A metáfora bíblica do casamento nada tem a ver com sexualidade

Podemos ter uma visão correta de Deus como marido e como Pai sem divinizar a sexualidade masculina.

Christianity Today March 14, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Unsplash / Getty

Na semana passada, meus alunos e eu estávamos procurando maneiras de interpretar textos difíceis de Paulo, em sala de aula, quando começou uma tempestade on-line em torno da teologia da metáfora do casamento.

Nos tópicos do Twitter e nas postagens do Substack, vozes cristãs ofereciam suas opiniões perspicazes sobre a leitura metafórica que o pastor Joshua Ryan Butler fizera de Efésios 5, publicada no site The Gospel Coalition. O artigo de Butler, um trecho de um livro sobre sexo, prestes a ser lançado, gerou feedback crítico suficiente para que o artigo fosse removido.

A discussão recente, porém, ressalta uma questão perpétua para nós como cristãos: como podemos discernir fielmente o que é Bíblia e o que é tradição cristã? Qual deve ser a nossa chave interpretativa?

Como cristãos, apontamos para o Deus triúno como a fonte de todo amor; e uma das maneiras pelas quais as Escrituras nos convidam a considerar Deus e o amor é por meio da linguagem metafórica do casamento. Em Efésios 5, Paulo descreve o casamento, uma união tanto social quanto física, como um profundo mistério (v. 32), e extrai lições práticas de abnegação e sacrifício para esposas (v. 21-24, 33) e maridos (v. 21, 25, 28-29, 33). Entrelaçadas a esses ensinamentos sobre o casamento, há belas declarações sobre Cristo e a igreja.

Nossa interpretação dessas afirmações deve estar ancorada no próprio texto bíblico. Antes de descrevê-lo como marido, em Efésios 5, Paulo usa imagens para revelar a soberania do Senhor. Embora ele tenha acabado de usar seu nome encarnado, Jesus, Paulo se refere ao Filho de Deus como Cristo e Senhor. Jesus Cristo é o Messias, aquele que governa sobre o reino de Deus, e Senhor, o soberano sobre o universo. Ele também é o Salvador do Corpo (v. 23).

Cristo exerce seu senhorio soberano por meio de atos de serviço e amor sacrificiais, como em João 13 e Filipenses 2. Cristo, o Soberano, amou a igreja e se entregou por ela, a fim de santificá-la. Cristo lidou com o problema do pecado pelo lavar, trabalho que pertencia a um servo (Efésios 5.26-27). Todos os membros do corpo, individual e coletivamente, como igreja (v. 30), precisavam da salvação que somente Cristo, o Senhor, poderia trazer.

Paulo compara os maridos a Cristo nesta passagem, mas isso não significa que os maridos sejam como Cristo em todos os aspectos. É libertador para todo homem saber de que maneiras não deve (porque não pode) “ser Senhor” para a sua esposa. Ele não pode salvar nem santificar sua esposa, pois ele próprio também precisa de um Salvador e está contaminado pelo pecado.

Não é como os outros homens

Paulo cita o relacionamento das esposas com seus maridos como um exemplo para que todos os cristãos se submetam uns aos outros e para que todos os membros da igreja se submetam a Cristo; ele, porém, nunca diz aos maridos para que liderem suas esposas, apenas para que as amem — um imperativo que ele repete em Efésios 5.25, duas vezes no versículo 28 e novamente no versículo 33.

Vemos que os maridos não são Jesus, e que Jesus não é como um marido em todos os aspectos. Embora Paulo ensine os maridos a amarem de forma sacrificial, seguindo o exemplo da morte sacrificial de Jesus pela igreja, ele vai além dos limites da metáfora do casamento, quando fala do amor de Cristo pela igreja. Paulo deixa claro que o amor sacrificial de Cristo não é apenas um evento expiatório único. Cristo se envolve em um cuidado contínuo e de longo prazo para com a igreja.

Em Efésios 5.29, ele alimenta a igreja, termo usado para se referir ao cuidado de um pai com os filhos (Efésios 6.4) e para falar da mãe que amamenta (Lucas 23.29). Cristo também cuida da igreja, termo usado para falar sobre manter aquecido (Deuteronômio 22.6) ou cuidar dos filhos (1Tessalonicenses 2.7). Paulo não está limitando a metáfora a marido e mulher, mas está introduzindo na metáfora do casamento imagens de Cristo associadas ao papel dos pais — e até mesmo imagens parentais associadas a corpos femininos.

A igreja é feminilizada na metáfora de Paulo, embora seja composta de pessoas dos sexos masculino e feminino, todas elas chamadas a amarem a Cristo como uma noiva. Cristo é representado principalmente como marido nessa metáfora — e ele certamente é personificado como homem —, mas Cristo não é como os outros homens, não somente porque ele é Deus, mas também porque seu corpo masculino veio da carne de um corpo feminino (Maria), e não de um corpo igualmente masculino (José).

