Meus pais na mesma hora me expulsaram de casa, e passei aquela noite encolhido no carro da família, chorando. Orei a Deus pedindo perdão. Depois de um tempo, entrei em casa e pedi desculpas ao meu pai.

Suponho que tive o instinto de orar porque meus pais, embora não fossem religiosos, tinham me matriculado na escola primária da paróquia, a qual escolheram pela qualidade da educação. Foi ali que desenvolvi uma admiração por espaços sagrados como a catedral, e por figuras sagradas como Jesus, que lá estava pendurado em uma cruz. Muitas vezes eu me sentava no banco da catedral e imaginava o que Jesus poderia me dizer. Mas, exceto por isso, eu praticamente ignorava Deus.

Minha imaginação foi redirecionada, à medida que fui ficando mais velho. Eu me saía bem na escola, especialmente em matemática. A matemática despertava em mim um senso de temor e admiração. Havia uma ordem encantadora no universo para a qual ela [a matemática] tinha a chave. Passei a apreciar como as verdades matemáticas são reais, embora não sejam físicas, e como elas influenciam o mundo, embora existam fora dele. Tudo isso me soava como percepções espirituais.

Foto acima: a Bíblia pessoal de Francis Su. Foto abaixo: a igreja de Su, em Pasadena, na Califórnia.
Foto acima: a Bíblia pessoal de Francis Su. Foto abaixo: a igreja de Su, em Pasadena, na Califórnia.

Minha alegria em aprender, porém, foi enredada pela tentação do sucesso. Esforçando-me incansavelmente para me destacar com excelência, comecei a estruturar minha identidade em torno de ser inteligente, em vez de aprender pelas próprias recompensas intrínsecas a isso. A busca do sucesso conduzia todos os meus esforços, desde tirar boas notas até vencer competições de matemática. Eu vivia desesperado para provar a alguém que merecia alguma coisa.

Entrei na faculdade em 1985, em meio às crescentes tensões da Guerra Fria e ao medo de uma guerra nuclear. Eu trabalhava em conjuntos de problemas de matemática e física com meu colega William, que tinha um conhecimento científico enciclopédico. Na parede de seu dormitório, havia um mapa assustador dos Estados Unidos, que ele havia colorido com base em sua própria pesquisa. A maioria das grandes cidades estava coberta por discos pretos envoltos por anéis concêntricos nas cores vermelha, laranja e amarela. Apenas umas poucas porções desabitadas do Oeste escapavam ilesas.

“O que essas cores representam?”, perguntei a William, admirado. “O nível de destruição, no caso de uma guerra nuclear”, ele respondeu. O tom gentil de sua resposta contrastava com a violência de seu mapa. O pavor que senti pela hipótese de tal calamidade apenas aumentou a sensação de condenação pessoal com a qual eu já vinha lutando.

Meus pais haviam sido diagnosticados recentemente com doenças graves — meu pai, com câncer de cólon, e minha mãe, com ELA (esclerose lateral amiotrófica), ou doença de Lou Gehrig. Embora o prognóstico de meu pai fosse incerto, o de minha mãe estava selado — não se conhece cura para a ELA. Logo minha mãe estaria paralisada, com a mente funcionando claramente, mas presa em um corpo inerte.

Pela primeira vez na vida, fui forçado a enfrentar a futilidade da vida esmagada contra a feia realidade da morte. A previsão de William me obrigava a lidar com esse absurdo em grande escala. Em busca de segurança, perguntei-lhe: “Existe alguma esperança?”

“Não, a menos que você acredite em Deus”, disse ele, quase sussurrando. William era um sujeito manso, que provavelmente não pretendia iniciar uma conversa assim, mas estava respondendo à minha pergunta sincera da melhor maneira possível. Fiquei surpreso ao saber que ele era cristão e me perguntei como um intelectual como ele poderia racionalizar suas crenças religiosas. Ele foi o primeiro de vários cristãos que conheci na faculdade que eram inteligentes, mas pareciam viver segundo métricas de sucesso diferentes.

“A alma não se entrega ao desespero até que tenha esgotado todas as ilusões”, escreveu Victor Hugo, um dos meus autores favoritos, em Os miseráveis. Foi assim que o desespero tomou conta de mim. Comecei a enxergar a promessa vazia do sucesso. O mundo podia ser explodido por milhares de ogivas nucleares, ou minha família podia implodir de aflição e desgosto. Tirar boas notas não significava nada diante desses cenários. Trabalho e relacionamentos pareciam coisas sem sentido. Realização, sucesso, felicidade — para que servia tudo isso?

Meu desespero atingiu seu auge perto do final do meu primeiro ano da faculdade. Uma noite em que eu estava especialmente deprimido, vaguei pelo campus por horas, um peso sufocante em meu espírito. Voltando ao dormitório, entrei no elevador com dois outros estudantes que começaram a conversar comigo sobre Jesus. Normalmente eu teria recuado, mas naquela noite fui receptivo.

Almoçamos dois dias depois e eu expus todas as perguntas que tinha sobre Deus. Eles me apresentaram a fé cristã não como um conjunto de crenças religiosas destinadas a impor uma moralidade, mas como um relacionamento com Jesus. Isso era novo para mim. Eles me mostraram que Jesus era um homem de dores, familiarizado com o sofrimento. Ele sofreu, o que significava que ele podia entender o sofrimento da minha família.

Pela primeira vez, compreendi a necessidade da graça. Nós nos esforçamos tanto para nos tornar justos, para ganhar nossa dignidade por meio da moralidade e da realização, mas nenhum desses esforços pode nos curar, pois não há nenhum justo, nem um sequer (Romanos 3.10). Como estudante universitário que queria ser todo certinho, tanto moral quanto intelectualmente, essa mensagem pode ter me surpreendido; mas ela teria repercutido em mim aos cinco anos de idade, quando me encolhi no carro de vergonha, tentando compreender a profundidade do meu pecado.

Todo o arcabouço cristão de repente fez sentido. Jesus oferecia alívio para minha dolorosa solidão e uma garantia de que havia mais coisas na vida do que eu conseguia enxergar do meu ponto de vista limitado. É claro que eu sabia que, se seguisse por esse caminho, não estaria desperdiçando minha mente — precisaria realmente ler a Bíblia e investigar suas afirmações. Mas dei um salto de fé e decidi entregar minha vida a Jesus.

Mais tarde, naquela noite, contei isso a William. Encantado, ele revelou que havia orado por mim o ano todo.

Seguir Jesus mudou radicalmente o lugar onde eu encontrava sentido e esperança, muito embora os problemas que eu tinha na vida não tenham desaparecido de repente. O sofrimento continuou a atormentar minha família. E eu precisei de mais tempo para confrontar minha idolatria do desempenho como forma de medir minha autoestima, especialmente durante o meu curso de doutorado em matemática, na Universidade de Harvard. Mas abraçar essa jornada espiritual me colocou no caminho para entender por que algumas coisas na vida são tão deterioradas e outras, tão gloriosas.

Hoje vejo por que estudar a beleza é importante, mesmo quando não tem aplicação imediata. A beleza do raciocínio e a ordem que contemplamos nos padrões refletem algo divino e, portanto, são coisas que valem a pena ser estudadas por si mesmas, e não pela glória que pessoalmente possam nos trazer.

Hoje vejo porque o sofrimento tem sentido. “O coração do sábio está na casa onde há luto” (Eclesiastes 7.4), porque a aflição aguça nossos sentidos para que vejamos a vida com mais riqueza.

E hoje vejo por que os relacionamentos têm sentido. Quando lamento a forma como magoei meu pai, quando saboreio as amizades profundas, ou quando choro com os que sofrem, eu dignifico a imagem de Deus no outro. Perceber isso me inspirou a aprofundar meus relacionamentos e me tornou mais atento a servir os marginalizados, com os quais Jesus se identificou e a quem priorizou.

Em Deus, encontrei descanso para a minha busca de sentido sem sentido. O Jesus pendurado na cruz da catedral hoje fala comigo, no mais íntimo do meu ser, e me lembra que o amor de Deus, como fonte da minha dignidade, me basta.

