Por que defender sua fé, se você vive no continente mais cristão do mundo?

O livro Apologetics in Africa [Apologética na África] oferece recursos para crentes e céticos de um contexto em que a igreja continua, em grande parte, despreparada para responder aos ataques à sua fé.

Christianity Today May 17, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Wikimedia Commons

Para a maioria dos africanos, não há dicotomia entre os domínios do sagrado e do secular. Embora essa visão holística da vida tenha grandes méritos, ela também pode servir como uma esponja, absorvendo todos os tipos de espiritualidade. A apologética cristã atua como um portão que bloqueia a entrada do sincretismo e dos falsos ensinamentos.

Como 1Pedro 3.15-16 nos lembra, devemos estar sempre preparados para defender a nossa fé e, ao mesmo tempo, “conservando a consciência limpa, de forma que os que falam maldosamente contra o bom procedimento de vocês, pelo fato de estarem em Cristo, fiquem envergonhados de suas calúnias.” Em outras palavras, a apologética é uma conversa gentil sobre a fé, não uma luta a ser vencida. A obra Apologetics in Africa: An Introduction [Apologética na África: Uma introdução] oferece respostas tanto para crentes quanto para céticos, num continente em que os cristãos continuam, em sua grande parte, despreparados para responder aos ataques à fé que abraçaram.

Este não é, de forma alguma, o primeiro livro sobre apologética na África, mas já era esperado há muito tempo, e destaca-se pelas perspectivas únicas dos diversos autores sobre uma seleção de tópicos da apologética. Em um continente onde o perigo do sincretismo é bem real, uma apologética eficaz é desesperadamente necessária, não apenas como um tópico acadêmico, mas na vida diária dos crentes.

Oriundos do Quênia, da Etiópia, do Zimbábue, da África do Sul, da Nigéria e de Uganda, os autores que colaboraram para essa obra abordam o cristianismo como uma fé que foi amplamente aceita no continente todo, mas que requer contextualização. Esses 16 ensaios sobre questões culturais e práticas do contexto africano orientam a integração entre fé e vida na igreja cristã africana, a qual, por sua vez, tem sofrido influências de crenças de tradições africanas, da colonização, do pensamento ocidental e das tendências globais contemporâneas. (Apesar do título, o livro trata principalmente de questões da África Subsaariana, e todos os seus colaboradores são de países anglófonos).

A teologia cristã no contexto africano deve ser complementada pela apologética, pois os crentes precisam de uma fé que possam explicar. Além disso, a fé cresce quando está aberta a exame. Portanto, a apologética pode ser considerada um subconjunto crucial da teologia africana, e a obra Apologetics in Africa está à altura da tarefa — embora tenha sido modestamente intitulada uma “introdução”, como um convite para uma discussão mais aprofundada. Afinal de contas, a tarefa da apologética nunca termina.

O enredo histórico

Reuben Kigame, músico gospel e apologista queniano, escreveu: “A apologética cristã tem suas raízes mais profundas no norte da África”. De certa forma, este livro está revisitando o tópico da apologética na África após um longo hiato, mas com foco em questões contemporâneas. Com muita propriedade, o editor Kevin Muriithi Ndereba, chefe da cadeira de teologia prática da St. Paul's University [Universidade de São Paulo], no Quênia, abre a obra Apologetics in Africafazendo uma retrospectiva de Agostinho, Tertuliano e outros teólogos que viveram no norte da África, quando o “modo padrão de missões” era a apologética.

Ndereba descreve a apologética como uma área multidisciplinar e que se beneficia de outras disciplinas — o que é uma observação importante, pois as perguntas que as pessoas fazem sobre a fé não estão confinadas em uma categoria específica. Quando um currículo acadêmico inclui um curso sobre apologética, geralmente é um curso de nível superior. Isso se deve ao fato de que os alunos precisam de um sólido acervo de informações básicas que possibilite a integração interdisciplinar em seu trabalho sobre apologética.

A organização do livro em quatro categorias (bíblica, filosófica, cultural e prática) implica o desenvolvimento de um discurso abrangente, que pode orientar acadêmicos e os demais envolvidos na apologética africana. É claro que as questões bíblicas são um bom ponto de partida, pois não pode haver defesa da fé cristã sem um fundamento bíblico. Assim, na seção bíblica, o artigo “A Bíblia é confiável? Criticismo Bíblico e Hermenêutica na África”, da queniana e estudiosa do Novo Testamento Elizabeth Mburu, é particularmente bem articulado. A abordagem de Mburu combina duas perspectivas — questões clássicas e hermenêutica contextualizada — com o propósito de transformar o crente.

Tópicos doutrinários pertinentes para uma África marcada pela diversidade

A África é um continente repleto de diversidade, com 54 países, mais de 3.000 tribos e imensas variações em crenças e práticas culturais. Assim, embora os leitores africanos possam encontrar áreas em comum neste livro, eles também precisarão refletir teologicamente sobre seus interesses e contextos específicos para se engajarem na apologética de forma eficaz.

Diante dessa diversidade cultural, é imperativo que os crentes africanos entendam algumas doutrinas bíblicas fundamentais, a fim de construir uma base sólida para suas inferências. Para mim, três doutrinas se destacam como particularmente centrais. A primeira é bem abordada no livro em questão, as outras duas nem tanto.

Cristologia

Este tema-chave, em especial a pessoa de Cristo, não tem paralelos próximos nos sistemas de crenças das tradições africanas. Mas, como escreve o teólogo sul-africano Robert Falconer, no seu capítulo intitulado “Uma Apologética Africana para a Ressurreição”, a verdade e a confiabilidade histórica da ressurreição de Cristo é o que torna o cristianismo digno da nossa filiação exclusiva.

Em uma aplicação da cristologia a um contexto cultural africano, Ndereba contribui com um capítulo sobre “A Doutrina de Cristo e os Ritos Tradicionais dos Anciãos: mbũrĩ cia kiama". A expressão mbũrĩ cia kiama pode ser traduzida como “cabras para o conselho”. O termo se refere à prática da tradição Gikuyu, pela qual um homem, que se qualificou para o status de ancião, doa cabras para o conselho de anciãos.

Ndereba elogia essa tradição por reconhecer o valor do conselheiro, mas também aponta um dilema: como os cristãos devem abordar essa prática? Os cristãos africanos ainda precisam realizar sacrifícios de animais [de cabras, no caso] para levar a sério uma posição e sua respectiva responsabilidade? Como eles podem alinhar essa prática com o sacrifício redentor de Cristo? O processo de contextualização não pode simplesmente incutir um significado cristão nas práticas tradicionais africanas, pois seus significados podem não estar alinhados.

Os apologistas cristãos na África devem examinar atentamente sua própria cultura e discernir as analogias apropriadas para seu contexto. Entretanto, todo o conselho de Deus deve ser ensinado aos que se convertem ao cristianismo, mesmo quando não houver semelhanças óbvias com sua cultura.

Quando os autores contextualizam sua teologia na África, é comum que destaquem aspectos da cristologia — principalmente a obra de Cristo — que encontrem semelhanças com as crenças das tradições africanas; também é comum que evitem conceitos desconhecidos, como a pessoa de Cristo. No entanto, a doutrina da pessoa de Cristo é central para o cristianismo e atrai as principais perguntas da apologética: Como Deus pode ter um filho? O cristianismo tem mais de um Deus? Como três deuses podem ser um só? Como Jesus pode ser homem e Deus ao mesmo tempo?

Quando estamos explicando a pessoa de Cristo, fazer adaptações ou analogias com crenças das tradições africanas é inadequado e algo que deve ser aludido com ressalvas. Aqui estão dois exemplos.

  • Cristo como um ancestral: Cristo é frequentemente apresentado dessa forma na África, porque ele é o mediador entre os cristãos e o Deus da Bíblia. Mas Cristo também é Deus e está vivo, enquanto os ancestrais [na cultura africana] são considerados “mortos-vivos”. Além disso, podemos nos comunicar com Deus por meio de Cristo, mas a comunicação com ou por meio dos ancestrais africanos seria considerada algo como ler a sorte e, portanto, é antibíblica.

  • Cristo como ancião (ou irmão mais velho): Como Ndereba explica com propriedade, um ancião na África tem sido historicamente uma posição com um papel importante. Mas muitos dos que são considerados anciãos hoje em dia podem não atrair tanta honra quanto antes; além disso, muitos da geração mais jovem estão desligados de seu passado de tradições e precisam de analogias diferentes, com as quais possam se relacionar. Além disso, nas tradições africanas, o irmão mais velho é considerado alguém em pé de igualdade com o pai, que assume as responsabilidades do pai, em graus diferentes, dependendo da comunidade. Mas a analogia entre Cristo e o irmão mais velho não agradaria a todos os cristãos africanos, pois seu impacto seria influenciado pelas experiências das pessoas. Muitos irmãos mais velhos são inimigos do progresso familiar, e Cristo não se encaixa nessa descrição!

Pneumatologia

Enquanto a cristologia recebe um tratamento cuidadoso no livro todo, a doutrina do Espírito Santo (a pneumatologia) não recebe atenção destacada na seção que trata de questões bíblicas. Teria sido um acréscimo proveitoso, pois essa doutrina tem sofrido abusos nos círculos eclesiásticos e nos ambientes de culto ou, às vezes, tem sido lamentavelmente negligenciada.

Em alguns casos, as pessoas têm dificuldade para discernir a diferença entre possessão demoníaca e o poder do Espírito Santo. Esse problema dificultou todo o tema da guerra espiritual para a maioria dos cristãos africanos, e muitos deles andam perambulando de igreja em igreja à procura de um profeta para resgatá-los. Como resultado, esses crentes estão vivendo em cativeiro, e não a libertação. Há uma necessidade premente de discutir a pessoa e a obra do Espírito Santo na vida dos cristãos africanos, de modo a distingui-las do papel que os demônios e outros espíritos ocupam no entendimento das crenças das tradições africanas.

Eclesiologia

Com relação à doutrina da igreja, surgem questões importantes, quando os cristãos africanos tentam alinhar suas práticas sobre as ordenanças da igreja com as maneiras pelas quais as comunidades africanas têm tradicionalmente reconhecido seus ritos de passagem, como o nascimento, a puberdade, a morte e o sepultamento.

Um rito de passagem que o livro de que falamos examina é o casamento, em especial as práticas culturais envolvidas nele. Como a teóloga zimbabuense Primrose Muyambo explica em seu capítulo, as práticas africanas em torno do dote (conhecido como lobola) podem facilmente fazer com que os cristãos comprometam sua fé, uma vez que o casamento é considerado um grande marco na vida de uma pessoa e se torna um símbolo de status dentro da comunidade.

Embora a lobola possa ser uma afirmação do valor da mulher, na África de hoje ela se tornou um costume materialista, que muitas vezes causa amargura e conflitos. Muyambo ressalta que os pais de jovens mulheres que são mais instruídas estão exigindo grandes quantias em dinheiro ou coisas caras, como casas, tanques de água ou telefones celulares, como pagamento do dote. Devido ao alto custo do dote, alguns casais começaram a coabitar, apesar da oposição da igreja. A igreja africana deve alinhar esse rito de passagem com as práticas cristãs, para ajudar os pais a se adaptarem e a apoiarem os jovens casais cristãos que desejam se casar.

Problemas semelhantes surgem com relação a outros ritos de passagem não discutidos no livro. Abordar essas questões é crucial para a apologética africana, já que algumas ordenanças da igreja parecem misteriosas em seu significado simbólico e podem parecer ter paralelos com ritos de passagem das tradições africanas, com a magia e o ocultismo. Os líderes da igreja devem identificar as principais áreas em que pode ocorrer comprometimento da fé por causa de demandas culturais e de visões de mundo contemporâneas, pois o sincretismo está prosperando na igreja africana e criando grandes dilemas apologéticos. Os crentes precisam de princípios bíblicos que lhes permitam saber o que descartar e o que pode ser adequadamente transferido de sua cultura para o cristianismo. O capítulo “Apologética e seitas na África”, do pastor ugandense Rodgers Atwebembeire, demonstra o que está acontecendo com muita frequência e faz um alerta sobre o perigo que o cristianismo na África enfrenta, se a igreja não estiver edificada na sã doutrina.

De modo geral, apesar das omissões observadas, este livro deve incentivar mais pesquisas e reflexões sobre questões práticas da apologética na África. (Seria maravilhoso se o livro também incentivasse o desenvolvimento de recursos apologéticos mais acessíveis e econômicos). As contribuições dos autores são um antídoto contra as barreiras intelectuais e emocionais à fé, e a abordagem contextualizada à hermenêutica prepara os crentes para responderem sobre a fé que professam em seu ambiente cultural contemporâneo.

Agnes Makau é reitora da Escola de Teologia da Scott Christian University, em Machakos, no Quênia.

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Culture

“Venham a mim os cristãos culturais”

O mundo está percebendo outra vez os benefícios tangíveis da nossa fé. E esta é uma oportunidade para o evangelho.

Christianity Today May 16, 2024
Priscilla du Preez / Unsplash

À medida que o cristianismo continua em declínio no Ocidente, o mundo em geral começa a notar que algo não está bem. Apesar de todos os escândalos e falhas da igreja, parece haver uma consciência crescente de que a perda da cultura cristã deixa todos nós em uma situação ainda pior, e de que há benefícios em ser cristão e em viver numa sociedade cristã.

Por exemplo, Derek Thompson escreveu recentemente no The Atlantic sobre a perda da comunidade que surge com o declínio da frequência à igreja. “Talvez a religião, apesar de todas as suas falhas, funcione um pouco como um muro de contenção”, concluiu ele, “impedindo o avanço da pressão desestabilizadora do hiperindividualismo americano, que ameaça crescer e transbordar nessa ausência [do cristianismo]”.

Da mesma forma, Tyler J. Vander Weele, estudioso de Harvard, fez uma extensa pesquisa sobre os benefícios da participação em cultos religiosos, e descobriu que leva à melhoria da saúde física e mental, à felicidade e a um senso de propósito. Estatisticamente falando, ir à igreja regularmente ajudará a pessoa a prosperar como ser humano. Como mostrou Brad Wilcox, professor da Universidade da Virgínia, a frequência regular à igreja está correlacionada até mesmo com uma vida sexual mais satisfatória!

E, depois, ainda temos aqueles, como a ex-ateia Ayaan Hirsi Ali, que explicam a sua conversão ao cristianismo, ao menos em parte, como uma resposta à decadência do mundo contemporâneo, que está ameaçado pela “ideologia woke” [termo geralmente utilizado para denominar a ideologia defendida por grupos mais progressistas em temas como justiça racial e social], pelo “Islamismo global” e pelo autoritarismo. “Acredito que a única resposta digna de credibilidade consista em nosso desejo de defender o legado da tradição judaico-cristã”, disse Hirsi Ali em um ensaio no qual anuncia a sua nova fé. O famoso ateu Richard Dawkins opôs-se à conversão de Hirsi Ali, mas parece concordar com o que ela pensa, uma vez que recentemente descreveu a si mesmo como um “cristão cultural”, em resposta à crescente influência do Islamismo no Reino Unido.

O que estes argumentos têm em comum é o reconhecimento de que o cristianismo é bom, e de uma forma tangível, para a pessoa humana e para a sociedade. Melhora a nossa vida sexual, a saúde mental e as relações sociais, e nos dá uma estabilidade, uma ordem e uma base para a liberdade e a justiça que o mundo secular contemporâneo não consegue replicar. Estas são razões poderosas para se tornar cristão e encorajar a difusão de uma cultura ao menos superficialmente cristã — que assuma o ethos do cristianismo, mesmo que não aceite a ortodoxia do cristianismo. Afinal, os dados parecem ser claros: uma cultura mais cristã geraria mais prosperidade humana.

Mas será que esta consciência dos benefícios mensuráveis do cristianismo é uma ameaça à fé autêntica ou é uma oportunidade para o evangelho?

Por um lado, como cristãos que aceitam as doutrinas ortodoxas da fé, não nos surpreende o fato de que viver de acordo com a lei de Deus gere bênçãos. Viver contra a tecitura do universo certamente causará danos aos indivíduos e à sociedade. E, uma vez que somos chamados a “buscar a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei” (Jeremias 29.7), devemos defender políticas, práticas e normas sociais que se alinhem com a nossa fé cristã. Se acreditarmos que a vontade de Deus para a nossa vida é que vivamos de acordo com o seu desígnio para o universo, e se amarmos o nosso próximo, devemos encorajar o nosso próximo a viver de acordo com esse desígnio. À luz disto, até mesmo o “cristianismo cultural” de Dawkins, que é destituído de fé, talvez seja um pequeno passo na direção certa.

Por outro lado, a vontade de Deus para a nossa vida não é apenas que vivamos de acordo com a sua lei. Sua vontade é que o conheçamos por meio de seu Filho, Jesus Cristo. E isto introduz um desafio para os cristãos, à medida que mais pessoas se tornam conscientes dos benefícios pessoais e sociais da nossa fé: como proclamarmos a virtude do cristianismo sem transformá-lo em apenas mais uma ferramenta para alcançar o bem-estar? Em outras palavras, devemos nos perguntar se uma cultura que adota as virtudes da nossa fé, por causa de seus benefícios materiais, poderá negligenciar perpetuamente ou mesmo ficar vacinada contra os benefícios espirituais dessa fé.

Num artigo recente sobre a declaração de Dawkins, o editor-chefe da CT, Russell Moore, expressou justamente esta preocupação. “O cristianismo não tem a ver com hinos nacionais, capelas em vilarejos e canções de Natal à luz de velas”, escreveu ele. Não é simplesmente um não-Islã (como gostaria Dawkins) ou não-woke (como seria o desejo de Hirsi Ali). “Se o evangelho não for real, o evangelho não funciona. O paganismo genuíno sempre vencerá o cristianismo fingido.” Cristianismo sem ortodoxia — um cristianismo que não seja uma fé viva em resposta a um Deus vivo — transforma-se em nada mais do que uma identidade social.

E o mundo já está repleto dessas identidades sociais. Se alguém puder receber os benefícios materiais do cristianismo sem realmente acreditar no evangelho, então, por que essa pessoa se preocuparia em morrer para si mesma e viver em obediência radical a Cristo? Como argumentei em meu livro Disruptive Witness [Testemunho disruptivo], a tendência moderna é ver o cristianismo como uma opção de estilo de vida, não como uma verdade revelada por um Deus transcendente que entrou na história na forma de Cristo. Se as pessoas vierem para o cristianismo apenas porque o veem como uma forma superior de otimização pessoal, então, quando as exigências do cristianismo se tornarem demasiadamente grandes, elas irão abandoná-lo por algum modismo mais fácil.

Nesse contexto, é fácil imaginar a evolução de um cristianismo alternativo que verdadeiramente zomba da fé, desvirtuando-a, removendo o Cristo do cristianismo. Pior ainda, Cristo poderia vir a ser entendido como um mero símbolo, um meme para um movimento em grande parte político, que não tem nenhuma preocupação com a verdade das Escrituras.

É fácil imaginar isso, pois já acontece há muito tempo em alguns segmentos do cristianismo americano. O evangelho social de progressistas que abandonaram doutrinas fundamentais como a da Ressurreição é um exemplo perfeito. E na direita, o cristianismo pode tornar-se uma forma de religião cívica, como na recente divulgação do ex-presidente Donald Trump de uma Bíblia patriótica. O cristianismo corre sempre o risco de ser cooptado por aqueles que desejam os benefícios materiais da fé sem a realidade espiritual do evangelho.

Mas será que aqueles que são atraídos pelos benefícios materiais do cristianismo necessariamente não conseguirão chegar a uma fé profunda, pessoal e ortodoxa? Será possível que pessoas preocupadas com um mundo insano possam chegar à fé através deste caminho mundano — em um primeiro momento, atraídas pela ordem que Deus concebeu e que é inerente ao cristianismo —, mas, posteriormente, possam ser atraídas pelo próprio Deus? É possível que pessoas solitárias e deprimidas possam chegar à fé atraídas, em um primeiro momento, por essa comunidade concebida por Deus, inerente à igreja?

Eu enxergo os riscos reais do cristianismo cultural. Mas acredito que os incrédulos — mesmo sendo, em um primeiro momento, atraídos pelos benefícios do cristianismo, e não pelo evangelho — ainda possam acabar encontrando a fé. Eles podem buscar a Deus “e talvez, tateando, [podem] encontrá-lo, embora não esteja longe de cada um de nós” (Atos 17.27).

