O neoateísmo está morto. Qual é a cara do novo neoateísmo?

É menor o número de britânicos que concordam com afirmações mordazes sobre a religião. Ainda assim, a descrença em Deus está aumentando no Reino Unido e nos EUA.

Ilustração de Danielle Del Plato

Ilustração de Danielle Del Plato

Christianity Today April 27, 2024

Nota da edição da CT em Português: Este artigo foi escrito originalmente em inglês em 2023, mas acreditamos que ele tem um conteúdo relevante para os cristãos em países de língua portuguesa hoje.

“Penso que se pode argumentar que a fé é um dos grandes males do mundo, comparável ao vírus da varíola, porém, mais difícil de erradicar”, disse Richard Dawkins, em 1996, à Associação Humanista Americana. Dez anos mais tarde, em 2006, uma pesquisa da ComRes concluiu que 42 por cento dos adultos do Reino Unido concordavam com esta afirmação mordaz. Isto é, dois em cada cinco não só eram descrentes; eles achavam que toda crença em Deus deveria ser deliberadamente erradicada.

Isto aconteceu perto do auge do movimento neoteísta — uma forma irada e bombástica de antirreligião, que surgiu no início dos anos 2000. Os líderes neoateus arrecadaram milhões com livros best-sellers e conquistaram seguidores influentes. Naquela época, parecia que este se tornaria o status permanente do secularismo — em que a falta de crença em Deus estava necessariamente associada a um desprezo amargo e provocativo pela religião.

Mas as coisas começaram a mudar. Em 2015, alguns começaram a anunciar a morte do neoteísmo e, em 2020, 15 anos após a sondagem da ComRes, uma nova pesquisa mostrou que apenas 20 por cento dos adultos no Reino Unido concordavam que a fé religiosa poderia ser comparada a um mal, a uma praga intratável na sociedade.

Nick Spencer — membro sênior da Theos, um thinktank cristão no Reino Unido, e um dos coautores do novo relatório — disse que a era do neoteísmo fomentou no público em geral uma escala de animosidade sem precedentes contra a religião. No entanto, ele concluiu em um relatório de 2022 da Theos, sobre ciência e religião, que “a hostilidade irada contra a religião, arquitetada pelo movimento neoateísta, havia acabado”, e que a população do Reino Unido expressava uma visão mais equilibrada da religião do que durante o auge da influência do movimento neoateísta. Entre as correntes de descrença contemporâneas, formas mais matizadas estão em ascensão.

À medida que o movimento neoateísta parecia implodir — em parte, devido à sua estranha fusão com a extrema direita nas guerras culturais americanas —, muitos secularistas começaram, em praça pública, a considerar seus líderes “uma verdadeira vergonha”, pessoas que davam ao “ateísmo uma má reputação”, segundo John Dickson, professor de Wheaton e apologista público que estuda os ateus.

“Basicamente, o mundo seguiu em frente e deixou o neoteísmo para trás”, disse Alister McGrath, teólogo e apologista de Oxford, autor da obra The Dawkins Delusion? “Mas isso não é motivo para nos alegrarmos, pois temos novos problemas com que nos preocupar.” Isto é, o declínio dessa vertente específica do neoateísmo, marcado por um fervor antirreligioso hiperbólico, não significa necessariamente um aumento da fé religiosa ou da crença em Deus.

Houve um aumento na proporção de pessoas não crentes no Reino Unido — lugar que já é um dos países menos religiosos do mundo, de acordo com a Gallup International — e também nos EUA, onde viveram e trabalharam neoateus célebres, como Sam Harris, Christopher Hitchens e Daniel Dennett.

“Isso não significa que a religião esteja em uma posição melhor [hoje]; significa apenas que a religião está em uma posição diferente”, disse McGrath.

Existem semelhanças e diferenças na forma como os cenários não religiosos do Reino Unido e dos EUA mudaram, desde a época do neoteísmo. Em ambos, a religião diminuiu ao longo da última década, e essa recessão parece prestes a continuar.

