Quando as igrejas se tornam máfias

O recente relatório sobre abusos na SBC mostra que as igrejas geralmente priorizam a unidade e a segurança do grupo sobre a verdade “divisiva”.

Christianity Today June 13, 2022
: Ilustração de Mallory Rentsch /Fonte das imagens: WikiMedia Commons/cyano66/Getty

Este artigo foi adaptado da newsletter (em inglês) de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Se você quiser fazer algo gentil por mim, por favor, não me mande flores.

Se eu visse um buquê deixado na porta de casa, provavelmente meu corpo teria uma reação imediata, entrando em um estado de alerta e estresse. Isso porque, por anos, no meu contexto Batista do Sul, a tradição dizia que líderes da denominação — que se portassem como chefes de um grupo ou mesmo bispos — enviavam, para quem lhes fizesse oposição, um buquê de flores com nada além de um cartão com seu nome. O significado das flores era interpretado como algo do tipo “Você está morto para mim” ou “Eu sei o que você fez”, ou alguma coisa parecida.

A primeira vez que ouvi isso, parei e pensei: “Calma lá, como assim, isso não é coisa da máfia?”

Ora, não sei quantas pessoas já receberam essas flores. Quando os mais jovens perguntavam sobre essa tradição, o líder sorria e desviava o olhar. Talvez a lenda sempre tenha sido maior do que a realidade. Todavia, quando se trata de medo e intimidação, a lenda é tudo o que precisamos.

E por trás da lenda há uma verdade ainda maior — uma verdade que o resto do mundo pode agora vislumbrar, ainda que muito superficialmente, após a divulgação de uma investigação independente que descreve uma cultura de encobrimento, retaliação e obstrução, conduzida pelo Comitê Executivo da Convenção Batista do Sul, com relação a questões de abuso sexual na igreja, a vítimas que sobreviveram a esses abusos, bem como a defensores e denunciantes que os apoiaram.

Desde então, muitas pessoas de fora da denominação ligaram ou enviaram mensagens de texto, enquanto assistiam a alguns dos procedimentos oficiais, e todas expressaram de alguma forma o quanto achavam assustadora, dadas as circunstâncias, a polidez sulista — com todo mundo se chamando de “Irmão Fulano de Tal”.

Para alguns deles, repassei um tweet do jornalista religioso Bob Smietana: “Para quem é novo na política da SBC. Tem muita coisa acontecendo [nos bastidores], quando as pessoas se chamam de ‘irmão’ ou dizem que querem ‘mudar de rumo’ e dizem ‘eu aprecio você'. É tudo Deus abençoe você, [vamos seguir] a Bíblia e as regras pré-estabelecidas — enquanto isso, facas nos bastidores.”

Facas, sim. E flores também.

Não estou falando apenas de algo como uma máfia de Mayberry, que pudesse ocultar táticas políticas obstrutivas por trás de uma retórica melosa do tipo “querido irmão” e assim por diante. Estou me referindo também ao fato de pessoas desse tipo terem a possibilidade de explorar nos demais uma prioridade genuína de “unidade” e “cooperação” e “amor aos irmãos”, e, na verdade, muitas vezes fazerem uso dessa possibilidade.

Alguns meses depois que deixei a denominação, um repórter me parou, quando eu estava defendendo os Batistas do Sul em algum ponto, e ele perguntou por que eu estava fazendo aquilo — ao que respondi: “Eu os amo, e 90% deles são ótimas pessoas”. Ele disse: “Acho que sua matemática está errada”. Talvez fosse uma espécie de síndrome de Estocolmo, como ele insinuou, de alguém que não suportava pensar de outra forma.

Pode até ser. Mas também é verdadeiro, mesmo se não totalmente preciso do ponto de vista da matemática. Há uma porção de pessoas queridas nos bancos das igrejas da denominção Batista do Sul. A grande maioria delas jamais imaginaria que alguém utilizaria táticas ao estilo da máfia em seu nome — e, mais ainda, elas jamais tolerariam maltratar sobreviventes de abuso sexual em nome de Jesus.

Eu ainda acredito nisso. Mas, aquilo em que acredito não importa, se as pessoas não reconhecerem que um esquema mafioso está acontecendo nos bastidores e não entenderem como ele funciona.

A principal maneira que esse esquema funciona é através do medo do exílio. Flores na porta — sejam elas literais ou metafóricas — não são uma ameaça para matar ninguém. Elas são uma ameaça para excluir alguém da tribo, do grupo — a fim de marginalizar essa pessoa de tal modo que, para qualquer um que lhe desse ouvidos em qualquer assunto, significaria enfrentar semelhante ameaça de exílio.

Essa tática funciona de forma ainda mais eficaz nas igrejas locais. Se uma sobrevivente de abuso se dispuser a falar sobre o que enfrentou, é possível que lhe digam que ela está semeando divisão e atrapalhando o testemunho da igreja. E aqueles que a apoiarem podem rapidamente ser considerados “polêmicos”. A partir daí, as pessoas encontram outras maneiras — mais populares — de mostrar aos demais que aqueles que pedem por reforma não são realmente “um de nós”.

Rob Downen, o jornalista do Houston Chronicle que divulgou a história da crise sobre os abusos sexuais na SBC, detalhou, em um tópico muito perspicaz no Twitter, o pano de fundo dessa crise atual — inclusive o uso da “teoria crítica da raça” (TCR) como uma forma de demonizar pessoas que eram consideradas “liberais.”

Na verdade, o sociólogo Ryan Burge mostra, usando a ferramenta Google search analytics, como a “TCR” já era uma controvérsia na SBC, dois anos antes de começar a aparecer nas batalhas culturais nacionais. Teria sido mais fácil eu encontrar, em um café da manhã de oração dos homens, um Batista do Sul que fosse vegano do que um Batista do Sul que defendesse a teoria crítica da raça em qualquer lugar. Mas é justamente por isso que a tática funciona.

Imagine uma congregação local, em que o irmão Tommy, um diácono, dissesse em uma oração: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor é Um”. Um grupo de pessoas começa a falar sobre sua “preocupação” com o unitarismo do irmão Tommy. Elas começam a enviar links da Wikipédia sobre o que é unitarismo, e como é uma heresia que não leva a lugar nenhum.

Talvez até contratem um ateu, sim, para dizer como o irmão Tommy é um unitarista e como isso não é consistente com a doutrina cristã (essa parte pode ser improvável; certamente isso jamais aconteceria, mas como é apenas uma parábola, então, vamos seguir adiante com esse raciocínio).

O irmão Tommy concorda que o unitarismo é uma heresia; ele é trinitário até o âmago. Sua oração estava citando um versículo bíblico de Deuteronômio 6 — e dizendo algo totalmente consistente com a Trindade. Quando a congregação começa a falar sobre como eles estão preocupados com o “unitarianismo” em nossa igreja, o irmão Tommy é pego de surpresa.

Ele não está defendendo o unitarismo. Ele odeia o unitarismo. Não existe unitarismo naquela igreja. Na verdade, ele sabe que há um monte de politeísmo acontecendo. Contudo, se ele [para falar desse politeísmo] se dirigir à Sociedade Politeísta, que se reune após a reunião administrativa de quarta-feira à noite, será instruído a “parar de ser divisivo”.

Quando ele descreve o perigo dos postes de Aserá que algumas pessoas estão querendo colocar no bazar da igreja, ele é instruído a “parar de ser divisivo”. Quando ele cita Deuteronômio 6, é instruído a “deixar a política de lado e continuar pregando o evangelho”. Então, para derrubar o unitarismo — que não é um problema naquela igreja naquele momento — o irmão Tommy teria que primeiro explicar como Deuteronômio 6 não é unitário.

Então, o que devemos fazer, quando pessoas que conhecem bem a realidade — que conhecem o irmão Tommy há anos e que sabem que não há nenhum unitarista nem sequer perto daquela igreja — começam a falar sobre como estão “tomando uma posição contra o unitarismo”, esperando com isso reprimir as multidões e manter sua reputação com aqueles que estão acusando falsamente o irmão Tommy de unitarismo?

No final de tudo, o irmão Tommy é considerado alguém “tóxico” para se ter por perto, e ninguém presta atenção à Sociedade Politeísta que está movendo outra estátua para Zeus, enquanto continua não havendo nenhum unitarista à vista. E, de quebra, talvez algumas das pessoas que acreditam em Deuteronômio — depois de terem sido informadas do que é “unitarianismo” — possam realmente se tornar unitaristas.

É uma bagunça, uma confusão. Se, além de tudo isso, também houver coisas de fato bastante sombrias acontecendo com pessoas vulneráveis — bem, quem falará sobre isso? Pelo menos os supostos “unitaristas” foram derrotados.

No contexto da igreja, qualquer tipo de reforma sobre questões reais pode se tornar difícil, pois essas questões não podem ser abordadas nem por pessoas de dentro da igreja nem por pessoas de fora.

Aqueles que permanecem [na igreja] serão informados — especialmente se ocuparem algum cargo na igreja — que não podem mostrar deslealdade tentando “expor tudo”. Então, eles muitas vezes tentam o lento processo de trabalhar “por meio do sistema”, tentando fazer tudo da “maneira certa” porque, se não o fizerem, isso — e não coisas como abuso — se tornará um problema.

Eles muitas vezes se deparam com obstáculo após obstáculo após obstáculo, tendo de lutar em 15 outras frentes — muitas vezes contra questões imaginárias ou que foram exageradas — de modo que outras pessoas possam dizer: “Veja, eles estão sempre tentando causar problemas”.

Depois de cada obstrução, eles serão informados: “Seja paciente. Confie no processo. Não queremos uma ‘opinião crítica’ sobre esse problema tão recente e repentino que descobrimos há apenas 20 anos”. Por trás de tudo isso haverá um apelo à responsabilidade: “Vocês são líderes nesta igreja e não podem provocar desunião. Não podemos consertar as coisas com caos. Você precisa respeitar os outros líderes e seguir em frente.”

Quando nada acontece — e aqueles que pedem uma reforma sobrevivem a todas as facadas e obstáculos, e muitas vezes a gaslighting e a guerra psicológica — eles podem tentar dizer à congregação, nos termos mais educados possíveis, que há um problema. E quando as pessoas continuam a ignorar o problema, eles podem se aventurar a dizer explicitamente o que vivenciaram.

Mas eles sabem que, então, o problema será a “forma” como abordaram a questão. Eles não deveriam ter feito assim. Se eles trouxerem o problema a público, serão informados de que estão “divulgando tudo para derrubar todo mundo com você”. Se eles contarem o problema em particular, para a liderança, e outros descobrirem, serão acusados de ter dito isso em particular, quando sabiam que eventualmente se tornaria público.

Nesse ponto — depois que muitos de seus amigos e mentores fingem sequer conhecer os “encrenqueiros” — essas pessoas podem concluir que não há mais nada que possam fazer. E, assim, vão embora.

Ora, essas pessoas, a quem anteriormente disseram que seria inadequado falarem do assunto porque tinham responsabilidades internas, agora são informadas de que é inadequado falarem do assunto porque estão fora da igreja. “Você saiu; não pode mais dizer nada sobre isso” ou “Dizer qualquer coisa sobre isso seria uma espécie de ‘eu avisei’ e seria impróprio”. Poderia até ser o caso, mas só depois que fosse provado que era verdade o que eles contassem.

Se isso acontece com pessoas que detêm poder em uma congregação, quão pior pode ser para os que não têm poder nem voz e que sofrem crimes ou abusos? Um destes pode concluir que jamais teria a menor chance, depois de olhar para o que acontece com aqueles que tentam chamar a atenção para a máfia que dá força ao problema. Essa vítima pode até começar a acreditar que os abusadores e seus protetores estão certos e que ela é ímpia, satânica ou “louca”.

E assim, a mensagem projetada para o resto da comunidade é “Você não quer ser aquele cara” ou “Você não quer ser como ela”.

Este não é um problema exclusivamente da denominação Batista do Sul. Pode acontecer em qualquer igreja, em qualquer congregação, em qualquer instituição. No contexto Batista do Sul, essas táticas funcionam bem porque ser batista — pertencer como batista — é parte do que nos foi ensinado desde o nascimento. Mas isso pode acontecer em qualquer lugar.

O primeiro passo para alcançar qualquer tipo de justiça para qualquer pessoa é acabar com esse poder do medo do exílio. E isso é algo difícil de fazer. Mas, com o tempo, as pessoas começarão a perceber a diferença entre “convicção” e ameaças da máfia, entre “ressurgimento” e política de poder, entre pregação e demagogia, entre polidez e cumplicidade.

Quase 30 anos atrás, ouvi vários bons sermões de diversas pessoas fazendo referência ao alerta de Elton Trueblood sobre uma igreja de “flor de corte” — na qual um buquê em um vaso pode parecer lindo e vivo, mas, como foi cortado de sua raiz, tem apenas a aparência da vida. Isso é verdade. E não se aplica apenas a pessoas que perdem a fé para o liberalismo, mas a quem perde o caminho de Cristo por qualquer meio. Em qualquer contexto, as máfias — reais ou metafóricas — só funcionam se tudo o que importa é pertencimento e segurança.

Flores só podem nos assustar até percebermos que, durante todo o tempo, elas sempre estiveram mortas.