Há perigo aqui, e devemos ter o cuidado de não encorajar uma cultura cristã superficial e desvirtuada. Mas vivemos um momento de uma abertura notável para proclamar o evangelho. Quer as pessoas venham à igreja para socializar, quer por obediência a Deus, elas precisam ouvir o evangelho. Quer as pessoas demonstrem interesse no cristianismo por seus receios em relação à cultura progressista, quer por estarem convencidas da historicidade da Ressurreição, elas precisam ouvir o evangelho.

O desafio é convidar aqueles que enxergam os benefícios da nossa fé a enxergarem também que estes benefícios são dádivas perfeitas do Pai, e não meros resultados positivos de um estilo de vida otimizado. O evangelho é esse convite. Somente proclamando o evangelho é que poderemos explicar aos nossos próximos que a cultura cristã é boa porque vem de um Deus amoroso que “abençoa ricamente todos os que o invocam” (Romanos 10.12), um Deus que deseja que eles se arrependam e se voltem para ele.

O. Alan Noble é professor associado de inglês na Oklahoma Baptist University e autor de três livros: On Getting Out of Bed: The Burden and Gift of Living [Sobre sair da cama: O fardo e a dádiva que é viver], You Are Not Your Own: Belonging to God in an Inhuman World [Você não pertence a si mesmo: Pertencendo a Deus em um mundo desumano], e Disruptive Witness: Speaking Truth in a Distracted Age [Testemunho disruptivo: Falando a verdade em uma época alienada].

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A igreja na era dos transtornos mentais

De que modo lidamos com problemas como ansiedade e depressão e o que podemos fazer para melhorar no cuidado das pessoas.

Christianity Today May 16, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Wikimedia Commons, Unsplash

Há quase cinco anos, um pastor bastante admirado — e que havia compartilhado publicamente, de forma corajosa, sua batalha contra a depressão — tirou a própria vida. Nos dias que se seguiram à sua morte, um apelo circulou amplamente nas plataformas de mídia social, para que os líderes que estivessem enfrentando problemas de saúde mental fossem removidos de seus cargos.

Eu entendo a motivação. Essa discussão foi gerada pela preocupação de evitar tragédias semelhantes. Mas, como alguém que é pastor e tem enfrentado tormentos mentais crônicos, esse apelo simplista me pareceu um exemplo da falta de jeito generalizada dentro da igreja, quando se trata de abordar transtornos mentais. Mestres cristãos proeminentes, entre eles recentemente o autor e pastor californiano John MacArthur, têm negado a simples existência de doenças diagnosticáveis, como o transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).

Reconheço que, em meu próprio ministério, minhas lutas contra a ansiedade e o TOC mostraram-se um solo surpreendentemente fértil para me conectar com pessoas. O fato de eu me abrir sobre as fragilidades da minha mente me levou a relacionamentos mais profundos, pois Deus pegou a aflição, que a princípio me parecia puramente um déficit, e a colocou para trabalhar. Como ele mesmo nos diz, a sua força se manifesta em nossa fraqueza (2Coríntios 12.9).

Portanto, acho animador ver a crescente atenção que está sendo dedicada à saúde mental e a compaixão pelos transtornos mentais em nossa cultura atual. Os recursos cristãos que abordam essa interseção entre fé e transtornos mentais também estão proliferando e fornecendo caminhos teologicamente embasados para um melhor atendimento. E há inúmeros exemplos de congregações que demonstram de forma poderosa o amor de Cristo àqueles que passam por angústia e sofrimento mental.

Ainda assim, o estigma que acompanha os transtornos mentais persiste e, em alguns ambientes da igreja, a questão frequentemente se torna ainda mais complicada pela ignorância ou por uma teologia equivocada. Os “primeiros a responder” aos cristãos que enfrentam sofrimento psicológico tendem a ser os pastores, mas muitos deles estão mal preparados para reconhecer um transtorno mental ou mesmo para lidar com ele.

Menos de 10% das pessoas que buscam o aconselhamento com pastores acabam sendo encaminhadas a profissionais de saúde mental, mesmo quando seus sintomas justificam esse encaminhamento. É grande a necessidade, pois temos cerca de um em cada cinco adultos americanos enfrentando algum transtorno mental diagnosticável (de gravidades variáveis), de acordo com o National Institute of Mental Health [Instituto Nacional de Saúde Mental] — uma estimativa que cresce de forma chocante para um em cada dois entre os adolescentes.

Em meus primeiros anos de pastorado, eu não estava preparado para lidar com o grande volume de necessidades humanas que encontraria em meu trabalho. O treinamento limitado sobre saúde mental que recebi no seminário me deu apenas um conhecimento superficial, o que fez com que eu me sentisse mais preparado do que realmente estava.

O fato de eu depois ter batido de frente com a minha própria muralha mental alterou drasticamente minha compreensão [do assunto] e me deu mais compaixão. Percebi que os mesmos versículos que costumamos citar para membros da igreja ansiosos soam muito diferentes quando somos nós que estamos paralisados pela ansiedade.

Há um consolo e uma força inigualáveis a serem encontrados Naquele que tomou sobre si todas as nossas dores e enfermidades, inclusive as da mente e da alma. Mas a pessoa de fé que está mergulhada em uma crise mental muitas vezes precisa enfrentar uma comunidade que demonstra grande desconforto diante da dor contínua e que não encontra solução.

Recentemente, ouvi no rádio um conhecido palestrante cristão declarar com veemência que pessoas deprimidas e ansiosas não estavam experimentando a unção do Senhor. A mensagem era clara: se você estiver com os sentimentos errados, não receberá a bênção de Deus. Esse tipo de pensamento pode até parecer bíblico, mas promove um evangelho destituído de graça.

Então, como a igreja deve reagir aos transtornos mentais? Como podemos cuidar melhor uns dos outros? Pedi a um grupo composto por cristãos — entre os quais estão autores renomados, especialistas e companheiros de luta com a saúde mental — que dessem sua opinião sobre o assunto.

Essas entrevistas foram editadas e condensadas para melhor compreensão.

Afinal, o que é uma boa saúde mental?

Steve Cuss, autor e apresentador do podcast da CT Being Human [Ser Humano]: Que pergunta fantástica! Saúde mental é quando a maneira como você vê a si mesmo, os outros, o mundo e Deus é congruente com a realidade. Você é capaz de pensar com clareza e tem acesso a uma ampla gama de emoções sem ser engolido por elas.

Aundrea Paxton, co-apresentadora do podcast Rise and Form [Levante-se e Forme-se], psicóloga clínica e fundadora do serviço de aconselhamento Take Heart [Tenha coragem]: A Bíblia nos dá um vislumbre de como são o bem-estar e a saúde perfeitos. Em Gênesis 2, vemos que os seres humanos prosperam quando têm um forte relacionamento com Deus e com os outros, quando cuidam de seus corpos, quando apreciam e desfrutam da criação de Deus, quando têm um senso de propósito e quando não sentem vergonha.

O. Alan Noble, professor associado de inglês na Oklahoma Baptist University e autor de On Getting Out of Bed [Sobre sair da cama]: Entre outras coisas, a boa saúde mental inclui a capacidade de ficar só, sem distrações, e não cair em ansiedade, depressão ou desespero. Ela envolve sentir toda a gama de emoções humanas, mas não permitir que essas emoções anulem sua capacidade de raciocínio ou sua vontade de buscar o bem.

Por que a falta de uma boa saúde mental nos deixa apreensivos? Suspeito que a maioria de nós se sente despreparada para estar ao lado de pessoas com problemas de saúde mental. Isso é algo exclusivo dos cristãos?

Hannah Brencher, educadora on-line, palestrante de conferências TED e autora de Come Matter Here [Venha se Importar Aqui] e Fighting Forward [Lutando para Avançar]: Apoiar alguém que sofre de um transtorno mental é algo difícil. Essa é uma realidade que não podemos suavizar nem minimizar.

Vou ser sincera: antes de passar por minha própria depressão, acho que não sabia direito como ajudar alguém que estivesse na mesma situação. Passar pela depressão e vivê-la me permitiu entender como eu precisava ser cuidada e, depois, a transmitir isso para outras pessoas.

Aundrea Paxton: Embora a igreja tenha se tornado mais sólida e consistente, ainda há resquícios de falsos pressupostos sobre como diferentes emoções e doenças se relacionam com a fé e a salvação de uma pessoa.

Que tipo de pressupostos?

Aundrea Paxton: Pressupostos sobre pecado e vergonha, que podem fazer com que pessoas escondam, neguem e suprimam suas necessidades de saúde mental, o que torna difícil tolerar essas necessidades nos outros.

Hannah Brencher: Fico chocada com a quantidade de cristãos que ainda presumem que o transtorno mental está relacionado ao fato de não terem fé suficiente em Deus. Isso me foi dito várias vezes, durante o período em que enfrentei uma grave depressão.

Como isso impactou você?

Hannah Brencher: Essa noção foi muito prejudicial, especialmente porque eu estava usando toda a energia que me restava para buscar a Deus em meio àquela luta. Hoje eu entendo, mas infelizmente não sabia naquela época que Deus não está me apontando um certo nível de fé e pedindo que eu chegue até lá, antes que possa sentir algum alívio.

Levei muito tempo para perceber que Deus é um companheiro na jornada rumo ao bem-estar mental, e não um adversário.

O. Alan Noble: Os evangélicos estão, por definição, preocupados com o evangelismo e, no mundo secular em que vivemos, o evangelismo facilmente se transforma em um discurso de vendedor: “O cristianismo tornará sua vida melhor do que é atualmente”. O cristianismo se torna apenas mais uma opção de estilo de vida em um mar de opções.

Quando isso acontece, ficamos muito preocupados em revelar qualquer indício de que nossa vida pode não ser assim tão boa. Por isso, escondemos nosso sofrimento até mesmo de outros cristãos, porque não queremos dar a impressão de que nossa fé é fraca ou de que estamos dando um mau testemunho.

Qual é a sua reação, quando cristãos bem-intencionados indicam para pessoas com transtornos de ansiedade versículos como “Não andeis ansiosos por coisa alguma” (Filipenses 4.6)?

Aundrea Paxton: Primeiro, eu os incentivaria a ler o livro inteiro de Filipenses. Com muita frequência, tiramos as Escrituras do seu contexto. Em segundo lugar, eu os lembraria do papel do Espírito Santo em nos capacitar para fazer o que é bom para nós. Não podemos fazer nada de bom com nossas próprias forças.

Por fim, eu lhes diria para se concentrarem no versículo 7 de Filipenses 4, que diz: “ Então, a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o coração e os pensamentos de vocês em Cristo Jesus.” Os comportamentos listados no versículo 6 servem apenas para redirecionarmos o foco para a fonte dessa paz.

Então, o que vocês acham que a igreja está fazendo certo em resposta à atual crise de saúde mental?

Aundrea Paxton: A igreja tem feito avanços significativos na promoção de discussões sobre saúde mental e na redução da hostilidade em relação à psicologia. Hoje temos mais sermões e mais recursos dedicados à saúde mental.

Steve Cuss: Muitas igrejas com as quais trabalho fazem parcerias com profissionais de saúde mental ou têm sua própria clínica com terapeutas licenciados. Vejo mais pregadores que falam abertamente sobre saúde mental e, aos poucos, estamos nos tornando mais informados sobre traumas, e compreendendo a natureza complexa da saúde de todo o corpo e os gatilhos do trauma.

E onde ainda há espaço para melhorias?

Steve Cuss: Ainda vejo muitos cristãos e líderes de igrejas que têm uma necessidade ansiosa de levantar o ânimo das pessoas. Eles não percebem que suas palavras e conselhos não servem realmente para a pessoa que está em crise, mas são, na verdade, uma maneira de aliviar a ansiedade que eles mesmos sentem, quando se veem na presença de alguém que está lutando com um problema complexo de saúde mental.

O outro desafio é que problemas debilitantes de saúde mental devem ser tratados por um profissional treinado, e nós somos amadores, na maioria. Não creio que tenhamos fornecido recursos suficientes para ajudar os amadores a serem úteis, quando lidam com um colega ou membro da igreja que luta com questões de saúde mental.

O. Alan Noble: A igreja precisa aprender a equilibrar o valor real da sabedoria espiritual com o valor real dos serviços de profissionais de saúde mental. Há um perigo em terceirizar todos os casos de sofrimento mental para profissionais de saúde mental. É fácil, até mesmo para os cristãos, profissionalizar coisas como orientação, conselho sábio, conselho dos anciãos e amizade. Mas há um perigo semelhante em tentar tratar todos os casos de sofrimento mental apenas com oração e aconselhamento pastoral.

De que maneiras o corpo de Cristo poderia ser uma fonte de cuidado excepcionalmente poderosa?

Aundrea Paxton: A igreja é um lugar onde podemos encontrar o bem mais valioso para atender a qualquer necessidade: a esperança na obra de Cristo e a paz na salvação eterna de nossas almas. Embora essas verdades não nos impeçam de passar pelas provações e aflições da vida, nossas histórias não terminarão em dor; nossas virtudes e valores podem ser nosso fundamento durante o caos; e temos um Deus que é todo-amoroso, todo-poderoso e completamente sábio.

Steve Cuss: A saúde mental debilitada é algo que isola profundamente as pessoas. A igreja pode oferecer uma poderosa comunidade de cura. A maioria das pessoas não quer nossos conselhos; elas querem nossa presença. Elas querem se sentir vistas; querem um espaço seguro para serem exatamente elas mesmas.

Na obra Life Together [Vida em Comunhão], Dietrich Bonhoeffer disse que o primeiro serviço que devemos uns aos outros é ouvir. Ele acreditava que estamos fazendo o trabalho do próprio Deus, quando prestamos esse tipo de atenção, e esse é um pensamento profundo.

O. Alan Noble: Esse pode ser o elemento mais importante de sua recuperação. A igreja, especialmente à medida que se manifesta no contexto local, é uma comunidade encantadora de cuidado mútuo. O mundo contemporâneo é terrivelmente isolador, muitas pessoas não têm amigos, e muito menos amigos com os quais possam contar para acompanhá-las no sofrimento. Todo cristão deve ter amigos em sua congregação local que possam ministrar a ele.

Steve Cuss: Já vi isso acontecer em contextos de igreja, e é algo muito forte. Conheço muitas pessoas com problemas debilitantes de saúde mental que dizem: “Eu estaria perdido sem a comunidade da minha igreja local”.

Em contrapartida, embora conheçamos o poder singular do evangelho para lidar com as questões de saúde mental, as próprias comunidades encarregadas desse evangelho muitas vezes infligem às pessoas traumas religiosos que agravam os desafios de saúde mental. Como podemos conciliar essas duas verdades?

O. Alan Noble: Não há nada de particularmente surpreendente nisso. É um fenômeno que está presente em todos os aspectos da igreja.

Como assim?

O. Alan Noble: A igreja ensina a fidelidade no casamento; no entanto, não raro vemos pastores que são pegos em infidelidade. A igreja nos ensina a dar com generosidade aos necessitados; no entanto, muitos cristãos praticam o que Francis Schaeffer chamou de “uso não compassivo da riqueza acumulada”. Os cristãos não conseguem viver de acordo com o padrão estabelecido pela Palavra de Deus. E continuarão a fazer isso, individual e coletivamente, até que Cristo volte. Esse é um ensinamento difícil.

Steve Cuss: Para cada história positiva que ouço sobre a igreja ser útil, ouço duas que causam danos significativos. Acho que o trauma religioso é agravado por algumas dinâmicas:

  1. Não nos damos conta do poder espiritual que temos como líderes da igreja, e que, consequentemente, nossas palavras têm em si um poder significativo. E as Escrituras também têm, de modo que, quando “prescrevemos” a Bíblia [como se fosse a receita de um tratamento], podemos causar danos mesmo sem ter a intenção.
  2. Alguns líderes religiosos simplesmente não entendem a natureza da saúde mental, e a veem por meio de uma dicotomia simplista de anjos e demônios, ou prescrevem alguma versão cristã de “veja o lado bom das coisas”. Muitos líderes cristãos não sabem o que fazer ou dizer diante da dor avassaladora ou complexa de alguém.
  3. Compartilhar seu mundo interior e sua jornada lhe deixa vulnerável, e quando alguém prescreve uma solução cristã simplista e incorreta, isso causa danos reais e isola ainda mais a pessoa.

Aundrea Paxton: Acredito que as duas coisas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, especialmente quando se trata de Deus. Em primeiro lugar, como seres humanos, somos caídos e falhos, e, portanto, ferimos os outros. Em segundo lugar, Deus pode trabalhar por meio de seres humanos imperfeitos de forma poderosa. Nenhum ser humano jamais será capaz de refletir perfeitamente a plenitude do caráter de Deus, mas Deus não fica limitado por isso.

Vamos passar da igreja para suas experiências pessoais com transtornos mentais. A vitória no cristianismo é muitas vezes equiparada a estar totalmente livre de aflições. No entanto, sempre me lembro do espinho na carne do apóstolo Paulo, que não foi removido, e de como a força de Deus se manifestou ainda mais nessa fraqueza contínua do que se manifestaria em uma cura milagrosa para o apóstolo.

O. Alan Noble: Até agora, Deus tem me pedido para suportar o sofrimento do transtorno mental. Eu espero, oro e trabalho pela recuperação, mas descanso no conhecimento de que, no final, serei curado, mesmo que não seja nesta vida. Essa é a postura que incentivo que tenham todos que estão sofrendo. Tenham esperança, orem e trabalhem por sua recuperação — lutem por si mesmos! Mas depositem sua fé em Cristo e aceitem que talvez lhes seja pedido para suportar e glorificar a Cristo em sua fraqueza.

Hannah Brencher: Acredito que o poder de Deus se manifesta em mim por meio da vida cotidiana e de um estilo de vida que apoie a minha saúde mental. Tomo medicação para minha depressão há quase uma década. Não sei se vou continuar tomando para o resto da vida, mas sei que isso me permite passar bem diariamente, o que é o mais importante para mim.

Então, vocês sentem que suas orações foram atendidas, apesar de a batalha continuar?

Hannah Brencher: Não acho que minha história seja menos importante porque não obtive uma cura milagrosa. Acho que a cura é algo que estou exercitando e em que me apoio todos os dias, e há muito poder nisso.

Aundrea Paxton: O fim do casamento dos meus pais foi uma experiência significativa que me levou a estudar psicologia. Embora tenha sido um momento doloroso, que deixou muitas feridas, vi Deus usá-lo para o seu bem. Quando me sento diante de meus clientes, às vezes tenho o privilégio de trabalhar com eles por tempo suficiente para ver como Deus esteve presente em sua dor, e, mais tarde, usou essa dor como um meio de crescimento em suas vidas.

Na história do seu próprio sofrimento, vocês têm exemplos de maneiras pelas quais experimentaram graça e cura através da comunidade cristã?

O. Alan Noble: Não dá para contar nos dedos. Quase toda a graça e cura que experimentei vieram através da comunidade cristã, através de amigos que se dispuseram a me ligar, quando lhes enviei uma mensagem em pânico, através de amigos que compartilharam conselhos sábios, através de amigos que me fizeram alguma exortação firme, mas necessária.

Steve Cuss: Tenho tantos exemplos tangíveis de experiências de amor e carinho, nos momentos em que eu não estava bem! O mais comovente foi numa manhã de domingo, quando soube que um amigo havia tirado a própria vida. Recebi a notícia cerca de uma hora antes de pregar, e fiquei em choque, mas não reconheci meu estado de choque. Então, saí para pregar e desmontei completamente, na frente de todo mundo. Minha congregação zelou tão bem de mim, na medida em que aqueles que eram íntimos se aproximaram e cuidaram de mim, e aqueles que não eram me deixaram em paz. Às vezes, cuidar significa dar espaço a alguém, em vez de sufocá-lo com cuidados.

Hannah Brencher: Na minha caminhada contra a depressão, nunca esquecerei daqueles que compareceram fisicamente — trazendo refeições, me levando às consultas, me abraçando, fazendo xícaras de chá e sentando comigo em meio à tempestade. A presença deles me trouxe de volta à vida.

Parece que concordamos sobre o poder da comunidade e dos relacionamentos cristãos. Mas o que vocês diriam a alguém que deseja isso, mas ainda não encontrou tal família na igreja?