Embora muitos “ativistas” ateus ainda mantenham em público sentimentos antirreligiosos convictos, está em ascensão um tipo mais brando de ateu “moderado”, que é mais tolerante com a religião em geral. Outra tendência curiosa é o aumento de ateus “amigáveis”, ou secularistas que se tornam evangelistas improváveis ​em prol da cosmovisão cristã — incluindo aqueles que eventualmente chegam à fé plena.

Na Inglaterra e no País de Gales, o censo de 2021 mostrou que menos de metade da população se identificava como cristã, uma queda acentuada na última década — e mais de um terço afirma não ter “nenhuma religião”, fazendo deste o segundo maior grupo religioso no país. Mas Hannah Waite, pesquisadora da Theos, descobriu que, entre aqueles que se identificam como não religiosos, apenas cerca de metade deles disse não acreditar em Deus.

Um relatório recente da Theos determinou que esses entrevistados que se dizem não religiosos se enquadram em três grupos diferentes. Cerca de um terço deles no Reino Unido são ateus convictos e hostis à religião (“os sem religião militantes”), os quais sobrepõem-se aos ateus ativistas que abrangem ambos os países. Outro terço dos sem religião do Reino Unido são ateus no geral, mas aceitam a religião (“os sem religião tolerantes”), e o terço restante são agnósticos, mas espiritualmente abertos (“os sem religião espirituais”).

Nos EUA, as proporções são bem diferentes. O país é mais religioso do que o Reino Unido. A Pew Research descobriu, em um relatório de 2021, que aqueles que se autodenominam cristãos representavam 63% da população, número abaixo dos 75% da década anterior. Pouco menos de um terço dos adultos norte-americanos (29%) dizem não ter religião nenhuma.

De acordo com a Pesquisa Social Geral de 2021 (GSS, na sigla em inglês), quase 7% dos adultos norte-americanos selecionaram a alternativa “Não acredito em Deus” em uma lista de frases para descrever a sua fé.

Trabalhando a partir de dados da GSS, Ryan Burge, autor de The Nones e professor de ciências políticas na Eastern Illinois University, descobriu que nem todos os que se identificam como ateus diriam que não acreditam em Deus.

As percepções da religião nos EUA e no Reino Unido também não são paralelas. A porcentagem de adultos no Reino Unido que acreditavam que “as religiões causam mais conflitos do que promovem a paz” diminuiu de 74% para 63%, entre 2008 e 2018, de acordo com um estudo britânico de Atitudes Sociais, o que indica uma ligeira tendência de simpatia. Na mesma pesquisa, a maioria dos adultos do Reino Unido disse ter uma visão positiva do cristianismo e uma visão positiva ou neutra de outros grupos religiosos.

Nos EUA, a opinião pública sobre a religião é mais positiva e mais estável. Um relatório da Pew Research de 2019 mostrou que a maioria (55%) dos americanos vê as organizações religiosas como uma força positiva na sociedade americana.

Nos dois lugares, no entanto, os ateus ativistas veem a religião de forma mais negativa do que outros sem religião e do que o público em geral. No Reino Unido, 24 por cento da população e 39 por cento de todos os sem religião disseram acreditar que “a religião não tem lugar no mundo moderno”, em contraste com 89 por cento dos sem religião militantes (78 por cento dos quais ainda concordavam com Dawkins que a religião é comparável ao vírus da varíola).

Nos EUA, uma pesquisa de 2019 do Public Religion Research Institute mostrou que 36 por cento do público em geral disse acreditar que “a religião mais causa do que resolve problemas na sociedade” — em contraste com 88 por cento dos ateus declarados.

“Existem diferentes facções de ateus, diferentes grupos”, diz Burge. Existem os ateus do “bicho-papão evangélico”, que são boomers mais tradicionais ligados à Freedom From Religion Foundation — aqueles que “leram Nietzsche na faculdade e viraram uma espécie de hippie liberal mais radical”, descreve Burge.