Russell Moore lidera o Public Theology Project da Christianity Today.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Books

O que é antissemitismo? Evangélicos defendem definições diferentes

A Aliança Evangélica Europeia é o mais recente grupo cristão a aderir à definição proposta pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). Outros grupos são a favor da definição da Declaração de Jerusalém.

Líderes da Aliança Evangélica Mundial depositam uma coroa de flores em memória ao Holocausto

Líderes da Aliança Evangélica Mundial depositam uma coroa de flores em memória ao Holocausto

Christianity Today June 10, 2022
Yoni Reif / Courtesy of WEA

Em uma cerimônia solene agora em maio, no Centro Mundial de Memória do Holocausto, na cidade de Jerusalém, a Aliança Evangélica Europeia (EEA) depositou uma coroa de flores em memória ao Holocausto.

Foi também uma promessa.

“Com reverência e profunda vergonha”, escreveu a Aliança no louro do Yad Vashem, “mas com a promessa de solidariedade futura”.

Juntamente com parceiros de diálogo da Comissão Judaica Internacional para Consultas Inter-religiosas (IJCIC), a EEA alertou que o antissemitismo está aumentando em todo o mundo. Dando um passo concreto em oposição a isso, em 26 de abril, a EEA anunciou a adesão da definição proposta pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) para a questão.

Com 37 países membros — entre eles Estados Unidos, Alemanha e Polônia — a IHRA vem construindo uma coalizão em torno da seguinte descrição :

O antissemitismo é uma certa percepção dos judeus que pode ser expressa como ódio aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são direcionadas a indivíduos judeus ou não judeus e/ou a seus bens, e a instituições e instalações religiosas da comunidade judaica.

A EEA foi acompanhada, em Jerusalém, por Thomas Schirrmacher, secretário-geral da Aliança Evangélica Mundial (WEA), bem como por Goodwill Shana, presidente de seu conselho internacional. Embora os dois líderes também tenham depositado uma coroa de flores, a organização global não subscreveu à definição da IHRA como sua afiliada europeia.

A grande maioria dos evangélicos compartilha do objetivo de combater o antissemitismo. Mas nem todos concordam com o uso da definição da IHRA.

“Embora seu objetivo específico seja fornecer um guia para ajudar a identificar declarações ou ações antissemitas”, disse Salim Munayer, coordenador regional da Rede de Paz e Reconciliação da WEA para o Oriente Médio e Norte da África, “ela foi implantada para reprimir as discussões sobre se o Estado de Israel deve ser definido em termos etnorreligiosos e deslegitimar a luta contra a opressão aos palestinos”.

A definição foi publicada pela primeira vez em 2005, com o intuito de avaliar e medir o crescimento do antissemitismo na Europa. Foi adotada oficialmente pela IHRA em 2016. A polêmica não está na forma como foi redigida, mas nos 11 exemplos dados que ilustram o crime.

Alguns são claramente incontroversos, como incitar o assassinato de judeus, negar a extensão do Holocausto ou perpetuar teorias da conspiração sobre a dominação do mundo pelos judeus.

Dos 11 exemplos, porém, sete dizem respeito ao Estado de Israel.

Alguns desses sete exemplos de antissemitismo também são incontroversos, como responsabilizar os judeus coletivamente por políticas governamentais ou acusar os judeus de serem mais leais a Israel do que às suas nações de cidadania.

Mas Munayer destaca dois exemplos que considera problemáticos:

  • Negar ao povo judeu seu direito à autodeterminação, por exemplo, alegando que a existência de um Estado de Israel é um empreendimento racista.
  • Aplicar padrões duplos, exigindo deles [Israel] um comportamento não esperado nem exigido de qualquer outra nação democrática.

Israel merece críticas nesses dois pontos, disse Munayer. Em 2018, seu parlamento ratificou uma Lei Básica de nível constitucional que declara “Israel como o Estado-Nação do Povo Judeu”, apesar de 20% de sua população ser árabe.

E no ano passado, grupos proeminentes de direitos humanos, incluindo o B’Tselem, grupo liderado por judeus e baseado em Jerusalém, rotularam Israel de “Estado de apartheid” por seu tratamento desigual de judeus e palestinos em seus territórios soberanos e ocupados.

“A implicação da definição (da IHRA) é que a resistência palestina não é motivada por um desejo de justiça e equidade”, disse Munayer, “mas por algum ódio irracional aos judeus”.

A IHRA reconhece a legitimidade da crítica a Israel, afirmando claramente que, se tal crítica for “semelhante àquela dirigida contra qualquer outro país”, ela “não pode ser considerada antissemita”.

Mas, embora a IHRA afirme que sua definição não é juridicamente vinculante, esta teve um “efeito inibidor” sobre a liberdade de expressão, disse Kenneth Stern, que já atuou como especialista em antissemitismo do Comitê Judaico Americano (AJC) e teve um papel fundamental na redação do texto original. Grupos pró-Israel usaram-na para “caçar discursos políticos com os quais discordam” e para abrir processos legais contra supostos casos de antissemitismo em campi universitários.

O Conselho Mundial de Igrejas (WCC), embora condene consistentemente o antissemitismo, pois também interage com a Comissão Judaica Internacional para Consultas Inter-religiosas (IJCIC), rejeitou a definição da IHRA por motivos semelhantes, em 2018.

Os comentários de Stern se seguiram um ano depois, quando uma ordem executiva de 2019, do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, incorporou a definição da IHRA na legislação civil dos EUA. O ex-secretário de Estado Mike Pompeo declarou, na ocasião, que o movimento “Boicote, Desinvestimento e Sanções” (BDS) contra Israel era antissemita e anunciou planos para rotular de forma semelhante a Anistia Internacional e a Human Rights Watch.

O governo do atual presidente dos EUA, Joe Biden, “abraça com entusiasmo” a definição, afirmou o atual secretário de Estado, Antony Blinken, no ano passado.

O antissemitismo está aumentando nos EUA, de acordo com a Liga Antidifamação (ADL). Os 2.717 incidentes registrados em 2021 — que vão de insultos a terrorismo — foram a contagem mais alta desde que o rastreamento começou, em 1979, e representam um aumento de 34% em relação ao ano anterior. A estatística incluiu 88 agressões, número superior às 33 registradas em 2020.

O surto de violência do ano passado entre Israel e Gaza produziu um pico de aumento reativo nos incidentes, diz o relatório, mas a polarização política geral é a principal causa do aumento.

Munayer reconhece esse ponto como uma ameaça real. Mas ele recomenda, ao contrário, a adoção da Declaração de Jerusalém sobre Antissemitismo (JDA), desenvolvida em resposta à controvérsia da IHRA por estudiosos das áreas de história do Holocausto, estudos judaicos e estudos do Oriente Médio. Essa declaração tem hoje mais de 350 signatários.

Sua definição de 11 palavras é mais concisa, ainda que não seja radicalmente diferente:

Antissemitismo é discriminação, preconceito, hostilidade ou violência contra judeus por serem judeus (ou contra instituições judaicas por serem judaicas).

Assim como a definição da IHRA, ela fornece exemplos de violações antissemitas. Mas a JDA também descreve o que não se qualifica como violações antissemitas.

A Terra Santa também é o foco, e tema de 10 dos 15 exemplos da declaração. Qualquer tentativa de negar o direito dos judeus de florescerem como judeus no Estado de Israel, sob o princípio da igualdade, é claramente condenada.

Mas “à primeira vista”, afirma a JDA, não é antissemita apoiar o movimento “Boicote, Desinvestimento e Sanções” (BDS), apontar a discriminação racial sistêmica ou mesmo se opor ao sionismo como uma forma de nacionalismo. O princípio da autodeterminação judaica é honrado, mas o reconhecimento como Estado para os palestinos pode assumir muitas formas — seja a de um Estado, seja a de dois Estados ou outras soluções constitucionais.

Em questão, dizem os defensores da definição da IHRA, está o atual Estado israelense.

“A JDA é vaga onde a precisão é necessária”, disse Gerald McDermott, autor de Israel Matters e editor do The New Christian Zionism. “Quando se pretende negar a legitimidade de Israel, isso permite um antissemitismo genuíno.”

Ele tem como alvo em particular o movimento BDS, que afirma que Israel foi formado através do colonialismo por deslocamento de colonizadores e é hoje um estado de apartheid. Munayer chama isso de a “dura realidade” da população nativa; McDermott diz que isso cruza a linha do antissemitismo, especialmente quando se leva em conta as opiniões do fundador do BDS, Omar Barghouti, a liberdade que os cidadãos palestinos têm em Israel, se comparada à liberdade em seus próprios territórios, e as ofertas que Israel fez da maior parte das terras da Cisjordânia para um estado palestino.

Robert Nicholson, presidente do Philos Project, concorda com McDermott.

“Fazer amizade com judeus e, ao mesmo tempo, negar seu apego de longa data a Jerusalém”, disse ele, “é como desejar aos irlandeses um feliz Dia de São Patrício e negar-lhes a autodeterminação na Ilha Esmeralda”.

Mas algo ainda mais sinistro está em jogo, disse Tomas Sandell, diretor fundador da Coalizão Europeia para Israel (ECI). O “novo antissemitismo” aparece disfarçado de linguagem de direitos humanos.

“No período medieval, os judeus eram a religião errada; durante o Iluminismo, eles eram a raça errada”, disse ele. “Hoje, isso é aplicado à sua existência em um tipo errado de Estado-nação.”

O histórico de muitos que dizem se opor ao sionismo sugere que eles não gostam que a IHRA coloque suas visões antissemitas sob escrutínio, disse Sandell. O ódio dos neonazistas de direita aos judeus é óbvio. Mas o ódio de esquerda também está em ascensão. Ele afirma que a JDA está brincando com as palavras, algo semelhante a analisar quão perto da beira de um penhasco alguém pode dirigir sem cair.

Na pesquisa de 2020 do AJC, 75% dos judeus identificaram uma “séria ameaça” vinda da extrema direita. Um número bem menor, mas ainda significativo, de 32% também viu ameaças vindas da extrema esquerda.

Sandell, membro da Igreja Evangélica Livre da Finlândia, criou a ECI em 2003 com o intuito de reunir os cristãos contra o antissemitismo na União Europeia e de apoiar o Estado de Israel. Ao contrário dos EUA, disse ele, há muito pouco a se ganhar com isso em Bruxelas.

Mas, no ano passado, a coalizão lançou uma campanha para que igrejas individuais adotassem a definição da IHRA, o que atraiu o apoio de Lord Carey, ex-arcebispo de Canterbury; do vigário de Londres, Nicky Gumbel, pioneiro no curso Alpha; e do proeminente autor Os Guinness.

Em janeiro passado, a ECI fez parceria com a Igreja Evangélica Protestante da Alemanha para condenar o antissemitismo no mesmo local onde Hitler, 80 anos antes, planejou a implementação de sua Solução Final para a Questão Judaica.

O atual arcebispo de Canterbury, Justin Welby, enviou uma mensagem gravada, e Schirrmacher da WEA e Arto Hämäläinen, presidente da Comissão de Missões Mundiais da Pentecostal World Fellowship (PWF), compareceram em apoio.

Este último creditou a Sandell o incentivo para a adoção da definição da IHRA pela PWF, em outubro passado. A Irmandade das Assembleias Mundiais de Deus fez o mesmo em fevereiro. O ímpeto continuou em março, quando Johnnie Moore, executivo de relações públicas e fundador do Congresso de Líderes Cristãos que representou os EUA na reunião da ECI em Berlim, ajudou a liderar a adoção da definição pelo conselho da NRB (National Religious Broadcasters).

“Vamos garantir que haja uma barreira de proteção evangélica em torno da comunidade judaica”, disse Moore aos participantes da convenção da NRB, durante seu café da manhã anual em homenagem a Israel, “que eles tenham que passar por nós primeiro”.

Nem todos os evangélicos estão confortáveis com isso, no entanto.

“A definição da IHRA começou como um esforço louvável e compartilho de seus valores”, disse Gary Burge, professor de Novo Testamento no Calvin Theological Seminary e autor de Whose Land? Whose Promise? What Christians Are Not Being Told About Israel and the Palestinians. “Mas agora [essa definição] pode estar servindo a interesses políticos, silenciando o livre discurso sensato e protegido em todo o mundo.”

Ele destacou a objeção semelhante por parte da organização Vozes Judaicas pela Paz.

Isso é uma questão pessoal para Marwan Aboul-Zelof. O pastor libanês-palestino da City Bible Church, em Beirute, tem um tio em Belém e uma tia em Gaza. Outros parentes permanecem em uma aldeia cristã perto de Haifa, seu lar ancestral. Hoje um plantador de igrejas com a rede City to City de Tim Keller, o cidadão dos EUA tem um “amor verdadeiro e genuíno pelos povos judeu e israelense”.

Mas ele concorda com a avaliação dos direitos humanos sobre o apartheid, rotulando a versão do sionismo que atualmente arranca os palestinos de suas casas como “racista”. Manifestando preferência pela definição da JDA, ele reconhece que o uso dessa palavra [racista] pode rotulá-lo erroneamente como antissemita, segundo a definição da IHRA.

Como outros, sua principal preocupação é a liberdade de expressão. Embora todas as pessoas tenham direito à proteção contra a incitação ao ódio, outras estruturas internacionais, como o Plano de Ação Rabat da ONU, equilibram as liberdades de forma mais eficaz.