O. Alan Noble: Lamento que esta não tenha sido sua experiência. Essas comunidades existem, mas você precisará ser intencional. Se não participar ativamente no cultivo da amizade, isso não acontecerá.

Hannah Brencher: Tenho que me lembrar constantemente que a igreja é composta de pessoas, e nós, pessoas, erramos o tempo todo. Continue procurando pelos lugares que conheçam graça e poder. Continue procurando por pessoas que caminharão com você na tempestade. Se encontrar pessoas que só consigam estar com você nos seus dias bons, mas nunca em uma tempestade, esse não é o seu povo.

Aundrea, você tem a palavra final aqui. Sabendo que os pastores não podem forçar ninguém a procurar ajuda profissional, quais podem ser alguns indicadores de quando é o momento certo de encaminhar um membro da congregação para mais do que apenas cuidados espirituais?

Aundrea Paxton: O apoio, no caso de transtornos mentais, deve sempre envolver uma comunidade de pessoas. No entanto, se alguma das seguintes situações for evidente, um profissional de saúde mental deve definitivamente ser uma das pessoas dessa comunidade:

  • Qualquer risco à segurança que envolva a automutilação, o uso de substâncias ou pensamentos ou atos suicidas;
  • Quando o sofrimento que uma pessoa está compartilhando estiver afetando sua capacidade de viver seu cotidiano ou estiver causando sofrimento persistente e/ou crescente;
  • Quando a pessoa tiver mudanças significativas no apetite, no sono, em seu nível de energia e de engajamento social;
  • Quando passar de um longo período sem mudanças para um estado mental ruim ou para resistência à mudança.

Encorajo os pastores a considerarem ter um profissional de saúde mental em quem confiem, e que possa ser um consultor constante e apoiá-los pessoalmente.

J. D. Peabody é pastor da New Day Church em Federal Way, Washington, e autor de Perfectly Suited: The Armor of God for the Anxious Mind [Perfeitamente Adequado: A Armadura de Deus para a Mente Ansiosa].

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Books

“Elas estão dando tudo o que têm”: como pequenas igrejas estão salvando vidas nas enchentes do Rio Grande do Sul

Em um dos estados mais seculares do país, pequenas congregações têm tido um grande impacto com sua resposta à catástrofe.

Um morador local caminha por uma rua inundada, enquanto as pessoas são evacuadas de suas casas, em Porto Alegre

Um morador local caminha por uma rua inundada, enquanto as pessoas são evacuadas de suas casas, em Porto Alegre

Christianity Today May 11, 2024
Stringer /Getty/Edição por CT

Durante semanas, Tárik Rodriguez se empenhou para trazer um pregador convidado e líder de louvor do outro lado do país, para participar da celebração do terceiro aniversário de sua igreja. Em 2021, Rodriguez e um reduzido grupo de pessoas fundaram a Igreja Cristã Viela da Graça, em Novo Hamburgo, uma cidade pequena do Rio Grande do Sul.

Mas, então, começou a chover.

E a enchente resultante fez bem mais do que interromper os planos para a comemoração da pequena congregação reformada. A inundação devastou a comunidade inteira. As tempestades, que começaram no final de abril, atingiram as áreas mais densamente povoadas do estado do Rio Grande do Sul e mataram pelo menos 116 pessoas. Cerca de 130 pessoas ainda estão desaparecidas. A enchente fechou estradas e até o aeroporto, que suspendeu voos até o dia 30 de maio. Estima-se que cerca de 400 mil pessoas foram deslocadas de suas casas e 70.772 estão em abrigos públicos, segundo informações coletadas até esta sexta-feira, dia 10 de maio.

Algumas dessas pessoas encontraram socorro na Igreja Viela da Graça, que se localiza em um terreno mais elevado e tem estado amplamente protegida de alagamentos. Desde 4 de maio, Rodriguez e membros da congregação de 75 pessoas têm hospedado cerca de 50 pessoas em um prédio de 350 metros quadrados que tem dois banheiros.

“Como cristãos, nós precisávamos abrir as portas da igreja”, diz Rodriguez. “E foi o que fizemos.”

Além da limitação de banheiros, a situação toda não tem sido a ideal. Há cortes de energia frequentes (1,2 milhão de pessoas foram afetadas por esses cortes) e o edifício está sem água corrente e sem água potável, porque a empresa de saneamento não consegue tratar as águas sujas da enchente. Um condomínio residencial próximo, que se abastece de água de poço, tem fornecido água potável e para banho.

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Os esforços de socorro, nas atuais enchentes do Sul do país, chamam a atenção para o impacto que as pequenas igrejas podem ter quando servem suas comunidades neste que é um dos estados mais seculares do país.

“É como a oferta da viúva, em Lucas 21”, disse Egon Grimm Berg, secretário-executivo da Convenção Batista do Rio Grande do Sul. Essas pequenas igrejas “estão dando tudo o que têm.”

Às vezes, até mais do que possuem.

A Igreja em Reforma — uma congregação fundada há três anos e meio pelo pastor Emanuel Malinoski, no Quarto Distrito, bairro da moda de Porto Alegre — tem 80 membros. Quando o Rio Guaíba, que é vizinho da igreja, transbordou na semana passada, o primeiro andar do prédio da igreja ficou inundado. A água pode levar semanas para baixar.

Mas, mesmo com o primeiro andar inundado, desde o último domingo a igreja está cozinhando, limpando e distribuindo doações para 82 pessoas, em um abrigo improvisado na cidade vizinha de Canoas, que foi oferecido por uma família da igreja, e que até um mês atrás funcionava como um armazém. Agora, a defesa civil do estado está enviando desabrigados das inundações para lá.

“Nenhum deles [dos que estão sendo atendidos] é evangélico”, disse o pastor Emanuel Malinoski, que estava no prédio da igreja tentando salvar os móveis, quando as águas começaram a subir. “Estamos dando um testemunho importante para a nossa comunidade, para aqueles que não são cristãos.”

O Rio Grande do Sul tem um dos menores percentuais de evangélicos entre os 26 estados brasileiros. A capital, Porto Alegre, tinha 11,6% de evangélicos, de acordo com o censo mais recente de 2010, o que representa a proporção mais baixa entre todas as 27 capitais brasileiras. A maioria das igrejas tem menos de 80 membros, segundo Ricardo Lebedenco, pastor titular da Primeira Igreja Batista de Ijuí.

Localizada na pequena cidade de Ijuí, a 480 quilômetros a oeste de Porto Alegre — o marco zero da catástrofe — a congregação de 800 membros de Lebedenco está enviando mantimentos para centros de distribuição da capital com 1,3 milhão de habitantes.

Embora sejam apenas uma das inúmeras organizações que estão enviando ajuda às vítimas, muitos líderes seculares estão encorajando as pessoas a darem prioridade para trabalhar com as igrejas, para doações e distribuição de roupas, garrafas d’água, alimentos e dinheiro.

“Eles dizem que somos mais organizados e mais mobilizados”, disse Tiago Gomes de Mello, pastor da Igreja Batista Boas Novas, em Novo Hamburgo.

Esta é a segunda tragédia que o pastor Tiago presenciou na igreja em que foi batizado, em 1996. Em 2014, os fortes ventos de uma tempestade danificaram a igreja a tal ponto que o edifício teve de ser reconstruído. Durante o processo de reconstrução, e mais tarde, durante a pandemia da COVID-19, a igreja, que anteriormente contava com 500 pessoas, perdeu 90 por cento dos seus membros. Tiago assumiu a função pastoral em 2022 ,com a missão de revitalizar a igreja, que hoje conta com 51 pessoas.

Por volta das 5 horas da manhã de sexta-feira, dia 3 de maio, ele começou a receber pedidos de ajuda. Deixou sua casa, em Porto Alegre, e foi abrir a igreja para abrigar duas famílias — e descobriu que não conseguiria voltar depois.

A água das chuvas inundou as ruas e cercou a casa do pastor. A esposa dele, Thaís, e os filhos Ester, de 16 anos, e Josué, de pouco mais de um ano, foram resgatados de barco, na segunda-feira, e levados para a casa de um parente. O pastor Tiago finalmente se reencontrou com a família na terça-feira, mas somente depois de quatro dias de trabalho incansável na igreja, que hoje abriga 45 pessoas.

O serviço sacrificial das igrejas do estado é fruto do amor dessas pessoas por Deus, diz Marco Silva, pastor da Primeira Igreja Batista de Montenegro, que fica a 88 quilômetros de Porto Alegre e tem enviado apoio para igrejas menores da região.

“Quando preparamos uma marmita, quando saímos de barco para levar alimentos, quando embalamos cobertores para levar aos desabrigados, cada uma destas coisas é um ato de adoração”, disse.

O foco dos membros da igreja, portanto, não está na suspensão dos cultos, mas sim na oportunidade de “fazer teologia na prática”, disse Rodriguez. Na terça-feira, o pastor da Viela da Graça gravou seu sermão na sala de casa e vai postá-lo no YouTube, para que as pessoas possam assistir no domingo. Será um formato condensado, com dois cânticos de louvor, alguns anúncios e um sermão sobre Judas 1.20,21, versículos que têm servido como referência pessoal para ele nestes tempos difíceis: “Edifiquem-se, porém, amados, na santíssima fé que vocês têm, orando no Espírito Santo. Mantenham-se no amor de Deus, enquanto esperam que a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo os leve para a vida eterna.”

A Igreja Batista Boas Novas é uma das poucas igrejas da região afetada que conseguiu manter os cultos presenciais. Na verdade, eles até expandiram a quantidade de cultos. O pastor Tiago pregou no domingo, no sábado e na quarta-feira.

No domingo, a mensagem foi sobre o Salmo 121: “Levanto os meus olhos para os montes e pergunto: ‘De onde me vem o socorro?’”.

Muitos dos que vieram aos cultos sabem que a previsão meteorológica para a região diz que haverá mais chuva e que as temperaturas continuarão a cair com a chegada do inverno, dentro de algumas semanas, no estado que é uma das zonas mais frias do país.

“A igreja sabe que o nosso socorro vem do Senhor”, disse o pastor Tiago, que aproveitou para fazer um apelo à conversão, no fim do culto. “E também sabe que depois da chuva vem a colheita.”

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Divididos estão os pacificadores

Conheça as dificuldades enfrentadas por cristãos que trabalham pela reconciliação em Israel e na Palestina, e como o atual conflito ameaça a relevância de seus esforços.

Christianity Today May 9, 2024
Maya Levin for Christianity Today

Pouco antes do nascer do sol, em 7 de outubro de 2023, Kay, esposa de Salim Munayer, sacudiu-o para acordá-lo, em seu apartamento em Jerusalém. O celular dele não parava de receber notificações.

“Seu WhatsApp está enlouquecendo”, disse ela.

Munayer pegou o celular. Mensagens de sua família repletas de ansiedade contavam que tinham ouvido sirenes de ataque aéreo, algo que não é incomum em Israel, e que muitas vezes começa e logo passa. Desta vez, porém, as sirenes continuaram tocando.

Não demorou muito para sabermos o que tinha acontecido: militantes do Hamas estavam lançando milhares de foguetes, de Gaza, contra Israel. Por terra, eles tinham violado a fronteira e massacravam centenas de civis. Munayer acordou com o ataque terrorista mais sangrento da história do seu país.

Ele pulou da cama e correu para acordar os filhos.

Daniel Munayer, o segundo filho de Salim, lembra-se do pai invadindo seu quarto aos gritos: “Daniel, começou”, acrescentando: “Estamos em guerra”.

Daniel pôs as mãos na cabeça. “Ó, Senhor, tenha piedade. Misericórdia, Senhor.”

Salim, 68 anos, é o fundador da Musalaha, uma organização confessional que trabalha pela paz e procura restaurar as relações entre israelenses e palestinos, usando para isso o que diz serem princípios bíblicos de reconciliação. Daniel, 32 anos, é diretor-executivo da organização.

Fundada em 1990, a Musalaha é a mais antiga e a mais conhecida organização cristã de pacificação que atua em Israel e na Palestina. Seu nome significa “reconciliação” em árabe e, por mais de três décadas, a sua abordagem baseada na fé diferenciou-a dos grupos de pacificadores seculares.

Ninguém da família Munayer ficou chocado com o fato de o Hamas atacar Israel, embora nunca tivessem antecipado a sofisticação e a brutalidade do ataque, que assassinou cerca de 1.200 israelenses, nem a devastadora reação militar de Israel, que matou mais de 30.000 pessoas em Gaza, muitas delas mulheres e crianças. Durante anos, Salim alertou: “Estamos vivendo em um status quo violento. Se não trabalharmos pela paz todos os dias, o preço da guerra será alto.”

Há um ano, em um artigo direcionado aos cristãos, Daniel escreveu para o The Jerusalem Post: “Não se deixem enganar pelo cessar-fogo. Os ingredientes necessários para outro ciclo de violência estão sempre presentes. É apenas uma questão de tempo.”

Mas as pessoas fecham os ouvidos. Até sua mãe, Kay, estava ficando cansada de ouvir os mesmos avisos continuamente. “Você vive dizendo que a situação é insustentável, mas as coisas ainda não estão mudando”, disse ela ao marido.

Em vez de mudar [para melhor], as coisas estavam piorando: o governo israelense estava adotando uma postura ainda mais voltada para a direita linha-dura; o país estava dividido por causa da política do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu; Israel estava fortalecendo relações com um número crescente de países árabes. Estava claro que as necessidades e as demandas dos palestinos estavam passando para o final da lista de prioridades de Israel.

O dia 7 de outubro afastou ainda mais muitos israelenses dos esforços de pacificação. No entanto, a família Munayer considera o trabalho da organização Musalaha mais crítico do que nunca. A prova está nos escombros, dizem eles: a pacificação e a reconciliação não são apenas importantes; são essenciais. Mas a Musalaha vem pregando a paz e a reconciliação há mais de 30 anos. Poderá a organização ter algo a oferecer agora que já não tenha oferecido no passado — neste momento em que as relações entre israelenses e palestinos estão piores do que sempre foram, e quando reconciliação é um palavrão para muitas pessoas de ambos os lados ? Será que esforços como os da organização Musalaha ainda são relevantes?

Passei uma semana em Israel e na Cisjordânia, conversando com cristãos palestinos e judeus messiânicos que são pastores, líderes de jovens, líderes da YMCA [Associação Cristã de Moços, em português], guias turísticos, advogados e estudantes. Muitos deles não são ativistas profissionais pela paz, mas todos eles, pelo que pude perceber, levam a sério o Sermão do Monte, feito por Jesus, e se esforçam para encarnar sua proclamação que diz: “Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5.9).

O problema é que falei com cerca de duas dúzias de pessoas sobre o que significa pacificação e ouvi quase duas dúzias de respostas diferentes. Esse é o dilema da questão Israel-Palestina: de modo geral, para os judeus, “paz” significa segurança e proteção duradouras para Israel; significa esmagar o Hamas, mesmo à custa de baixas humanas expressivas. Já para os palestinos, “paz” significa a restauração da terra e da dignidade que perderam após a fundação do Estado de Israel. Significa lutar pela igualdade de direitos e de liberdades, o que para muitos inclui apoiar o Hamas, também à custa de baixas humanas expressivas.

Mesmo antes do 7 de outubro, estes dois lados já se opunham cada vez mais. É uma realidade que há muito assombra os líderes da Musalaha. Como você pode buscar a paz se nem sabe como ela é?

Salim Munayer aprendeu duas regras enquanto crescia na antiga cidade de Lod: nunca se esqueça da sua história. Mas não fale sobre ela. “Ali era a minha casa”, dizia seu pai, apontando para um edifício municipal. “Era onde cultivávamos oliveiras e laranjeiras.” Fique de boca fechada, seu pai alertava. “É de casa para a escola, e da escola para casa. Não fale com ninguém.”

Lod, onde hoje fica o Aeroporto Internacional Ben Gurion, foi por séculos uma cidade predominantemente árabe — até 1948, quando as tropas israelenses ocuparam o local e expulsaram a maioria dos árabes. O pai de Salim estava entre os cerca de 200 cristãos locais que conseguiram ficar, pois procuraram refúgio em uma igreja, embora ele tenha perdido a casa e as terras onde cultivava produtos agrícolas. Quando Salim nasceu, em 1955, a população de Lod era cerca de 30% árabe; o restante era, em sua maioria, de imigrantes judeus que haviam sido eles próprios expulsos de países árabes.

Na escola, Salim aprendeu a história nacional através das lentes sionistas, uma visão que ele começou a questionar no ensino médio. Certa vez, um professor repetiu o que Salim sempre aprendera — que os judeus vieram e criaram um jardim no deserto árido, que os árabes partiram, muito embora os judeus tivessem tentado persuadi-los a ficar — e Salim, então, falou.

“Olhe pela janela”, disse ele. “Você vê aqueles laranjais? Eram da minha família. Vê aquela igreja? Essas casas? Pertenciam aos palestinos.”

Nesse ínterim, Salim teve um aperitivo de como a unidade poderia ser. Nos anos 70, ele participou de um estudo bíblico na casa de seu tio, que era frequentado por palestinos e judeus. Muitos judeus estavam vindo para Jesus naquela época, e como Salim falava hebraico fluentemente, ele liderava os estudos bíblicos para esses jovens crentes judeus. O grupo cresceu de uns poucos convertidos para cem integrantes. Foi uma experiência formativa; Salim foi estudar teologia no Fuller Theological Seminary, na Califórnia, e depois voltou para Israel, em 1985.

Um ano depois, Salim começou a lecionar no Bethlehem Bible College, em Belém, na Cisjordânia. Essa foi a primeira vez que Salim testemunhou o que era a vida dos palestinos sob ocupação. “Fiquei em choque”, lembrou ele. Ele viu membros das Forças de Defesa de Israel (FDI) espancarem palestinos, forçá-los a ficar na chuva e humilharem pais na frente de seus filhos. Ele viu seus amigos israelenses — as mesmas pessoas calorosas com quem ele conviveu na faculdade — se transformarem em agressores irreconhecíveis em seus uniformes verde-oliva.

A Primeira Intifada, que significa “sacudir” em árabe, começou em 1987 e durou seis anos. Os palestinos protestaram principalmente contra a ocupação israelense através de boicotes em massa, barricadas e desobediência civil, mas muitos também recorreram à violência, atirando pedras e coquetéis Molotov.

Os alunos de Salim, em Belém, fizeram-lhe perguntas que iam muito além da sua formação teológica: “Devemos participar das manifestações?” “Podemos atirar pedras nos soldados?” “Os colonos judeus roubaram as terras da minha família, dizendo que Deus lhes deu essas terras. O que a Bíblia realmente diz [sobre isso]?”

Enquanto isso, Salim também dava aulas para estudantes judeus israelenses, em um centro de estudos bíblicos que ficava em Tel Aviv-Jaffa, os quais também lutavam com os seus próprios problemas de identidade: “Como podemos ser judeus e acreditar em Yeshua?” “Como podemos nos chamar cristãos, quando os cristãos perseguiram o nosso povo durante séculos?” Salim pensou que seria edificante para os seus estudantes judeus e palestinos ouvirem sobre as lutas de identidade uns dos outros; por isso, em 1990, organizou um encontro entre eles.

“Foi um desastre”, disse Salim. Quase de imediato, os estudantes começaram a gritar uns com os outros. Nenhum dos lados conseguiu chegar a um acordo sobre qual linguagem utilizar para descrever os acontecimentos atuais. Era uma ocupação? Resistência? Terrorismo? Falar sobre teologia — o que a Bíblia diz sobre a terra de Israel — só piorou as coisas. A conversa se deteriorou. Era como se os dois lados estivessem lendo Bíblias completamente diferentes, e fossem incapazes de chegar a uma narrativa compartilhada.

Talvez uma reunião de pastores corresse melhor, pensou Salim. Então, ele convidou 14 pastores — sete judeus e sete palestinos — para ir a uma igreja em Jerusalém e discutir os acontecimentos atuais. “Foi ainda pior”, ele me contou. Isso perturbou Salim. Será que o corpo de Cristo não poderia encontrar um terreno comum nesta questão?

Naquela época, um amigo que ele conheceu no centro bíblico também sentia convicção sobre o crescente conflito entre crentes palestinos e judeus. Evan Thomas era um judeu messiânico da Nova Zelândia que imigrou com a esposa para Israel, em 1983, para apoiar a incipiente comunidade messiânica do país.