Depois, há o grupo dos ateus americanos, integrado por uma “espécie de ateu mais jovem, descolado e socialmente ativo”. Este grupo é conhecido por fazer outdoors na época do Natal, encorajando as pessoas a se declararem ateístas e por recorrer à justiça pelo direito de não serem impedidos de fazer comentários nas contas de políticos nas redes sociais. E, embora os ateus mais velhos sejam “um bando de velhos professores universitários aposentados” que “se contentam em ler seus livros de Dawkins e Hitchens”, os ateus mais jovens são, de certa forma, mais radicais, diz Burge. “Um [grupo] não gosta do outro.” Tal como a desunião entre os evangélicos, as divisões entre os diferentes grupos de ateus tendem a se estabelecer ao longo das linhas entre as gerações.

Os ativistas ateus da próxima geração têm mais presença nas redes sociais e são mais propensos a se envolver politicamente em causas de extrema esquerda. Eles também são mais diretos em seus ataques aos cristãos evangélicos, diz Burge. “São eles que realmente estão tentando levar adiante essa agenda.”

Esses ativistas ateus pensam que a religião (especialmente o evangelicalismo) é má e imoral, disse Burge. “Isso, para eles, é como sua razão de ser. […] Eles querem menos religião na sociedade. Eles querem que sua visão de mundo prevaleça.”

Alguns dos mais populares e bem articulados entre esses jovens ativistas ateus são os ex-evangélicos, pessoas que no passado se consideravam cristãos evangélicos, mas que depois repudiaram esse grupo.

De acordo com uma análise feita por Paul Djupe e Burge no General Social Study, os ex-evangélicos podem constituir até 5,5 por cento da população dos EUA — um número que tem se mantido estável desde a década de 1970. Os ex-evangélicos em sua maioria não são ateus. Burge diz que apenas cerca de 6% dos ex-evangélicos não acreditam em Deus.

Mas, nos últimos anos, esta minoria tem tido sua voz amplificada e uma influência descomunal em praça pública, como um “ponto de nexo” que interessa tanto para evangélicos como para ateus, explica Burge.

Alguns influenciadores ex-evangélicos, como Abraham Piper, filho do teólogo John Piper, não se identificam como ateus, mas também dizem que não acreditam em Deus. O filho de Tony Campolo, Bart Campolo, identifica-se como um humanista secular. (Ambos foram entrevistados pelo The New York Times a respeito de suas desconversões.) Outros, como @Eve_wasframed, celebridade da mídia social, construíram suas plataformas em torno de serem ex-evangélicos ateus.

Burge acredita que a sociedade americana está atualmente no seu momento de “pico ex-evangélico”, e que este movimento antagônico deverá entrar em declínio nos próximos cinco a dez anos. “A certa altura você não poderá ser definido pelo que você não é”, disse Burge. “E também, à medida que diminui o número de americanos que foram criados como evangélicos, você estará falando com um público cada vez menor.”

Qualquer aumento na crença religiosa pode provocar um maior antagonismo em relação à fé, explica Spencer. Isto acontece porque o ateísmo é um “movimento de sombras”, como ele costuma dizer — ou seja, “quanto maior a sombra projetada pela religião” e pelas figuras do mundo da fé, “mais escuros e maiores serão os espectros” daqueles que se opõem à religião. Isto não só aconteceu com os ataques terroristas de 11 de setembro e com o extremismo islâmico, no início da década de 2000, mas também com a ascensão do nacionalismo religioso, que deu sustentação à retórica dos ativistas ateus, segundo Burge.

“O nacionalismo cristão está sendo amplificado pelos ateus […] como ‘esta coisa maligna contra a qual estamos lutando’ — e isso lhes rende adesão, cliques online, retuítes e curtidas, tudo de que necessitam para ampliar o alcance de sua mensagem”, disse Burge. “Os nacionalistas cristãos tornaram-se o inimigo perfeito.”