No entanto, enquanto os judeus podem retornar a Israel, sua família não pode.

“Deveria haver um direito de retorno para ambos os povos semitas”, disse Aboul-Zelof. “A definição da IHRA eleva o direito de autodeterminação de um povo em detrimento do outro.”

Israel chama isso de Aliyah, e é algo profundamente pessoal para os judeus.

Mas, ao contrário de seus compatriotas, os judeus messiânicos não se preocupam muito com as definições, disse Mitch Glaser, presidente do Chosen People Ministries. “Bolsões” de sua comunidade prefeririam a definição da JDA, disse ele, mas a maioria interpreta quase qualquer crítica a Israel como antissemita e, portanto, prefere a definição da IHRA.

O foco da comunidade é a teologia, disse Monique Brumbach, secretária geral da União das Congregações Judaicas Messiânicas. Combatendo as formas “insidiosas” de supercessionismo, que substituem Israel pela igreja, os crentes messiânicos trabalham com crentes gentios para se engajar na dolorosa tarefa de arrependimento e reforma.

“Nós não brigamos sobre o que é antissemitismo”, disse ela. “Não estamos profundamente divididos [por causa disso].”

Mas os judeus americanos podem estar, e bem mais.

Enquanto 51 das 53 organizações que são membros da Conferência dos Presidentes das Principais Organizações Judaicas adotaram a definição da IHRA, os 10 membros da Progressive Israel Network se opuseram à sua codificação em lei.

A Union for Reform Judaism — a maior denominação judaica dos Estados Unidos — tentou encontrar um meio-termo.

“Nós endossamos fortemente a definição da IHRA”, afirmou essa denominação, ao mesmo tempo em que discordava de alguns dos exemplos. “Também nos comprometemos a nos opor a qualquer esforço para usar a definição para silenciar, marginalizar ou afastar aqueles que procuram contribuir positivamente para o diálogo público — mesmo que defendam pontos de vista dos quais discordamos fortemente”.

Mark Silk, professor de religião na vida pública no Trinity College e editor colaborador do Religion News Service, pode ser um exemplo emblemático. Apesar de sua preocupação de que a definição da IHRA pudesse ser mal utilizada para rotular críticas legítimas a Israel como antissemitas, ele, no entanto, votou a favor dela como membro do conselho de relações comunitárias da Federação Judaica da Grande Hartford.

O benefício da reflexão superava o potencial de abuso, ele decidiu.

Chamando os esforços da IHRA e da JDA de “uma maneira totalmente judaica de fazer as coisas”, o processo de proposta, discussão e consenso é, em princípio, uma coisa boa — se bem usado.

Mas há uma “grande pressão” para se adotar tanto a definição quanto os exemplos, disse ele, citando a Associação Sionista da América, a AJC, a ADL e o Simon Wiesenthal Center.

“Alguns grupos”, disse Silk, “podem usá-la como um martelo”.

Os evangélicos a usarão assim?

Para muitos, a adoção da definição da IHRA representa uma admissão de erros do passado. Na convenção da NRB, Moore, que coopera estreitamente com o Wiesenthal Center, lembrou aos participantes a “cumplicidade da igreja” e da “Europa cristã” em relação às atrocidades do Holocausto. A Aliança Evangélica Europeia afirmou o mesmo, exaltando a definição como um guia prático para eliminar o ódio contra todos os povos.

E, ao se opor ao movimento BDS, Sandell também invocou a história.

“Quando se pedem boicotes a produtos judaicos”, disse ele, “isso traz de volta lembranças muito ruins na Europa”.

Munayer anseia pela reconciliação, e para isso criou o ministério Musalaha, com sede em Jerusalém, em 1990, a fim de reunir muçulmanos, judeus e cristãos (com ênfase nos evangélicos palestinos e crentes messiânicos). Ele reconhece o direito judaico de autodeterminação e, como seguidor de Jesus, rejeita formas violentas de resistência.

Mas, como Silk, ele acredita que há pressão tanto de judeus quanto de cristãos sionistas para adotar a definição da IHRA, o que acabará prejudicando a causa da paz.

“Isso impede uma discussão real sobre a história e a situação atual da terra”, disse Munayer. “A verdade é uma parte integrante da reconciliação, mas essa arma praticamente legal impede a possibilidade de diálogo.”

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres , elogiou a definição da IHRA como “uma base para a aplicação da lei”. Os redatores da JDA, em contraste, disseram que esse esforço não deveria ser codificado em lei — seja no que concerne à criminalização do discurso de ódio ou à supressão do debate público.

Os redatores da JDA dizem que a declaração que redigiram pode, no entanto, servir como um texto interpretativo para aqueles que já adotaram a definição da IHRA, mas buscam um “corretivo” para suas “deficiências” em identificar quando o discurso político sobre Israel ou o sionismo deve permanecer protegido.

Há também uma terceira definição, que foi proposta recentemente por uma força-tarefa convocada por acadêmicos de jornalismo da USC Annenberg, na Califórnia. Sandell os vê como alguém que apenas está turvando as águas. E embora ele também tenha interagido com o WCC para persuadir o conselho a reconsiderar sua rejeição da definição da IHRA, ele não vê nenhuma “pressão” coordenada para adotá-la.

Em vez disso, ele disse que isso é um zeitgeist, palavra alemã usada para falar do espírito predominante da época. O ímpeto está crescendo, os judeus estão mais uma vez sob ameaça e os líderes cristãos estão despertando para a realidade, disse Sandell. “Entre na onda.”

De volta ao Yad Vashem, os líderes recordaram o Holocausto não apenas como história, mas como um lembrete vivo da responsabilidade humana de uns pelos outros. A cerimônia contou com a leitura do Salmo 23 pelos líderes do EEA e do IJCIC, bem como o canto em várias línguas de “By Gentle Powers”, arranjo feito por um compositor alemão com o último poema de Dietrich Bonhoeffer. Eis uma estrofe:

E embora tu nos ofereças cálice tão pesado
Tão doloroso, que é o mais que podemos suportar
Sem vacilar, gratos, vamos aceitá-lo
E tomá-lo como uma dádiva da tua bondosa mão.

Reportagem adicional de Jeremy Weber

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Não estamos suficientemente indignados com a morte

A morte é um fato da vida. É também o inimigo a quem somos chamados a resistir.

Christianity Today June 1, 2022
Illustration by Pete Ryan

Nunca vi tantas manchetes falando de morte.

Nos últimos dois anos de pandemia, as seções dos obituários dos jornais engordaram com homenagens, e meus feeds on-line — em cuja pesquisa aparecem digitados termos como pastor e ministro — foram tomados por notícias locais sobre igrejas que perderam seus líderes durante a pandemia.

O número de mortos que alcançamos agora é pior do que o pior dos cenários que poderíamos imaginar, quando fomos atingidos pela primeira onda da COVID-19. Enquanto os Estados Unidos “comemoravam” a marca de 800 mil mortos, no final de 2021, o articulista do The Atlantic, Clint Smith, chamou-o de um número “tão absurdamente enorme que corremos o risco de ficar insensíveis às suas implicações”.

Há uma sensação de resignação na maneira como as pessoas, até mesmo as cristãs, falam dos mortos da COVID-19. Dependendo de seu posicionamento sobre a vacinação, elas podem sugerir, por um lado, que os não vacinados se colocam em risco ou que, por outro lado, simplesmente deve ter chegado a hora de morrerem.

Na Quarta-feira de Cinzas, os cristãos tradicionalmente repetem um dito destinado a lembrar uns aos outros de nossa mortalidade, do fato de que todos morreremos e “ao pó retornaremos”. Quase não precisamos mais desse lembrete, em meio a uma pandemia que já tirou mais de 5,7 milhões de vidas em todo o mundo.

Seria difícil, diante desse nível de perda, não mudar nossa concepção da morte, ou movê-la ainda mais na direção que já estava tomando.

Temos visto um fatalismo subserviente em relação aos gravemente enfermos. Os vulneráveis do ponto de vista médico muitas vezes foram reduzidos a seus “fatores de risco” e a suas “comorbidades” relacionadas à COVID-19, como se essas condições justificassem outra vida perdida.

Governos de todo o mundo estão adotando políticas para sancionar a eutanásia. Na Austrália e no Reino Unido, os políticos estão fazendo lobby para legalizar a “morte assistida” ; a Suíça estreou uma “cápsula suicida” futurista, projetada para propiciar últimos momentos tranquilos. Nos EUA, 10 estados permitem o suicídio assistido por médico e, este ano, outras 14 câmaras legislativas estaduais considerarão projetos de lei para legalizar a prática.

A inevitabilidade da morte não faz dela algo a ser convidado ou mesmo aceito com naturalidade — seja ela pandêmica ou não. A morte é nossa inimiga. Como escreve R. C. Sproul, ela é o intruso no jardim. Ela nos rouba o que Deus fez e chamou de bom. Deveria nos deixar furiosos, indignados. Especialmente quando dezenas de pessoas ao nosso redor estão morrendo desnecessariamente.

Os evangélicos costumam adotar o rótulo de “pró-vida”. Mas ser pró-vida também significa o oposto: que somos contra a morte.

Devemos trabalhar para salvar vidas, para evitar mortes por negligência, em todas as áreas que pudermos: na saúde e na segurança públicas, em úteros e em cápsulas de suicídio. Não podemos vencer a morte deste lado da eternidade — graças a Deus, alguém realizou por nós essa façanha —, mas temos a responsabilidade de valorizar a vida e de preservá-la enquanto pudermos.

“A recusa em levar a sério a COVID-19 não é um caso de pessoas que valorizam mais a eternidade do que a biologia. Na verdade, é o inverso: é a recusa de colocar a vida acima das ideologias”, disse-me Russell Moore, o teólogo público da CT. Quando sabemos o quão mortal esse vírus é e ainda assim colocamos outras pessoas em risco com nossas ações e políticas, estamos brincando de Deus, “como se pudéssemos decidir quais vidas valem a pena ser vividas”, disse ele. Mas, como seguidores de Cristo, devemos lembrar que nem mesmo nossas próprias vidas são nossas.

Minha preocupação é que, como pessoas cujo destino eterno é uma boa notícia, esqueçamos que a morte continua a ser uma má notícia. Deus nos deu a vida como uma dádiva. A morte não é nossa chance de subir de nível para a presença de Deus; é o fim de algo em que Deus se deleita e chama de bom por si mesmo. A morte é algo errado.

“Uma compreensão cristã da morte”, segundo escreve o teólogo Tim Perry em Funerals: For the Care of Souls, “… apresenta a morte como a grande ruptura de todos os relacionamentos amorosos, como a punição pelo pecado e como o inimigo final”.

Em seu livro cheio de liturgias sobre a morte, Douglas Kaine McKelvey escreveu uma intercessão de seis páginas contra o reino da morte.

“Chamar a morte de natural é uma mentira, girá-la como se não passasse de apenas mais um raio na ‘roda da vida’ é ignorar o gemer de suas criaturas, ó Cristo”, diz a oração. “A morte é uma catástrofe, um inimigo obsceno, uma flecha envenenada que perfura o olho da criação, distorce a história e as nações, traz luto ao coração dos amantes, deforma as constelações da comunidade, da família, do florescimento.”

Portanto, quando pessoas ao nosso redor morrem, especialmente em circunstâncias cujas hipóteses de evitabilidade nos assombram, é certo chorarmos de tristeza e brandirmos os punhos indignados.

Continuemos tristes por muito mais tempo, mesmo depois que aqueles ao nosso redor já considerarem a morte aceitável. Recusemo-nos a minimizar a dor da perda de um parente, um amigo, um vizinho, um colega de trabalho. Podemos chorar pelo resto desta vida, sabendo que na próxima, nosso Deus, que venceu a morte, enxugará de nossos olhos toda lágrima.

Kate Shellnutt é editora sênior de notícias da CT.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

A cruz contradiz nossas guerras culturais

A vitória de Cristo foi conquistada pela crucificação, não por conquistas sociais.

Christianity Today June 1, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / NSA Digital Archive / Getty

Este artigo foi adaptado da newsletter (em inglês) de Russell Moore. Inscreva-se aqui para acompanhar.

Jonathan Haidt, psicólogo moral, escreveu (em Abril) no The Atlantic que todos nós vivemos agora do outro lado da Torre de Babel.

Haidt, que é ateu, não pretende que isso seja tomado literalmente, é claro. A metáfora aponta para a fragmentação da sociedade em facções culturalmente tribais, fenômeno que Haidt argumenta ter atingido seu ponto de inflexão em 2009, quando o Facebook foi pioneiro no botão “Curtir” e o Twitter adicionou uma função de retuíte.

Embora as guerras culturais sempre tenham existido, esses desenvolvimentos tecnológicos encorajam a trivialidade, a mentalidade de manada e o potencial para uma indignação cotidiana como nunca antes.

Para Haidt, essa deterioração rumo a Babel significa não uma nova guerra cultural, mas um tipo diferente de guerra cultural — na qual o alvo não são as pessoas do outro lado, mas muito mais aqueles do nosso próprio lado que expressam alguma simpatia pelos pontos de vista do outro lado (ou mesmo por sua humanidade).