Antes da Primeira Intifada, judeus e árabes cultuavam juntos. Mas foi como se o conflito tivesse levantado um tapete e espalhado toda a sujeira que estava embaixo. “Estávamos enfrentando os filhos uns dos outros na frente de batalha”, disse Thomas. Os palestinos ficaram furiosos com o fato de outros crentes se juntarem às Forças de Defesa de Israel e pegarem em armas contra o seu povo; os judeus não conseguiam compreender como os irmãos crentes podiam apoiar a intifada, que consideravam algo violentamente anti-Israel.

Salim MunayerOfir Berman, para Christianity Today
Salim Munayer

Certo dia, depois das aulas, Salim foi conversar com Thomas. “Estou preocupado com o corpo de Cristo”, disse ele. Grupos seculares falavam em acordos de paz e solução de conflitos, mas ninguém falava em reconciliação. Os cristãos estavam preocupados com a salvação, mas poucos abordavam as questões críticas que os dividiam. Salim propôs criar uma organização religiosa para abordar as duas coisas. Será que Thomas se juntaria a ele?

“Temos de fazer isso”, respondeu Thomas. “E devemos começar imediatamente.”

Salim ligou para outra judia messiânica que conhecia desde o ensino médio, uma mulher chamada Lisa Loden, que imigrou dos Estados Unidos para Israel com o marido em 1974, depois de sentir uma forte convicção para ser “luz e dar testemunho”.

Antes de Salim ligar, Loden já estava sofrendo com as desigualdades que via entre palestinos e judeus. Ela via as diferenças nos orçamentos dos municípios árabes e judeus em Israel. Ela via discriminação no trabalho contra os palestinos israelenses. Ela ouvia o que alguns judeus diziam sobre os palestinos — que eles eram sujos, uns bárbaros que não eram dignos de confiança.

Depois ela conheceu alguns cristãos da Cisjordânia. Um jovem palestino perguntou-lhe, sem rodeios: “Por que você veio para a nossa terra?”

Isso levou Loden a uma inquietante jornada de investigação sobre a Nakba — palavra árabe para “catástrofe” — nome dado à violenta expropriação e deslocamento de árabes na Palestina, durante a guerra de 1948. Então, quando Salim perguntou se ela estaria disposta a se juntar a ele para iniciar um programa da Musalaha para mulheres, ela disse que sim, imediatamente. “Foi resposta de oração”, lembra Loden.

Desde o início, a Musalaha foi uma iniciativa baseada na colaboração intencional entre crentes palestinos e crentes judeus. O primeiro desafio foi unir judeus e palestinos sem desencadear batalhas verbais. Eles precisavam de algo que fosse criativo, algo que desconectasse as pessoas do conflito e as forçasse a verem umas às outras como seres humanos vulneráveis.

“Por puro desespero, tivemos que fazer algo drástico”, disse Salim. Então, eles criaram uma experiência de retiro, e levaram os primeiros participantes para o deserto, montados em camelos. Ali, rodeados pela aridez e por areia, o “encontro no deserto” parecia funcionar. Durante quatro dias, judeus e palestinos reuniam-se em torno de uma fogueira e falavam sobre a sua fé, suas famílias e suas histórias. Eles compartilhavam tendas sob um céu que parecia salpicado de diamantes. Caminhavam e oravam nas dunas. E ouviam, consternados, as dores uns dos outros.

“O deserto é um lugar neutro”, disse Salim. “O desequilíbrio de poder desapareceu no deserto. Destruiu o conceito de ‘nós’ e ‘eles’”.

Os encontros no deserto — que continuaram por décadas, embora tenham sido interrompidos durante a guerra — pretendem ser apenas um começo. A Musalaha vê a reconciliação não como um acontecimento único, isolado, mas como um processo gradual e contínuo. Depois de um encontro no deserto — algo que os líderes chamam de fase “aleluia e húmus” — os participantes são incentivados a se abrirem sobre as suas diferenças durante workshops, seminários e viagens. Eles descarregam suas queixas e mágoas em encontros presenciais. Discutem sobre identidade, procurando compreender como veem a si próprios, afirmar a distinção dos outros e confirmar que todos têm valor igual como membros do corpo de Cristo. Os participantes que quiserem podem ir mais longe, fazendo uma autoanálise crítica, confessando sua própria participação na injustiça e prosseguindo na defesa de direitos.

Na época em que foi criada, essa era uma abordagem inovadora ao conflito israelo-palestino. Nos primeiros dez anos, a Musalaha estava cheia de entusiasmo e otimismo. O processo de paz de Oslo, na década de 1990, despertou esperanças de que israelenses e palestinos pudessem um dia coexistir pacificamente, e os encontros promovidos pela Musalaha borbulhavam com bons sentimentos de que Cristo poderia fazê-los superar suas diferenças.

Daniel Munayer nasceu nessa época. Ele se lembra de seu pai ter transformado o minúsculo porão do apartamento em um escritório improvisado, com duas mesas e um sofá, e depois de vê-lo ficar trancado lá, pesquisando e escrevendo apostilas para cursos e se preparando para conferências. Sua mãe dizia para os meninos falarem mais baixo, quando eles erguiam a voz.

Contudo, na segunda década de existência da Musalaha, a bolha estourou. As negociações para um acordo de paz entre o primeiro-ministro israelense, Ehud Barak, e o presidente da Autoridade Palestina, Yasser Arafat, falharam. A Segunda Intifada, uma revolta islâmica muito mais sangrenta, eclodiu em 2000, matando mais de 3.000 palestinos e 1.000 israelenses. A maioria sentiu que ela também matou a possibilidade de uma solução, por parte de dois Estados, para uma Palestina independente.

No início da década de 2000, Israel começou a erguer o que é hoje uma muralha de concreto e arame farpado com 700 quilômetros de extensão na Cisjordânia, que separa fisicamente os dois povos. Os israelenses viam-na como uma medida de segurança necessária. Os palestinos, como segregação racial e usurpação ilegal de parte de suas terras. (A muralha foi construída cerca de 18 quilômetros para além da Linha Verde, uma fronteira internacionalmente reconhecida entre Israel e o território palestino.)

Daniel tornou-se perfeitamente consciente de sua identidade como “o outro”. Como um palestino israelense, ele é minoria; como cristão, ele é duas vezes minoria. Daniel e seus três irmãos frequentaram escolas judaicas onde eram os únicos palestinos. No entanto, os seus primos árabes viam-nos como os “primos brancos que falam inglês”, porque a mãe deles é britânica. E quando viajavam para a Inglaterra, eram suas feições morenas que se destacavam.

Os irmãos Munayer também se sentiam excluídos pela sua comunidade religiosa internacional. Os cristãos que visitavam a Terra Santa pareciam mais interessados ​​em interagir com “o povo escolhido” do que com eles, disse Daniel.

Daniel MunayerOfir Berman, para Christianity Today
Daniel Munayer

Enquanto isso, os irmãos ouviam o que os judeus diziam sobre os palestinos, o que os palestinos diziam sobre os judeus, e o que os cristãos de fora do país diziam sobre a Terra Prometida. De certa forma, os irmãos eram os típicos filhos de fundadores, avaliando o ministério de seus pais como participantes e como observadores, abrangidos por múltiplas culturas. Quando jovens adultos, trocavam frequentemente ideias sobre os livros que liam: a teologia da libertação, segundo a visão de James H. Cone, Gustavo Gutiérrez e Naim Ateek, e o colonialismo dos colonos, desvendado por estudiosos como Edward Said, Mahmood Mamdani e Frantz Fanon.

O que liam lhes mexia com os nervos, devido à sua experiência por terem crescido como cristãos palestinos israelenses. Eles debatiam calorosamente esses assuntos no jantar, durante passeios de carro e quando tomavam uísque com o pai. E pressionavam Salim com perguntas difíceis: “Onde é que a libertação e a justiça se encaixam na reconciliação?” “Como nos reconciliamos com os nossos próximos, quando eles nos colocam em um sistema que nos oprime e desumaniza?”

À medida que as relações entre israelenses e palestinos se deterioravam, crescia também uma ruptura dentro da Musalaha, algo que ainda é um ponto sensível para Salim e Daniel. Na última década, a organização perdeu o apoio da maioria dos judeus messiânicos.

Com exceção do acampamento anual de verão para crianças que promove, a Musalaha não tem mais nenhum participante judeu messiânico remanescente. Os Mulayers me disseram que isso acontece porque a organização não promove política nem teologia sionistas. Thomas, um pastor judeu messiânico que serviu no conselho da Musalaha durante 29 anos, disse que a confiança foi diminuindo à medida que a organização se envolveu com a Christ at the Checkpoint (CATC; cuja tradução seria algo como Cristo nos Postos de Controle), uma conferência bienal realizada pelo Bethlehem Bible College.

A primeira CATC foi realizada em 2010, como “uma oportunidade para os cristãos evangélicos buscarem em oração uma consciência adequada das questões de paz, justiça e reconciliação”, segundo o site da conferência. Também critica ferozmente o sionismo cristão.

A maioria dos judeus messiânicos viu a CATC como algo não só equivocado, mas também perigosamente antissemita. Eles acusaram a CATC de dar espaço para palestrantes que abraçam o supersessionismo (ou teologia da substituição, que é a ideia de que a igreja substituiu Israel na aliança e nos planos de Deus), pessoas como Sami Awad, diretor-executivo do Holy Land Trust, e Mitri Raheb, fundador e presidente da Universidade Dar al-Kalima. em Belém. One for Israel, um ministério de mídia do Israel College of the Bible, chamou a CATC de “um programa político palestino unilateral e anti-Israel” que “promove a destruição do Estado judeu na Terra de Israel”.

Em 2012, grupos messiânicos em todo o mundo emitiram uma declaração conjunta criticando a CATC: “Reconhecemos e estamos profundamente preocupados com a luta dos cristãos palestinos. Mas nos opomos a uma conferência que é explicitamente pró-Palestina e anti-Israel, e que procura promover-se como uma conferência sobre paz e reconciliação.” Qualquer esforço pela paz e pela reconciliação entre judeus e não-judeus, concluiu a declaração, “deve reconhecer que os dons e o chamado de Deus para o nosso povo judeu são irrevogáveis ​​e ainda estão em vigor hoje”.

A CATC convidou a organização Musalaha para falar sobre reconciliação. Tanto Salim quanto Thomas aceitaram o convite, embora Thomas mais tarde tenha recebido críticas ferozes — até mesmo ameaças de morte — em razão disso. Mas, na época, Thomas sentiu-se convicto sobre comparecer. “Como eu poderia não estar lá?” ele disse. “Sou um porta-voz sênior da reconciliação. Esse é exatamente o tipo de lugar onde eu deveria estar falando.”

Mas, olhando para trás, Thomas hoje considera a sua decisão de falar na CATC “um grave erro”. A participação da Musalaha, diz ele hoje, foi um “divisor de águas” e foi vista “por toda a comunidade messiânica com indignação e como ofensa absoluta”. Uma vez que a Musalaha perdeu a credibilidade perante os judeus messiânicos, “então perdemos um dos nossos parceiros mais importantes”.

Loden também esteve no conselho da Musalaha por 29 anos, até ela renunciar, em 2019. Ao longo dos anos, ela viu mulheres construírem laços de amizade na Musalaha. Pela primeira vez, muitas mulheres judias aprenderam sobre a Nakba e muitas mulheres palestinas aprenderam sobre o Holocausto e os judeus que fugiram para Israel, depois de muitos países lhes fecharem as portas.

Mas algumas mulheres judias também procuraram Loden, frustradas. “Somos sempre os culpados aqui”, disseram a ela. “Somos sempre nós que pedimos perdão.” E o que dizer de todos os atentados suicidas e ataques com foguetes promovidos pelos palestinos? elas perguntaram.

“Elas sentiam que não havia um sentimento mútuo de que os dois povos haviam sofrido”, disse Loden. Muitas mulheres judias abandonaram o programa.

Hoje, a maioria dos que participam dos programas da Musalaha são judeus israelenses seculares, muçulmanos palestinos e cristãos palestinos. A Musalaha quer trabalhar com judeus messiânicos, segundo me disseram os Mulayers, mas o sentimento não é recíproco. E, segundo Salim, se há algo de que ele se arrepende é de não ter agido rápido o suficiente para incluir os não-cristãos. Por que a reconciliação deveria ser limitada aos crentes?

Essa mudança de atitude levou à renúncia de Loden. “Minha paixão é ver o corpo de Cristo sendo reconciliado, caminhando juntos, vivendo o reino de Deus em nosso meio”, ela me disse. “A Musalaha no momento não está trabalhando nessa área.”

Thomas saiu da organização por razões um pouco diferentes. Em 2019, enquanto guiava um grupo de jovens composto por judeus messiânicos e cristãos alemães pelo campo de concentração de Auschwitz, ele releu João 17.21 e teve uma epifania: “Percebi que a reconciliação nunca foi concebida para ser um fim em si mesma”. O objetivo da pacificação, disse ele, é testemunhar ao mundo que Jesus é o Messias. Ele compartilhou sua interpretação com Salim, que discordou. Thomas — cujo coração estava voltado para a comunidade messiânica — já sentia que tinha se tornado irrelevante na Musalaha, dada a mudança de foco da organização para os judeus seculares. Então, ele deixou a Musalaha.

A Musalaha não estava apenas perdendo crentes israelenses. Também estava perdendo integrantes palestinos.

Saleem Anfous era um jovem de 16 anos com sede espiritual e que estudava para ser padre católico, quando estourou a Segunda Intifada. O conflito despertou a sua consciência social e abalou sua fé. Como poderia ele servir seus colegas palestinos como sacerdote, perguntava-se ele, apontando-lhes um Deus que aparentemente favorecia os judeus e lhes permitia submeter o seu povo a bombas, despejos, roubos de terras, vigilância, toques de recolher e postos de controle? Ele abandonou o seminário e sua fé.

Anfous decidiu estudar jornalismo no Bethlehem Bible College. Lá, pela primeira vez, ele ouviu respostas bíblicas às suas grandes questões teológicas. Ele estava restaurando seu relacionamento com Deus, mas ainda fervia de ódio contra Israel e estava frustrado com a igreja por não fazer o suficiente. Certo dia, ele fez um cartaz gigante, com imagens de crianças palestinas mortas e escombros, no qual escreveu em letras garrafais: “Onde está você nisso tudo?” Ele pendurou o cartaz num quadro de avisos, na entrada dos estudantes, e quase foi expulso do campus.

Muitos não o levaram a sério. Mas Salim levou. Ele viu em Anfous o fogo da juventude que poderia ser poderoso se bem direcionado. Alguns meses depois, ele procurou o estudante em seu dormitório, e perguntou: “Você gosta de viajar?”

“Sim.”

“Faremos uma viagem para o deserto na Jordânia, em poucos dias. Você quer vir?”

“Com certeza.”

Anfous sabia pouco sobre a Musalaha naquela época, em 2004. Ele foi porque respeitava Salim; ele pensou que ir para o deserto com outros rapazes e moças seria incrível.

Em sua primeira noite no deserto da Jordânia, Anfous sentou-se ao lado de um jovem muito amigável, que se revelou um judeu messiânico que estava terminando seu período de recrutamento nas Forças de Defesa de Israel. E, então, Salim colocou Anfous para partilhar uma tenda com outro judeu israelense. Naquela noite, Anfous não conseguiu dormir. Mas, pouco a pouco, ele foi baixando a guarda. Por que não deixar Cristo ser a ponte? Através da Musalaha ele fez amizades com judeus israelenses que duraram anos.

Saleem AnfousMaya Levin, para Christianity Today
Saleem Anfous

Então, estoutou a Guerra de Gaza, em 2014. Militantes do Hamas lançaram milhares de foguetes e mataram pouco mais de 70 israelenses; as Forças de Defesa de Israel mataram mais de 2.000 palestinos. Anfous viu seus amigos judeus fazerem postagens no Facebook em apoio aos militares de Israel, o que para ele equivalia a aplaudir o massacre do seu povo. Mas seus amigos judeus disseram que tinham de se defender. Eles trocaram mensagens acaloradas que inevitavelmente mergulharam em debates teológicos. Então, Anfous clicou em “desamigar”, e desfez a amizade no Facebook com todos os judeus que tinha conhecido através da Musalaha.

“Não é que Cristo não seja suficientemente concreto”, disse-me Anfous, anos mais tarde, num restaurante de shawarma, em Beit Sahour, nos arredores de Belém. “Aparentemente, as bases que pensávamos que estávamos construindo não eram suficientemente concretas.” As diferenças entre eles eram muito profundas, segundo Anfous. “Quando esses problemas vêm à tona, não dá para ignorar. Você realmente tem de lidar com isso. E quando chegou a hora de lidarmos com isso, a amizade não era boa o suficiente.”

Anfous representa uma geração de palestinos que estão fartos das tentativas de reconciliação que não insistem em libertar a Palestina da ocupação. Ele diz que se preocupa com a pacificação; sua assinatura de e-mail é “Senhor, faça de mim um instrumento de sua paz”. Mas a sua definição de paz mudou. Qual é o sentido da amizade, diz ele, se os dois lados são claramente desiguais e um dos lados pretende manter o sistema desigual? Esse tipo de pacificação “significa ficar calado. Isso é fraqueza! Este não é o momento para fraqueza. É hora de lutar por justiça.”

Durante cinco anos, Anfous foi líder de jovens na Igreja Evangélica Immanuel, uma das maiores congregações evangélicas da Cisjordânia. Ele é apaixonado por ajudar as gerações mais jovens a reconciliar a sua fé com a sua identidade palestina, e observa com consternação quando jovens palestinos se afastam da sua fé cristã. “A igreja não cumpre seu papel como igreja na sociedade aqui”, disse ele. “E por causa disso, a geração mais jovem tomou rumos completamente diferentes.”

Anfous também entrou em confronto com seu pastor sênior, Nihad Salman. Salman concorda que Israel oprime os palestinos sob uma ocupação “maligna”. Ele vive isso. Mas a sua prioridade, como líder espiritual, segundo ele me disse, é “levar as pessoas a adorar a Deus, apesar da guerra, da dor ou do sofrimento”. Já tem gente suficiente pedindo por justiça social, disse ele, mas pouquíssimos pastores conduzindo os palestinos à alegria e à paz em Deus, em meio às dificuldades. Para ele, pacificar significa reconciliar as pessoas com Deus. “E então”, disse ele, “você imediatamente se reconciliará com seus próximos”.

Esta forma de abordar a pacificação frustrou Anfous. “Tudo bem, mas já estou reconciliado com Deus”, disse ele ao pastor. “O que devo fazer a seguir, então? Devo sentar e esperar no banco da igreja, até que todos estejam reconciliados com Deus? Sinto que você ainda está me tratando como uma criança, quando já sou adulto.”

Anfous acabou deixando sua igreja, frustrado, e se juntou à Igreja Evangélica Luterana do Natal — cujo atual pastor, Munther Isaac, é o diretor da Christ at the Checkpoint e membro de longa data do conselho da Musalaha.

Isaac foi um defensor da reconciliação durante duas décadas. Ele começou a liderar encontros no deserto aos 20 anos. “Eu acreditava nisso”, ele me disse, no escritório de sua igreja, em Belém. “Eu acreditava que o único caminho verdadeiro para a paz é acreditarmos em Jesus. Se tivermos Jesus, temos paz.”

Nos primeiros anos da CATC, Isaac insistiu para que a conferência incluísse judeus messiânicos. “Eu estava tão dedicado a isso”, lembrou ele, que dirigia por horas até a casa de judeus messiânicos para convidá-los. “Não podemos ter um diálogo sobre o conflito sem a voz de vocês”, dizia-lhes ele.

Portanto, ele ficou muito desapontado ao ouvir críticas messiânicas de que a CATC fazia propaganda política antissemita.

Com o passar dos anos, Isaac ficou cada vez mais preocupado com a ideia de pacificação que conhecia. As pessoas podem estar adquirindo conhecimento sobre as diferentes perspectivas, mas os palestinos ainda não tinham conquistado a liberdade. Na verdade, a possibilidade de um Estado palestino parecia mais remota do que nunca: ao longo dos últimos sessenta anos, mais de 750 mil colonos judeus, garantidos e apoiados pelo Estado israelense, ergueram complexosfortemente armados, com barricadas, por toda a Cisjordânia, transformando o que deveria ter sido um Estado palestino numa espécie de queijo suíço.