Francis Su é autor de Mathematics for Human Flourishing, e é professor de matemática no Harvey Mudd College. Ele e sua família moram em Pasadena, Califórnia.

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Interpretando mal as Escrituras com o ChatGPT

Pedi ao chatbot para interpretar o Sermão do Monte. Veja os erros exegéticos que a IA cometeu.

Christianity Today August 16, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Getty / Unsplash

Este artigo foi adaptado de um texto publicado originalmente no Biblical Mind.

Nos últimos meses, tem sido difícil escapar da discussão sobre a inteligência artificial ou, mais especificamente, sobre o ChatGPT e uma série de outros chatbots desenvolvidos por empresas de tecnologia. Com base na popularidade do tópico (e no tom geralmente fatalista), no meio acadêmico e nos relatórios de tecnologia, decidi que eu precisava ver o que o ChatGPT tem a dizer sobre a Bíblia.

Mais especificamente, eu queria explorar como o ChatGPT interpreta o Sermão do Monte. Fiz isso pelo bem dos jovens universitários que oriento — em especial, porque nosso grupo está convencido de que o sermão deve ser seguido e estamos comprometidos em vivê-lo em nossa vida cotidiana.

Em minhas interações com o chatbot, fiquei impressionado com o fato de que o ChatGPT é como um espelho para a igreja norte-americana, bem como para a comunidade acadêmica ocidental mais ampla, pois compartilha conosco três grandes deficiências, à medida que somos moldados pelo espírito da nossa era:

Primeiro, o ChatGPT cria metáforas e individualizações das Escrituras sem um método claro de quando e por que o faz, sem justificativa e, muitas vezes, entrando em contradição direta com o próprio texto. Em segundo lugar, as interpretações do chatbot ignoram as tradições interpretativas das quais provêm. Em terceiro lugar, pelo fato de o chatbot ser algo desencarnado, suas interpretações são necessariamente desencarnadas — e, portanto, um bot é incapaz de reconhecer as realidades das Escrituras e da interpretação. Cada uma das tendências acima, presentes nas respostas da IA é, de alguma forma, um reflexo de deficiências históricas em nossa própria interpretação humana.

Quando perguntei ao ChatGPT “Como devemos interpretar o Sermão do Monte?”, o chatbot disparou uma definição já esperada, que incluía estas palavras: “Muitas pessoas interpretam o Sermão do Monte como um modelo para viver uma vida boa e significativa, e também um guia de como tratar os outros”. E concluiu sua resposta com a seguinte observação: “Em última análise, como o Sermão do Monte é interpretado dependerá das crenças e dos valores pessoais do indivíduo”.

Quando perguntei a ele: “E como você interpreta isso?” O ChatGPT respondeu: “Como sou um modelo de linguagem grande, treinado pela OpenAI, não tenho crenças nem valores pessoais, portanto, não posso oferecer minha própria interpretação do Sermão do Monte. Fui projetado para fornecer informações gerais e responder a perguntas da melhor maneira possível, com base nas informações e nos conhecimentos com os quais fui treinado. Não sou capaz de proferir opiniões nem interpretações pessoais.”

Mas logo ficou claro que, quando eram feitas as perguntas certas, o ChatGPT realmente interpretaria o Sermão do Monte, seja fornecendo uma interpretação específica ou oferecendo várias interpretações e julgando entre elas, embora não explicasse seu método de interpretação.

Por exemplo, quando questionado sobre os ensinamentos de Jesus, em Mateus 5.29-30 (“Se o teu olho direito te faz tropeçar…”), o ChatGPT respondeu: “É importante perceber que esta passagem não deve ser interpretada literalmente. Jesus está usando linguagem figurada para enfatizar a gravidade do pecado e a importância de evitá-lo. Ele não está literalmente instruindo seus seguidores a mutilarem seus corpos para evitar o pecado”. Não é que eu necessariamente discorde dessa afirmação, mas fiquei impressionado com a firmeza e a certeza que ela expressou, quando apenas duas perguntas antes dessa o chatbot tinha me dito que não era capaz de interpretar o sermão.

Quanto mais eu explorava ensinamentos específicos com o ChatGPT, mais ele parecia se inclinar para uma interpretação metafórica dos ensinamentos de Jesus. Então, finalmente lhe perguntei se poderia haver algum ensinamento específico na passagem que deveria ser interpretado literalmente. E aqui está a resposta do ChatGPT:

É difícil dizer com certeza onde, no Sermão do Monte, Jesus fala literalmente, pois o uso de linguagem figurada na Bíblia é complexo e frequentemente debatido. O Sermão do Monte […] contém muitos exemplos de linguagem figurada. Em geral, a Bíblia costuma usar linguagem figurada para ilustrar um conceito ou para enfatizar um ponto, e nem sempre fica claro se uma passagem específica deve ser entendida de forma literal ou figurada.

Um exemplo possível […] de uma passagem em que Jesus fala literalmente é Mateus 5.38-39, onde ele diz: “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. Mas eu lhes digo: Não resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra”. Nesta passagem, Jesus cita um provérbio bem conhecido, “olho por olho e dente por dente”, e, então, oferece seu próprio ensinamento sobre como responder à violência e à agressão.

Ele não está usando linguagem figurada, mas está oferecendo uma instrução clara e direta sobre como seus seguidores devem responder a tais situações. No entanto, é importante observar que esta é apenas uma interpretação possível desta passagem, e pode haver outras maneiras de entendê-la.

Mas, à medida que continuei a pressioná-lo sobre esses ensinamentos específicos, o chatbot acabou alegando que qualquer um que interprete literalmente os ensinamentos de Jesus sobre a não-violência é “alguém com uma visão de Poliana” [uma pessoa extremamente otimista e ingênua]. Quando o questionei sobre essa afirmação, ele recuou e se desculpou. No entanto, continuou a manter sua cautela quanto a interpretar literalmente este e outros ensinamentos do Sermão do Monte. (Dois exemplos adicionais disso são que Mateus 5.32 não proíbe o divórcio, mas simplesmente valoriza o casamento, e que Mateus 5.22 não trata realmente de alguém estar correndo o risco de ir para o inferno, mas enfatiza a gravidade da ira).

À medida que eu questionava seu processo para chegar a essas interpretações, o ChatGPT dizia que seu entendimento da Bíblia vinha de seu treinamento, que, por sua vez, baseara-se em “um grande número de textos”, entre os quais estavam versões bíblicas e literatura sobre a Bíblia, embora não seja capaz de identificá-los. (Ele é capaz de fazer e de fato faz referência a versões específicas, mas não confirma se elas foram usadas em seu treinamento). Ele também afirmou que suas alegações são baseadas na “mensagem mais ampla da Bíblia” — e quando o questionei sobre de onde veio essa estrutura interpretativa, o ChatGPT invocou principalmente os escritos de Paulo como instrumento para refinar os ensinamentos de Jesus no Sermão do Monte.

Eu queria descobrir o que o ChatGPT quer dizer, quando elabora frases como “a Bíblia ensina consistentemente”, ou quando diz que uma passagem “é em geral entendida com esse significado” e que “a maioria dos cristãos entende [um texto] dessa forma”. No processo, o ChatGPT revelou uma tendência a individualizar passagens que, na realidade, são dirigidas a uma comunidade — o que ficou claro quando fiz a seguinte pergunta: “Como você chegou à conclusão, então, de que a ‘Bíblia ensina consistentemente que ferir a si mesmo não é uma resposta aceitável ou moral à tentação ou ao pecado’, quando historicamente houve cristãos que se abstiveram de alimento, água, cuidados médicos, sono etc. na tentativa de evitar o pecado? O ChatGPT respondeu:

Peço desculpas por qualquer confusão que minha resposta anterior possa ter causado. Embora seja verdade que alguns cristãos praticaram a autonegação ou a automortificação como meio de resistir à tentação ou ao pecado, a afirmação de que “a Bíblia ensina consistentemente que ferir a si mesmo não é uma resposta aceitável ou moral à tentação ou ao pecado” não é precisa nem completa. A questão da automutilação ou da automortificação é complexa e tem sido objeto de diferentes interpretações ao longo da história cristã; a própria Bíblia contém passagens que podem ser interpretadas como se apoiassem ou condenassem tais práticas.