Em contrapartida, muitas previsões do passado sobre a morte de Deus e da religião foram seguidas por avivamentos da fé e da crença na América. Por exemplo, cinco anos depois de uma capa de 1966, da revista Time, ter estampado as palavras de Friedrich Nietzsche com a pergunta “Deus está morto?”, a reportagem de capa de 1971 foi “The Jesus Revolution” [movimento cristão de avivamento] — e cinco anos depois disso, a Newsweek apelidou 1976 de “o ano evangélico.”

De qualquer modo, Burge diz que o crescimento do ateísmo linha-dura nos EUA abrandou, e não há previsões de que se expanda muito no futuro — em parte devido à homogeneidade do movimento. Dois terços dos que se identificam como ateus nos EUA são homens (68%) e três quartos deles (78%) são brancos.

Em contraste com os ateus ativistas, um tipo mais moderado de intelectual ateu parece ter emergido, ao longo dos últimos cinco anos, como explica Jim Stump. Stump é vice-presidente dos programas da Biologos, um thinktank cristão nos EUA fundado por Francis Collins, ex-diretor dos Institutos Nacionais de Saúde.

Em vez dos ataques frontais que chamam a religião de “câncer” da sociedade, diz ele, esta “nova onda” é mais sutil. Enquanto os neoateístas dizem que a religião é perigosa “e que precisamos sair às ruas e combatê-la”, disse Stump, alguns destes ateus não passionais simplesmente desprezam a religião como algo “irrelevante”.

“Há uma espécie de segunda onda de livros publicados por pessoas que são ateus e não têm amor pela religião — mas a abordagem deles é diferente”, disse Stump. O best-seller de 2011, Sapiens, escrito por Yuval Noah Harari; a obra On The Origin of Time [Sobre a origem do tempo], da autoria de Thomas Hertog; bem como muitos livros semelhantes propõem uma história das origens da humanidade, de cunho naturalista, e que explica o desenvolvimento da moralidade e da religião.

Embora estes autores ateus moderados possam ainda ser “antirreligião”, eles são mais propensos a reconhecerem as razões pelas quais tantas pessoas hoje defendem cosmovisões religiosas. Em vez de confiarem apenas no “cientificismo radical”, diz Stump, essa abordagem ao ateísmo se vale das ciências sociais, como a sociologia, a psicologia e a história natural, e também se mescla com elas.

“Eles reconhecem que existem diferenças de valores e que estas são coisas que, em última análise, não iremos resolver através de argumentos científicos”, disse Stump. As suas obras são populares, acessíveis e se engajam em um discurso público mais caridoso, bem como fazem reivindicações modestas sobre as religiões mundiais.

A razão pela qual existe um apetite por um tipo de ateísmo mais calmo, frio e controlado — e a razão pela qual este é palatável para um público mais amplo do que meramente os ateus — deve-se às divisões cada vez mais profundas entre grupos ideológicos em nossa sociedade.

“A identificação tribal que temos tornou-se cada vez mais forte”, diz Stump. “E isso, penso eu, contribui para esta nova forma de olhar para estas religiões como se fossem grupos distintos.”

Essa retórica ateísta mais circunspecta eclipsou o diálogo neoateísta, em termos de volume e popularidade. É evidente que os ativistas ateus ainda estão por aí, mas a sua mordacidade já não tem uma audiência tão ampla quanto os neoateus tiveram outrora. Segundo Stump, isso ocorre em parte porque a Internet pode ser fatiada de acordo com interesses pessoais.

Hoje, o conteúdo ateísta mais propenso a ganhar audiência entre o público em geral vem daqueles cuja abordagem à religião parece ser equilibrada e educada, em vez de algo irracional e cruel. É uma “compreensão mais sutil e sofisticada das diferentes religiões, em vez da maneira neoateísta de dizer: ‘Olhe só todas essas pessoas religiosas, elas não são estúpidas?’”, explica Stump.