Isaac também estava preocupado com a teologia sionista, que ele vê como uma falsa teologia que deslegitima a existência e a dignidade dos palestinos e defende a ocupação israelense. Ele acredita na importância da reconciliação, mas começou a se questionar se não estaria meramente satisfazendo o desejo das pessoas de se sentirem melhor consigo mesmas, sem fazer nada para resolver o conflito.

Seu ponto de virada ocorreu em 2016, quando ele se juntou a um grupo de cerca de 30 cristãos palestinos e judeus messiânicos, no âmbito da Iniciativa de Lausanne para a Reconciliação em Israel/Palestina. Isaac, Salim e Loden ajudaram a organizar a reunião.

Por vários dias, o grupo orou e adorou juntos em Lárnaca, Chipre, para buscar unidade em relação ao conflito. Isaac fez uma apresentação que defende que a promessa de Deus a Abraão e seus descendentes não se aplica mais apenas aos judeus e à terra de Israel, mas a todos os filhos de Deus e a toda a terra. Ele argumentou que Jesus estava interessado no reino de Deus, não na terra de Israel.

Um dos participantes do grupo de Lárnaca, Jamie Cowen, um advogado judeu messiânico, lembra-se de ter se sentido “incomodado e desafiado” pela apresentação de Isaac. “Foi tipo: ok, não tenho certeza se estamos lendo a mesma Bíblia. Era uma clássica teologia da substituição”, disse ele. Cowen expressou sua discordância com os pontos levantados por Isaac e outros entraram na conversa. O debate esquentou, algumas pessoas levantaram a voz e, no final, ninguém mudou de ideia.

Essas opiniões divergentes sobre a teologia da Terra Santa são a razão pela qual tantas tentativas de pacificação entre crentes judeus e crentes palestinos não vão adiante. É por isso que a maioria dos judeus messiânicos vê com desconfiança conferências como a CATC, mesmo que façam declarações denunciando o antissemitismo — para eles, a fronteira entre o antissionismo e o antissemitismo é muito tênue. A terra que Deus deu a seus antepassados ​​é fundamental para a identidade e a fé deles.

No entanto, para muitos cristãos palestinos, o sionismo é uma “teologia política etnocêntrica” que privilegia um povo em detrimento de outro. Sua longa presença histórica na mesma terra pela qual Jesus caminhou é para eles fonte de orgulho e testemunho da fidelidade de Deus.

O fato de o grupo ter conseguido redigir e assinar uma declaração na reunião de Chipre foi “um tanto milagroso”, disse Cowen. Eles debateram durante horas sobre incluir ou não a palavra ocupação. Alguns participantes optaram por não assinar o documento, conhecido como Declaração de Lárnaca, que afirma a unidade dos crentes em Cristo Jesus e lista vários pontos de discordância importantes entre as facções judaica e palestina.

Munther IsaacMaya Levin, para Christianity Today
Munther Isaac

Ouvi que algumas pessoas consideram que a Declaração de Lárnaca não gerou nenhuma consequência. Mas não é assim, pelo menos para algumas das pessoas que a assinaram. Loden, que ajudou a organizar o evento, chamou-a de “momento histórico”. De qualquer forma, declarações nunca têm a intenção de mudar as coisas, disse ela. Em vez disso, as “declarações narram a história”. O fato de um grupo de judeus e palestinos influentes terem se reunido, terem escrito um documento e o assinado já foi, por si só, um feito histórico.

Cowen, apesar de suas divergências, chamou isso de uma experiência que “muda vidas”: “De todas as coisas que já fiz aqui, desde que cheguei a Israel, essa foi a coisa mais significativa da qual participei, de longe.” Foi em Lárnaca a primeira vez que ele compreendeu a experiência palestina e, após a conferência, continuou a ler historiadores como Benny Morris, que desafiam os seus pressupostos sobre a fundação de Israel. Também fez novas amizades: ele conheceu um advogado palestino israelense em Lárnaca, que o convidou para o casamento do seu filho.

A experiência em Lárnaca também mudou a vida de Isaac. Ele voltou para casa física e mentalmente doente. Ficou exaurido por ter de explicar, defender e debater palavras e frases que, para ele, não eram uma opinião, mas uma realidade. Ele assinou a declaração apenas porque se sentiu pressionado a fazê-lo. Mas sentiu como se tivesse colocado seu nome em algo que “legitimava a racionalização da opressão do meu povo”.

“Para mim, chega”, ele decidiu. “Não quero fazer isso nunca mais.”

Em 2021, quando Isaac foi a uma reunião entre judeus israelenses, judeus alemães e palestinos, todos eles crentes, ele ouviu com impaciência as pessoas partilharem as suas diferentes narrativas. Então, ele perdeu a calma.

“Estou cansado disso”, disse ele ao grupo. “Não estamos falando de nenhuma das questões reais, entre as quais está o fato de a teologia de vocês ter sido usada para justificar a ocupação. Vocês fazem parte de um sistema que está expulsando meu povo, substituindo-o pelo seu povo. E vocês querem vir aqui fazer as pazes comigo? Façam-me o favor!”

Desde Lárnaca, Isaac tem desenvolvido uma forma muito diferente de abordar a pacificação. Ele ainda fala com mansidão e é gentil; lembra um padre bem tranquilo. Mas ele é claro e direto, sem medo de ofender, sem papas na língua. O primeiro passo para a paz, diz ele, é chamar as coisas pelo seu nome. Ele frequentemente usa termos eletrizantes, como limpeza étnica, apartheid e colonialismo de colonos.

Tentar ser neutro, manter ambas as perspectivas em tensão, não é pacificação bíblica, disse ele. “Para mim, fica claro que Deus toma partido — não de uma etnia, mas dos oprimidos, dos aflitos, dos marginalizados. E se Deus toma o lado deste grupo de pessoas, nós também deveríamos tomar.”

Algumas pessoas disseram a Isaac que ele mudou. Ele está muito confrontador, dizem. Essa abordagem não vai funcionar. Mas ele responde: “E a abordagem mais suave por acaso funcionou?”

Em 2019, pouco depois de Isaac ter alterado suas opiniões sobre a pacificação, Daniel Munayer regressou a Israel, depois de estudar nos EUA e na Inglaterra. Ele recusou ofertas de emprego em Londres para poder voltar. Daniel acreditava na importância do trabalho da Musalaha.

Então, em 2020, um amigo da Cisjordânia disse algo a Daniel que desencadeou uma mudança na Musalaha. Este amigo disse que gostava de participar dos cursos da Musalaha e de fazer amizade com judeus israelenses. Mas, depois que o curso acabava, ele voltava para casa, para um campo de refugiados. “Quero viver em paz com os israelenses”, disse o amigo a Daniel. “Mas como posso? Não quero viver nesta ocupação. Não quero que minha filha cresça neste campo de refugiados. E não vejo nenhum futuro para mim. Seus cursos por acaso estão nos levando a um futuro diferente?”

Essa conversa assombrava Daniel. “Eu não conseguia tirar isso da cabeça”, disse ele. Ele sentia que seu amigo estava certo. “O que a Musalaha está fazendo é ótimo, mas podemos ajustar e melhorar isso. Podemos transformar aquilo que fazemos em algo mais relevante para as nossas realidades políticas.”

E isso se tornou motivo de debate acalorado entre Salim e seus filhos. Os filhos o desafiaram a repensar a Musalaha. Se Israel é um projeto colonial de colonos, disseram a Salim, isso deveria mudar a forma como a Musalaha aborda a reconciliação.

Talvez, disse Daniel ao pai, a Musalaha não devesse se ocupar tanto com a questão da “coexistência”, mas sim com a questão da “corresistência” não violenta. Deveriam continuar a trabalhar na reconciliação interpessoal, mas também deveriam trabalhar na reconciliação estrutural, denunciando os sistemas que oprimem e tornam a reconciliação interpessoal quase impossível.

Salim ouvia e relutava. Não foi fácil considerar que ele podia ter entendido mal o conflito e que o trabalho da Musalaha podia ter sido prejudicado por isso. Por fim, após pesquisar e refletir, ele concordou com Daniel.

Atualmente, houve uma troca de guarda. O conselho da Musalaha está mais alinhado com a nova visão. Em 2022, Salim voltou a exercer a função de consultor e Daniel tornou-se o novo diretor-executivo.

Quando conheci Salim, no minúsculo escritório da Musalaha, que fica numa zona industrial de Jerusalém, ele era um sujeito vibrante, de olhos castanhos penetrantes sob os cabelos já grisalhos. Como sempre, ele não mediu palavras.

Salim disse que, no início, imaginava seguidores de Jesus, judeus israelenses e palestinos, fazendo a paz na Terra Santa, a terra para a qual Jesus veio, na qual morreu e ressuscitou. Que exemplo e testemunho eles seriam do desejo de Deus de se reconciliar com o mundo!

“Esse era o meu sonho”, disse-me Salim. “E falhamos.”

A Musalaha promoveu inúmeras amizades entre israelenses e palestinos. Desenvolveu uma metodologia teológica de reconciliação que se destacou de outras organizações que trabalham pela paz. “Mas falhamos no que diz respeito à estrutura política dentro e fora da igreja”, disse Salim. “Os palestinos não são [considerados] iguais.”

No entanto, ele ainda tem esperança.

“Acredito verdadeiramente, até hoje, que a nossa identidade central em Cristo substitui e enriquece a nossa identidade étnica. Acredito que podemos — e cresci com essa possibilidade — que nós, palestinos e israelenses, podemos viver uns com os outros, se — e somente se — formos iguais.” A paz não consiste apenas em compreendermos uns aos outros e conciliarmos as diferenças. A paz deve incluir justiça, libertação e igualdade.

Salim há muito defende a justiça e a igualdade na promoção da paz. Ele escreveu sobre isso em Through My Enemy’s Eyes [Através dos olhos do meu inimigo], um livro que fez em coautoria com Loden, em 2014. Isso não é nenhuma novidade. Mas o que mudou foi a forma de Salim enquadrar Israel como um projeto colonizador-colonialista, e a reformulação da reconciliação como parte da “corresistência” à ocupação israelense. Estas são mudanças importantes na visão e na missão da Musalaha; eles apresentam os palestinos como o grupo mais oprimido, encorajam os palestinos a assumirem a liderança e endossam uma solução política específica.

Logo após o 7 de outubro, o foco da maioria dos judeus israelenses com quem falei não estava voltado para fabulosas teorias de pacificação, mas especificamente para o choque e o trauma decorrentes do ataque do Hamas — que incluiu o estupro de mulheres, o assassinato de crianças e idosos, e o caso de pai e filho que foram amarrados e queimados vivos. Tudo isso desencadeou profunda ansiedade existencial em um povo que tem sido perseguido ao longo da sua história milenar.

Os cristãos palestinos que conheci não fizeram nenhuma tentativa de justificar o que o Hamas fez. Mas os que estão na Cisjordânia mal mencionaram o ataque; em vez disso, falam sobre os bombardeios em Gaza. Todos os palestinos com quem falei chamaram a guerra em Gaza de “genocídio”. Quando eu lhes pedia que explicassem isso, eles pegavam o celular e me mostravam vídeos de casas bombardeadas, cadáveres de crianças envoltos em panos brancos e mães pálidas e chorando. Será que Israel teria lançado centenas de bombas de 2.000 libras (907 Kg) se os militantes do Hamas estivessem escondidos em enclaves judeus? Quem poderia fazer isto e esperar que Gaza sobrevivesse? “Se isso não é genocídio”, perguntou-me Anfous, “o que é?”

Após o ataque, a Musalaha publicou uma “carta de lamento”, chorando as mortes de civis israelenses e de Gaza e as ações dos militantes tanto das FDI e quanto do Hamas. Mas algumas declarações de cristãos palestinos não reconheceram o papel do Hamas no início da guerra, nem condenaram o que representou o maior assassinato em massa de judeus desde o Holocausto.

Depois que a poeira baixar, os judeus se lembrarão desse silêncio deles, disse Thomas, ex-membro do conselho.

“Se vocês não reconhecem isso, então, aos olhos da comunidade messiânica, de certa forma, vocês endossam isso”, disse ele. “Nem sempre é justo, nem sempre é intrinsecamente verdadeiro. Mas é assim que é percebido.”

Loden, hoje com 77 anos, sempre foi otimista. Ela tem defendido a paz e a reconciliação entre judeus e palestinos, embora tenha testemunhado seis guerras, desde a sua mudança para Israel. Mas este ataque a atingiu de forma diferente. A dor a imobilizou por dias.

“Não sei se a reconciliação pode acontecer”, disse-me Loden, em sua casa em Netanya, no centro-oeste de Israel. “Conversamos há muitos anos: ‘Podemos construir uma narrativa que seja uma ponte de ligação entre os dois lados? Podemos construir uma teologia que seja uma ponte de ligação?’ Mas todos os esforços para fazer isso se dissiparam”.

Ela está disposta a tentar novamente. Mas não agora. “Há momentos em que você pode falar sobre essas coisas e há momentos em que não pode. Este não é o momento.”

Enquanto isso, o paradigma do colonialismo dos colonos — a narrativa de que os colonos judeus brancos vieram para colonizar os povos nativos pardos, em vez de assimilá-los — está ganhando força entre palestinos como Anfous, e é assim que eles veem a guerra atual: uma agressão colonial destinada a exterminar a cultura e o pertencimento desse povo local.

Esse tipo de discurso pode acabar com qualquer diálogo sobre paz e reconciliação. Para muitos judeus, os “colonizadores brancos europeus” — que eles são acusados ​​de serem — são aqueles que assassinaram milhões de judeus no século 20. Eles apontam para a Torá como prova escrita de que eles também têm uma reivindicação histórica sobre a terra. E dizem que o desejo dos palestinos de que eles sumissem [dali] poderia equivaler ao seu próprio genocídio.

Daniel diz aos judeus israelenses: “Não estou sugerindo que precisamos apagar Israel do mapa. O que estou dizendo é que precisamos repensar os fundamentos do nosso cenário político, de modo que todos possamos viver aqui, de forma igual, para que os nossos direitos e liberdades se baseiem em nossa cidadania, e não em nossa origem étnica ou religiosa. Quero um país que seja para todos os seus cidadãos.”

Após o 7 de outubro, integrantes dos dois lados do conflito têm perguntado a Daniel: “Existe algum sentido na reconciliação, depois de tudo isto?”

Mas esta guerra é exatamente o ponto, argumenta Daniel.

“Temos de fornecer estruturas nas quais as pessoas possam dialogar e trabalhar suas emoções”, disse ele. “Porque, se não fizermos isso, será uma explosão total de ira e rancor, que só vai trazer retaliação e destruição. E esse tem sido um ciclo contínuo.”

A Musalaha quer tentar fazer a ponte entre duas ideias aparentemente incompatíveis, disse-me Salim. Ela quer encorajar a reconciliação e abraçar a narrativa de Israel como um projeto colonial de colonização.

“Estou muito esperançoso”, disse ele. Ele vê um despertar, em Israel e na comunidade internacional, quanto à necessidade de encontrar uma solução para a questão Israel-Palestina, depois de anos em que a questão foi deixada de lado. A Musalaha, segundo ele, é uma voz profética.

A questão agora é se outros verão as coisas dessa forma.

Enquanto eu caminhava pela Star Street, em Belém, acompanhada de Anfous, ele recebeu um telefonema de Daniel. Este estava tentando convencer Anfous a dar outra chance à Musalaha. Leia nosso último boletim informativo, Daniel disse a ele. Estamos caminhando em uma nova direção. Isso vai mudar as coisas.

“Veremos”, disse Anfous.

Sophia Lee é redatora da equipe global da CT.

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Não estavam ardendo os nossos corações dentro de nós?

A misteriosa obra divina que consola e oculta.

Christianity Today May 9, 2024
Óleo sobre tela: Stream in the Woods, Elizabeth Bowman, 2023.

Naquele mesmo dia, dois deles estavam indo para um povoado chamado Emaús, a sessenta estádios de Jerusalém. No caminho, conversavam a respeito de tudo o que havia acontecido.

Lucas 24.13-14

Uma coisa que adoro na Bíblia é sua tendência de lançar luz e obscurecer simultaneamente, de consolar e confundir ao mesmo tempo. Encontramos esta dinâmica singular em ação justamente no mesmo dia em que Jesus ressuscita dos mortos, quando o Evangelho de Lucas chama a nossa atenção para o caminho de Emaús. Mostrando dois discípulos anônimos de Jesus em meio a uma conversa, Lucas os descreve como pessoas que estão em estado de perplexidade, pois começaram a ouvir rumores sobre a ressurreição de Jesus. Enquanto caminham pela estrada, os dois processam os pesados acontecimentos dos últimos três dias e as estranhas possibilidades que esses novos relatos contêm. Embora eles não fizessem parte do grupo dos Doze discípulos originais, pareciam ser suficientemente próximos do círculo interno para terem recebido a notícia inacreditável de que Jesus estava vivo.

Então, as coisas ficam interessantes: “Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e foi com eles” (Lucas 24.15, ESV in totum). O Jesus ressurreto interrompe a discussão, mas eles não o reconhecem. Lucas atribui a cegueira deles a uma intenção divina; Jesus não se revela. Ele simplesmente caminha com os dois em sua longa jornada, incógnito, discutindo o que se passava em suas mentes.

Deve ter sido uma longa conversa, durante os cerca de doze quilômetros que separavam Jerusalém de Emaús. Em média, as pessoas caminham a um ritmo de cinco quilômetros por hora, o que significa que Jesus viajou com eles durante cerca de duas horas e meia. Ele acaba enveredando o diálogo para uma longa e completa lição bíblica. E argumenta, com base nas Escrituras, por que eles não estavam enganados sobre quem esperavam que Jesus fosse. Em algum momento da viagem, uma luz começou a penetrar nos corações desta dupla lúgubre.

De repente, a revelação de Jesus ocorre num piscar de olhos — resumida em meros dois versículos curtos. Quando finalmente chegam a Emaús, Jesus dá a entender que vai mais longe, mas os dois insistem para que ele fique, e ele fica. Os três sentam-se à mesa e Jesus toma o pão e o abençoa. Ele parte o pão e dá a eles. Então, eles o reconhecem. E Jesus desaparece.

Jesus desaparece no exato momento em que os dois discípulos o reconhecem — é um consolo doce e passageiro. Eles são tomados por tamanha alegria que decidem fazer a caminhada de 12 quilômetros de volta a Jerusalém na mesma hora, na escuridão da noite e na luz da fé.

O que devemos fazer com essa história? Observe os dois discípulos tristes. Ao saírem de Jerusalém, estão desorientados e decepcionados, carregando o pesado fardo do abandono. Enquanto um grupo maior espera para ver se a ressurreição de Jesus é uma realidade, Jesus primeiro se revela àqueles dois que se sentem sozinhos, desencorajados e sem esperança.

E, no entanto, de certa forma, Deus ainda está empenhado em se ocultar. “Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde”, diz o profeta Isaías (45.15). Talvez a graça, em parte, só funcione em secreto. Talvez haja algumas realidades e feridas que nos tornam tão frágeis, que qualquer outra coisa, além do cuidado paciente e oculto de Deus, nos desintegraria como uma folha seca, devolvendo-nos ao pó que somos. Quaisquer que sejam os motivos, podemos confiar que nosso Salvador está próximo. O Grande Médico cuida de nós com gentil atenção e precisão, e com uma paciência lenta que nos permite a mais profunda cura.

Neste ponto, acredito que nos é dada uma visão de nossa própria história. Nesta passagem, temos uma visão da situação sob o ponto de vista de Deus — sabemos o que realmente está acontecendo, mesmo que os discípulos não saibam. Embora não tenhamos o privilégio de ter esta perspectiva em nossa vida cotidiana, ainda assim hoje sabemos de algo que eles não sabiam naquela altura. Os dois discípulos pensaram que estavam a caminho de Emaús, quando, na verdade, estavam a caminho de uma mesa: a mesa onde o Jesus que vive alimentou seus corações famintos, curou suas feridas mais profundas e os fez arder com o perplexo consolo da Ressurreição. E esta mesma mesa também espera por nós.

Para refletir:



Você acha que teria ficado [em Jerusalém] com os outros discípulos, para saber mais dessa notícia bárbara? Ou acha que teria seguido em frente, como esses dois discípulos? Por que teria ficado ou por que não teria?