Esta realidade consiste simplesmente na declaração da doutrina da concepção virginal de Jesus. Em suma, a representação que Paulo faz da singular soberania e da obra redentora de Cristo, além [de ser composta] de metáforas que mesclam parentalidade e casamento, preserva a fronteira defendida por todo ensino cristão: a fronteira entre o Criador e a criação.

E isso significa que este texto também preserva a fronteira entre Cristo e os homens, libertando os maridos de um padrão que eles jamais poderiam alcançar. A única maneira pela qual eles são chamados a ser como Jesus é amando suas esposas com abnegação, de forma sacrificial, precisamente o chamado que Paulo faz a todos os crentes (Efésios 5.1-2). É o próprio texto bíblico que fecha a porta para o privilégio da proximidade entre os homens e Jesus/Deus, conceito que tem sido utilizado para justificar o abuso que as mulheres sofrem por parte de homens que se revestem com trajes espirituais.

Um mistério profundamente inclusivo

Como fica evidente em Efésios 5, o casamento não é a única metáfora usada para falar da relação de Deus com a igreja nas Escrituras. A família é outra arena proeminente da linguagem bíblica. Às vezes, Deus é o marido, embora, com mais frequência, Deus seja chamado de Pai. Até Efésios 5, texto conhecido pela metáfora do casamento, começa assim: “Portanto, sejam imitadores de Deus, c omo filhos amados” (ênfase acrescentada).

Um dos perigos de enfatizar demais a metáfora do casamento é que ela pode contribuir para a idolatrar o casamento e privilegiar a experiência daqueles que podem legitimamente se envolver em relações sexuais. Em contrapartida, a metáfora da família é mais universal. Quer seja uma experiência boa quer não, todos sabem o que é ser filho ou filha, mas nem todos sabem o que é ser casado. O caráter universal da metáfora da família para falar de Deus tira a metáfora do casamento de qualquer pedestal indevido.

Além disso, a terminologia ligada à família não se presta a comparações inadequadas entre sexo e relacionamento com Deus, como acontece com a metáfora do casamento. Certo, um homem não se torna pai, do ponto de vista biológico, senão por meio do sexo; mas o mesmo não se aplica a Deus Pai. Deus é o Criador. Deus é Espírito. Deus é eternamente três pessoas em relacionamento amoroso e dinâmico entre não-gerado, gerado e aquele que procede.

Quando o Deus triúno revelou-se de forma preeminente na encarnação do Filho divino, essa revelação ocorreu por meio de um ato não sexual. O Espírito Santo de Deus veio sobre Maria, mas não teve relações sexuais com ela (Lucas 1.35).

Quando corretamente compreendidas, ambas as metáforas usadas nas Escrituras — a de Deus como nosso marido e a de Deus como nosso Pai — trabalham contra um problema fundamental a ser evitado: a grosseira sexualização masculina de Deus, bem como seu corolário, uma divinização da sexualidade masculina. Este é o erro que Butler cometeu em sua interpretação, que equipara o modo que “Cristo penetra sua igreja com a semente geradora de sua Palavra” com a intimidade sexual de uma noiva à espera [do noivo] no leito da lua de mel.

Na Encarnação, o Deus eterno escolheu revelar a si mesmo como o Pai que não é um homem encarnado e um Filho eterno que se tornou um homem encarnado. E, na eterna sabedoria de Deus, essa revelação ocorreu por meio de, com agência ativa e o corpo de uma mulher. Há um mistério profundo e intensamente inclusivo no corpo de nosso Senhor, um homem concebido virginalmente, pelo poder do Espírito Santo, quando Maria disse sim. Seu corpo evoca a imagem de Deus (Colossenses 1.15; 2Coríntios 4.4) conforme proclamada em Gênesis 1.26-27, a imagem de Deus no homem e na mulher.

É esta revelação de Deus em Jesus Cristo que deve controlar nossa interpretação da metáfora do casamento, em Efésios 5. Jesus é a chave para o nosso discernimento. Se o Pai de Jesus Cristo se revela de forma preeminente na Encarnação, que não se dá pelo sexo; e se o Filho, que é um homem nascido do corpo de uma mulher, também nunca teve relações sexuais; e se esse Deus é metaforicamente o marido da igreja, então, a atividade sexual masculina, uma categoria que pertence à ordem das criaturas, não pode ser projetada em nosso Deus.

Quando entendido por meio da Encarnação, nosso relacionamento metafórico em que o Deus triúno figura como marido oferece algo belo e bom para todos, casados e solteiros, homens e mulheres, sem privilégio para alguns, mas escassez para outros.

A bem da verdade, essa controvérsia mostra que diferentes escolas de interpretação precisam estar em comunicação umas com as outras, e não isoladas em silos independentes. É a unidade, até mesmo e especialmente a unidade ao longo da diferença, que Jesus disse que comunicaria o amor de Deus a um mundo tão desesperadamente necessitado dele (João 13.35).

Não somos todos casados uns com os outros, mas todos fazemos parte da mesma família.

Amy Peeler é professora associada de Novo Testamento no Wheaton College e reitora associada na St. Mark's Episcopal Church, em Geneva, Illinois. Ela é autora de um livro sobre Maria intitulado Women and the Gender of God.

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