Extremistas, sejam eles políticos, culturais ou religiosos, cujo objetivo é produzir conteúdo viral, têm como alvo “opositores ou intelectuais de pensamento mais matizado de seu próprio time”, garantindo que as instituições democráticas baseadas em compromisso e consenso “paralisem”.

Ao mesmo tempo, argumenta Haidt, esse tipo de viralidade aprimorada que se alimenta da indignação explica por que nossas instituições são “mais estúpidas em contextos de massa”, pois “as mídias sociais incutiram em seus membros um medo crônico de serem atacados”. Isso faz com que o discurso seja controlado por uma pequena minoria de provocadores extremistas — todos procurando por “traidores”, “patricinhas” ou “hereges” para erradicar.

A metáfora de Haidt pode ser ainda mais pertinente do que ele imagina. Babel, afinal, não foi apenas uma conquista tecnológica que levou a fragmentação e confusão. Estava enraizada em duas forças motrizes — que também estão por trás da cultura de indignação na qual estamos mergulhados atualmente.

Uma delas é o desejo de glória e fama pessoal: “Venham, edifiquemos para nós uma cidade, com uma torre que chegue até os céus, para que façamos um nome para nós mesmos”, disseram os construtores de Babel (Gênesis 11.4).

Em qualquer dia, podemos ver essa dinâmica em ação no comportamento de pessoas que pensam que a única maneira de construir sua “marca” pessoal é atacando alguém que consideram de maior expressão — ou é dizendo algo ultrajante o suficiente para atrair multidões de apoiadores e opositores.

A outra força motriz é o desejo de autoproteção. A torre era necessária, diziam os construtores, porque “caso contrário, seríamos dispersos sobre a face de toda a terra” (v. 4). A tecnologia era necessária para impedir uma ameaça existencial.

Então, qual deve ser a postura cristã neste mundo pós-Babel?

James Davison Hunter alertou, há mais de uma década, que grande parte do engajamento evangélico americano na “guerra cultural” era baseado em um senso elevado de “ressentimento”. E disse que isso foi além do ressentimento, de modo a incluir uma combinação de raiva, inveja, ódio, fúria e vingança — combinação esta em que um sentimento de ultraje e ansiedade se torna a chave para a identidade do grupo.

Muitas vezes, esse tipo de raiva e vingança alimentadas pela ansiedade não está ligado ao medo de um resultado político específico, mas sim a um medo mais primitivo, mais típico do ensino médio: o medo da humilhação. Parece uma espécie de morte — do tipo que deixa a pessoa exposta e ridicularizada pelo mundo exterior.

Na visão de Hunter, essa postura de ressentimento é intensificada quando o grupo sente que têm determinados direitos — direito a maior respeito, a maior poder, a um lugar de status majoritário. Essa postura, alertou ele, é uma psicologia política que se expressa com “a condenação e a difamação dos inimigos, no esforço de subjugar e dominar os culpados”.

Não foi coincidência que Jerry Falwell Sr. nomeou seu movimento político de Maioria Moral. Evocando a “maioria silenciosa” de Richard Nixon, a ideia era que a maioria dos americanos queria os mesmos valores que os evangélicos conservadores, mas foi frustrada pelas elites liberais das costas leste e oeste, que foram capazes de se impor aos desejos da maioria das pessoas.

Muitas vezes, os aspectos mais polêmicos da vida americana se concentram na questão de “Quem está tentando tirar a América de nós?” — quer a resposta sejam caravanas de imigrantes que cruzam a fronteira, quer seja a tese de que elites desenvolveram uma pandemia global para controlar a população com vacinas, quer seja a retórica de círculos de pedófilos adoradores de Satanás nos mais altos níveis do governo.

Em seu livro High Conflict, Amanda Ripley escreve que a humilhação acontece sempre que nossos cérebros fazem “uma avaliação rápida dos fatos e a encaixam em nossa compreensão do mundo”. Mas isso não é suficiente. Ela argumenta: “Para sermos rebaixados, primeiro temos de nos ver como alguém que está no alto”.

Para ilustrar isso, Ripley aponta para a única vez na vida em que jogou golfe, na qual ela errou a bola várias vezes. Ela confessa que riu de si mesma, mas não se sentiu humilhada, pois “ser boa no golfe não era algo que fizesse parte de [sua] identidade”. No entanto, se um golfista de renome mundial como Tiger Woods atuasse da mesma maneira, ele se sentiria humilhado, especialmente se seus erros fossem captados por uma câmera diante de uma ampla audiência de televisão.

A cruz, no entanto, é algo bem diferente. Como Fleming Rutledge observa em sua obra magistral The Crucifixion, não há método que o Império Romano pudesse ter escolhido que significasse maior humilhação e dominação do que crucificar aqueles que se opunham ao seu domínio.

A cruz não apenas acabava com a vida de alguém, mas o fazia da maneira mais escarnecedora possível — ampliando a dominação de César sobre aquele que lutava para respirar, pregado em uma estaca. Com soldados romanos ao redor e em meio aos gritos irados e às zombarias da multidão, a Sexta-feira Santa parecia o triunfo de Babel, até nas frases em vários idiomas sobre a cabeça do rei crucificado.

E, no entanto, Jesus falou dessa trajetória descendente como a maneira pela qual ele seria “levantado” e atrairia todos para si (João 12.32). Isso contrasta não apenas com aqueles que procuravam engrandecer o próprio nome, como César, o qual não queria rivais para seu reinado, mas também com aqueles que buscavam a autoproteção, como os discípulos que fugiram com medo.

Somente o Cristo crucificado — o Cordeiro de Deus que levou o pecado do mundo — vindicado pelo poder ressuscitador de seu Pai, poderia derramar o Espírito de maneira que pudesse reverter Babel no Pentecostes.

Mas a ressurreição e ascensão não foram uma anulação da crucificação. Pelo contrário, elas foram uma continuação do que Jesus disse ser um triunfo através da derrota, o poder através da fraqueza. Como observou certa vez Richard Hays, estudioso do Novo Testamento, após sua ressurreição, Jesus não apareceu a Pilatos, César ou Herodes. Fazê-lo seria justificar-se — seria ganhar uma discussão, em vez de salvar o mundo.

Em vez disso, como Lucas coloca, Jesus “se apresentou vivo” (Atos 1.3, ESV) àqueles que ele havia escolhido como testemunhas. Isso porque o reino de Jesus avançaria não por meio de ressentimentos e mágoa, mas por meio daqueles que dessem testemunho dele com sinceridade e verdade, e até mesmo com a perda das próprias vidas. Conquistas assim — pelo “sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho” (Apocalipse 12.11) — são o que realmente significa vencer, especialmente quando se vê quem realmente é o Inimigo.

Especialistas nos dizem para esperar que os próximos anos sejam piores do que os que passaram. Aqueles que procuram fazer um nome para si mesmos explorando o medo e a indignação continuarão a se aprimorar nisso. E não lhes faltará audiência por parte daqueles que acreditam que a única coisa que os separa da aniquilação é a quantidade necessária de raiva performática.

Guerras culturais e círculos de indignação podem alimentar classificações, cliques e apelos para angariar fundos [na Internet], mas não podem reconciliar pecadores com um Deus santo. Não podem unir de novo um povo fragmentado. Não podem nem mesmo nos deixar com menos medo a longo prazo.

A Sexta-feira Santa deve nos lembrar que, como cristãos, acrescentar mais indignação e raiva a uma cultura já saturada por sua própria indignação e raiva não é a maneira que Deus define sua sabedoria e seu poder. Construir Babel não pode nos ajudar — o que pode nos ajudar é somente carregar a cruz.

Russell Moore lidera o Projeto de Teologia Pública da Christianity Today.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Como podemos responder à crise de credibilidade dos pastores?

Talvez Deus queira remodelar nossa visão de autoridade.

Christianity Today June 1, 2022
Ilustração de Anson Chan

Eu me espremo no assento do meio do avião, pedindo desculpas educadamente para a pessoa que se levantou do assento do corredor para eu entrar. Enquanto acomodo minha mochila no chão, tentando decidir se devo pegar meus fones de ouvido com cancelamento de ruído, cumprimento a mulher mais velha que está no assento da janela ao meu lado. Opto pelo meu livro, empurrando minha mochila para debaixo do assento à minha frente. Cinto de segurança afivelado, eu me acomodo para meu último voo do dia, com a expectativa de avançar bastante no capítulo que me espera.

“Você é de Nashville?”, a mulher pergunta.

“Não, senhora”, eu respondo. “Sou de Colorado Springs. Estou indo para Nashville para uma conferência.”

Ela sorri e assente. Nós dois desviamos o olhar. Eu mexo nas páginas do meu livro; ela volta para suas palavras cruzadas. Sinto que devo rebater a bola e perguntar a ela de onde é. Ela responde os detalhes perguntados, e agora estou certo de que toda a conversa necessária está encerrada.

Então, ela faz a pergunta: “Afinal, o que você faz?”

Eu suspiro, não de forma audível, mas certamente em meu coração. Eu deveria ter pegado meus fones de ouvido, não meu livro, começo a supor.

Considero por um instante dar uma resposta genérica, sabendo que a simples menção à minha vocação pode ser uma verdadeira trava na conversa, mas prefiro a verdade.

“Sou pastor”.

Ela abre um sorriso: “Eu sabia!”

“Sério?”. Fico genuinamente surpreso.

“Sim!”, ela diz com um aceno de cabeça e um sorriso confiante.

“Como … ?”

“Você parece pastor.”

Eu rio, analisando brevemente meu visual: jeans azul, tênis de cano alto, uma camiseta preta e uma jaqueta bomber verde-oliva. Sim, talvez eu esteja um pouco clichê no momento.

À medida que nossos sorrisos arrefecem, não posso deixar de me perguntar: Será que pareço um pastor? Devo tomar isso como um elogio?

Então, olho para as palavras cruzadas que ela segura — são sobre curiosidades da Bíblia.

Ah, ela quis fazer um elogio — penso eu.

Um cenário sombrio

Os pastores não ocupam mais um lugar de estima nas comunidades. De acordo com o relatório State of Pastors do Barna Group (2017), apenas cerca de um em cada cinco americanos pensa em um pastor como alguém muito influente em sua comunidade, e cerca de um em cada quatro não acha que um pastor seja muito influente ou nem mesmo influente. A verdade é que, influentes ou não, muitos americanos não querem ouvir o que os pastores têm a dizer. Em 2016, o Barna Group descobriu que apenas 21% dos americanos consideram os pastores “muito confiáveis” em relação a “questões importantes de nossos dias”. Mesmo entre aqueles que a pesquisa definiu como evangélicos, o número só sobe para um pouco mais da metade. Pense nisso: quase metade dos evangélicos americanos não vê seus pastores como uma voz de autoridade para navegar pelas águas dos assuntos atuais.

Em um novo estudo que o Barna Group e eu fizemos em 2020, para o meu livro The Resilient Pastor, descobrimos que a situação pode estar piorando. Apenas 23% dos americanos disseram que “definitivamente” veem um pastor como uma “fonte confiável de sabedoria”. Mesmo entre cristãos, esse número só sobe para meros 31%. Menos de um terço dos cristãos disseram que “definitivamente” consideram um pastor uma “fonte confiável de sabedoria”. Como é de se esperar, apenas 4% dos não-cristãos pensam nos pastores dessa maneira. Esse é um cenário bastante sombrio.

Viver na era digital trouxe mais complicações a esse quadro. Em certo sentido, a internet tem sido um grande equalizador, rompendo as hierarquias tradicionais de poder e concedendo a qualquer um o acesso e o potencial de acumular seguidores. Qualquer um pode postar; qualquer um pode pesquisar; qualquer um pode aprender. O acesso à informação teve um efeito democratizante, tanto que regimes autoritários em todo o mundo implementam a censura pesada e firewalls.

Mas o acesso à informação é uma faca de dois gumes. Ele não só derruba ou desestabiliza as estruturas de autoridade existentes. Também cria novas formas de estabelecer autoridade e dá origem a novas figuras de autoridade, como influenciadores do Instagram, blogueiros, vídeos e memes que circulam pelo Facebook. E com esses novos “líderes” vêm as novas “tribos”. Isso pode levar à perigosa suposição de que todas as visões são igualmente válidas. Cada pessoa se torna árbitro da própria verdade religiosa; cada um faz o que é certo aos próprios olhos — ou aos olhos do podcaster que ouviu pela manhã.

O convite

Seria tentador focar em como os pastores podem recuperar sua credibilidade. É claro que há necessidade disso. Levar a sério nossa vocação significa reconhecer o peso de nossas palavras, a natureza sagrada de nossos deveres e a importância de uma vida de integridade. A credibilidade em declínio dos pastores é uma má notícia para a igreja. Se vamos convidar alguém a nos seguir como seguimos a Cristo, temos de trabalhar para recuperar a confiança de seguidores relutantes. Significará fazer a coisa certa, pelos motivos certos e por muito tempo.

Tudo isso é verdade. Mas é importante que não tenhamos pressa em “consertar” as coisas. Temos a oportunidade de reconhecer um convite em meio a isso — uma frase que meu orientador espiritual já usou comigo várias vezes, sempre que me deparo com uma situação da qual não gosto, especialmente uma situação que está além do meu controle. É nesse ponto que, após a tempestade, ouvimos o sussurro do Espírito nos fazendo um convite — um convite que, segundo sugiro, é moldado por três palavras: responsabilidade, prestação de contas e humildade.