Tudo fica claro em retrospectiva, especialmente no que diz respeito à nossa vida com Deus. Houve momentos em sua vida em que Deus se ocultou, apenas para revelar a si mesmo ou a seu plano bem mais à frente da sua história?

Jon é cantor e compositor, reside em Austin, Texas. Ele escreve música devocional, compõe trilhas sonoras para filmes e tem dois álbuns lançados.

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O neoateísmo está morto. Qual é a cara do novo neoateísmo?

É menor o número de britânicos que concordam com afirmações mordazes sobre a religião. Ainda assim, a descrença em Deus está aumentando no Reino Unido e nos EUA.

Ilustração de Danielle Del Plato

Ilustração de Danielle Del Plato

Christianity Today April 27, 2024

Nota da edição da CT em Português: Este artigo foi escrito originalmente em inglês em 2023, mas acreditamos que ele tem um conteúdo relevante para os cristãos em países de língua portuguesa hoje.

“Penso que se pode argumentar que a fé é um dos grandes males do mundo, comparável ao vírus da varíola, porém, mais difícil de erradicar”, disse Richard Dawkins, em 1996, à Associação Humanista Americana. Dez anos mais tarde, em 2006, uma pesquisa da ComRes concluiu que 42 por cento dos adultos do Reino Unido concordavam com esta afirmação mordaz. Isto é, dois em cada cinco não só eram descrentes; eles achavam que toda crença em Deus deveria ser deliberadamente erradicada.

Isto aconteceu perto do auge do movimento neoteísta — uma forma irada e bombástica de antirreligião, que surgiu no início dos anos 2000. Os líderes neoateus arrecadaram milhões com livros best-sellers e conquistaram seguidores influentes. Naquela época, parecia que este se tornaria o status permanente do secularismo — em que a falta de crença em Deus estava necessariamente associada a um desprezo amargo e provocativo pela religião.

Mas as coisas começaram a mudar. Em 2015, alguns começaram a anunciar a morte do neoteísmo e, em 2020, 15 anos após a sondagem da ComRes, uma nova pesquisa mostrou que apenas 20 por cento dos adultos no Reino Unido concordavam que a fé religiosa poderia ser comparada a um mal, a uma praga intratável na sociedade.

Nick Spencer — membro sênior da Theos, um thinktank cristão no Reino Unido, e um dos coautores do novo relatório — disse que a era do neoteísmo fomentou no público em geral uma escala de animosidade sem precedentes contra a religião. No entanto, ele concluiu em um relatório de 2022 da Theos, sobre ciência e religião, que “a hostilidade irada contra a religião, arquitetada pelo movimento neoateísta, havia acabado”, e que a população do Reino Unido expressava uma visão mais equilibrada da religião do que durante o auge da influência do movimento neoateísta. Entre as correntes de descrença contemporâneas, formas mais matizadas estão em ascensão.

À medida que o movimento neoateísta parecia implodir — em parte, devido à sua estranha fusão com a extrema direita nas guerras culturais americanas —, muitos secularistas começaram, em praça pública, a considerar seus líderes “uma verdadeira vergonha”, pessoas que davam ao “ateísmo uma má reputação”, segundo John Dickson, professor de Wheaton e apologista público que estuda os ateus.

“Basicamente, o mundo seguiu em frente e deixou o neoteísmo para trás”, disse Alister McGrath, teólogo e apologista de Oxford, autor da obra The Dawkins Delusion? “Mas isso não é motivo para nos alegrarmos, pois temos novos problemas com que nos preocupar.” Isto é, o declínio dessa vertente específica do neoateísmo, marcado por um fervor antirreligioso hiperbólico, não significa necessariamente um aumento da fé religiosa ou da crença em Deus.

Houve um aumento na proporção de pessoas não crentes no Reino Unido — lugar que já é um dos países menos religiosos do mundo, de acordo com a Gallup International — e também nos EUA, onde viveram e trabalharam neoateus célebres, como Sam Harris, Christopher Hitchens e Daniel Dennett.

“Isso não significa que a religião esteja em uma posição melhor [hoje]; significa apenas que a religião está em uma posição diferente”, disse McGrath.

Existem semelhanças e diferenças na forma como os cenários não religiosos do Reino Unido e dos EUA mudaram, desde a época do neoteísmo. Em ambos, a religião diminuiu ao longo da última década, e essa recessão parece prestes a continuar.

Embora muitos “ativistas” ateus ainda mantenham em público sentimentos antirreligiosos convictos, está em ascensão um tipo mais brando de ateu “moderado”, que é mais tolerante com a religião em geral. Outra tendência curiosa é o aumento de ateus “amigáveis”, ou secularistas que se tornam evangelistas improváveis ​em prol da cosmovisão cristã — incluindo aqueles que eventualmente chegam à fé plena.

Na Inglaterra e no País de Gales, o censo de 2021 mostrou que menos de metade da população se identificava como cristã, uma queda acentuada na última década — e mais de um terço afirma não ter “nenhuma religião”, fazendo deste o segundo maior grupo religioso no país. Mas Hannah Waite, pesquisadora da Theos, descobriu que, entre aqueles que se identificam como não religiosos, apenas cerca de metade deles disse não acreditar em Deus.

Um relatório recente da Theos determinou que esses entrevistados que se dizem não religiosos se enquadram em três grupos diferentes. Cerca de um terço deles no Reino Unido são ateus convictos e hostis à religião (“os sem religião militantes”), os quais sobrepõem-se aos ateus ativistas que abrangem ambos os países. Outro terço dos sem religião do Reino Unido são ateus no geral, mas aceitam a religião (“os sem religião tolerantes”), e o terço restante são agnósticos, mas espiritualmente abertos (“os sem religião espirituais”).

Nos EUA, as proporções são bem diferentes. O país é mais religioso do que o Reino Unido. A Pew Research descobriu, em um relatório de 2021, que aqueles que se autodenominam cristãos representavam 63% da população, número abaixo dos 75% da década anterior. Pouco menos de um terço dos adultos norte-americanos (29%) dizem não ter religião nenhuma.

De acordo com a Pesquisa Social Geral de 2021 (GSS, na sigla em inglês), quase 7% dos adultos norte-americanos selecionaram a alternativa “Não acredito em Deus” em uma lista de frases para descrever a sua fé.

Trabalhando a partir de dados da GSS, Ryan Burge, autor de The Nones e professor de ciências políticas na Eastern Illinois University, descobriu que nem todos os que se identificam como ateus diriam que não acreditam em Deus.

As percepções da religião nos EUA e no Reino Unido também não são paralelas. A porcentagem de adultos no Reino Unido que acreditavam que “as religiões causam mais conflitos do que promovem a paz” diminuiu de 74% para 63%, entre 2008 e 2018, de acordo com um estudo britânico de Atitudes Sociais, o que indica uma ligeira tendência de simpatia. Na mesma pesquisa, a maioria dos adultos do Reino Unido disse ter uma visão positiva do cristianismo e uma visão positiva ou neutra de outros grupos religiosos.

Nos EUA, a opinião pública sobre a religião é mais positiva e mais estável. Um relatório da Pew Research de 2019 mostrou que a maioria (55%) dos americanos vê as organizações religiosas como uma força positiva na sociedade americana.

Nos dois lugares, no entanto, os ateus ativistas veem a religião de forma mais negativa do que outros sem religião e do que o público em geral. No Reino Unido, 24 por cento da população e 39 por cento de todos os sem religião disseram acreditar que “a religião não tem lugar no mundo moderno”, em contraste com 89 por cento dos sem religião militantes (78 por cento dos quais ainda concordavam com Dawkins que a religião é comparável ao vírus da varíola).

Nos EUA, uma pesquisa de 2019 do Public Religion Research Institute mostrou que 36 por cento do público em geral disse acreditar que “a religião mais causa do que resolve problemas na sociedade” — em contraste com 88 por cento dos ateus declarados.

“Existem diferentes facções de ateus, diferentes grupos”, diz Burge. Existem os ateus do “bicho-papão evangélico”, que são boomers mais tradicionais ligados à Freedom From Religion Foundation — aqueles que “leram Nietzsche na faculdade e viraram uma espécie de hippie liberal mais radical”, descreve Burge.

Depois, há o grupo dos ateus americanos, integrado por uma “espécie de ateu mais jovem, descolado e socialmente ativo”. Este grupo é conhecido por fazer outdoors na época do Natal, encorajando as pessoas a se declararem ateístas e por recorrer à justiça pelo direito de não serem impedidos de fazer comentários nas contas de políticos nas redes sociais. E, embora os ateus mais velhos sejam “um bando de velhos professores universitários aposentados” que “se contentam em ler seus livros de Dawkins e Hitchens”, os ateus mais jovens são, de certa forma, mais radicais, diz Burge. “Um [grupo] não gosta do outro.” Tal como a desunião entre os evangélicos, as divisões entre os diferentes grupos de ateus tendem a se estabelecer ao longo das linhas entre as gerações.

Os ativistas ateus da próxima geração têm mais presença nas redes sociais e são mais propensos a se envolver politicamente em causas de extrema esquerda. Eles também são mais diretos em seus ataques aos cristãos evangélicos, diz Burge. “São eles que realmente estão tentando levar adiante essa agenda.”

Esses ativistas ateus pensam que a religião (especialmente o evangelicalismo) é má e imoral, disse Burge. “Isso, para eles, é como sua razão de ser. […] Eles querem menos religião na sociedade. Eles querem que sua visão de mundo prevaleça.”

Alguns dos mais populares e bem articulados entre esses jovens ativistas ateus são os ex-evangélicos, pessoas que no passado se consideravam cristãos evangélicos, mas que depois repudiaram esse grupo.

De acordo com uma análise feita por Paul Djupe e Burge no General Social Study, os ex-evangélicos podem constituir até 5,5 por cento da população dos EUA — um número que tem se mantido estável desde a década de 1970. Os ex-evangélicos em sua maioria não são ateus. Burge diz que apenas cerca de 6% dos ex-evangélicos não acreditam em Deus.

Mas, nos últimos anos, esta minoria tem tido sua voz amplificada e uma influência descomunal em praça pública, como um “ponto de nexo” que interessa tanto para evangélicos como para ateus, explica Burge.

Alguns influenciadores ex-evangélicos, como Abraham Piper, filho do teólogo John Piper, não se identificam como ateus, mas também dizem que não acreditam em Deus. O filho de Tony Campolo, Bart Campolo, identifica-se como um humanista secular. (Ambos foram entrevistados pelo The New York Times a respeito de suas desconversões.) Outros, como @Eve_wasframed, celebridade da mídia social, construíram suas plataformas em torno de serem ex-evangélicos ateus.

Burge acredita que a sociedade americana está atualmente no seu momento de “pico ex-evangélico”, e que este movimento antagônico deverá entrar em declínio nos próximos cinco a dez anos. “A certa altura você não poderá ser definido pelo que você não é”, disse Burge. “E também, à medida que diminui o número de americanos que foram criados como evangélicos, você estará falando com um público cada vez menor.”

Qualquer aumento na crença religiosa pode provocar um maior antagonismo em relação à fé, explica Spencer. Isto acontece porque o ateísmo é um “movimento de sombras”, como ele costuma dizer — ou seja, “quanto maior a sombra projetada pela religião” e pelas figuras do mundo da fé, “mais escuros e maiores serão os espectros” daqueles que se opõem à religião. Isto não só aconteceu com os ataques terroristas de 11 de setembro e com o extremismo islâmico, no início da década de 2000, mas também com a ascensão do nacionalismo religioso, que deu sustentação à retórica dos ativistas ateus, segundo Burge.

“O nacionalismo cristão está sendo amplificado pelos ateus […] como ‘esta coisa maligna contra a qual estamos lutando’ — e isso lhes rende adesão, cliques online, retuítes e curtidas, tudo de que necessitam para ampliar o alcance de sua mensagem”, disse Burge. “Os nacionalistas cristãos tornaram-se o inimigo perfeito.”

Em contrapartida, muitas previsões do passado sobre a morte de Deus e da religião foram seguidas por avivamentos da fé e da crença na América. Por exemplo, cinco anos depois de uma capa de 1966, da revista Time, ter estampado as palavras de Friedrich Nietzsche com a pergunta “Deus está morto?”, a reportagem de capa de 1971 foi “The Jesus Revolution” [movimento cristão de avivamento] — e cinco anos depois disso, a Newsweek apelidou 1976 de “o ano evangélico.”

De qualquer modo, Burge diz que o crescimento do ateísmo linha-dura nos EUA abrandou, e não há previsões de que se expanda muito no futuro — em parte devido à homogeneidade do movimento. Dois terços dos que se identificam como ateus nos EUA são homens (68%) e três quartos deles (78%) são brancos.

Em contraste com os ateus ativistas, um tipo mais moderado de intelectual ateu parece ter emergido, ao longo dos últimos cinco anos, como explica Jim Stump. Stump é vice-presidente dos programas da Biologos, um thinktank cristão nos EUA fundado por Francis Collins, ex-diretor dos Institutos Nacionais de Saúde.

Em vez dos ataques frontais que chamam a religião de “câncer” da sociedade, diz ele, esta “nova onda” é mais sutil. Enquanto os neoateístas dizem que a religião é perigosa “e que precisamos sair às ruas e combatê-la”, disse Stump, alguns destes ateus não passionais simplesmente desprezam a religião como algo “irrelevante”.

“Há uma espécie de segunda onda de livros publicados por pessoas que são ateus e não têm amor pela religião — mas a abordagem deles é diferente”, disse Stump. O best-seller de 2011, Sapiens, escrito por Yuval Noah Harari; a obra On The Origin of Time [Sobre a origem do tempo], da autoria de Thomas Hertog; bem como muitos livros semelhantes propõem uma história das origens da humanidade, de cunho naturalista, e que explica o desenvolvimento da moralidade e da religião.

Embora estes autores ateus moderados possam ainda ser “antirreligião”, eles são mais propensos a reconhecerem as razões pelas quais tantas pessoas hoje defendem cosmovisões religiosas. Em vez de confiarem apenas no “cientificismo radical”, diz Stump, essa abordagem ao ateísmo se vale das ciências sociais, como a sociologia, a psicologia e a história natural, e também se mescla com elas.

“Eles reconhecem que existem diferenças de valores e que estas são coisas que, em última análise, não iremos resolver através de argumentos científicos”, disse Stump. As suas obras são populares, acessíveis e se engajam em um discurso público mais caridoso, bem como fazem reivindicações modestas sobre as religiões mundiais.

A razão pela qual existe um apetite por um tipo de ateísmo mais calmo, frio e controlado — e a razão pela qual este é palatável para um público mais amplo do que meramente os ateus — deve-se às divisões cada vez mais profundas entre grupos ideológicos em nossa sociedade.

“A identificação tribal que temos tornou-se cada vez mais forte”, diz Stump. “E isso, penso eu, contribui para esta nova forma de olhar para estas religiões como se fossem grupos distintos.”

Essa retórica ateísta mais circunspecta eclipsou o diálogo neoateísta, em termos de volume e popularidade. É evidente que os ativistas ateus ainda estão por aí, mas a sua mordacidade já não tem uma audiência tão ampla quanto os neoateus tiveram outrora. Segundo Stump, isso ocorre em parte porque a Internet pode ser fatiada de acordo com interesses pessoais.

Hoje, o conteúdo ateísta mais propenso a ganhar audiência entre o público em geral vem daqueles cuja abordagem à religião parece ser equilibrada e educada, em vez de algo irracional e cruel. É uma “compreensão mais sutil e sofisticada das diferentes religiões, em vez da maneira neoateísta de dizer: ‘Olhe só todas essas pessoas religiosas, elas não são estúpidas?’”, explica Stump.

Uma das acusações mais famosas e frequentes que os neoateus lançaram contra o teísmo cristão foi que este é anticiência e, portanto, anti-intelectual.

Dickson diz que os neoateus trouxeram este debate de volta ao primeiro plano e lhe deram uma “energia renovada”. Embora ele reconheça que “o público em geral pode não se lembrar de um único argumento apresentado”, a sua retórica deixou as pessoas com a “percepção geral” de que “ciência versus Deus é uma questão polêmica”.

Na verdade, grande parte do público em geral, nos EUA e no Reino Unido, ainda hoje percebe uma tensão entre ciência e religião.

No Reino Unido, o relatório de 2022 da Theos concluiu que o público britânico é mais propenso a pensar que ciência e religião são incompatíveis (57%) do que compatíveis (30%).

Da mesma forma, nos EUA, uma sondagem da Pew de 2014 concluiu que 59 por cento dos americanos acreditavam que com frequência há conflito entre ciência e religião, em comparação com 38 por cento que afirmaram que as duas são “em grande parte compatíveis”.

No entanto, a Theos concluiu que esta sensação de incompatibilidade entre ciência e religião “parece ser um conflito de imagem, e não de substância”, uma vez que as porcentagens foram bem mais baixas, quando os entrevistados responderam a perguntas sobre religiões específicas, ciências específicas ou argumentos científicos específicos, em vez de sobre ciência e religião em geral.

O mesmo acontece nos EUA. Uma porcentagem mais elevada de pessoas (68%) disse que a ciência não entra em conflito com as suas crenças religiosas pessoais. Esta descoberta está alinhada com a conclusão da Theos de que, embora muitas pessoas religiosas não tenham qualquer problema pessoal com a ciência, elas ainda têm a percepção de que existe conflito em geral.

Isso não quer dizer que alguns ateus ainda não olhem os cristãos com desprezo, por causa dessa sensação de conflito. Stump observou que, em certos campos científicos, existe o que ele chamou de “elite acadêmica”, a qual acha difícil acreditar que um cientista sério possa ser um cristão comprometido. “Isso não faz sentido para eles. Eles não entendem muito bem como você pode aceitar toda a ciência, mas ainda assim se apegar a isso [à fé]”, disse ele.

Alguns grupos de evangélicos americanos de fato consideram que a sua fé está em tensão com descobertas científicas, como a evolução e as mudanças climáticas, bem como com políticas que consideram alinhadas com a ciência, como o aborto ou as vacinas derivadas de linhas de células-tronco embrionárias. No Reino Unido, no entanto, historicamente tem havido menos percepção de tensão em torno dessas questões, mesmo entre aqueles que têm crenças cristãs conservadoras — tais como uma interpretação ortodoxa das Escrituras, uma postura pró-vida e uma ética sexual tradicional.

A Biologos está buscando conciliar verdades que possam ser conhecidas pela ciência com a verdade da Bíblia, dos princípios teológicos e da tradição da igreja. Um de seus principais objetivos é encorajar os crentes que tenham uma visão elevada das Escrituras e interesse pela ciência.

“Nas guerras culturais, a ciência foi colocada de um lado e a religião do outro”, disse Stump. “O impacto definitivo no mundo real, que adoraríamos ver, é que as crianças que crescem na igreja ou que frequentam uma escola não se sintam forçadas a escolher entre as percepções dos cientistas de hoje e a fé religiosa genuína.”

Líderes do pensamento cristão estão apontando que ciência e religião não são campos de investigação idênticos nem completamente separados. Spencer toma emprestado a ideia de Stephen Jay Gould de que, como num diagrama de Venn, ciência e religião são “magistérios” distintos. Mas, em contraste com a teoria de Gould de que estes magistérios nunca se sobrepõem, Spencer vê uma sobreposição significativa na autoridade de ambos — especialmente em torno da “questão do humano”. Seu livro Magisteria descreve a ciência e a fé como áreas entrelaçadas, e não concorrentes.

Na verdade, existe um movimento florescente de “teologia cientificamente engajada” — que encoraja teólogos a explorarem tópicos científicos pelas lentes da fé, e cristãos que atuam em campos científicos a emprestarem seus conhecimentos [para esse fim]. O objetivo é mostrar que não só pode haver correspondências entre ciência e religião, mas que essas correspondências também podem assumir muitas formas criativas e produtivas.

Isso inclui as iniciativas de organizações mais recentes, como a Biologos, e de organizações mais antigas, como a Fundação John Templeton — fundada nas décadas de 1970 e 1980 por um filantropo social que viu a necessidade de fomentar estudos e diálogo entre cientistas, filósofos, teólogos e o público em geral.