Uma das acusações mais famosas e frequentes que os neoateus lançaram contra o teísmo cristão foi que este é anticiência e, portanto, anti-intelectual.

Dickson diz que os neoateus trouxeram este debate de volta ao primeiro plano e lhe deram uma “energia renovada”. Embora ele reconheça que “o público em geral pode não se lembrar de um único argumento apresentado”, a sua retórica deixou as pessoas com a “percepção geral” de que “ciência versus Deus é uma questão polêmica”.

Na verdade, grande parte do público em geral, nos EUA e no Reino Unido, ainda hoje percebe uma tensão entre ciência e religião.

No Reino Unido, o relatório de 2022 da Theos concluiu que o público britânico é mais propenso a pensar que ciência e religião são incompatíveis (57%) do que compatíveis (30%).

Da mesma forma, nos EUA, uma sondagem da Pew de 2014 concluiu que 59 por cento dos americanos acreditavam que com frequência há conflito entre ciência e religião, em comparação com 38 por cento que afirmaram que as duas são “em grande parte compatíveis”.

No entanto, a Theos concluiu que esta sensação de incompatibilidade entre ciência e religião “parece ser um conflito de imagem, e não de substância”, uma vez que as porcentagens foram bem mais baixas, quando os entrevistados responderam a perguntas sobre religiões específicas, ciências específicas ou argumentos científicos específicos, em vez de sobre ciência e religião em geral.

O mesmo acontece nos EUA. Uma porcentagem mais elevada de pessoas (68%) disse que a ciência não entra em conflito com as suas crenças religiosas pessoais. Esta descoberta está alinhada com a conclusão da Theos de que, embora muitas pessoas religiosas não tenham qualquer problema pessoal com a ciência, elas ainda têm a percepção de que existe conflito em geral.

Isso não quer dizer que alguns ateus ainda não olhem os cristãos com desprezo, por causa dessa sensação de conflito. Stump observou que, em certos campos científicos, existe o que ele chamou de “elite acadêmica”, a qual acha difícil acreditar que um cientista sério possa ser um cristão comprometido. “Isso não faz sentido para eles. Eles não entendem muito bem como você pode aceitar toda a ciência, mas ainda assim se apegar a isso [à fé]”, disse ele.

Alguns grupos de evangélicos americanos de fato consideram que a sua fé está em tensão com descobertas científicas, como a evolução e as mudanças climáticas, bem como com políticas que consideram alinhadas com a ciência, como o aborto ou as vacinas derivadas de linhas de células-tronco embrionárias. No Reino Unido, no entanto, historicamente tem havido menos percepção de tensão em torno dessas questões, mesmo entre aqueles que têm crenças cristãs conservadoras — tais como uma interpretação ortodoxa das Escrituras, uma postura pró-vida e uma ética sexual tradicional.

A Biologos está buscando conciliar verdades que possam ser conhecidas pela ciência com a verdade da Bíblia, dos princípios teológicos e da tradição da igreja. Um de seus principais objetivos é encorajar os crentes que tenham uma visão elevada das Escrituras e interesse pela ciência.

“Nas guerras culturais, a ciência foi colocada de um lado e a religião do outro”, disse Stump. “O impacto definitivo no mundo real, que adoraríamos ver, é que as crianças que crescem na igreja ou que frequentam uma escola não se sintam forçadas a escolher entre as percepções dos cientistas de hoje e a fé religiosa genuína.”

Líderes do pensamento cristão estão apontando que ciência e religião não são campos de investigação idênticos nem completamente separados. Spencer toma emprestado a ideia de Stephen Jay Gould de que, como num diagrama de Venn, ciência e religião são “magistérios” distintos. Mas, em contraste com a teoria de Gould de que estes magistérios nunca se sobrepõem, Spencer vê uma sobreposição significativa na autoridade de ambos — especialmente em torno da “questão do humano”. Seu livro Magisteria descreve a ciência e a fé como áreas entrelaçadas, e não concorrentes.