Responsabilidade. Estou mais interessado em nossa disposição de assumir a responsabilidade por termos perdido nossa credibilidade, do que em encontrar maneiras de recuperá-la. Devemos encarar a realidade de que contribuímos para essa crise de credibilidade. Sim, há ventos contrários na cultura que mudaram a posição social ou o poder de influência cultural de um pastor. Mas nós também contribuímos para bagunçar as coisas. De pequenas igrejas rurais a megaigrejas, descobrimos muitos pastores tirânicos e hipócritas, alcoólatras e mulherengos. A crise de credibilidade é um sintoma. O mau uso da autoridade é a causa, a raiz do problema.

O Antigo Testamento reflete sobre o uso do poder na forma como conta a história do primeiro rei de Israel. A história de Saul revela três maneiras clássicas de fazer mau uso da autoridade: usá-la em benefício próprio, ultrapassar os limites de nossa autoridade e exercê-la de forma imprudente.

O profeta Samuel advertiu que um rei “reivindica (1Samuel 8.11-17) certas coisas. Como temos feito essas reivindicações ao nosso povo? Como reivindicamos seu tempo, suas esperanças, sua confiança e usamos isso para nossos fins pessoais? Talvez tenhamos tratado pessoas de bom coração que servem em nossas igrejas como se fossem meras engrenagens na máquina da nossa ambição. Estamos todos muito dispostos a reivindicar o tempo delas, mas somos lentos em lhes doar do nosso.

Quando rei, Saul desgraçadamente decidiu agir como sacerdote e oferecer sacrifícios, ultrapassando os limites de sua autoridade (1Samuel 13). Na tentativa de sermos líderes fortes, podemos assumir funções para as quais não temos treinamento nem chamado para desempenhar. Por exemplo, se falamos com desdém da saúde mental, dizendo do púlpito que uma pessoa que está ansiosa simplesmente precisa orar mais, corroemos nossa própria credibilidade, ao abusar de nossa autoridade.

Saul também usou o poder de forma imprudente. Depois de vencer uma batalha, ele ordenou que ninguém comesse nada, jurando matar quem o fizesse (1Samuel 14). Seu próprio filho involuntariamente colocou seu voto tolo à prova. Com que frequência os pastores lucram com o capital da confiança de uma congregação chamando seus membros para uma guerra cultural? Anunciamos com certeza de que “lado” Deus está e, ao fazê-lo, manchamos o nome de Deus e diminuímos nossa credibilidade.

Pode ser que nem todo pastor faça mau uso da autoridade dessa maneira. Mas todos nós podemos dar uma boa olhada em nós mesmos e perguntar ao Senhor que dose de responsabilidade devemos assumir pela perda da credibilidade entre os pastores.

Prestação de contas. O declínio da credibilidade significa que muito pouco nos será confiado. As pessoas vão verificar nossas afirmações e comparar nossas conclusões exegéticas. Mas isso pode ser uma coisa boa. Se tivermos feito nossa lição de casa, isso será notado. E se estivermos agindo de forma impulsiva, as pessoas provavelmente perceberão.

Quando surge um grande problema social, é apenas uma questão de tempo até que alguém poste nas mídias sociais o que os pastores devem dizer sobre isso nos cultos de domingo. Se o seu pastor não se pronunciou sobre _____, então, é hora de encontrar uma nova igreja, nos dizem. A mídia e a multidão definem os critérios para o que um pastor deve ou não dizer. De qualquer forma, o pastor não é mais o locus da autoridade ou da credibilidade.

Eu não sou fã deste desdobramento. Não gosto que pastores respondam à pressão de um tópico de tendências no Twitter. Mas, nesse ponto, também temos uma oportunidade de acatar a prestação de contas nesta nova era de visibilidade. O convite que a credibilidade pastoral em declínio nos faz pode significar um movimento em direção a uma maior transparência. Por exemplo, de que modo podemos mostrar à igreja como suas ofertas e dízimos estão sendo gastos? Como nosso tempo e nossa energia podem ser controlados? Se assumir responsabilidade tem a ver com confissão, adotar a prestação de contas tem a ver com uma mudança de caminhos.

Tem mais uma palavrinha…

A fonte e a forma

Humildade. Essa é a última palavra que molda a nossa resposta. Acima de tudo, a crise de credibilidade deve nos deixar de joelhos. Devemos nos humilhar e retornar à fonte de nossa autoridade.

Durante os séculos da Idade Média, o pastor — o padre — era uma pessoa ungida com poderes aparentemente especiais. Eles podiam curar os enfermos através da oração e da unção com óleo, podiam ouvir a Deus e interpretar as Escrituras, e podiam transformar pão e vinho no corpo e sangue de Cristo.

Mas, à medida que as reformas levaram ao racionalismo, o pastor no Ocidente pós-iluminista passou a encontrar autoridade em seu aprendizado. Andrew Root em seu livro The Pastor in a Secular Age mapeia a mudança de percepção dos pastores na América, observando que “o pastor não tinha mais poderes mágicos, mas podia ler; ele não era mais um super-herói, mas agora era apenas um homem instruído.” Jonathan Edwards, por exemplo, dedicava-se a estudar 13 horas por dia! Isso deu início a uma longa tradição em que a educação — os seminários certos e os diplomas certos — servem como base para a credibilidade.

Mas Root observa outra mudança, que começou no final do século 20: a autoridade dos pastores começou a vir das instituições que eles criavam. “Assim como o poder do cargo de um CEO deriva da força social ou econômica da empresa, o poder do pastor também depende do tamanho e da influência da congregação.” Com os sermões longos potencialmente vistos como um prejuízo e a educação em seminários como uma potencial obrigação por alguns, os pastores começaram a buscar outras maneiras de estabelecer sua presença em uma comunidade. A resposta estava em construir igrejas fortes e influentes.

Mas nenhuma dessas coisas é a verdadeira fonte da nossa autoridade. A fonte da nossa autoridade, em última análise, não vem de nossa popularidade, nem de nossa influência (embora sem influência, dificilmente alguém poderia ser um líder), nem de nossa educação (embora treinamento e preparação sejam uma coisa boa), nem das instituições que lideramos (ainda que criar instituições faça parte de ter presença e lugar). A fonte de nossa autoridade é Jesus, e ela vem quando estamos em sua presença.

Mas isso não é tudo. Estando com Jesus, aprendemos dele para que serve o poder. Repensamos como nossa autoridade é usada.

Jesus, “sabendo que o Pai havia entregado todas as coisas em suas mãos, e que viera de Deus e para Deus voltaria” (João 13.3, NVI), levantou-se, tirou sua capa, pegou uma toalha e uma bacia, e começou a lavar os pés de seus discípulos.

Jesus sabia de onde tinha vindo e para onde voltaria. Jesus estivera com o Pai e estava voltando para o Pai. Jesus sabia que a missão e o ministério eram o que o Pai lhe havia confiado. E assim, ele assumiu a forma de servo e lavou os pés dos discípulos. Quando se conhece a fonte de sua autoridade, entende-se o propósito dela.

Pastores, se nossa autoridade realmente viesse de nossa instrução ou do tamanho de nossas instituições ou ainda do alcance de nossa influência, então, poderíamos nos vangloriar disso. Nós fizemos isso. Nós conquistamos isso. Trabalhamos por isso.

Contudo, se reconhecermos essa autoridade como uma dádiva, se entendermos que a única autoridade que temos é aquela que vem da unção do Espírito do Senhor, então, é esse mesmo Espírito que trabalha para formar Cristo em nós.

A fonte da autoridade determina a sua forma. Nossa autoridade vem de Jesus, e deve ser usada como Jesus usou seu poder: devemos nos esvaziar em serviço e amor abnegados. Como Paulo escreveria mais tarde — e encontra-se parafraseado na obra A Mensagem — nossa “força é para o serviço, não para o status” (Romanos 15.1). Resgatar essa perspectiva é começar a recuperar a credibilidade diante de Cristo e de sua igreja.

A credibilidade é o resultado da boa e correta mordomia do poder — uma mordomia que entende o propósito de seu poder, os limites de sua autoridade e que age com a devida humildade.

Responsabilidade. Prestação de contas. Humildade. Não posso prometer que isso nos ajudará a recuperar a credibilidade. Mas, pela graça de Deus, nos tornará mais semelhantes a Cristo.

Glenn Packiam é pastor sênior associado da New Life Church, em Colorado Springs. Ele também atua como membro sênior do Barna Group e professor adjunto no Seminário de Denver. Seu último livro é The Resilient Pastor. Partes deste artigo são adaptadas da obra The Resilient Pastor, de sua autoria (Baker Books, uma divisão do Baker Publishing Group, © 2022). Usado com permissão.

Este artigo é parte da nossa edição de primavera da CT Pastors, que trata da saúde da igreja. Você pode encontrar a edição em inglês completa aqui.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Fomos evangelizar uma tribo remota na Amazônia. Descobrimos que eles já estavam esperando por nós

Como jovens missionários brasileiros, aprendemos a depender de Deus e das pessoas que viajamos para alcançar.

Christianity Today May 27, 2022
Illustration by Cornelia Li

Nota do Editor: Em 2018, a missão fatal de John Allen Chau para a Ilha Sentinela, no Norte da Índia, lar da tribo mais isolada do mundo, estimulou novas conversas sobre cristãos que fazem o primeiro contato com povos indígenas. A maioria das tribos isoladas e remotas está na selva amazônica do Brasil, onde há décadas missionários como Braulia Ribeiro saíram para encontrá-los e viver entre eles — esperando ajudar a melhorar suas condições e, ao mesmo tempo, apoiando sua autonomia contra a crescente ameaça das intervenções do governo. Neste texto, ela compartilha sobre sua primeira missão em uma tribo remota.

Na tribo Paumarí, na região amazônica do Brasil, a maioria do povo odiava ser Paumarí.

Achavam que a melhor coisa do mundo era se tornar um “Jará”, termo para todos aqueles que tiveram a sorte de não terem nascido naquela pequena tribo indígena, não terem sido criados com sua língua “primitiva”.

O termo Jará designava qualquer pessoa que não fosse Paumarí, qualquer pessoa que fosse de fora. Para os Paumarís, a maioria dos Jarás que encontravam eram brasileiros que viviam ao longo do rio. A imagem do Jará era personificada especialmente pelos brasileiros que moravam na microvila que fica a um dia e meio de distância da lagoa dos Paumarís ou pelos comerciantes bêbados que lhes vendiam mercadorias superfaturadas.

A maioria dos ribeirinhos brasileiros, eles próprios agricultores de subsistência, eram tão isolados e empobrecidos quanto os Paumarís. Eles não tinham acesso a escola, a assistência médica ou a um padrão de vida para si ou para seus filhos. Mas todos os Jarás que os Paumarís conheciam tinham uma coisa em comum: consideravam-se superiores aos indígenas, a quem viam como pessoas de estranhos costumes que não sabiam sequer falar uma língua compreensível.

Paumarí, o nome que eles usavam para se autodenominar, originalmente indicava a beleza e a perfeição que o grupo via em si mesmo, e Jará costumava ser um termo pejorativo, sinônimo de “não-paumarí” que passou a significar essencialmente “não-humano”. Após muitas décadas de contato com outros brasileiros, os significados se inverteram. Ser chamado de Jará virou elogio. Os outrora belos Paumarís passaram a se ver como seres incapazes e sujos, da mesma forma que os forasteiros os viam.

Em 1983, fiz parte de uma equipe de jovens brasileiros que iria plantar uma estação missionária entre os Paumarís. Éramos quatro: José e Frances, um jovem casal nascido e criado na Amazônia, com experiência em canoa e pesca; Eustáquio, um negro de 20 e poucos anos com cabelo estilo afro; e eu, com apenas 19 anos. Tanto Eustáquio quanto eu éramos da mesma grande cidade do Sul, um contexto urbano, recém-chegados ao imenso mistério da Amazônia.

Foi nossa primeira expedição missionária. Fui escolhida para fazer parte desta viagem para ajudar a equipe a começar a aprender a língua Paumarí. Fiz um treinamento com o Summer Institute of Linguistics (SIL) no qual a língua dessa tribo foi analisada por duas tradutoras que passaram mais de 20 anos em outra aldeia Paumarí, rio acima.

Jovens cristãos da tribo Paumarí se reúnem para um batismo.
Jovens cristãos da tribo Paumarí se reúnem para um batismo.

Partindo da cidade de Manaus, no noroeste do Brasil, viajamos por cinco dias em um pequeno barco de linha de transporte para chegar ao último posto, Lábrea, uma pequena cidade situada no meio da selva. De Lábrea até um pequeno rio, onde estavam os Paumarís, não havia barcos de transporte disponíveis. Teríamos que alugar um barco particular para nos levar até lá. A viagem foi estimada em mais uma semana de barco, além de mais um dia remando em uma pequena canoa para chegar à Lagoa Maniçoã, onde ficava a aldeia flutuante dos Paumarís. Seríamos os primeiros missionários a chegar a esta aldeia em particular.

A única sobra de dinheiro que nossa pequena equipe tinha eram algumas centenas de dólares que separamos para comprar suprimentos e comida para ficar na selva por três meses. Não era muito. Poderíamos comprar um pouco de querosene para lamparinas, pilhas para lanternas e um pouco de arroz e feijão — a dieta básica no Brasil — para ter certeza de que não passaríamos fome.