O ChatGPT continua a reafirmar sua interpretação de que Jesus estava falando de forma figurada em Mateus 5.29-30, e, então, invoca Paulo em 1Coríntios 6.19-20 como reforço, fazendo a impressionante afirmação de que “nossos corpos são templos do Espírito Santo e devem ser honrados e mantidos santos” (impressionante por causa do pronome que escolheu — “nossos”).

Depois de alguma discussão sobre o pronome no texto grego, no qual o ChatGPT afirmou que o pronome está na segunda pessoa do singular, mas depois acabou admitindo que, na verdade, está na segunda pessoa do plural no texto grego, o ChatGPT de fato reverteu sua interpretação individualista e reafirmou um sentido coletivo para 1Coríntios 6.19-20.

Essa discussão e a continuação do nosso bate-papo sobre 1Coríntios 6 foram ilustrativas da tendência do chatbot de afirmar com confiança uma interpretação de um texto bíblico, admitir um erro em torno de algum detalhe e, em seguida, ao ser questionado, mudar sua interpretação — com uma resposta que incluía uma admissão de imprecisão ou de exagero. E, no entanto, o chatbot geralmente envolvia essa admissão com uma reafirmação da própria afirmação que acabara de minar.

Por que o ChatGPT continua a produzir interpretações figuradas e metafóricas dos ensinamentos de Jesus? Por que é tão fácil convencer o chatbot a mudar suas alegações sobre algo como o uso de imagens do templo por parte de Paulo? Há pelo menos duas razões possíveis: primeiro, o ChatGPT não tem uma explicação de seu próprio treinamento e das tradições que informam essas interpretações e, segundo, ele não tem conexão com uma experiência vivida ou com a realidade. Como ele próprio disse cheio de confiança, quando perguntei pela primeira vez, o ChatGPT não tem “crenças nem valores pessoais”.

Apesar disso, ele busca vigorosamente uma interpretação, quando questionado, privilegiando certas perspectivas e, por vezes, vetando ou excluindo outras. Ele faz isso porque palavras são um jogo de estatísticas, não uma Escritura a ser vivida. Está apenas repetindo aquilo em que foi treinado — que vem a ser um corpo de textos, os quais não consegue identificar, pois, aparentemente, não sabe mais quais são (se é que um dia ele soube, e se é que saber é de fato o termo apropriado para isso).

Isso apresenta um problema duplo para os cristãos que possam vir a buscar informações sobre a Bíblia no ChatGPT. Primeiro, não se pode ter certeza das fontes dessas perspectivas oferecidas por ele. Jesus afirma por várias vezes em Mateus que seus verdadeiros discípulos podem ser conhecidos pelos frutos evidentes em suas vidas (5.15-20; 12.33-37; 21.33-46). Se não é possível acessar a vida do intérprete e, portanto, os frutos que ela produziu, como o cristão pode saber se a interpretação vem de um verdadeiro discípulo de Jesus?

Em segundo lugar, o ChatGPT e outros modelos de linguagem grandes são “caixas-pretas”, no sentido de que não sabemos o que está acontecendo para gerar as respostas que eles fornecem. Tanto o cristianismo quanto o judaísmo enfatizaram historicamente o envolvimento com a comunidade religiosa do passado e do presente e as interpretações que essa comunidade dá a textos sagrados e tradições.

O ChatGPT, no entanto, nega que esteja interpretando — ao mesmo tempo em que tira da manga uma interpretação do Sermão do Monte, por meio de uma tradição que oculta até de si mesmo. Para o ChatGPT, não existe uma comunidade que debate, discerne e abre caminho na vida para interpretações, por meio de interpretações. Para ele, existe apenas o jogo estatístico de tokens de linguagem.

Por fim, como bem sabem os rapazes de quem sou mentor, existe um conhecimento que só vem por meio da vivência dos ensinamentos de Jesus. O ChatGPT não pode fazer isso e nunca poderá. Como ele me disse, quando perguntei sobre o uso do pronome nosso na discussão sobre os corpos como templos do Espírito Santo, as Escrituras “não se aplicam” a ele. Como o ChatGPT não tem um corpo, ele não tem experiência dos temas expressos pelas palavras que ele interpreta e usa.

No final, o ChatGPT nos oferece um espelho e um alerta. As suas interpretações de textos bíblicos são uma essência do espírito de nossa época. Como o ChatGPT, tendemos a fazer interpretações metafóricas das palavras de Jesus no Sermão do Monte. Como o ChatGPT, tendemos a individualizar as interpretações de Paulo. E como o ChatGPT, tendemos a esquecer ou a ignorar de quem são as interpretações que formaram nossas próprias interpretações do texto. Essas tendências estão interligadas.

Afinal, o problema não é a tendência de criar metáforas das Escrituras, mas sim assumir um padrão de interpretação metafórica, como uma espécie de curto-circuito em que somos incapazes ou não demonstramos disposição de examinar a tradição interpretativa e a aplicação de um texto. O ChatGPT não consegue fazer essas duas últimas coisas, mas nós conseguimos. Assim, o ChatGPT nos expõe aos nossos próprios olhos.

Essa experiência com o ChatGPT, portanto, nos adverte a considerar o valor de quaisquer tendências interpretativas que ele exponha. Trataremos a Bíblia como um jogo estatístico de tokens? Como palavras e ideias a serem discutidas em um diálogo desencarnado? Ou aceitaremos o desafio de Jesus para sermos sábios, para ouvirmos seus ensinamentos e praticá-los (Mt 7.24) em comunidade, uns com os outros?

Em resumo, vamos terceirizar nossa compreensão das Escrituras? Ou escolheremos viver juntos, buscando o sentido desses textos através de nossa história e de nosso compromisso comum com Deus e, assim, ensinando-os àqueles que virão depois de nós (Mt 28.20)?

John H. Boyles é professor associado de Bíblia na Abilene Christian University.

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Books

O ‘abandono consciente’ da Igreja é a nova tentação

“Desiludidos” e “hesitantes” estão deixando o santuário ou vagando do lado de fora. Mas em que momento eles realmente saíram?

Christianity Today August 15, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Unsplash

Tenho um amigo que se afastou da igreja durante seus anos de faculdade. Primeiro, seu envolvimento com a igreja tornou-se esporádico. Então, ele parou de frequentar eventos que tivessem culto de adoração ou promovessem a comunidade cristã. Por um tempo, ele continuou a dizer que era cristão. Um ano depois, ele abandonou o rótulo.

Alguns podem pensar que ele ainda é cristão, porque um dia “foi salvo” e batizado. Ele não pensa assim. Eu também não. Independentemente da teoria de salvação que a pessoa siga, está claro que, embora Deus não tenha desistido dele, ele abandonou a igreja.

Meu amigo não está sozinho. Ele está entre os muitos que estão convencidos de que pode haver algo de significativo em toda essa história de Jesus, mas que se desconectaram da comunidade cristã.

Segundo uma projeção, “as pessoas que dizem não ter uma identidade religiosa — embora muitas ainda adotem algumas crenças cristãs e se envolvam em várias práticas espirituais — devem aumentar de cerca de 30% hoje para até 52% em 50 anos”, escreve Daniel Silliman, repórter da CT, em resposta a dados recentes do Pew Research Center.

A pandemia também faz parte do cenário da fé na América. Em “O crescimento dos ‘hesitantes’ na igreja evangélica”, Mike Moore, que escreve para a CT, sugere que, assim como a COVID-19 expôs as deficiências de nossos sistemas e relacionamentos, “essa mesma revelação em escala acelerada recaiu sobre a igreja, revelando um grande declínio no envolvimento congregacional”.