Na verdade, existe um movimento florescente de “teologia cientificamente engajada” — que encoraja teólogos a explorarem tópicos científicos pelas lentes da fé, e cristãos que atuam em campos científicos a emprestarem seus conhecimentos [para esse fim]. O objetivo é mostrar que não só pode haver correspondências entre ciência e religião, mas que essas correspondências também podem assumir muitas formas criativas e produtivas.

Isso inclui as iniciativas de organizações mais recentes, como a Biologos, e de organizações mais antigas, como a Fundação John Templeton — fundada nas décadas de 1970 e 1980 por um filantropo social que viu a necessidade de fomentar estudos e diálogo entre cientistas, filósofos, teólogos e o público em geral.

A teóloga e coautora da obra Science-Engaged Theology [Teologia cientificamente engajada], Joanna Leidenhag, diz que um dos objetivos de tais esforços é ir além dos argumentos apologéticos tradicionais e dos campos de batalha históricos entre cristãos e neoateus. Os seus líderes querem fazer o trabalho de “empregar a ciência dentro da teologia construtiva”, explicou ela, mas “com mais cuidado, de forma mais deliberada e com mais consciência” do que foi feito no passado.

Outro campo de batalha importante entre cristãos e neoateus — que discute se a religião é boa ou nociva para a sociedade — continua a ser tão relevante quanto sempre foi.

Com a ascensão do nacionalismo cristão nos EUA, os constantes escândalos de abusos cometidos na igreja e por lideranças, e uma maior consciência da participação histórica do cristianismo na marginalização sistêmica, as pessoas que têm fé estão tendo de combater tantas críticas do mundo dos incrédulos quanto de costume.

Os neoateus deixaram um impacto duradouro na consciência pública, diz Dickson, tornando “respeitável ser desrespeitoso” para com a religião, e transferindo para as pessoas de fé o ônus de provar como a religião pode ser boa para a sociedade, em vez de deixar para os secularistas o ônus de provar por que a religião é nociva para a sociedade.

Dickson, autor de Bullies and Saints: An Honest Look at the Good and Evil of Christian History [Valentões e santos: Um olhar honesto sobre o bem e o mal da história cristã], diz que, embora os crentes devam “admitir que existe algo como o dito mau cristianismo”, os cristãos também podem destacar beleza e virtude na forma como Deus tem trabalhado através da igreja e o impacto positivo do cristianismo na história da humanidade.

Na verdade, alguns intelectuais querem resgatar o termo humanismo cristão. Querem realçar os valores cristãos subjacentes em grande parte da ideologia humanitária que construiu a civilização ocidental — conceitos como razão, dignidade e moralidade.

Spencer explica que “o humanismo é uma ideia cristã”, pois envolve um compromisso com um conceito do humano que está “totalmente enraizado no pensamento e na prática cristãos”. Ele diz que o termo humanista “não era de nenhum jeito, formato ou modo um rótulo não religioso ou antirreligioso”, até que “foi sendo cada vez mais apropriado pelos não crentes, a partir das décadas de 1920 e 30” e “sendo abandonado pelos fiéis cristãos no período pós-guerra”. Depois disso, segundo ele, o termo tornou-se “um emblema para ateus e livres-pensadores, ou céticos e secularistas”.

“Converso com muitos humanistas e os irritaria imensamente, se lhes dissesse: ‘Veja bem, eu também sou um humanista, sou um humanista cristão.’ Eles diriam: ‘Veja bem, você não pode ser, porque humanismo é ateísmo’”, disse McGrath. “E eu responderia: ‘Veja bem… vocês são humanistas seculares e sequestraram o termo humanista para seus próprios fins’”.