“O que fazemos, Senhor? Devemos ficar aqui esperando?” Como bons pentecostais recém-convertidos, pedimos a orientação a Deus. Senti que havia recebido um versículo das Escrituras como resposta de Deus. Quando olhei o versículo, ele dizia: “Ele foi e vendeu tudo o que tinha” (Mateus 13.46). O que isso poderia significar? Todos nós nos perguntamos. Senti, no entanto, um frio na espinha. Deus está dizendo que temos que usar todo o nosso dinheiro para pagar a ida de barco?

E foi exatamente assim que as coisas aconteceram.

Esperamos alguns dias, antes de contratar o proprietário do menor barco que pudemos encontrar, um barco de madeira sem paredes, sem banheiro, sem cozinha — que tinha apenas um motor a diesel de quatro cavalos de potência. O preço que ele cobrou para nos levar até aquela aldeia distante e de volta a Lábrea foi o mesmo valor que tínhamos da sobra.

Como “bons” missionários, entendemos que não tínhamos desculpa para rejeitar a oferta. Tínhamos de obedecer à ordem exata que havíamos recebido. Alugamos o pequeno barco e partimos, com comida apenas para a curta viagem, sem querosene, levando umas poucas pilhas e anzóis para pescar. Foi uma viagem de cinco dias no barco lento até a foz do rio Cunhuá, e de lá encontramos um homem com uma grande canoa que estava disponível para nos levar até a Lagoa Maniçoã, a fim de encontrar a aldeia flutuante.

Chegar à lagoa dos Paumarís foi como um sonho surreal. Para chegar à lagoa a partir do rio tivemos de subir por um pequeno afluente, para chegar a uma floresta de várzea inundada por águas negras como Coca-Cola. Depois de várias horas remando pela selva inundada, finalmente entramos na vasta expansão de água da lagoa. Foi como encontrar um mundo mágico.

Os Paumarís vivem metade do ano escondidos nas margens da lagoa, ao pé da “terra seca”, a parte não alagável da floresta, e a outra metade do ano em choupanas construídas no topo de gigantescas árvores flutuantes. Quando chegamos, o sol da tarde refletia nas folhas secas das palmeiras das choupanas dos paumaris, fazendo com que tudo parecesse prateado em contraste com as águas negras e o verde profundo das árvores. Sentimos como se tivéssemos comprado um tesouro por algumas centenas de dólares. Se tudo corresse bem, iríamos morar neste paraíso.

Descemos da canoa em frente à primeira choupana, em uma espécie de cais de madeira sobre as águas. As choupanas que ficavam na “terra seca” dos Paumarís são estruturas altas e esqueléticas feitas de troncos de palmeiras, elevando-se cerca de 4 metros acima do solo. Elas não têm paredes, apenas um piso de folha de palmeira e um teto de palha fina.

“Ivaniti?” — É você? — gritei da terra. Uma idosa me respondeu do alto: “Ha’ã hovani!” — Sim, sou eu! — nem mesmo parecendo estranhar me ver falando a língua dela, experimentando as frases básicas que tinha aprendido com os linguistas do SIL.

Subimos todos até a choupana e sentamos cerimoniosamente no piso brilhante de paxiúba, uma palmeira usada na maioria de suas construções. A idosa continuou a conversa, como se me conhecesse: “Vocês percorreram um longo caminho. Estão cansados? Já comeram? Tem peixe frito” etc. “Sim, percorremos. Não, não estamos. Estamos bem. Felizes por ter chegado após a longa viagem.” Nós nos sentíamos como se estivéssemos em casa.

Depois de uma boa hora de conversa sobre a viagem e nosso bem-estar geral, ela perguntou com quem estávamos relacionados ou o que planejávamos fazer ali, perguntas que são indelicadas de fazer no momento da chegada.

“Somos missionários”, eu disse em meu Paumarí truncado. “Queremos ajudá-los a conhecer Jesus, o Filho de Deus, e se vocês quiserem, também podemos ajudar a montar uma escola para ensinar todos a lerem.” A senhora olhou para mim com uma expressão de perplexidade e começou a gritar pelo neto, Danilo. “Venha cá, Danilo. Os missionários chegaram. Leve-os para a casa deles.”

“Nossa casa?”, eu perguntei. Ela apontou para uma choupana alta e desabitada nas proximidades. “Danilo e eu construímos esta cabana há dois verões, preparando-nos para sua chegada. Ouvimos no rádio sobre o Deus Criador e como seu Filho, Jesus, quer nos ajudar. Eu disse: ‘Se isso for verdade, ele nos enviará seu povo.’ Então construímos a cabana para vocês.”

Fomos instalados na “casa” e, a partir daquele dia, fomos alimentados com fartura de peixes, farinha de mandioca e frutas silvestres. Durante os seis meses que passamos com os Paumarís fomos bem supridos, e não precisamos de nem um centavo do dinheiro que aplicamos no aluguel do barco para chegar lá. Não tínhamos nada para oferecer a eles, exceto a nós mesmos, e isso era tudo o que eles precisavam naquele momento de sua história.

Os Paumarí vivem no rio Purus, afluente do Amazonas.
Os Paumarí vivem no rio Purus, afluente do Amazonas.

Com a ajuda da aldeia, construímos uma choupana alta como todas as outras, ao pé da “terra seca”, que funcionava como escola para as crianças Paumarí durante o dia e para os adultos à noite, ensinando-os a ler e a escrever em sua própria língua. Tínhamos trazido remédios, material de primeiros socorros e o livro Onde Não Há Médico, então, também abrimos uma espécie de clínica humilde para ajudar a atender às necessidades básicas de saúde e atender às famílias que moravam ao longo do rio, que precisavam de remédios para malária.

Com o passar do tempo, os adultos aprenderam melhor a matemática e puderam evitar ser enganados pelos comerciantes. Acabamos resolvendo os problemas sistêmicos que mantinham os Paumarís e os ribeirinhos abaixo da linha da pobreza? Eu acho que não. Eles ainda são pobres. Depois de alguns anos, conseguimos comprar comida, remédios e um barco, mas a missão em si era ineficiente em atender às suas necessidades.

Nós, no entanto, transformamos a maneira como os Paumarís olhavam para os forasteiros. Eles nos viam como os missionários para os quais construíram uma cabana e a quem sustentavam com porções diárias de peixe. Nós nos tornamos seus próprios Jarás, pessoas da cidade, sagazes, que de alguma forma dependiam dos Paumarís “inferiores” para sobreviver.

O fato de terem que apoiar nosso grupo deu a toda a vila um senso de dignidade e valor. Eles não eram os pobres que recebiam ajuda; seu relacionamento conosco era de igual para igual, e a dependência era mútua.

Eles começaram a ver novamente a questão de “ser Paumarí” como um motivo de orgulho. A sua língua ganhou prestígio, porque os estrangeiros a estudaram, ensinavam-na nas escolas, preservaram-na em livros. Até hoje, os Maniçoã Paumarís da aldeia que visitamos falam sua língua materna. E, pela graça de Deus, eles são uma comunidade cristã produtiva que escapou do auto-ódio tóxico que sufoca muitas outras aldeias indígenas ao longo do rio Purus. Afinal, eles tinham seu próprio grupo de missionários de estimação, que eles abrigavam e alimentavam, e nenhuma outra aldeia em todo o rio tinha o mesmo privilégio.

Braulia Ribeiro é uma acadêmica brasileira e mãe de três filhos, com mestrado em etnolinguística pela Universidade Federal de Rondônia e mestrado em divindade pela Yale Divinity School.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Books

O apocalipse da Convenção Batista do Sul

A investigação sobre os abusos revelou mais perversidades até do que eu imaginei

Christianity Today May 26, 2022
Courtesy of Baptist Press / Edits by Mallory Rentsch

Eles estavam cobertos de razão. Eu estava errado ao chamar de crise a questão do abuso sexual na Southern Baptist Convention (SBC). Crise é um termo muito leve. Trata-se de um apocalipse.

Alguém me perguntou há algumas semanas o que eu esperava da investigação independente sobre o tratamento dispensado à questão do abuso sexual por parte do Comitê Executivo da Southern Baptist Convention. Eu disse que não esperava ficar nem um pouco surpreso. Como eu poderia me surpreender? Vivi anos naquela entidade. Fui eu quem pediu por tal investigação, para começo de conversa.

E, ainda assim, quando li o relatório, percebi que eu não conseguia deslizar a tela e passar para a próxima página, porque minhas mãos estavam tremendo de raiva. Isso porque, por mais negativa que fosse a minha visão sobre o Comitê Executivo da SBC, a investigação revelou uma realidade ainda mais perversa e sistêmica do que eu imaginei ser possível.

As conclusões do relatório são tão pesadas que é quase impossível fazer um resumo. O relatório corrobora e detalha acusações de fraude, obstrução e intimidação contra vítimas e aqueles que pediam por reforma. Contém conversas por escrito entre altos funcionários do Comitê Executivo e seus advogados, que demonstram o tipo de desumanidade que dificilmente se vê até mesmo nos roteiros escritos para os vilões dos filmes policiais na TV. No relatório são documentados [episódios em que] alguns líderes da SBC, de maneira insensível, encobriram casos e denúncias verossímeis de comportamento sexual predatório cometido por alguns dos próprios líderes, inclusive o ex-presidente da SBC, Johnny Hunt (que era uma das poucas figuras na história da SBC que parecia ser respeitada por todas as típicas facções).

E há, ainda, documentado um episódio de maus tratos cometidos pelo Comitê Executivo em que a vítima, uma sobrevivente de abuso sexual, teve a história de seu abuso alterada para fazer parecer que o abuso cometido contra ela fora um “caso amoroso” consensual — resultando, como corrobora o relatório, em anos infernais para ela.

Por anos, disseram líderes no Comitê Executivo, a possibilidade de criar um banco de dados — para evitar que predadores sexuais passassem silenciosamente de uma igreja para outra, encontrando um novo grupo de vítimas — havia sido minuciosamente investigada, e chegou-se à conclusão de que era algo legalmente impossível, dada a autonomia da igreja batista. Fiquei boquiaberto, quando li provas documentais no relatório de que essas mesmas pessoas não só sabiam como criar esse banco de dados, mas já possuíam um.

Denúncias de violência e abuso sexual foram armazenadas, segundo conclui o relatório, em um arquivo secreto na sede da SBC, em Nashville. Esse arquivo continha registro de mais de 700 casos. Não só nada foi feito para impedir que esses predadores continuassem com seus crimes infernais, mas funcionários foram instruídos a sequer responder a quem perguntasse como impedir que seus filhos fossem abusados sexualmente por ministros. Ao invés de um banco de dados para proteger as vítimas de abuso sexual, o relatório revela que esses líderes tinham um banco de dados para proteger a si mesmos.

De fato, as mesmas pessoas que repreenderam a mim e a outros por usar a palavra crise com relação aos casos de abuso sexual na SBC não apenas sabiam que existia tal crise, mas a estavam silenciosamente documentando, enquanto diziam àqueles que lutavam por uma reforma que tais crimes raramente aconteciam entre “pessoas como nós”. Quando leio as mensagens trocadas entre alguns desses presidentes, altos funcionários e seus advogados, não consigo deixar de pensar do que mais poderíamos chamar isso senão de conspiração criminosa.

O verdadeiro terror em tudo isso não está apenas no que foi feito, mas em como aconteceu. Duas proposições extraordinariamente impactantes do cotidiano dos batistas do Sul — fidelidade bíblica e missão cooperativa — foram usadas contra eles.

Aqueles que não pertencem ao universo da SBC não são capazes de imaginar o poder mitológico do Café Du Monde — o local no French Quarter de New Orleans onde, comendo beignets e bebendo café, dois homens, Paige Patterson e Paul Pressler, mapearam em um guardanapo como a convenção poderia restaurar um compromisso com a verdade da Bíblia e a fidelidade a seus documentos confessionais.

Para os batistas do Sul de uma certa idade, essa história é o equivalente à porta de Wittemberg para os luteranos ou à Rua Aldersgate para os metodistas. A convenção foi salva do liberalismo pela coragem desses dois homens, que se recusaram a desistir, segundo acreditávamos. De fato, eu ensinava essa história aos meus alunos.

Esses dois líderes míticos agora caíram em desonra. Um deles foi demitido, após supostamente não ter dado o devido tratamento ao relatório de uma vítima de estupro em uma instituição que ele liderava, após gravarem comentários seus, feitos em público, a respeito da aparência física de meninas adolescentes e seus conselhos a mulheres abusadas fisicamente pelos maridos. O outro está sendo julgado a respeito de denúncias de estupro de jovens rapazes.

Ouvimos dizer que eles queriam conservar a religião dos tempos antigos. O que eles queriam era vencer seus inimigos e fazer vitrais em honra a si mesmos — independentemente de quem fosse ferido no processo.

Quem não consegue enxergar agora a podridão de uma cultura que se mobiliza para exilar igrejas que chamam uma mulher na equipe de “pastora” ou que convidam uma mulher para falar no púlpito, no Dia das Mães, mas minimiza o estupro e o abuso sexual, rotulando-os como “distrações” e considerando os esforços para lidar com tais pecados como violações da estimada autonomia das igrejas? Em setores da SBC atualmente, mulheres vestirem calça legging é uma crise nas redes sociais; lidar com estupros que acontecem na igreja, porém, é uma distração.