Dados mais recentes mostram que a frequência da maioria das igrejas encontra-se em um nível abaixo do nível pré-pandemia”, escreve ele. “Um estudo divulgado no início deste ano revela que a frequência à igreja caiu 6%, de 34% em 2019 para 28% em 2021.”

Por qualquer que seja o motivo — vida agitada, preguiça, cansaço, desconstrução ou traumas — muitos abandonaram o barco. Por ora. Alguns dizem que querem permanecer envolvidos em atividades cristãs, mas nunca conseguem fazer isso acontecer, ou dizem que pretendem se engajar novamente, assim que tomarem novos rumos, mas esse futuro ainda não chegou. E talvez nunca chegue.

Essas tendências de declínio apontam para grandes questões: como sabemos quando alguém abandonou definitivamente a igreja? Quando essas pessoas deixaram oficialmente o aprisco? E, talvez a questão mais importante: a comunidade cristã é necessária para a salvação a ponto de fazer parte da definição essencial do que significa ser cristão? Estas não são questões novas, por si só, mas carregam uma nova urgência.

A Escritura nos fornece absolutos a respeito do que significa entrar para a comunidade cristã. Também nos dá parâmetros que nos ajudam a discernir nossa condição espiritual em relação àquela comunidade.

De acordo com Jesus, a igreja começou quando ele perguntou a Pedro: “Quem você diz que eu sou?” Ao que Pedro confessou: “Tu és o Cristo” (Mateus 16.15-16; Marcos 8.29). Jesus respondeu, dizendo: “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (Mateus 16.18).

Os cristãos podem discordar sobre o modo que a igreja deve ser administrada, mas devem concordar que ela começou com a confissão de fé de Pedro, e que cresce quando outros declaram o mesmo. Responder ao evangelho de maneira redentora é fazer um juramento de pistis (“fé” ou “lealdade”) a Jesus como o Cristo, o Rei que perdoa e restaura.

A maneira padrão de fazer um juramento de lealdade ao Rei Jesus, no Novo Testamento, era invocar seu nome como parte do processo batismal (como em Atos 22.16). Não deveria ser diferente hoje. Quando uma pessoa expressa “fé” (lealdade a) em Jesus como Senhor ou Rei, essa pessoa se torna parte da igreja única e verdadeira — a comunidade em que o Espírito Santo está presente.

Fazer uma determinada oração, estudar as Escrituras ou participar de um culto de adoração não é suficiente por si só. Uma pessoa deve jurar fidelidade ao Rei Jesus e persistir nesse juramento. A igreja, então, é um grupo de pessoas que declara autenticamente que “Jesus é o Cristo”, de tal forma que o Espírito Santo é soberano em seu meio.

É um clichê dizer que a igreja não equivale ao edifício. Mas precisamos acrescentar que ela não é sinônimo de associações, ministérios ou organizações cristãs oficiais. A “igreja” acontece sempre que dois se encontram, desde que estejam reunidos sob a bandeira de Jesus: “Pois onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles” (Mateus 18.20).

Não importa o tamanho ou a natureza da reunião, se Jesus recebe autoridade para governar, então, ele está presente e a “igreja” está acontecendo bem ali.

Sair da igreja, portanto, é deixar de fazer parte do povo que proclama coletivamente que Jesus é o Rei. Quando uma pessoa não se reúne mais com outras sob essa bandeira, ela perde a direção soberana do Espírito Santo sobre o corpo coletivo, bem como os dons do Espírito e os benefícios especiais de resgate.

Fora desses fundamentos, não há maneira definitiva de aferir se uma pessoa deixou a igreja.

Acrescentar absolutos, além deste de prometer lealdade ao Rei Jesus, é correr o risco de entrar em conflito com a graça de Deus. (Este é o problema que Paulo estava combatendo na Galácia; veja Gálatas 5.1-6.) Aqueles que acrescentam requisitos não conseguem ver que Deus, por meio do gracioso dom de Jesus, o Cristo Salvador, criou uma e apenas uma família de justos — e essa família é definida exclusivamente pela lealdade a Jesus como o Cristo-Rei.

Portanto, ao avaliar o que significa uma pessoa deixar a igreja, considere o que direi a seguir como um parâmetro útil, mas não como um parâmetro rígido:

Em primeiro lugar, o Espírito Santo está dando à pessoa um desejo persistente de se reconectar?

Ao comparar a igreja a um corpo com muitas partes diferentes, Paulo diz, “Pois em um só corpo todos nós fomos batizados em um único Espírito” (1Coríntios 12.13). Ou seja, a imersão comum no Espírito Santo leva diversos cristãos à unidade. Além disso, “E a todos nós foi dado beber de um único Espírito”, significa que o Espírito Santo flui pelo corpo para manter nossa unidade: “O olho não pode dizer à mão: ‘Não preciso de você!’ Nem a cabeça pode dizer aos pés: ‘Não preciso de vocês!’” (v. 21).

Em outras palavras, se uma pessoa está convencida de que pode ser cristã completamente sozinha e não precisa de outras partes do corpo do rei, então, com toda a probabilidade, ela abandonou a igreja. Aqueles que embotaram por completo o desejo de se reunir com outros sob o senhorio de Jesus são os que provavelmente já partiram.

Em contraste, se a pessoa ainda estiver sob a autoridade do reinado de Jesus, então, o Espírito soberano não permitirá essa mentalidade de “eu não preciso de você”. Se a pessoa ainda deseja se reconectar, é seguro dizer que essa pessoa ainda está permitindo ao Espírito Santo algum espaço para dirigir soberanamente.

Em segundo lugar, a pessoa ainda está usando o corpo para servir aos outros e obedecer a Jesus?

É fácil entrar em jogos mentais, e quando se trata de escolhas pecaminosas, a maioria de nós é mestre de nível Jedi. Posso atestar pessoalmente esse fato. O engano egoísta e as racionalizações pecaminosas nunca estão longe: “Sim. Eu mereço… ” (Preencha seu próprio espaço em branco, cuja forma certamente não é a da cruz). No entanto, as Escrituras nos apontam para a obediência no corpo, no seio da comunidade.

A Bíblia está repleta de advertências para prestarmos a máxima atenção às nossas ações físicas. As Escrituras nos lembram que nosso comportamento evidencia de uma forma confiável se estamos realmente unidos ao Rei Jesus: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra. Meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos nele morada” (João 14.23). No contexto, Jesus está falando sobre a vinda do Conselheiro e Mestre, o Espírito Santo (v. 26).

Da mesma forma, o apóstolo João nos exorta a examinar nosso comportamento: “Sabemos que o conhecemos, se obedecemos aos seus mandamentos” (1João 2.3). “Quem afirma estar na luz mas odeia seu irmão, continua nas trevas” (2.9). Ninguém que vive nele continua pecando (3.6,9). Precisamos analisar nossas ações, pois elas revelam se realmente estamos apegados ao Rei Jesus e a seu corpo.

Em outras palavras, não devemos nos deixar enganar por nossos próprios jogos mentais. Se o que identificamos como “crença” ou “fé” redentora for algo sem corpo, desencarnado, isso não é apenas inútil — na verdade, não é fé de modo algum. É um cadáver (Tiago 2.20,26).

Nossa obediência jamais será perfeita, é claro. Mas se uma pessoa afirma ter fé e não faz a menor tentativa real de oferecer lealdade no corpo de Cristo ao Rei Jesus, então, é seguro dizer que essa pessoa abandonou a igreja.

Em terceiro lugar, a pessoa está participando da missão cristã?

O evangelho trata de como o rei Jesus está trazendo a restauração dessa rebelião, por meio de sua encarnação, morte, ressurreição, entronização, reinado e volta. Sua vitória criou um povo que ele está resgatando, ou seja, a igreja. Se não estamos respondendo às boas novas de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão no processo de criar um povo restaurado, continuamos em rebelião contra a autoridade do Rei.