A teóloga e coautora da obra Science-Engaged Theology [Teologia cientificamente engajada], Joanna Leidenhag, diz que um dos objetivos de tais esforços é ir além dos argumentos apologéticos tradicionais e dos campos de batalha históricos entre cristãos e neoateus. Os seus líderes querem fazer o trabalho de “empregar a ciência dentro da teologia construtiva”, explicou ela, mas “com mais cuidado, de forma mais deliberada e com mais consciência” do que foi feito no passado.

Outro campo de batalha importante entre cristãos e neoateus — que discute se a religião é boa ou nociva para a sociedade — continua a ser tão relevante quanto sempre foi.

Com a ascensão do nacionalismo cristão nos EUA, os constantes escândalos de abusos cometidos na igreja e por lideranças, e uma maior consciência da participação histórica do cristianismo na marginalização sistêmica, as pessoas que têm fé estão tendo de combater tantas críticas do mundo dos incrédulos quanto de costume.

Os neoateus deixaram um impacto duradouro na consciência pública, diz Dickson, tornando “respeitável ser desrespeitoso” para com a religião, e transferindo para as pessoas de fé o ônus de provar como a religião pode ser boa para a sociedade, em vez de deixar para os secularistas o ônus de provar por que a religião é nociva para a sociedade.

Dickson, autor de Bullies and Saints: An Honest Look at the Good and Evil of Christian History [Valentões e santos: Um olhar honesto sobre o bem e o mal da história cristã], diz que, embora os crentes devam “admitir que existe algo como o dito mau cristianismo”, os cristãos também podem destacar beleza e virtude na forma como Deus tem trabalhado através da igreja e o impacto positivo do cristianismo na história da humanidade.

Na verdade, alguns intelectuais querem resgatar o termo humanismo cristão. Querem realçar os valores cristãos subjacentes em grande parte da ideologia humanitária que construiu a civilização ocidental — conceitos como razão, dignidade e moralidade.

Spencer explica que “o humanismo é uma ideia cristã”, pois envolve um compromisso com um conceito do humano que está “totalmente enraizado no pensamento e na prática cristãos”. Ele diz que o termo humanista “não era de nenhum jeito, formato ou modo um rótulo não religioso ou antirreligioso”, até que “foi sendo cada vez mais apropriado pelos não crentes, a partir das décadas de 1920 e 30” e “sendo abandonado pelos fiéis cristãos no período pós-guerra”. Depois disso, segundo ele, o termo tornou-se “um emblema para ateus e livres-pensadores, ou céticos e secularistas”.

“Converso com muitos humanistas e os irritaria imensamente, se lhes dissesse: ‘Veja bem, eu também sou um humanista, sou um humanista cristão.’ Eles diriam: ‘Veja bem, você não pode ser, porque humanismo é ateísmo’”, disse McGrath. “E eu responderia: ‘Veja bem… vocês são humanistas seculares e sequestraram o termo humanista para seus próprios fins’”.

Como historiador, McGrath argumenta que figuras como Isaac Newton e Erasmo de Rotterdam eram, na verdade, humanistas cristãos. “Nossa discussão realmente gira em torno do que entendemos por humanismo”, disse McGrath. “No Renascimento, um humanista era alguém que, de fato, via as religiões ou Deus como” peças-chave para “enriquecer e possibilitar a existência humana autêntica”.

Alguns dos melhores apologistas do humanismo cristão hoje nem sequer são cristãos. Isto porque, juntamente com o declínio dos ateus ativistas “raivosos” e a ascensão dos ateus “moderados”, vemos o advento do que poderíamos chamar de ateus “amigáveis”. A maioria deles não acredita em Deus, mas, ao contrário dos ateus moderados, são publicamente pró-religião e podem até defender os benefícios do cristianismo para a sociedade.

Por exemplo, Jonathan Haidt, autor do best-seller The Righteous Mind [A mente justa], é um psicólogo moral que se considera ateu, mas acredita que a religião é boa para a humanidade. Numa entrevista ao The Atlantic, em 2020, Haidt disse que “acredita que a religião não só faz parte da natureza humana, como é em geral uma boa parte da natureza humana e uma parte essencial de quem somos e de como nos tornamos uma espécie civilizada”.

Ele também tem um ponto crítico em comum com os cristãos: acredita que existe um “vazio que tem a forma de Deus no coração de todo ser humano” e que deve ser preenchido. Referindo-se a si mesmo como “o oposto” dos neoateus, Haidt disse que até já travou algumas discussões com estes por “defender a religião contra algumas das acusações que eles fazem”. Ele também já se apresentou em várias organizações e universidades cristãs e foi entrevistado no The Russell Moore Show, um podcast da CT.

Além de Haidt, há também Tom Holland, historiador e ex-cético liberal que escreveu Dominion: How the Christian Revolution Remade the World [Domínio: como a revolução cristã recriou o mundo]. Tendo sido criado por uma mãe anglicana e um pai ateu, Holland já se considerou ateu, mas hoje se descreve como agnóstico. Ele até frequenta a igreja ocasionalmente, uma vez que encontre algo que se assemelhe a uma experiência espiritual.

Holland percebeu que os valores do cristianismo foram a razão pela qual o mundo ocidental passou da celebração de sociedades brutais – onde o poder faz a lei e os fortes dominam os fracos — para sociedades honradas e civilizadas, nas quais uma dignidade humana universal é o ideal. Holland hoje defende o cristianismo como algo benéfíco para a sociedade humana, tendo se tornado uma espécie de apologista do humanismo cristão, embora ainda não reivindique nenhum tipo de fé pessoal.

“Penso que, em última análise, o poder do cristianismo se expressa de forma mais potente através das suas histórias”, explicou Holland em uma entrevista com o autor Glen Scrivener. “Essas histórias não precisam ser literalmente verdade… para que a história em si, na minha opinião, seja verdadeira. … Algumas histórias têm tamanho poder que você pode se render a elas.”

E, embora ateus amigáveis ​​como Haidt e Holland — juntamente com Jordan Peterson, Alain de Botton, Douglas Murray e outros — tenham se tornado mais tolerantes e espiritualmente abertos ao cristianismo, alguns deles “adotaram” o cristianismo — mas num sentido puramente cultural, não como seguidores de Jesus.

Por exemplo, Murray, uma figura politicamente controversa do Reino Unido, escreveu The War on the West [A guerra contra o Ocidente] e descreve a si mesmo como um “cristão cultural” e um “cristão ateu”. Ou, como Holland escreveu em The New Statesman [O novo estadista]: “No que tange à minha moral e à ética, aprendi a aceitar que sou… total e orgulhosamente cristão”.

Mas, talvez, o mais surpreendente seja o número crescente de ateus que vieram a abraçar uma fé plena em Jesus.

Este grupo de adultos ateus que se converteram ao cristianismo — juntamente com muitas das suas histórias de conversão — está catalogado em dois livros lançados este ano: Atheists Finding God: Unlikely Stories of Conversions to Christianity in the Contemporary West [Ateus que encontram Deus: histórias improváveis ​​de conversões ao cristianismo no Ocidente contemporâneo] e Coming to Faith Through Dawkins [Chegando à fé através de Dawkins]. O primeiro livro explora o que levou 50 céticos à fé, enquanto o último destaca 12 intelectuais que disseram que os neoateus foram realmente fundamentais para sua jornada rumo à fé cristã.

Alguns ​​ateus célebres que se tornaram cristãos nos últimos anos são Stephen Bullivant (autor de Nonverts: The Making of Ex-Christian America [Não-vertidos: a formação da América ex-cristã]); Josh Timonen (que já foi “braço direito” de Dawkins); o colunista do New York Times, David Brooks; e os escritores Martin Shaw, Paul Kingsnorth, A. N. Wilson, Leah Libresco, e Molly Worthen.

“Conversei em particular com pelo menos 15 homens, no ano passado, que hoje são cristãos ou estão ativamente tentando sê-lo”, escreveu a ex-diretora da Theos, Elizabeth Oldfield. “É possível que eu esteja vendo isso agora por causa da reação ao movimento neoateísta. … De qualquer forma, acho que é algo comovente, que me enche de esperança.”

Justin Brierley, um apologista público no Reino Unido e autor da obra The Surprising Rebirth of Belief in God [O surpreendente renascer da crença em Deus], diz que há uma “crescente crise de sentido no Ocidente”, na qual, segundo Burge, a América ocupa “a vanguarda do momento”.

“Quando se perde a fé cristã como narrativa totalizante no Ocidente, as pessoas simplesmente se apegam a outras coisas quase religiosas”, diz Brierley. “Na ausência da história judaico-cristã, a cultura estava basicamente criando muitas pequenas histórias sobre identidade, propósito e sentido.”

Brierley foi o apresentador do Unbelievable?, um programa onde crentes e ateus frequentemente discutem questões de fé. E, nos últimos cinco anos ou mais, ele diz que começou a ter muito mais “conversas matizadas sobre fé e sentido” com muitos intelectuais seculares no progama — discutindo questões como o propósito da humanidade e se podemos viver na ausência de Deus.

Na esteira da decepção pelo fato de o cientificismo promovido pelo movimento neoateísta não “responder às perguntas das pessoas” e “não chegar ao fundo” das coisas, Brierley diz que muitos ateus hoje estão em “busca de sentido e propósito” e se perguntando para onde ir, na ausência do cristianismo e da religião. Eles estão se perguntando: “Por qual tipo de história nós vivemos?”

E, segundo ele, para alcançar aqueles que procuram um propósito maior e um sentido de identidade na comunidade, a igreja precisa evitar recontar as mesmas narrativas menores que são propostas por ambos os lados das guerras culturais. Em vez disso, diz Brierley, os cristãos precisam voltar a “esta grande história que Deus está contando — na qual todos podemos encontrar um lugar”.

Esta tendência dos ateísmos ativista, moderado e amigável, que se espalha pelo Reino Unido e pelos EUA, ressalta insights importantes para o futuro da apologética cristã numa era pós-cristã, onde o neoateísmo já não é um fator dominante nas discussões sobre a existência de Deus. Isto é, dentre todas as pessoas que hoje estão deixando o cristianismo, muitas estão abertas a retornar. Mas estas almas que estão em busca querem uma fé profundamente enraizada na história e na tradição, que possa responder à questão do que realmente significa ser humano.

Acontece que a fé cristã, quando devidamente centrada na história e no reino de Deus, ainda tem o mesmo poder ancestral de cativar até mesmo os corações mais cínicos.

Stefani McDade é editora associada da CT.

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Jejum em terra de fartura

Abster-se de comer confronta as mentiras que a cultura nos conta sobre o nosso corpo.

Christianity Today April 25, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Unsplash / Getty / WikiMedia Commons

Eu estava paralisada bem no meio do corredor dos cereais. De cada lado, havia milhares sacos e caixas de grãos consumidos no café da manhã, espalhados fileira após fileira, em dezenas de variedades: enriquecidos com vitaminas! Com marshmallow extra! Composto de canela com gérmen de trigo orgânico para fornecer duas vezes mais fibras diárias!

Nos últimos quatro anos e meio, eu havia morado em outro país, onde eu só tinha uma rua com lojinhas de alimentos locais, perto de casa. Eu subia e descia aquela rua, passando por enguias que se contorciam em baldes grandes, bolinhos que fumegavam em um carrinho de metal e maços de bok choy [uma variedade de repolho chinês] amontoados sobre uma mesa. E comprava apenas o que coubesse nas sacolas que eu tinha levado e o que conseguisse carregar a pé para casa. Agora que eu tinha acabado de voltar para a América, estava paralisada pelos excessos ao meu redor, naquele supermercado local.

Uma terra de fartura é um lugar estranho para jejuar. E não só porque muitos de nós nunca aprendemos o que é jejuar por necessidade, mas também por causa dos nossos pressupostos culturais subjacentes.

Por um lado, abraçamos a indulgência do hedonismo — o que o corpo quer, ele deve ter. Entronizamos o desejo como bem máximo, cedemos a todo e qualquer desejo que tivermos e por ele nos deixamos escravizar. E, via de regra, nossos prazeres são concebidos ​​para o excesso. Assim como as empresas de streaming incentivam a compulsão e [o uso de] smartphones visando ao vício, muito do que comemos é cientificamente projetado para nos viciar. Fica difícil controlar de forma apropriada os nossos apetites, quando estes são manipulados por conglomerados globais da indústria alimentícia que lucram com esses excessos.

Por outro lado, abraçamos uma reiteração moderna do gnosticismo. Sob a forte influência de filosofias platônicas e dualistas, nós separamos o físico do espiritual, em uma falsa dicotomia. Elevamos o domínio do sobrenatural à condição de mais puro e verdadeiro do que o domínio do corpóreo — e muitas vezes consideramos este último algo sujo ou até mesmo pecaminoso. Fazemos dieta em excesso — seguindo o exemplo de influenciadores sociais. Para muitos, a perspectiva de jejuar traz consigo uma bagagem de vergonha e de arrogância religiosa, que pode funcionar como um gatilho para aqueles que lutam contra transtornos alimentares.

Uma coisa seria se essas mentiras fossem promovidas apenas pela nossa cultura; infelizmente, porém, elas também podem aparecer em nossas igrejas.

Na igreja, uma cultura materialista ou hedonista pode parecer, por exemplo, uma busca incansável para aumentar a frequência e um orçamento maior para poder comprar um templo melhor. Lembro-me de um amigo missionário entrando no auditório da minha megaigreja e ficando furioso. Ao ver as telas brilhantes, os bancos estofados e os exuberantes arranjos florais, ele disse: “A igreja que plantamos teve de arrecadar dinheiro para comprar cadeiras dobráveis. Nós nos reunimos em um porão já há 20 anos. O que tudo isso [que vocês têm] comunica sobre a cruz de Cristo às pessoas?”

Há também uma infinidade de outras maneiras pelas quais a igreja insinua, às vezes de forma acidental, que a nossa carne é um problema e que o verdadeiro negócio é o nosso espírito. Isso pode ter implicações, como julgar membros que tomam antidepressivos por sua falta de fé — ou como um conselho de presbíteros que não financiará uma missão para cavar poços em algum país estrangeiro, a menos que tenham certeza de que o evangelho será apresentado ao mesmo tempo. O gnosticismo eclesiástico transforma o corpo em algo problemático ou, no mínimo, em algo inferior à alma, qualquer que seja a compreensão que tenhamos dela.

Estas duas mentiras contrárias — que nos levam a exaltar ou a negligenciar o nosso corpo — influenciam profundamente nossos hábitos alimentares. No entanto, para cristãos, a disciplina espiritual do jejum oferece uma terceira via poderosa, e diz a verdade que contraria as mentiras favoritas em que acreditamos sobre o nosso corpo.

Desde o tempo em que eu entrava e saía do anglicanismo, uns anos atrás, abri mão de algumas coisas criativas pela Quaresma: navegar no Instagram, ir a programações da igreja, usar o celular depois das 17h ou mesmo por um ano, acrescentar comentários desnecessários às conversas. Como somos sempre individualistas, gostamos de inventar formas personalizadas de abstenção. E, muito embora não haja dúvida de que essas formas possam servir a propósitos úteis em nossa vida com Deus, eu me pego voltando ao jejum de alimentos no contexto da comunidade, devido à forma como ele se volta para as mentiras da nossa cultura.

O jejum alimentar tem sido considerado um hábito cristão tradicional ao longo dos tempos, em todo o mundo. No podcastapresentado por John Mark Comer, uma convidada etíope descreveu o quanto ela cresceu, ao jejuar com sua comunidade cristã do nascer ao pôr do sol, durante 50 dias. Outro convidado descreveu com alegria a profunda consciência do Espírito que ele normalmente alcança no 14º dia de jejum.

Parece tudo muito legal, mas eu ainda não cheguei lá. Quando se trata de jejum alimentar, ainda sou uma mera principiante — ainda estou descobrindo como pular três refeições em espírito de oração e com algum tipo de regularidade. E, ao tentar colocar isso em prática, também procuro aprender com outras pessoas sobre o propósito espiritual desse hábito.

Hudson Taylor, missionário do século 19, aprendeu muito sobre o jejum com os crentes chineses Shansi. “Uma vez que faz com que a pessoa se sinta fraca e desanimada”, dizia Taylor, o jejum “é realmente um meio de graça divinamente designado. Talvez o maior obstáculo ao nosso trabalho seja a própria força que imaginamos ter. Ao jejuar, aprendemos como somos criaturas miseráveis e fracas, que dependem de uma porção de carne para obter a pouca força com que tão prontamente contamos.” Parece que Deus se compraz em satisfazer a fraqueza que o jejum revela em nós.

Também estou descobrindo que renunciar à alimentação pode fortalecer nossos músculos para a batalha celestial. Como diz Robert Moll, o “hábito da negação fortalece a nossa capacidade de tomar a cruz, à medida que até mesmo nosso próprio corpo é moldado à semelhança de Cristo”. Já percebi que, quando estou jejuando, sou capaz de resistir às minhas tentações preferidas com mais robustez. Isso me lembra de quando estava na faculdade, e me exercitava com peso nas pernas, na academia, para poder correr mais rápido e chutar com mais força no jogo de futebol.

Até Jesus fez uso da abstinência física como forma de obter força espiritual. Depois que o Espírito o levou a jejuar por 40 dias, e de estar imerso na afirmação de seu Pai, Jesus estava pronto para enfrentar o Diabo no deserto.

O jejum alimentar também pode nos conscientizar sobre nossos maus hábitos alimentares como sociedade. Muitos de nós jantamos sozinhos na frente da televisão ou comemos fast food entre as atividades das nossas agendas lotadas. Cometemos exageros e jogamos fora muita coisa. Lamento sinceramente por tudo o que já comi e o que já deixei de comer.

Afinal, de que adianta eu renunciar aos excessos e deixar um irmão ou irmã de mãos vazias? Que tal seria eu jejuar não só para exercer o devido controle sobre meu corpo e meu espírito diante de Deus, mas também por práticas justas no bairro em que moro?

Nossa gula e nossas formas prejudiciais de autoprivação ocorrem em uma época de fome real. Um em cada oito americanos sofre de insegurança alimentar — em outras palavras, não tem dinheiro suficiente para comer tanto quanto necessita. O número de seres humanos famintos que vivem em volta de lojas abarrotadas de alimentos me entristece. No país mais rico do mundo, algumas pessoas ainda passam fome.

Muitos crentes já usaram a Quaresma ou outras formas de jejum para se aliar aos famintos — para aumentar a consciencialização ou para levantar dinheiro para os pobres, e para se lembrar de orar pelos necessitados. Certa vez, uns amigos meus passaram a Quaresma inteira comendo apenas arroz e feijão, em solidariedade a quem não tem outra opção de comida. Cada vez que sentimos o estômago roncar, nossa fome pode servir como um post-it, para que nos lembremos de orar pelos necessitados.

O jejum comunitário e aliado à pobreza pode nos levar para além da nossa visão egocêntrica — que vê o jejum como mera prática espiritual individual — e abrir os nossos olhos para as experiências de todos aqueles que estão fora da nossa bolha. Longe de considerá-lo performativo, o profeta Isaías elogia o tipo de jejum em que pomos em liberdade os oprimidos […] partilhamos nossa comida com o faminto, abrigamos o pobre desamparado (Isaías 58.6-7).

No que diz respeito ao jejum em minha experiência pessoal, ela varia muito. Nunca sei como essa fome sagrada irá me afetar. Às vezes, meu corpo parece um vaso transparente do qual transborda o Espírito Santo. Posso sentir o amor de Deus pelo seu mundo pulsando em todas as direções; alcanço clareza e certos avanços, e minhas orações parecem “poderosas e eficazes” (Tiago 5.16, KJV). Outras vezes, quando jejuo, fico irritada — fico obcecada com a comida que estou perdendo, fico com dor de cabeça e sinto que é tudo uma estupidez.

Mas, quer eu sinta ou não seu significado espiritual, isso não muda o valor do jejum. Como Richard Foster aponta em Celebração da Disciplina, sua obra clássica, o jejum é uma daquelas disciplinas por meio das quais criamos um espaço dedicado (o corpo) e um tempo dedicado (digamos, às quartas-feiras, das 6h às 18h) para Deus, nos quais ele pode adentrar. Embora minhas motivações para jejuar sejam importantes, não preciso reunir todos os meus esforços de santificação para isso.