Como historiador, McGrath argumenta que figuras como Isaac Newton e Erasmo de Rotterdam eram, na verdade, humanistas cristãos. “Nossa discussão realmente gira em torno do que entendemos por humanismo”, disse McGrath. “No Renascimento, um humanista era alguém que, de fato, via as religiões ou Deus como” peças-chave para “enriquecer e possibilitar a existência humana autêntica”.

Alguns dos melhores apologistas do humanismo cristão hoje nem sequer são cristãos. Isto porque, juntamente com o declínio dos ateus ativistas “raivosos” e a ascensão dos ateus “moderados”, vemos o advento do que poderíamos chamar de ateus “amigáveis”. A maioria deles não acredita em Deus, mas, ao contrário dos ateus moderados, são publicamente pró-religião e podem até defender os benefícios do cristianismo para a sociedade.

Por exemplo, Jonathan Haidt, autor do best-seller The Righteous Mind [A mente justa], é um psicólogo moral que se considera ateu, mas acredita que a religião é boa para a humanidade. Numa entrevista ao The Atlantic, em 2020, Haidt disse que “acredita que a religião não só faz parte da natureza humana, como é em geral uma boa parte da natureza humana e uma parte essencial de quem somos e de como nos tornamos uma espécie civilizada”.

Ele também tem um ponto crítico em comum com os cristãos: acredita que existe um “vazio que tem a forma de Deus no coração de todo ser humano” e que deve ser preenchido. Referindo-se a si mesmo como “o oposto” dos neoateus, Haidt disse que até já travou algumas discussões com estes por “defender a religião contra algumas das acusações que eles fazem”. Ele também já se apresentou em várias organizações e universidades cristãs e foi entrevistado no The Russell Moore Show, um podcast da CT.

Além de Haidt, há também Tom Holland, historiador e ex-cético liberal que escreveu Dominion: How the Christian Revolution Remade the World [Domínio: como a revolução cristã recriou o mundo]. Tendo sido criado por uma mãe anglicana e um pai ateu, Holland já se considerou ateu, mas hoje se descreve como agnóstico. Ele até frequenta a igreja ocasionalmente, uma vez que encontre algo que se assemelhe a uma experiência espiritual.

Holland percebeu que os valores do cristianismo foram a razão pela qual o mundo ocidental passou da celebração de sociedades brutais – onde o poder faz a lei e os fortes dominam os fracos — para sociedades honradas e civilizadas, nas quais uma dignidade humana universal é o ideal. Holland hoje defende o cristianismo como algo benéfíco para a sociedade humana, tendo se tornado uma espécie de apologista do humanismo cristão, embora ainda não reivindique nenhum tipo de fé pessoal.

“Penso que, em última análise, o poder do cristianismo se expressa de forma mais potente através das suas histórias”, explicou Holland em uma entrevista com o autor Glen Scrivener. “Essas histórias não precisam ser literalmente verdade… para que a história em si, na minha opinião, seja verdadeira. … Algumas histórias têm tamanho poder que você pode se render a elas.”

E, embora ateus amigáveis ​​como Haidt e Holland — juntamente com Jordan Peterson, Alain de Botton, Douglas Murray e outros — tenham se tornado mais tolerantes e espiritualmente abertos ao cristianismo, alguns deles “adotaram” o cristianismo — mas num sentido puramente cultural, não como seguidores de Jesus.

Por exemplo, Murray, uma figura politicamente controversa do Reino Unido, escreveu The War on the West [A guerra contra o Ocidente] e descreve a si mesmo como um “cristão cultural” e um “cristão ateu”. Ou, como Holland escreveu em The New Statesman [O novo estadista]: “No que tange à minha moral e à ética, aprendi a aceitar que sou… total e orgulhosamente cristão”.

Mas, talvez, o mais surpreendente seja o número crescente de ateus que vieram a abraçar uma fé plena em Jesus.