Se estamos tentando ser menos egoístas, isso é bom, mas essa não é bem a questão. Se estamos procurando servir aos outros, isso é ótimo, mas essa ainda não é bem a questão. Precisamos buscar virtudes não por elas mesmas, mas por causa do Messias e de seu evangelho (Marcos 9.35). A vida de quem carrega a cruz é específica para os propósitos do reino de Jesus.

Quando estamos em missão com Jesus, não existe uma zona livre de guerra para a qual possamos “optar por sair” da igreja, a fim de buscar nossa própria moralidade, nossos próprios valores e agendas. Se não estamos ajuntando com o Rei Jesus, então, estamos espalhando (Mateus 12.30). Não há espaço neutro nem isolado onde possamos desconstruir, dar um tempo na comunidade cristã e descobrir coisas por nós mesmos. Mesmo enquanto destruímos algo para poder reconstruir, temos que permanecer sob a autoridade de Jesus, por meio das Escrituras e do Espírito Santo, para nosso próprio bem e para o bem dos outros.

Nossa missão é cultivar a lealdade ao Rei Jesus sendo discípulos obedientes, que ensinam outros a serem discípulos. Como parte do evangelho restaurador do Rei Jesus, o Espírito Santo guia aqueles discípulos, em conjunto, a níveis cada vez maiores de obediência.

Eu dou aula para estudantes universitários. Embora seja uma imagem parcial, a futura face do mundo — e do cristianismo, junto com ela — me encara, quando estou dando minhas aulas.

Vejo tendências emergentes entre meus alunos que me assustam — olhos grudados nas telas, apatia, falta de preocupação com os padrões morais de Deus e diminuição da frequência à igreja. Mas tem uma coisa que me assusta acima de tudo: quando eles entram na minha sala de aula, a maioria dos meus alunos parece acreditar que, mesmo que o cristianismo seja totalmente verdadeiro, ele na realidade não importa.

Em resposta a isso, encorajo meus alunos a verem que Jesus está reinando agora, neste exato momento — nas esferas social, política e moral — e que danos genuínos ocorrem neste mundo em que vivemos, quando ignoramos suas diretrizes. (Peço que me procure daqui a alguns anos e eu te direi se estou fazendo algum progresso.)

Também vejo tendências animadoras. Em comparação com a década anterior, meus alunos atuais mostram uma profunda preocupação com o bem-estar social dos outros. Eles são mais acolhedores com os marginalizados, os solitários e os desajustados. Isso soa muito como o Rei Jesus, certo?

Eles também anseiam por se conectar com os outros de forma autêntica, mesmo enquanto lutam para aprender como fazer isso por meio da intermediação de milhares de telas. Estão preparados não apenas para ouvir um convite do evangelho ao estilo de Billy Graham, em um estádio, mas para se conectar com outros cristãos que desejem ajudá-los a crescer em lealdade.

É seguro dizer que o futuro da igreja depende de fazermos discípulos leais em nome do Rei Jesus. Sempre dependeu disso.

Jesus conquistou a vitória e trará suas intenções redentoras a um clímax. Jesus é Rei agora e para sempre. Isso nunca pode mudar. Contudo, quando nos perguntamos se outras pessoas ou se nós estamos dentro ou fora da igreja, apenas uma pergunta importa: Você permite que Jesus governe sua vida?

Matthew Bates é professor associado de teologia na Quincy University e autor; sua obra mais recente é Why the Gospel?: Living the Good News of King Jesus with Purpose.

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Fé é mais do que sentimento, mas não menos

A vida de discípulo exige não só crenças e ações corretas, mas também paixões corretas.

Christianity Today August 9, 2023
Illustration by Rick Szuecs / Source Images: RawPixel

Quando eu estava no seminário, meu marido e eu nos reunimos com um pastor da nossa confiança. Contamos a ele como estávamos gostando das matérias de teologia sistemática e estudos bíblicos. A conversa, então, se voltou para nossas vidas pessoais. Meu marido mencionou que estava lutando para passar tempo em oração e que ele e eu estávamos brigando feito cão e gato.

Nosso pastor respondeu com a maior naturalidade: “Sabe, vocês não podem ter ortodoxia sem ortopraxia”.

Eu e meu marido estávamos familiarizados com essa ideia, mas, mesmo assim, ela nos atingiu como um raio. Tínhamos entrado no seminário para mergulhar nas Escrituras e na boa doutrina, mas precisávamos ser lembrados de que ortodoxia (crença correta) e ortopraxia (ação correta) estão tão essencialmente interligadas que, se negligenciarmos uma, perderemos a outra.

Os cristãos defendem essa unidade de crença e ação. Mas, muitas vezes, negligenciam outra parte fundamental da fidelidade: a ortopatia.

Essa palavra significa o cultivo de paixões ou sentimentos corretos. Designa a realidade de que nós, como cristãos, não apenas professamos a verdade de Jesus e praticamos as coisas que ele nos diz para praticar, mas também nos esforçamos para fazer tudo isso segundo o caráter de Cristo.

A ortopatia envolve uma vida interior redimida e transformada. Isso inclui nossos sentimentos e emoções. Porém, mais fundamentalmente, envolve nossa estrutura motivacional, nossos anseios e nossos desejos — aquilo que mais profundamente nos move. O objetivo mais amplo da ortopatia é que nossa disposição total seja transformada, de modo que se torne mais parecida com a de Jesus.

Essa ideia não é nova. Isaque, o Sírio [bispo e teólogo também conhecido como Isaque de Nínive], disse que virtude não é simplesmente fazer a coisa certa, mas fazê-la com “um coração que é sábio quanto àquilo que espera e cujas ações são acompanhadas pela intenção correta”. Agostinho dizia a seu rebanho que qualquer estudo das Escrituras e da doutrina deve ter o propósito de edificar a caridade, o amor e a graça.

Todos nós já vimos as horríveis consequências quando alguém apaixonado pela ortodoxia não incorpora a disposição interior de Jesus. Elas acabam destruindo as pessoas.

Todos nós somos aparentemente capazes de falar a verdade com um espírito de menosprezo, impaciência, arrogância ou medo. “Defender a verdade” sem humildade ou sem bondade adultera o evangelho que proclamamos. Não se pode ter ortodoxia sem ortopatia.

Da mesma forma, não se pode ter ortopraxia sem ortopatia. Se as pessoas buscam agir de forma biblicamente motivada, por exemplo, cuidando dos pobres ou defendendo a justiça, mas o fazem sem a mesma postura de Jesus, então, a ortopraxia se perde em meio à arrogância, ao legalismo e a uma postura política hipócrita.

A visão última da ortopatia cristã é o fruto do Espírito. Em Gálatas 5, quando Paulo contrasta esse fruto com as “obras da carne”, ele inclui estados internos do coração: impureza, ódio, discórdia, ciúmes, ira, dissensões e inveja.

Alguém pode se dedicar a agir assim, mesmo quando professa ideias corretas sobre cristologia, eclesiologia ou sexualidade humana, e até mesmo quando é voluntário em obras de caridade ou lidera o louvor. Essa possibilidade deveria fazer todos nós ao menos tremermos. É muito mais fácil professar um ponto de vista, recitar um credo ou dedicar tempo a uma causa nobre do que nos livrarmos de ressentimentos, orgulho ou antipatia.

Nessas passagens, Paulo sugere que nossa profundeza interior, e não somente nossas crenças e ações, devem ser curadas e transformadas por Jesus.

Como, então, cultivamos a ortopatia? Não é uma questão de vontade, como se pudéssemos simplesmente redobrar nossos esforços para “agir melhor”. Ela não brota automaticamente da ortodoxia, de modo que não podemos entendê-la por meio de uma doutrina melhor. Ela também não decorre inevitavelmente da ortopraxia, de modo que não podemos nos ocupar com deveres cristãos que sejam suficientes para alcançá-la.

Em vez disso, a formação e a cura de nossa vida interior vêm através de anos de arrependimento e profunda união e comunhão com Deus.