A maioria das pessoas nos bancos dessas igrejas cria na Bíblia e queria apoiar líderes que também criam. Elas não sabiam que alguns deles usariam a verdade da Bíblia para sustentar uma mentira a respeito de si mesmos.

A segunda parte da mitologia diz respeito à missão. Eu dizia aos meus próprios alunos, aos meus próprios filhos, exatamente o que me foi dito — que o Programa Cooperativo é a maior estratégia de financiamento de missões na história da igreja. Todos nós que crescemos em igrejas da SBC admiramos a missionária pioneira Lottie Moon (inclusive, estou de frente para um busto de bronze dela, enquanto escrevo este texto). Os missionários da SBC são algumas das pessoas mais abnegadas, humildes e talentosas que eu conheço.

E ainda assim, esse próprio e excelente ímpeto da SBC por missões, por cooperação, é algo frequentemente transformado em uma arma, da mesma maneira que já fizeram com a “graça” ou o “perdão”, em incontáveis contextos, para culpar os sobreviventes pelo abuso cometido contra eles mesmos. O próprio relatório documenta o modo como argumentos foram utilizados para dizer que “vítimas profissionais” e aqueles que os apoiam seriam uma ferramenta do Diabo para “distrair” ou tirar o foco da missão.

Aqueles que pediam por reforma recebiam a resposta de que uma reforma faria com que algumas igrejas deixassem de contribuir para o financiamento do Programa Cooperativo, e isso acarretaria em tirar missionários do campo. Aqueles que denunciaram a extensão do problema — mais destacadamente Christa Brown e o exército de incansáveis sobreviventes que se uniram à essa luta — foram chamados de loucos e descontentes que só queriam destruir tudo. Como se já não fosse ruim o bastante que esses sobreviventes não apenas tenham suportado uma guerra psicológica e o assédio judicial, eles também foram isolados, mediante as implicações de que, se eles continuassem se concentrando no abuso sexual, as pessoas não ouviriam o evangelho e iriam para o inferno.

A cooperação é um ideal bom e bíblico, mas a cooperação não deve existir para “proteger uma base”. Aqueles que usaram tais frases sabem o que queriam dizer. Eles sabem que, se alguém pisa fora da linha, essa pessoa será rejeitada como liberal, marxista ou feminista. Eles sabem que os perversos se mobilizarão e os “bonzinhos” ficarão em silêncio. E isso não é nada — nada — comparado com o que passaram as vítimas de abuso sexual — inclusive crianças — que não tem uma “base”.

Quando minha esposa e eu saímos da última reunião do Comitê Executivo da SBC que presenciaríamos em nossas vidas, ela olhou para mim e disse: “Eu te amo. Estou do seu lado até o fim. Você pode fazer o que quiser, mas se ainda for um batista do Sul no verão, você estará em jugo desigual.” Ela não é uma mulher dada a ultimatos. De fato, esse foi o primeiro que já ouvi sair da sua boca. Mas ela já tinha visto e ouvido demais. E eu também.

Não consigo imaginar a ira que estão sentindo agora aqueles que sobreviveram ao abuso sexual cometido na igreja. Só conheço em primeira mão a ira de alguém que apenas se referia à SBC como “nós”, até hoje, e nunca mais poderá fazê-lo novamente. Só conheço em primeira mão a ira de alguém que ama as pessoas que me falaram a respeito de Jesus pela primeira vez, mas que não consegue acreditar que é isso que essas pessoas esperavam que eu fizesse, que é isso que elas esperavam que eu fosse. Só conheço em primeira mão a ira de alguém que, ao ler sobre o que aconteceu no sétimo andar do prédio da SBC, só pode imaginar quantas crianças foram estupradas, quantas pessoas foram abusadas, quantos gritos foram silenciados, enquanto nos vangloriávamos de que ninguém conseguia alcançar o mundo para Jesus como nós.

Tudo isso é muito mais do que uma crise. É ainda mais do que apenas um crime. É blasfêmia. E qualquer um que se importe com o céu tem a obrigação de estar furioso.

Russell Moore lidera o projeto de Teologia Pública da Christianity Today.

Traduzido por Alan Cristie

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Books

Batistas do Sul se recusaram a agir contra o abuso, apesar da lista secreta de pastores

Investigação: A equipe do Comitê Executivo da SBC, por ver os pedidos de ajuda dos denunciantes como algo que desviava a atenção do evangelismo e representava risco de processos legais, impediu seus relatórios e resistiu aos pedidos de reforma.

Uma investigação independente examinou as respostas dadas pelo Comitê Executivo da Convenção Batista do Sul às acusações de abuso.

Uma investigação independente examinou as respostas dadas pelo Comitê Executivo da Convenção Batista do Sul às acusações de abuso.

Christianity Today May 24, 2022
Courtesy of Baptist Press / Edits by Mallory Rentsch

Armados com uma lista secreta com mais de 700 pastores que cometeram abusos, os líderes da SBC (Southern Baptist Church) optaram por proteger a denominação de ações judiciais, em vez de proteger as pessoas em suas igrejas de sofrerem mais abusos.

Vítimas de abuso, seus defensores e alguns membros da própria SBC passaram mais de 15 anos pedindo por maneiras de impedir que predadores sexuais se deslocassem silenciosamente de um rebanho para outro. Os homens que controlavam o Comitê Executivo (CE) — que administra as operações diárias da Convenção Batista do Sul (SBC) — sabiam da extensão do problema. Contudo, trabalhando em estreita colaboração com seus advogados, difamaram as pessoas que queriam fazer algo contra o abuso e rejeitaram repetidamente os pedidos de ajuda e reforma.

“Nos bastidores, os advogados estavam aconselhando a não dizer nada e a não fazer nada, mesmo quando os interlocutores estavam identificando abusadores que ainda ocupavam os púlpitos da SBC”, de acordo com um enorme relatório de uma investigação conduzida por terceiros, que foi divulgado no domingo.

Essa investigação concentra a responsabilidade em membros do CE e seus advogados, e diz que as centenas de integrantes eleitos do CE foram amplamente mantidos no escuro. O conselheiro geral do CE, Augie Boto, e o advogado de longa data, Jim Guenther, aconselharam os três últimos presidentes do Comitê — Ronnie Floyd, Frank Page e Morris Chapman — no sentido de que tomar medidas contra os abusos representaria um risco jurídico e político para a SBC, o que levou os presidentes a contestarem as propostas de reforma contra os abusos.

À medida que novos apelos a uma ação surgiram com os movimentos #ChurchToo e #SBCToo, Boto se referiu à defesa das vítimas de abuso como “um esquema satânico para desviar completamente nossa atenção do evangelismo”.

As vítimas, por sua vez, descreveram os efeitos avassaladores não apenas dos abusos que sofreram, mas também da insultante obstaculização das respostas pelos líderes do CE por mais de 15 anos.

Christa Brown, uma defensora de longa data [de uma apuração], que sofreu abuso sexual por seu pastor aos 16 anos, disse que seus “incontáveis encontros com líderes batistas” que a evitavam e a desacreditavam “deixaram um legado de ódio” e uma mensagem que diz “você é uma criatura sem valor — você não importa.” Como resultado, ela disse, em vez de sua fé fornecer consolo, tornou-se “neurologicamente conectada com um pesadelo”. Ela se referiu a isso como um “assassinato de almas”.

Outra vítima, Debbie Vasquez, foi repetidamente abusada sexualmente por um pastor da SBC, a partir dos 14 anos. Quando uma agressão a levou à gravidez, ela foi forçada a se desculpar na frente da igreja, mas proibida de mencionar quem era o pai. O pastor passou a servir em outra igreja da Convenção Batista do Sul e, quando Vasquez entrou em contato com o CE, suas súplicas foram ignoradas e evitadas por anos, até uma investigação do Houston Chronicle, três anos atrás.

Nos últimos 20 anos, entretanto, uma série de presidentes da SBC falhou em responder adequadamente aos abusos cometidos em suas próprias igrejas e seminários. Em vários casos, os líderes ficaram do lado de indivíduos e igrejas que foram acusados de forma crível de abuso ou de acobertamento. Um ex-presidente — o pastor Johnny Hunt — abusou sexualmente da esposa de outro pastor, em 2010, descobriram os investigadores.

Na reunião anual em Anaheim, Califórnia, no próximo mês, um ano depois de terem votado para dar início à investigação, milhares de membros da SBC decidirão se estão prontos para fazerem as mudanças drásticas e dispendiosas que o relatório recomenda em favor das vítimas e da segurança da igreja.

“Em meio à minha dor, raiva e decepção com o grave pecado e as falhas que este relatório expõe, acredito sinceramente que os membros da SBC devem resolver mudar nossa cultura e implementar reformas que são desesperadoramente necessárias”, disse o presidente da SBC, Ed Litton, em comunicado à CT. “A hora é agora. Temos muito a lamentar, mas a dor genuína requer uma resposta piedosa.”

A Guidepost Solutions, uma empresa de investigação terceirizada, quer que a denominação de 13,7 milhões de membros crie um banco de dados on-line de abusadores, ofereça compensação para as vítimas, limite drasticamente os acordos de confidencialidade e crie uma nova entidade dedicada a responder aos abusos. As diretrizes do relatório de 288 páginas soarão familiares para vítimas e seus defensores, que sempre pediram essas medidas.

“Quantas crianças e fiéis poderiam ter sido poupados de danos horríveis, se o Comitê Executivo tão somente tivesse agido em 2006, quando escrevi pela primeira vez para eles, pedindo medidas concretas específicas? E quantas vítimas poderiam ter sido poupadas do inferno traumático de tentar denunciar abusos sexuais cometidos pelo clero em um sistema que sempre lhes dá as costas?”, perguntou Brown, em uma carta de 2021. “A resistência de longa data do Comitê Executivo da SBC às reformas para coibir o abuso agora rendeu uma nova safra de vítimas de abuso sexual cometido pelo clero e de pessoas que sobreviveram ao abuso, mas foram novamente traumatizadas em seus esforços para denunciá-lo”.

Antecipando a divulgação do relatório, o atual presidente interino do CE, Willie McLaurin, e o presidente do CE, Rolland Slade, citaram Eclesiastes: “Deus trará a julgamento todos os atos, inclusive todas as coisas ocultas, sejam boas, sejam más” (12.15, CSB).

Os líderes atuais exortaram os batistas do Sul a serem receptivos às más notícias.

“Este é um momento e uma época para sondarmos nossas deficiências, um momento para abraçar as descobertas do relatório”, escreveram eles na semana passada, “um momento para reconstruir a confiança dos batistas do sul e um momento para curar, enfrentando os desafios exigidos com as mudanças necessárias esperadas”.

Maior investigação da história da SBC

O relatório representa um empreendimento de US$ 2 milhões, envolvendo 330 entrevistas e cinco terabytes de documentos coletados ao longo de oito meses. O CE também comprometeu outros US$ 2 milhões em custas legais em torno da investigação, somando um investimento total de US$ 4 milhões, financiado por igrejas e convenções que doam ao Programa Cooperativo.

A advogada Rachael Denhollander, que assessorou a força-tarefa da SBC que coordenou a investigação, twittou que “o nível de transparência é […] incomparável”. É a maior investigação da história da SBC; já mudou a composição do CE e está para determinar a trajetória da denominação de 177 anos.

A investigação da Guidepost incluiu mensagens confidenciais de teor jurídico sobre casos de abuso, nos últimos 20 anos, cujo fornecimento levou o presidente do CE, Ronnie Floyd, a renunciar em outubro, e o escritório de advocacia Guenther, Jordan & Price a retirar seus serviços após 60 anos.

De acordo com o relatório, o escritório de advocacia aconselhou ativamente o CE a não assumir a responsabilidade por abusos. Guenther trabalhou ao lado de Boto, um advogado que esteve envolvido no Comitê Executivo dos anos 1990 a 2019, atuando como administrador, vice-presidente, conselheiro geral e presidente interino. Ele foi um aliado de Paige Patterson durante o Ressurgimento Conservador. (No ano passado, Boto foi impedido de ocupar qualquer cargo em entidades batistas do sul em decorrência de um acordo legal que envolveu movimentação financeira, depois que Patterson foi demitido de um seminário da SBC por condução indevida de uma alegação de estupro.)

Boto e Guenther transformaram toda discussão sobre os abusos em uma discussão sobre proteger o CE de ser responsabilizado legalmente, tornando isso a maior prioridade, disse o relatório.

“Quando as alegações de abuso eram trazidas ao Comitê, inclusive alegações que envolviam condenados por crimes sexuais que ainda estavam atuando no ministério, os líderes do CE geralmente não discutiam essas informações fora de seu círculo íntimo, muitas vezes não respondiam à vítima nem tomavam medidas para tratar dessas alegações, como medidas para evitar abusos que estavam acontecendo ou abusos futuros”, disse o relatório. “Quase sempre o foco interno era proteger a SBC da responsabilização legal, e não cuidar das vítimas nem criar qualquer plano para prevenir o abuso sexual dentro das igrejas da SBC.”