Este grupo de adultos ateus que se converteram ao cristianismo — juntamente com muitas das suas histórias de conversão — está catalogado em dois livros lançados este ano: Atheists Finding God: Unlikely Stories of Conversions to Christianity in the Contemporary West [Ateus que encontram Deus: histórias improváveis ​​de conversões ao cristianismo no Ocidente contemporâneo] e Coming to Faith Through Dawkins [Chegando à fé através de Dawkins]. O primeiro livro explora o que levou 50 céticos à fé, enquanto o último destaca 12 intelectuais que disseram que os neoateus foram realmente fundamentais para sua jornada rumo à fé cristã.

Alguns ​​ateus célebres que se tornaram cristãos nos últimos anos são Stephen Bullivant (autor de Nonverts: The Making of Ex-Christian America [Não-vertidos: a formação da América ex-cristã]); Josh Timonen (que já foi “braço direito” de Dawkins); o colunista do New York Times, David Brooks; e os escritores Martin Shaw, Paul Kingsnorth, A. N. Wilson, Leah Libresco, e Molly Worthen.

“Conversei em particular com pelo menos 15 homens, no ano passado, que hoje são cristãos ou estão ativamente tentando sê-lo”, escreveu a ex-diretora da Theos, Elizabeth Oldfield. “É possível que eu esteja vendo isso agora por causa da reação ao movimento neoateísta. … De qualquer forma, acho que é algo comovente, que me enche de esperança.”

Justin Brierley, um apologista público no Reino Unido e autor da obra The Surprising Rebirth of Belief in God [O surpreendente renascer da crença em Deus], diz que há uma “crescente crise de sentido no Ocidente”, na qual, segundo Burge, a América ocupa “a vanguarda do momento”.

“Quando se perde a fé cristã como narrativa totalizante no Ocidente, as pessoas simplesmente se apegam a outras coisas quase religiosas”, diz Brierley. “Na ausência da história judaico-cristã, a cultura estava basicamente criando muitas pequenas histórias sobre identidade, propósito e sentido.”

Brierley foi o apresentador do Unbelievable?, um programa onde crentes e ateus frequentemente discutem questões de fé. E, nos últimos cinco anos ou mais, ele diz que começou a ter muito mais “conversas matizadas sobre fé e sentido” com muitos intelectuais seculares no progama — discutindo questões como o propósito da humanidade e se podemos viver na ausência de Deus.

Na esteira da decepção pelo fato de o cientificismo promovido pelo movimento neoateísta não “responder às perguntas das pessoas” e “não chegar ao fundo” das coisas, Brierley diz que muitos ateus hoje estão em “busca de sentido e propósito” e se perguntando para onde ir, na ausência do cristianismo e da religião. Eles estão se perguntando: “Por qual tipo de história nós vivemos?”

E, segundo ele, para alcançar aqueles que procuram um propósito maior e um sentido de identidade na comunidade, a igreja precisa evitar recontar as mesmas narrativas menores que são propostas por ambos os lados das guerras culturais. Em vez disso, diz Brierley, os cristãos precisam voltar a “esta grande história que Deus está contando — na qual todos podemos encontrar um lugar”.

Esta tendência dos ateísmos ativista, moderado e amigável, que se espalha pelo Reino Unido e pelos EUA, ressalta insights importantes para o futuro da apologética cristã numa era pós-cristã, onde o neoateísmo já não é um fator dominante nas discussões sobre a existência de Deus. Isto é, dentre todas as pessoas que hoje estão deixando o cristianismo, muitas estão abertas a retornar. Mas estas almas que estão em busca querem uma fé profundamente enraizada na história e na tradição, que possa responder à questão do que realmente significa ser humano.

Acontece que a fé cristã, quando devidamente centrada na história e no reino de Deus, ainda tem o mesmo poder ancestral de cativar até mesmo os corações mais cínicos.

Stefani McDade é editora associada da CT.

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