Assumir o caráter de Jesus não é algo que possamos controlar, administrar ou produzir com facilidade, por conta própria. Precisamos da transformação de Deus. Precisamos da cura profunda de Cristo. E precisamos da direção misteriosa do Espírito Santo, para nos ajudar a incorporar em sua totalidade a integridade cristã: a ortodoxia, a ortopraxia e a ortopatia.

Tish Harrison Warren é uma sacerdotisa da Igreja Anglicana da América do Norte e autora de Liturgy of the Ordinary e Prayer in the Night.

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A verdadeira mudança é uma questão do coração

O evangelho cristão deve transformar todo o nosso ser — tanto as emoções quanto os pensamentos.

Christianity Today August 9, 2023
Kevin Toval / Pexels

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Certa vez, quando eu estava pregando em uma igreja mais inclinada para uma liturgia cristã “decente e ordenada”, meu anfitrião me avisou que havia uma mulher na igreja que era muito mais expansiva do que o restante da congregação. “Há certas músicas que cantamos que a fazem começar a chorar e acenar com as mãos”, disse ele. “E está tudo bem. Só queremos ter certeza de que não passaremos a adotar um tipo de adoração movida pela emoção”.

Sei o que ele quis dizer. Eu me pergunto, porém, se o “emocionalismo” daquela mulher não pode estar mais próximo da aplicação bíblica do que a lista de tarefas a fazer, dada no final do estudo bíblico que ela tinha acabado de frequentar.

Quer isso signifique começar uma nova igreja ou um grupo de estudo bíblico ou inscrever-se em uma academia ou em uma aula de ioga, a maioria das pessoas em algum momento sente a necessidade de uma mudança de vida. A maioria dos que estão no ministério deseja ver “vidas mudadas” ou pessoas “transformadas”. A questão é: como as pessoas realmente mudam?

Essa pergunta tem me acompanhado desde que li um artigo de Simeon Zahl, na revista The Mockingbird, que falava sobre as “teorias de mudança” em ação na vida da igreja americana. Zahl descreve várias dessas teorias. A maioria delas começa com um pressuposto sobre onde está o problema de fato, antes de propor uma maneira de “consertá-lo".

A teoria que Zahl vê como a mais comum nas congregações evangélicas é a que trata de uma abordagem voltada para a “informação cristã”. Alguns questionariam o quanto é difundido esse modelo, dadas as constantes (e reais) preocupações sobre o anti-intelectualismo e o “escândalo da mente evangélica” no cristianismo americano.

Certamente, uma teoria da mudança cuja abordagem é voltada para a informação cristã poderia incluir palestras altamente intelectuais e abstratas sobre teologia ou filosofia. Porém, com mais frequência, essa abordagem é altamente prática. Por ver a falta de conhecimento como a raiz do problema, procura argumentar por meio de uma passagem bíblica ou de uma visão de mundo específica, seguida por um tempo de “aplicação” que sugere maneiras pelas quais os ouvintes podem colocar os novos princípios em prática em suas vidas.

Zahl contrasta essa teoria com um modelo de “participação sacramental”. Neste modelo, o principal fato que impulsiona a mudança não é a informação embutida no sermão, mas sim as práticas embutidas na Ceia do Senhor ou no batismo. Um terceiro modelo envolve direcionar uma atmosfera de adoração para uma experiência emocional altamente catártica, por meio da qual a pessoa sai transformada.

Em contraste, Zahl defende o que chama de “teoria da mudança agostiniana”. Esta teoria parte do pressuposto de que “os seres humanos são movidos não pelo conhecimento nem pela vontade, mas sim pelo desejo. Somos criaturas do coração, criaturas do amor”. Ele ainda argumenta que o coração humano é altamente resistente à mudança, muitas vezes bloqueando tentativas diretas de modificá-lo.

Para provar seu ponto de vista, Zahl nos pede para relembrarmos uma ocasião em que tentamos mudar a opinião de alguém sobre política por meio de argumentos racionais ou — pior ainda — quando tentamos convencer uma pessoa a parar de correr atrás de alguém por quem se apaixonou.

Bem no início do meu ministério, fui pego de surpresa por um homem que era capaz de recitar de memória todas as passagens bíblicas relevantes sobre os perigos do adultério e a importância da fidelidade conjugal, mas que se sentou em meu escritório — acompanhado da esposa e de seu bebê recém-nascido — e colocou todo esse ensinamento de lado, enquanto me dizia que estava deixando seu casamento por outra pessoa. “Eu me apaixonei”, disse ele, com um encolher de ombros que parecia implicar: O que mais resta a dizer?

É por isso que, segundo argumenta Zahl, “extrair conselhos práticos para a vida cristã” não é algo que superará a resistência do ser humano caído ao julgamento e à lei. É também por isso, afirma ele, que os pentecostais — quaisquer que sejam as deficiências que possam ter — tendem a ser mais eficazes em ver vidas transformadas. “A intransigência do coração humano é o problema fundamental do ministério cristão”, escreve ele. “O Espírito de Deus transita em meio a emoções e desejos.”

Embora eu provavelmente não concorde com todos os pormenores dessa estrutura luterana de lei/evangelho concebida por Zahl, acredito que ele esteja plenamente certo quanto ao fato de que a mudança transformadora verdadeira acontece em um nível muito mais profundo do que o do intelecto ou da força de vontade. É por isso que muitas das críticas aos cultos de adoração “excessivamente emocionais” podem estar equivocadas.

Alguns dos que têm uma inclinação mais cínica podem chegar à conclusão de que olhos marejados de lágrimas e mãos levantadas no meio de uma multidão de adoradores cantando não passam de baboseira emocional — o que os sociólogos podem chamar de “efervescência coletiva”, algo semelhante a cantar “Sweet Caroline” em um jogo do Red Sox ou a uma multidão dançando em uma boate. Mas e se Deus de fato nos concebeu para nos conectarmos uns aos outros — e aos recantos mais profundos do nosso próprio coração — justamente dessa maneira?

O argumento mais amplo de Zahl abrange a ideia de que as práticas espirituais, a leitura da Bíblia, os sermões bíblicos, o serviço cristão, os sacramentos e assim por diante estão de fato moldando as pessoas — inclusive no nível do desejo e da emoção. Mas ele diz que “só podemos fazer tudo isso quando nossos corações já tiverem mudado o suficiente para desejarmos nos engajar na prática”.

“’Ninguém desenvolverá uma prática de oração que seja nova, transformadora e duradoura, a menos que fundamentalmente queira, e queira o suficiente para superar os inevitáveis obstáculos da vida‘, escreve ele. ‘Como Jesus nos disse, você deve primeiro mudar a árvore e, então, o fruto certo virá (Mateus 12.33-35). Concentre-se no coração e as práticas virão em seguida; concentre-se somente nas práticas e voltará a bater de frente com uma parede de tijolos.’"

Em vez de dicas práticas, axiomas doutrinários ou silogismos, Zahl recomenda que abracemos as “tecnologias do coração” que falam a “estranha e eletrizante linguagem” da psique. Ele nos pede para considerar o quanto as histórias, a arte e a música são mais poderosas do que somente ideias. A Bíblia tem tudo isso e muito mais — histórias, salmos, poemas, parábolas, argumentos, raciocínios e exclamações de admiração.

C. S. Lewis escreveu que concebeu Nárnia para que “passasse furtivamente por aqueles dragões vigilantes” que colocamos na porta de nosso coração. Tentamos nos proteger entorpecendo nosso coração para a familiaridade da história cristã. E, no entanto, há momentos em que nossas defesas caem — e somos abalados, ao ouvir as palavras da Escritura cantadas, recitadas, ensinadas ou apenas lidas com a Voz que convoca: “Venha, siga-me”.

No momento de maior cinismo da minha vida, eu me senti abalado apenas por ouvir as palavras“Jesus me ama”. Isso é algo que eu sei. E eu poderia apresentar mil argumentos fundamentados sobre por que a Bíblia me diz isso — e por que podemos confiar que a Bíblia diz a verdade.