Meus jejuns são sem foco, desequilibrados em termos de motivação, às vezes — confesso — mais curtos do que eu pretendia, e nunca muito impressionantes. Quando ofereço meu corpo a Deus em jejum, é uma dádiva caótica, como se uma criança pegasse uma caixa de lápis de cor, rabiscasse um desenho e o entregasse nas mãos do seu pai. O jejum diz: Ei! Aqui estão meus vícios e dependências, meus prazeres e desejos, minha fraqueza e a pouca força que tenho. Você quer? Sim, Deus quer!

Por meio do nosso jejum, Deus se compromete a nos libertar da crueldade do ascetismo e da paralisia da indulgência. O jejum ataca tanto meu hedonista interior quanto meu dualista interior, o qual, com afetação esnobe, descarta o mundo material como se fosse menos importante do que o domínio espiritual. Ao oferecermos nossos corpos como sacrifícios vivos, Deus faz o que nem o hedonismo nem o gnosticismo conseguem fazer: Ele valoriza nossos corpos e o nosso domínio próprio corporal. E ele chama nosso sacrifício físico de santo.

O jejum nos renova a consciência do significado espiritual do nosso corpo e o honra como espaço sagrado, cuidadosamente criado e abundantemente suprido para o encontro com Deus.

Deus não vê nossos corpos como algo secundário ou irrelevante. A partir do momento em que Deus mescla o pó da terra com o sopro divino para formar Adão, a Bíblia apresenta os seres humanos como seres integrados e holísticos. Jesus veio como o Verbo que se fez carne. Ele alimentou estômagos famintos e pregou sermões. Ele curou enfermidades físicas e perdoou pecados. O Messias tratou cada parte dos seus semelhantes como algo importante.

Da mesma forma, Deus pretende que nossos corpos e espíritos estejam indissociavelmente entrelaçados. O jejum junta corpo e espírito, pneuma e soma. Com o jejum, colocamos Deus de volta no comando dos nossos desejos e pedimos que sejam melhores do que aquilo que desejamos. Pedimos humildemente que o seu reino governe nosso corpo.

Graciosamente, ele também revela a natureza comunal de nossas atitudes e ações em relação à alimentação, e nos convida a “praticar a justiça” (Miqueias 6.8), no que diz respeito ao alimento. Deus aprecia os corpos humanos, todos feitos à sua imagem. Eles fazem parte do plano do seu reino. Ele se preocupa com a nossa alimentação: o que comemos e o que não comemos, por que e com quem. Ele se preocupa com nossa barriga e com a nossa dor — tanto com a refeição quanto com o homem faminto na calçada. E não só isso, mas a sua promessa de redenção um dia transformará tudo.

Para uma americana recém-repatriada, atônita e perdida entre tantos cereais no corredor do supermercado, tudo isso são boas novas — é o evangelho.

Jeannie Whitlock é jornalista freelancer e poetisa. Ela vive no subúrbio de Chicago e escreve sobre o sagrado na encarnação, em todas as suas diversas ramificações.

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Quando não dá para traduzir a música de adoração

Grupos como Hillsong aprenderam a deixar de lado o literalismo, em favor da colaboração criativa.

Christianity Today April 25, 2024
Daniel Knighton / Stringer / Getty

O refrão “He is for you” [Ele é por você] não é fácil de traduzir para o espanhol. Na versão em inglês da música “The Blessing”, do grupo Elevation Worship, essa frase se repete e vai construindo um crescendo a cada repetição. Mas, na letra em espanhol, a frase foi traduzida por “Él te ama”, ou seja, “Ele te ama”.

“Fico feliz que os tradutores tenham feito isso”, disse o músico e tradutor Sergio Villanueva, que pastoreia uma congregação hispânica na Wheaton Bible Church, em Illinois. “Para transmitir essa ideia em espanhol — ‘Ele é por você’ — teríamos que usar muito mais palavras. O espanhol é uma língua bonita, mas usamos mais palavras e palavras mais longas.”

Essa escolha de tradução no cântico “The Blessing” (“La Bendición”, em espanhol) reflete um interesse crescente entre artistas de adoração de língua inglesa em fazer traduções, isto é, versões de suas músicas que sejam bem pensadas, fáceis de serem cantadas ​​e informadas pela cultura.

Frequentemente, os artistas são propensos a usar traduções que sejam o mais próximas possível de uma tradução palavra por palavra. Mas, à medida que compositores influentes e megaigrejas aumentam seu alcance, equipes de tradutores estão ajudando a produzir novas versões de músicas de adoração populares que sejam fiéis à versão original, mas sem tentar replicar palavras que não sejam tão acessíveis ou tão expressivas em outra língua.

“Temos de honrar a intenção do compositor original, mesmo que isso signifique alterar exatamente o que as palavras dizem”, disse Villanueva, que já fez traduções para Keith e Kristyn Getty, Sovereign Grace Music e Kari Jobe.

O ritmo da tradução e da distribuição internacional de músicas de adoração feitas em língua inglesa acelerou nas últimas quatro décadas, mas de forma não consistente.

Na década de 1980 e início dos anos 90, a Integrity Music passou a lançar gravações em espanhol, começando com Maranatha!, álbum de 1981 intitulado Quiero Alabarte (Quero Te Louvar). A Hosanna! Music criou um público internacional, por meio de suas vendas diretas de cassetes ao consumidor.

À medida que a música de adoração contemporânea decolou como gênero distinto, no final dos anos 90 e início dos anos 2000, canções de artistas importantes como Matt Redman, Hillsong e Tim Hughes encontraram um público global entusiasmado.

O crescimento do cristianismo evangélico no Sul Global coincidiu com a proliferação internacional das músicas de adoração contemporâneas; em 2020, havia, no mundo inteiro, mais cristãos falando (e cantando) em espanhol do que em qualquer outra língua.

Villanueva lembrou que o álbum More Than Life, de 2004, da Hillsong United, repercutiu nas igrejas latino-americanas e ampliou o perfil do grupo na região. “Naquele tempo, cada um fazia sua própria tradução. Havia inúmeras versões de ‘Here I Am to Worship’ [Aqui estou para adorar’]. Cada um tinha a sua”, disse ele.

O álbum também ganhou popularidade no Canadá, quando Jonathan Mercier, ex-pastor criativo da Hillsong Church Paris, fez parte de um grupo de jovens em Cornwall, Ontário. Na época, ele frequentava uma igreja batista de língua francesa, que cantava hinos tradicionais franceses. Quando o álbum Mighty to Save, da Hillsong United, foi lançado, em 2006, Mercier traduziu ele mesmo algumas das músicas para um acampamento de jovens que falavam francês. Quando faziam as traduções por conta própria, segundo ele, as congregações tinham autonomia para elaborar novas letras que se adaptassem ao seu idioma e ao seu contexto cultural.

À medida que a Hillsong se expandiu, na década de 2000 — após o sucesso de “Shout to the Lord” [Aclame ao Senhor], na voz de Darlene Zschech —, a organização começou a fazer traduções para o espanhol, o francês e outros idiomas. A música das megaigrejas já havia entrado no mercado americano por meio da Integrity, que lançou “Shout to the Lord” pela Hosanna! Music, em 1996.

Mercier se lembra de ter lido algumas dessas primeiras versões para o francês, durante um estágio no braço editorial da Hillsong. “Não dava para cantar as versões que existiam”, disse ele. “Elas eram muito literais.”

Mercier, assim como Villanueva, descobriu que os compositores das músicas tendiam a favorecer versões que tentavam preservar exatamente as mesmas palavras, muitas vezes à custa do lirismo e da fluidez da letra.

“A tradução é uma arte”, disse Mercier, que já traduziu mais de 100 músicas para a Hillsong. “Algumas músicas realmente são fáceis de traduzir; já outras exigem muito trabalho criativo e interpretação.”

Villanueva diz que, quando os compositores confiam o cuidado da letra aos tradutores, a música sempre sairá beneficiada. O trabalho de um tradutor é, em partes iguais, linguístico, musical e teológico. A economia das palavras pode ser crítica.

“Imagine que você more em uma casa grande e esteja se mudando para um apartamento”, disse ele. “Você tem duas opções: pode tentar manter todos os móveis e morar em um espaço apertado ou pode abrir mão de algumas coisas.”

A decisão de traduzir “He is for you” por “Él te ama” [“Ele te ama”], na música “The Blessing”, ilustra os benefícios de uma abordagem musical ampliada e da flexibilidade por parte dos compositores originais, disse Villanueva.

A frase “He is for you” [Ele é por você] evoca a proteção e a defesa de Deus em nosso favor. Ela ressalta a mensagem da música sobre a bênção e o favor de Deus serem algo que é ativamente concedido. “He loves you” [Ele te ama] tem um tom diferente. Mas não tem problema, na opinião de Villanueva. A frase não tem um correspondente direto em espanhol, e a bênção de Deus flui do amor dele por nós. Essa tradução é uma escolha lógica.

O grande envolvimento de um tradutor pode criar complicações econômicas. Mercier supervisionou a tradução e as gravações em francês para o Hillsong Global Project, uma série de compilações, feita em 2012, de nove álbuns de adoração em nove idiomas diferentes, entre eles o espanhol, o francês, o alemão, o português, o mandarim e o russo.

Em alguns casos, Mercier aparece nos créditos como compositor. Em outros, não. O reconhecimento e a compensação são inconsistentes.

“A questão dos royalties é complicada, por causa dos contratos com os compositores originais”, disse Mercier. “Os compositores originais precisariam concordar em abrir mão de uma parte dos royalties [pagos] por suas músicas.”

Mercier não se preocupa muito com isso. Seu trabalho é pago por sua igreja, como é o caso de muitos tradutores. Mas as traduções para uma megaigreja global como a Hillsong têm potencial de gerar receitas substanciais, e o trabalho de tradução é cada vez mais supervisionado pelas organizações.

Algumas optaram por pagar aos tradutores uma quantia fixa. Villanueva faz parte do conselho editorial que supervisiona o processo de tradução da Sovereign Grace Music e recebeu créditos pela composição de uma série de músicas, incluindo aquelas que ele traduziu para o álbum de 2012 de Kari Jobe, Donde te Encuentro [Onde te encontro]. Segundo Villanueva, em muitos casos ele ganhou mais ao receber uma quantia fixa do que jamais receberia em royalties.

A exportação das músicas de adoração do mundo de língua inglesa intensificou-se com a globalização e a ascensão do streaming. Músicas de Hillsong, Kari Jobe, Chris Tomlin e Elevation aparecem nas setlists de domingo, em igrejas do mundo todo. Alguns se perguntam se o atual ritmo de exportação é saudável ou se beira o colonialismo cultural.

“Tenho a tendência de suspeitar de traduções”, disse Marcell Silva Steuernagel, professor assistente de música sacra na Southern Methodist University, que iniciou sua carreira como líder de louvor no Brasil. “A cultura nunca se propaga de forma neutra.”

Ainda assim, diz Silva Steuernagel, é preciso ser pragmático e pastoral.

“Quando lidero o louvor no Brasil, não estou tentando me livrar da Hillsong. Essa é uma proposta impossível”, disse ele, “e que pode cortar vínculos com pessoas que valorizo.”

Villanueva também enxerga que há espaço para músicas de adoração importadas e adaptadas. Mas acrescentou que adorar em sua própria língua é algo excepcionalmente poderoso, sem igual.

“Nada se compara à língua natal em resposta a Deus”, disse Villanueva. “Precisamos de ambas. E precisamos de sabedoria e de humildade para abraçar o que é necessário de ambas.”

Kelsey Kramer McGinnis é correspondente da CT na área de música.

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No filme Guerra Civil, o que se vê é o que se tenta esquecer

O novo thriller distópico nos lembra que o importante não é apenas o que testemunhamos, mas como.

Cailee Spaeny (no centro) como Jessie, em ‘Guerra Civil’.

Cailee Spaeny (no centro) como Jessie, em ‘Guerra Civil’.

Christianity Today April 23, 2024
Murray Close / Courtesy of A24

Não há nada mais assustador do que o som do obturador da câmera no novo filme Guerra Civil.

Distribuído pela A24, produtora que está por trás de lançamentos como Everything Everywhere All at Once [Tudo em todo lugar ao mesmo tempo] e Past Lives [Vidas Passadas], o filme mostra os remanescentes de um governo dos Estados Unidos lutando contra as Forças Ocidentais, resultantes de uma aliança entre o Texas e a Califórnia. Se você está procurando motivos — por que essas facções? Por que agora? — não encontrará nenhuma resposta. O filme é frustrantemente opaco no que diz respeito à sua idealização, embora possamos formular hipóteses com base em alguns comentários casuais. (O presidente, não identificado, que é interpretado por Nick Offerman, está entrando em seu terceiro mandato e não se intimida em usar ataques aéreos contra cidadãos americanos). Mesmo assim, a Califórnia cooperando com o Texas parece algo improvável.

Para o escritor e diretor Alex Garland, nossa incredulidade é o ponto principal. “Acho interessante que as pessoas digam: ‘Esses dois estados jamais poderiam se juntar, em circunstância nenhuma’. Em circunstância nenhuma? Nenhuma mesmo? Tem certeza?”, disse ele ao The Atlantic. Quando pede para acatarmos sua premissa, Garland nos força, como espectadores, a reparar nas divisões ideológicas que normalizamos. No fim das contas, o porquê não importa tanto assim. A distopia, não importa como venha à tona, continua sendo distopia.

O que fica claro, porém, é que a guerra brinda os jornalistas com uma oportunidade, da qual a fotojornalista Lee (Kirsten Dunst); seu colega da Reuters, Joel (Wagner Moura), e seu mentor, o repórter do New York Times, Sammy (Stephen McKinley Henderson) tiram o máximo proveito. A cobertura que eles fazem das atrocidades molda nossa experiência desse futuro imaginário. Muitos daqueles sons arrepiantes do obturador da câmera vêm de Lee, à medida que ela documenta cenas verdadeiramente terríveis de conflitos domésticos, com eficiência implacável e técnica impecável. É chocante ver soldados militares sendo executados ou um civil sendo incendiado em fotos com ISO e abertura perfeitos.

Sempre em busca de um furo de reportagem, os três decidem embarcar em uma viagem de carro de Nova York a Washington, onde Lee espera fotografar o presidente e Joel espera entrevistá-lo. “Chegaremos lá antes de todo mundo”, diz Lee. Joel concorda: “Entrevistá-lo é a única história que resta”. No último minuto, Jessie (Cailee Spaeny), uma jovem fotojornalista que idolatra Lee, se une aos dois. Juntos, eles embarcam em um tour pelo país em ruínas.

A cada clique, as fotógrafas ficam mais desconectadas da guerra que estão documentando. O cinegrafista Rob Hardy e o editor Jake Roberts usam tomadas recorrentes dos desdobramentos posteriores de cada foto, para obter um efeito aterrorizante. Quando Lee ou Jessie abaixam sua câmera [do rosto, depois de tirarem uma foto], é como se tirassem uma máscara.

Quer ela tenha capturado uma imagem de um shopping center abandonado ou de um soldado sangrando, a postura desapaixonada de Lee é de arrepiar. Ela já viu tantas atrocidades que, seja por autopreservação ou por excesso de exposição, ficou insensível aos horrores à sua volta.

A jovem Jessie, no entanto, é diferente. Sempre que acaba de tirar uma foto, pelo menos no início, o público vê o impacto que o registro tem sobre ela. É uma tragédia quando a empatia de Jessie dá lugar ao distanciamento. A cada clique da câmera, sua fisionomia fica menos assustada, mais estoica.

Guerra Civil é uma ode ao trabalho angustiante dos jornalistas de guerra. Mas o filme também se opõe à noção de que a maior virtude que um jornalista pode cultivar é a capacidade de permanecer imperturbável. Embora a objetividade seja imprescindível, ela não deve ser um distintivo de honra, para quando somos capazes de cobrir o pior do que acontece no mundo e não nos comovermos.

Em uma sequência dolorosa, depois que os jornalistas testemunham um ato de violência, Lee diz a uma Jessie visivelmente abalada: “Nós registramos [a cena] para que outras pessoas questionem”. O investimento de Lee na história termina após o clique da câmera; ela deixa para o público a tarefa de explorar questões superlativas sobre dor e propósito. “Você quer ser jornalista? Esse é o trabalho”, ela repreende Jessie. Não se pode negar o empenho dos jornalistas em capturar a verdade do que veem. Mas, ainda assim, é perturbador quando eles fazem isso sem a menor emoção.

Os salmos de Davi adotam uma abordagem oposta a essa que é moldada pelo filme Guerra Civil — neles, todos lamentam, regozijam-se e ficam irados, quando interpretam o mundo ao seu redor.

Em David in Distress: His Portrait Through the Historical Psalms [Davi angustiado: um retrato através dos Salmos históricos], a acadêmica Vivian L. Johnson identifica certos cânticos que têm correlação direta com o que é abordado em textos como 1 e 2Samuel. Um deles é o texto de Salmos 51, escrito após o estupro de Bete-Seba por Davi e o assassinato do marido dela, Urias, conforme registrado em 2Samuel 11.

Enquanto a história em Samuel fornece um relato objetivo do que aconteceu, o salmo oferece uma oportunidade de dar corpo à experiência interior e emocional de Davi. Como Johnson escreve: “Raramente as narrativas de Samuel revelam a contemplação particular de Davi ou relatam seus gestos de contrição; na verdade, os livros de Samuel em geral mostram pouca reserva na exposição de seus atos mais chocantes”. Ela argumenta que o Salmo 51 — no qual Davi detalha seu remorso de forma mais plena do que na confissão de uma linha, “Pequei contra o Senhor”, em 2Samuel, — “fornece ao leitor uma versão elaborada e piedosa do que Davi pode ter dito, depois de reconhecer a gravidade de suas ações, quando assassinou o marido de sua amante”.

O papel do salmista é diferente do papel do jornalista. Mas o que vemos em Guerra Civil nos lembra, tal como as Escrituras, do quão vulneráveis podemos ser diante das dificuldades do mundo. Para cada atrocidade registrada há um jornalista que se esforça para deixar um testemunho.

Veja, por exemplo, uma galeria da Rolling Stone com imagens de fotojornalistas, tiradas em Gaza. As fotos são difíceis de olhar e são ainda mais pungentes agora, que o número de mortos no local ultrapassou 33.000 pessoas. A apresentação dessas fotos não é descuidada nem descomedida; pelo contrário, cada foto é acompanhada de uma legenda que a contextualiza. O fotojornalista Ahmed Zakot assim descreve Gaza, em 9 de outubro de 2023: “Tirei esta foto do 19º andar de um arranha-céu em Gaza. Em meus 25 anos de carreira como fotógrafo, nunca senti tanto medo e angústia. Senti como se estivesse filmando uma cena de um filme, precisei lembrar a mim mesmo de que tudo isso é bem real.”

Eu posso ser como Lee. Quando vejo fotos de arquivo históricos ou até mesmo imagens de atrocidades atuais e distantes de mim, sinto-me tentado a me resguardar disso, mantendo tudo à distância. Não é de admirar que isso aconteça em nosso mundo on-line, de superexposição, no qual imagens e testemunhos horrendos estão a apenas um toque para atualização da nossa timeline.

Mas, embora essa dissociação possa ser compreensível, ela não é desejável. Isso vale não só para a dor, mas também para a alegria. Está no discurso de Jó para Deus: ira plenamente expressa, em vez de circunstâncias meramente aceitas. Mas também está no primeiro capítulo de Lucas, que abre espaço para o cântico de Maria.

Enquanto outros evangelhos são rápidos em narrar os eventos do nascimento de Jesus, Lucas faz uma pausa para dar uma visão do coração de Maria. O espírito dela “se alegra em Deus, meu Salvador”; ela pode confiar nas promessas anunciadas pelo anjo Gabriel, pois Deus demonstrou sua fidelidade “como dissera aos nossos antepassados”. Mesmo ao registrar os fatos, as Escrituras abrem espaço para o lamento, a celebração e o louvor, não para o estoicismo.

O filme Guerra Civil nos faz um lembrete semelhante. O que importa não é apenas o que testemunhamos, mas como testemunhamos. Mesmo quando lembramos a nós mesmos de que “tudo isso é bem real”, também nos lembramos de um Deus amoroso que está presente nessa realidade. Que possamos vigiar nossas almas, ao olharmos o sofrimento de perto. Que possamos também permitir que nosso coração fique partido.

Zachary Lee é gerente editorial do Center for Public Justice [Centro para Justiça Pública]. Ele escreve sobre mídia, fé, tecnologia e meio ambiente.

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