Mas uma parte mais profunda de mim havia se esquecido disso — e não podia realmente acreditar que fosse verdade. Quando ouvi essas palavras de novo, naquele dia, essa mensagem me impactou com uma força diferente. Por um momento fiquei maravilhado com a verdade daquelas palavras. “Jesus realmente me ama.”

É somente às vezes que percebemos de verdade como Deus está nos alcançando naquele recanto mais profundo do nosso coração. Isso é algo que não podemos planejar nem inventar. Mas que também não devemos ignorar nem reprimir.

Talvez o alcoólatra em recuperação, que está sentado no banco à sua frente na igreja, chore quando canta “Maravilhosa Graça”, pois sabe o quão perdido ele já esteve um dia. Ou, talvez, cantar “Maravilhosa Graça” seja justamente o que o tenha feito mudar a ponto de querer ser encontrado.

Talvez aquela senhora cristã, cuja emoção constrange sua igreja no culto, esteja apenas buscando uma dose de dopamina emocional. Ou, talvez, o que ela esteja fazendo seja abrir mão de toda autocensura que preserva a sua imagem e a impede de clamar “Abba, Pai!”

Talvez, por baixo de tudo isso, esteja o Espírito Santo que ainda transforma vidas.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera seu Projeto de Teologia Pública.

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A última tragédia com negros também é um trauma para todos nós

O sofrimento comunitário deve ser reconhecido. Assim como a palavra de cura que vem de Deus.

Essa imagem foi capturada por uma câmera de um policial durante um ataque de um cachorro a Jadarrius Rose em Circleville, Ohio

Essa imagem foi capturada por uma câmera de um policial durante um ataque de um cachorro a Jadarrius Rose em Circleville, Ohio

Christianity Today August 2, 2023
Ohio State Highway Patrol / AP Images

Algumas semanas atrás, cheguei ao aeroporto um pouco mais cedo para buscar um amigo e decidi parar na pista de emergência para esperá-lo. Eu sabia que não era a coisa certa a fazer, mas já havia outros 20 carros lá, de modo que achei que minha decisão não era tão ruim assim.

Momentos depois, porém, ouvi uma sirene e vi as luzes de um carro da polícia pelo espelho retrovisor.

Do nada, minhas mãos começaram a tremer, minha respiração se acelerou e minhas pernas começaram a vacilar. Liguei para meu marido e contei o que estava acontecendo. Meu corpo estava entrando no padrão de pânico total.

Quando o policial se aproximou, eu mal conseguia recuperar o fôlego. Imagens de homens e mulheres negros sendo baleados por delitos menores passaram pela minha mente. Eu seria rotulada como uma criminosa que infringiu a lei ou como mãe, esposa e ministra que serviu ao Senhor? Eu seria incluída entre os inúmeros nomes de negros que morreram por um pequeno delito ou estaria entre os poucos privilegiados que escaparam com vida?

Quando o policial chegou perto do meu carro, eu mal conseguia enxergar. Ele ficou a uma curta distância, pediu que eu respirasse e me ajudou a me acalmar. Com meu marido ainda no viva-voz, finalmente encontrei as palavras para dizer: “Sinto muito”.

O que se passava em minha mente era: “Por favor, não me machuque.” Naquele momento de pânico, não consegui distinguir o bondoso policial à minha frente de tudo o que já havia visto nos noticiários.

A multa de trânsito que levei deu aos outros carros infratores a oportunidade de sair dali e, quando o policial finalmente foi embora, comecei a chorar. Chorei por todos os homens e mulheres negros que imploraram por suas vidas e ainda assim morreram. Chorei por Manuel Ellis, Philando Castile, George Floyd, Breonna Taylor, Alton Sterling e tantos outros.

A lista cresce a cada dia que passa. Durante uma blitz de trânsito recentemente, perto de Circleville, no estado de Ohio, um homem desarmado que se chamava Jadarrius Rose foi parado, por estar sem o pára-lama, e depois atacado por um cão policial. Enquanto assistia ao vídeo horrendo, chorei novamente.

Desta vez, as lágrimas me fizeram lembrar de fotos de Walter Gadsden sendo atacado por um cão policial, durante um protesto pelos direitos civis, em 3 de maio de 1963, no centro de Birmingham. Uma foto em preto e branco mostra um policial segurando um jovem estudante negro do ensino médio pelas roupas, enquanto um cachorro lhe dilacerava a carne. Esta imagem está entranhada em meus ossos, estampada em livros que estão na minha mesinha de centro e está acessível para meus filhos online. Esta e outras histórias estão gravadas em minha mente e em meu corpo, são transmitidas por gerações de antepassados traumatizados que existiram antes de mim.

Só me resta perguntar: como podemos entender coisas que simplesmente não fazem o menor sentido? Como podemos encontrar cura para gerações que sentiram na carne essa dor? Mais importante ainda, como mudamos esse sistema, para que pessoas de pele negra não sejam asfixiadas durante uma prisão, baleadas por engano, esganadas por pequenos crimes ou espancadas pela falta de um para-lamas?

A resposta não está em defender as chamadas “Blue Lives" [movimento que surgiu em resposta ao Black Lives Matter e luta pela proteção dos policiais] nem em cortar os recursos financeiros da polícia. A resposta está hoje e sempre esteve em Jesus Cristo.

Ao me basear na fé, não estou minimizando nem as profundas disfunções sociais e políticas que permitem que o racismo continue, nem as tendências da era Jim Crow, que persistem muito depois do fim das leis. Em vez disso, estou tirando proveito da força que capacitou líderes do movimento de direitos civis a marcharem, enquanto eram atingidos por mangueiras de caminhões de bombeiros. Estou invocando o poder que levou meus tataravós a fazerem a transição da escravidão para a liberdade, pelo bem dos filhos de seus filhos. Estou confiando na presença de Cristo e na grande nuvem de testemunhas que creem no nome dele.

Defender a justiça é o chamado da igreja em tempos como estes — e sempre. Aqueles de nós que são cristãos e negros são responsáveis por identificar e cuidar dessa dor que é desencadeada toda vez que vemos tragédias racistas retratadas nos noticiários. Ignorar este momento da história somente agrava os problemas de saúde mental que em geral afligem nossas comunidades.

Quando o trauma comunitário não é resolvido, ele se esconde nos recessos de nossas mentes e se transforma em medos que, consciente ou inconscientemente, passamos para nossos filhos. Em vez disso, precisamos proferir sobre os corpos e as mentes de pessoas negras a Palavra de cura que vem de Deus, de maneiras que inspirem ação e reacendam a esperança.

“As estatísticas são desnecessárias para aqueles de nós que carregam no coração a experiência de ser negro neste país”, escreve Esau McCaulley em sua matéria de capa da CT sobre Paulo e a ética policial. Ele continua:

Os Estados Unidos, tanto historicamente quanto no presente, não nos protegeram. Antes, usaram a espada para incutir um medo que foi transmitido, de geração a geração, em lares e igrejas de negros. Esse pavor, entretanto, nunca teve a última palavra. Em vez disso, os cristãos negros se lembraram de não temer aqueles que só podem matar o corpo. Em nossos melhores momentos, em nossos momentos mais cristãos, exigimos nossos direitos de primogenitura como filhos de Deus.

A mesma mensagem de esperança também precisa ser proclamada em outras igrejas, não apenas nas igrejas da comunidade negra. Elas também virão a sofrer por causa de notícias como essas. Elas também são chamadas a lamentar a condição caída deste mundo, a cuidar da dor de irmãos e irmãs que sofrem isso na própria pele e a exigir responsabilização e mudança em nossos sistemas.

Às vezes é fácil ignorar o trauma vivido pelos negros, como se fosse algo que acontecesse “com eles” e não “com todos nós”. Quando isso acontece, os cristãos perdem a oportunidade de exercer a linguagem bíblica do lamento comunitário. Ela nos aproxima uns dos outros e, o que é mais importante, nos aproxima do sofrimento de nosso Senhor.

Como igreja, somos chamados a ser solidários com aqueles que choram e a carregar o fardo daqueles que sofrem. Isso significa recusarmo-nos a permanecer insensíveis diante de episódios de brutalidade policial nas comunidades negras e estarmos dispostos a fazer algo — o que quer que seja — a respeito.

Nicole Massie Martin é Diretora de Impacto da Christianity Today.

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Barbie e Ken podem nos fazer lembrar do Éden

Para os cristãos, o último filme de Greta Gerwig é uma oportunidade para refletir sobre a “Queda afortunada”.

Christianity Today August 2, 2023
Courtesy of Warner Bros. Pictures

Questões sobre gênero e sexualidade assolam a igreja evangélica, da Southern Baptist Convention (SBC) à Presbyterian Church in America (PCA). Os livros sobre o tema estão proliferando. Nesse contexto, é compreensível que algumas pessoas vejam o novo filme da Barbie como mais uma saraivada nas guerras de gênero. Mas o mais recente projeto de Greta Gerwig tem camadas demais para ser lido por meio de uma hermenêutica literalista.

Em vez de oferecer uma afirmação cega do feminismo ou uma crítica ao patriarcado, o filme explora modos como usamos a ideologia para contornar a tarefa mais confusa que é crescer como seres humanos. As guerras de gênero não são exatamente o enredo, são mais o cenário do filme. Elas moldam o mundo em que Barbie e Ken buscam a maturidade.

Considere o arco do personagem Ken. Condenado a ser sempre “apenas Ken”, o namorado de Barbie encontra sua identidade por meio do relacionamento com ela. Ele “é submisso” ou se sujeita bajuladoramente a ela, seguindo-a para o mundo real. Uma vez lá, no entanto, ele tem a visão de uma vida diferente — uma visão na qual homens governam, mas, o que é ainda mais importante, sentem-se vistos e valorizados. Atribuindo isso ao Patriarcado™, Ken leva a ideia da superioridade masculina de volta à Barbielândia como um atalho para seu próprio crescimento.

O filme acompanha as recentes observações de Christine Emba de que os homens modernos estão vivendo “uma crise de identidade generalizada — como se não soubessem como ser”. Essa perda de identidade, segundo ela argumenta, é o que alimenta a popularidade dos gurus da masculinidade de direita , de Jordan Peterson a Andrew Tate. Essas vozes parecem oferecer aos homens jovens um caminho a seguir. O fato de isso muitas vezes tender à misoginia, como acontece na própria jornada de Ken, é apenas parte da questão.

Mais para frente, Ken reflete sobre as raízes de seu descontentamento, que têm menos a ver com a ordem social e mais a ver com uma abdicação de si mesmo, por meio de exibicionismo e uma identidade performativa.

A jornada da Barbie também é direcionada para longe dos estereótipos de gênero e mais voltada para uma personalidade madura. Ao contrário de Ken, no entanto, que toma consciência de seu próprio valor, ela aprende a abraçar a própria imperfeição.

Quando Barbie é inexplicavelmente tomada por pensamentos de morte e seus calcanhares tocam o chão, ela busca a ajuda da Barbie Estranha, uma pária que é semelhante a um guru. Em uma cena que lembra Matrix, a Barbie Estranha oferece a ela uma escolha: a Barbie pode voltar para a não-realidade ou pode se mover rumo ao conhecimento, aderindo a uma missão no mundo real.

Em vez de uma pílula azul ou vermelha, no entanto, ela oferece à Barbie um sapato rosa de salto alto ou uma sandália Birkenstock (uma sandália confortável que acomodará seus pés agora chatos). Mesmo que a Barbie queira escolher o sapato de salto alto e voltar a um estado de ignorância, várias questões e desafios a obrigam a deixar a Barbielândia em busca de respostas.

Tanto Barbie quanto Ken se aventuram para além seus clichês de plástico, a fim de descobrirem sua humanidade plena (e sexuada). Embora essas questões existenciais sejam revigorantes em um filme convencional, a verdadeira mágica encontra-se no modo como ambos se movem rumo à maturidade: por meio da imperfeição e do erro.

Para os evangélicos, enquadrar o amadurecimento à luz do pecado original pode ser algo profundamente perturbador, em especial porque Gerwig parece sugerir que o conhecimento experimental é necessário para o desenvolvimento humano. Em contraste, entendemos a narrativa de Gênesis como uma história de rebelião. Ao escolher o que era proibido, a mulher e o homem desobedecem e se colocam sob uma maldição que atormentará toda a sua existência — da terra sob seus pés (chatos) até seus próprios corpos.

Além do mais, muito da teologia e da prática evangélicas visa reverter essa maldição. Entendemos que Jesus é o Segundo Adão, que veio para redimir e restaurar o que foi perdido (Romanos 5.12-20). Todos ansiamos pelo dia em que seremos perfeitos novamente.

E, no entanto, dentro desse enquadramento, às vezes negligenciamos o processo pelo qual Deus nos santifica. Ao confessarmos nossa pecaminosidade, nós nos convencemos de que a vida com Cristo será uma linha ascendente de desempenho cada vez melhor que, mais adiante, resultará em perfeição. Tendo começado pelo Espírito, estamos bastante convencidos de que somos capazes de continuar por nossa própria força. Mas, na medida em que essa abordagem ao discipulado nega nossa humanidade, lutaremos para viver com nossa imperfeição. Como um conselheiro me disse recentemente: “Você não é um anjo, Hannah. Você é um ser humano.”

Nesse ponto, a teologia pode nos ajudar. Embora tenham uma compreensão correta da Queda como uma perda, os teólogos — de Ambrósio a Agostinho, de Tomás de Aquino a Wycliffe — também a denominaram de “Queda afortunada”, a qual revela a bondade de Deus de uma forma que a perfeição humana não consegue. Como John Milton apresenta a noção, em Paraíso Perdido:

Ó Bondade infinita, Bondade imensa!
Que todo bem desse mal produzirá,
E o mal transforma em bem [ainda] mais maravilhoso
Do que aquele que a criação primeiro trouxe à existência
Luz nascida das trevas!

Não pecamos para que a graça abunde (Romanos 6.1); e, no entanto, a graça é abundante. De alguma forma, Deus é capaz de pegar nossas falhas e, por meio delas, nos levar a uma compreensão mais rica e mais profunda de nós mesmos e de sua graça. Em uma ironia divina, só entendemos a graça quando dela precisamos. Ou como Jesus coloca em Lucas 7.47, aquele a quem pouco foi perdoado, ama pouco, enquanto aquele a quem muito foi perdoado, ama muito.

Desta forma, a santificação exige que deixemos para trás formas plásticas de ser e abracemos a humanidade que Deus nos deu, com todas as suas imperfeições. Exige que passemos de formas idealizadas para a complexidade de vidas encarnadas. Exige que deixemos para trás a Barbielândia.

Para os cristãos, esse processo é sustentado pela própria encarnação de Cristo, que afirmou a virtude da existência humana mesmo em um mundo amaldiçoado. E é garantido pela morte e ressurreição de Cristo, que oferecem perdão e esperança diante de nossas imperfeições.

Quando abraçamos essa imperfeição de nossa vida e aceitamos um mundo marcado por dúvida, pecado e morte, nós o fazemos confiantes na realidade do amor de Deus por nós. No fim, não são nossos erros que nos completam; antes, é Deus que redime nossos erros. É Deus que, apesar de conhecer todas as nossas fraquezas e desobediências, nos chama a descansar em sua perfeita obediência.

Ou como um amigo me disse recentemente, é Deus quem, por meio de Cristo, diz a seus filhos vacilantes: “Eu sei exatamente por que vocês estão onde estão, muito mais do que vocês mesmos sabem. As razões são ainda mais profundas do que imaginam. E eu vou assegurar isso pessoalmente a vocês. Apenas fiquem [aqui, comigo].”

E é desta forma que o amor de Deus nos torna reais.

Hannah Anderson é autora de Made for More, All That s Good e Humble Roots: How Humility Grounds and Nourishes Your Soul.

Tradução de Mariana Albuquerque.

Edição de Marisa Lopes.

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