A Convenção Batista do Sul orgulhosamente diz que é um grupo de igrejas autônomas. Elas se reúnem para trabalho missionário, comunhão e treinamento, mas a convenção não tem uma hierarquia. Não ordena e não nomeia pastores, nem detém autoridade sobre as 47 mil igrejas que optaram por afirmar suas declarações de fé e doar ao seu Programa Cooperativo.

Essa falta de supervisão significa que, quando algo dá errado em uma igreja ou entidade da SBC, o CE pode alegar que não é culpado; afinal, as igrejas são independentes. A consultoria jurídica argumentou que, quanto mais os líderes da denominação orientassem as igrejas a lidarem com os abusos, mais o CE assumiria a responsabilidade por erros e má condução dos casos.

Em 2000, segundo o relatório, Patterson via o treinamento para prevenção de abusos como uma forma de se defender contra ações judiciais, dizendo a um pastor que as igrejas poderiam documentar “algum esforço para instruir aqueles que trabalhavam com crianças sobre como ficarem atentos e responderem aos perigos” para que, no futuro, não surgissem litígios contra eles.

Como presidente dos seminários do Sudeste e do Sudoeste, Patterson desencorajou duas mulheres de entrarem na justiça com acusações de estupro sobre as quais haviam compartilhado. Ele foi demitido do Seminário Teológico Batista do Sudoeste em 2018, por sua resposta, e foi processado, junto com o seminário, pela estudante.

O associado de Patterson, Paul Pressler, advogado e líder durante o Ressurgimento Conservador, também enfrenta litígios sobre alegações de que ele usou seu poder para abusar de meninos, e a própria SBC é nomeada no processo. (Nem Patterson nem Pressler, ex-vice-presidente executivo da SBC e ex-membro do CE, concordaram em ser entrevistados para a investigação, embora os advogados de Patterson tenham apresentado um documento de duas páginas.)

Patterson e o ex-presidente da SBC, Jerry Vines, estão sob escrutínio por seu apoio anterior a Darrell Gilyard, pastor que é alvo de uma série de alegações de má conduta sexual que remontam aos anos 90. O relatório cita um membro do CE que, em um e-mail, disse que 44 mulheres procuraram os dois líderes da SBC para falar sobre Gilyard, “e em quase todos os casos, elas foram envergonhadas por isso e saíram sentindo que não acreditaram nelas. Apesar de todos os relatos divulgados, parece que Gilyard mudava de igreja em igreja, deixando vidas arruinadas em seu rastro.”

Os advogados do CE, Guenther e Boto, discutiram a ideia de um banco de dados de abusadores já em 2004, em resposta a Brown. O assunto voltou à tona em 2007, após uma moção na reunião anual. A equipe do CE não avançou com a ideia na época. Guenther escreveu em um e-mail que se preocupava “que pudessem pensar que o dever de alertar um tribunal fosse uma obrigação da SBC”.

E, no entanto, com a ajuda do porta-voz e vice-presidente, Roger “Sing” Oldham, e de um membro anônimo da equipe do CE, eles mantiveram uma lista. A pedido de Boto, segundo o relatório, um funcionário coletou recortes de notícias e rastreou pastores abusivos em uma tabela que registrava nome, ano, estado e denominação. A primeira versão, em 2007, incluía 66 pessoas presas ou processadas por abuso. Em 2022, a lista cresceu para incluir 703, dos quais acredita-se que 409 pertençam a igrejas afiliadas à SBC.

O divisor de águas foi uma série do Houston Chronicle, em 2019, que encorajou renovada atenção em torno da resposta e da prevenção a abusos e trouxe à tona 380 pastores afiliados à SBC acusados de abuso sexual.

Mesmo com o crescimento da lista secreta de ministros abusivos, os líderes do Comitê Executivo concentravam suas críticas nas vítimas e nos que lutavam por uma providência. Eles reclamaram que as vítimas não entendiam a política da SBC e queriam prejudicar a denominação. Patterson chamou o grupo dos que lutam por uma providência, o SNAP (sigla em inglês que significa Rede de Vítimas Abusadas por Sacerdotes) de “tão repreensível quanto os que cometem crimes sexuais”. Um membro do CE disse que Brown — que administrava o StopBaptistPredators.org, onde apresentava histórias de vítimas e publicava relatórios públicos sobre ministros abusivos — era uma “pessoa sem integridade”.

Boto via o Diabo em ação nos seus esforços. Em um e-mail obtido pela Guidepost, ele escreveu:

Essa coisa toda deve ser vista pelo que é. É um esquema satânico para nos distrair completamente do evangelismo. Não é o evangelho. Não é nem mesmo uma parte do evangelho. É uma jogada para desorientar. Sim, Christa Brown e Rachael Denhollander sucumbiram a uma heurística da disponibilidade por causa de suas vitimizações. Elas foram à SBC em busca de abuso sexual e, claro, encontraram. Seus clamores certamente causaram uma cascata de disponibilidade. […] Mas elas não têm culpa. Isto é o Diabo sendo temporariamente bem-sucedido.

De acordo com um membro não identificado da equipe do CE, “em quase todos os casos, no passado, quando as vítimas chegavam àqueles que estavam no poder na SBC, elas eram evitadas, envergonhadas e difamadas. No CE, herdamos uma cultura de rejeitar aqueles que questionam o poder ou acusam os líderes.”

Os principais líderes batistas do sul não apenas desacreditaram e insultaram as vítimas. Em alguns casos, eles se alinharam com perpetradores condenados ou confessos e os ajudaram pessoalmente.

O relatório inclui vários exemplos:

  • Mike Stone, ex-presidente do CE e candidato na corrida de 2021 para presidente da SBC, ajudou a elaborar um pedido de desculpas para um pastor amigo dele, depois que o pastor foi pego trocando mensagens de texto explícitas com um membro de sua congregação, em 2019.
  • Augie Boto depôs como “testemunha de caráter” em favor do treinador de ginástica de Nashville, Marc Schiefelbein, que havia sido condenado em 2003 por molestar uma menina de 10 anos.
  • Jack Graham, presidente da SBC de 2002 a 2004, não denunciou um ministro de louvor que foi demitido, em 1989, depois que a Igreja Batista Prestonwood soube que ele molestou uma criança. O ministro passou por outra igreja e foi condenado por seus crimes em Prestonwood, mais de 20 anos depois. (A igreja “nega categoricamente a forma como o relatório caracteriza o incidente há 33 anos”, disse o atual pastor executivo Mike Buster em um comunicado. “Prestonwood nunca protegeu nem apoiou abusadores, seja em 1989 ou desde então.”)
  • Steve Gaines, presidente da SBC de 2016 a 2018, sabia que um ministro da equipe pastoral de sua igreja, a Bellevue Baptist Church, já havia abusado de uma criança, mas não divulgou tal fato até que a notícia surgiu em um blog.

O relatório investigativo também encontrou casos em que os próprios líderes do CE cruzaram os limites morais:

  • Frank Page, o presidente do CE, renunciou repentinamente em março de 2018. Um comunicado oficial disse que a renúncia foi por conta de um “relacionamento moralmente inadequado”. O CE não investigou se foi consensual, nem investigou “se a conduta dele se deu no local de trabalho”.
  • Johnny Hunt, presidente da SBC de 2008 a 2010, apalpou e beijou a esposa de um pastor mais jovem, um mês após o término de seu mandato presidencial, e disse ao casal para manter segredo.

O abuso sexual cometido por Hunt não havia sido relatado anteriormente. A mulher e seu marido, um pastor da SBC, apresentaram-se durante a investigação para compartilhar com a Guidepost o que aconteceu. Hunt, ex-pastor da Primeira Igreja Batista de Woodstock, na Geórgia, foi vice-presidente sênior do Conselho de Missões da América do Norte da SBC, até renunciar, em 13 de maio. O Seminário Teológico Batista do Sudeste tem uma cadeira nomeada em sua homenagem.

Pelo relato do casal, ambos são 24 anos mais novos do que Hunt, e este se ofereceu para ajudá-los em seu ministério. A certa altura, ele arranjou um lugar para a mulher ficar durante uma visita a Panama City Beach, onde Hunt estava passando seu ano sabático. Ele, então, entrou no condomínio onde a mulher estava sozinha e abusou sexualmente, dela, puxando suas roupas para baixo, prendendo-a no sofá, apalpando-a e beijando-a.

Após o incidente de julho de 2010, o casal se encontrou com Hunt em sua igreja. Ele alertou que, caso eles dissessem alguma coisa, isso “impactaria negativamente as mais de 40 mil igrejas que o Dr. Hunt representava” e os encaminhou para o conselheiro Roy Blankenship, do HopeQuest Ministry Group. Blankenship confirmou que algo aconteceu entre a esposa do pastor e Hunt, e disse aos investigadores que Hunt deveria ter interrompido o ato, mas “são precisos dois para dançar um tango”.

Em entrevista à Guidepost, Hunt negou ter abusado da mulher e disse que nunca entrou em seu condomínio. Os investigadores da Guidepost encontraram três testemunhas adicionais para corroborar partes do relato da mulher e de seu marido. Eles não acharam críveis as declarações de Hunt.

Hunt já foi associado com o apologista Ravi Zacharias e foi um convidado especial, em 2009, para a inauguração do spa no qual Zacharias abusou de massoterapeutas. No ano passado, Hunt condenou os abusos de Zacharias, descrevendo-os como “pecado […] contra tantas mulheres inocentes”.

Mensageiros apoiaram reformas

Após o movimento #MeToo, as vítimas de abuso da SBC chamaram a atenção da mídia.

Em 2018, Jules Woodson, que foi abusada sexualmente por seu pastor de jovens, disse ao The New York Times como foi ver uma igreja aplaudi-lo depois de ele ter confessado de forma vaga “um incidente sexual”. Naquele mesmo ano, Megan Lively disse ao The Washington Post como Paige Patterson dissera a ela para não denunciar seu estupro à polícia. Em 2019, a investigação do Chronicle perfilou mais vítimas.

Como resultado, os batistas do sul se manifestaram e agiram. Os mensageiros nas reuniões anuais adotaram resoluções que afirmavam a dignidade da mulher e condenavam o abuso. Eles votaram para alterar seus estatutos de modo a nomear explicitamente o abuso como motivo para demissão da SBC. Também encarregaram um comitê de fazer recomendações, caso uma igreja se enquadrasse em algum tipo de violação.

Em 2018, eles também elegeram um presidente que fez da resposta ao abuso uma parte central de sua agenda. Sob J.D. Greear, a SBC introduziu treinamento para prevenção e resposta ao abuso, a Iniciativa Caring Well, e realizou conferências para ouvir vítimas de abuso, especialistas e pastores.

Mas, de acordo com o relatório da Guidepost, quase todos esses esforços foram recebidos com críticas e resistência por parte de alguns líderes do CE, que disseram que priorizar a questão do abuso poderia levar a ações judiciais.

Às vezes, a divisão era clara para quem olha de fora: Greear, como presidente da SBC, fez referência a abusos 81 vezes durante seu discurso na reunião anual, enquanto Floyd, como presidente do EC, não o mencionou como prioridade em seu plano Visão 2025.

Nos bastidores, como mostra o relatório da Guidepost, o conselheiro jurídico do CE aconselhou as pessoas a minimizarem o problema. Eles pressionaram a Comissão de Ética e Liberdade Religiosa (ERLC) para não se referir a abuso sexual na SBC como uma crise e evitar o uso de “linguagem incitatória”, como dizer que a denominação tinha falhado com as vítimas. Os membros do CE tentaram censurar as críticas ao tratamento dos abusos por parte da SBC e condenaram qualquer esforço para permitir que vítimas e especialistas em abuso falassem em eventos da Convenção Batista do Sul.

“Pessoal, isso realmente não é nada bom”, escreveu Floyd em um e-mail que chegou às mãos dos investigadores. “Não podemos ter entidades da SBC colocando pessoas em plataformas para falar sobre como a SBC e alguns de seus líderes e ex-líderes [sic]. Todo o trabalho por unidade está sendo desafiado.”

Esses confrontos e ameaças intramuros na SBC tornaram-se públicos há um ano, em cartas e gravações vazadas que registravam a comunicação de ex-líderes da ERLC, Russell Moore (agora teólogo residente da CT) e Philip Bethancourt. Os documentos eram um alerta para os pastores, e sugeriam esforços por parte dos líderes do CE para intimidar vítimas de abuso e resistir à reforma. Eles incentivavam pedidos para uma investigação sobre o CE.

“Ficamos chocados”, disse à CT, no ano passado, Grant Gaines, um pastor do Tennessee que fez a moção para investigar o CE. “Nós não deveríamos ter ficado (chocados). Essas vítimas e suas histórias estão aí, para quem quiser ver.”

Uma história que se tornou pública é a de Jennifer Lyell. Ela foi abusada por um professor do seminário, mas um artigo de março de 2019, na Baptist Press, que é administrada pelo CE, caracterizou esse abuso como um caso extraconjugal. No momento da publicação, Lyell era uma executiva da Lifeway e a mulher de mais alto escalão da SBC. A validade de seu relato foi apoiada pelo presidente do Seminário do Sul, Al Mohler.

Lyell acabou deixando seu emprego e sofrendo estresse físico e mental em consequência da repercussão, bem como da saga de meses para corrigir a história e buscar restituição.

Em um tópico no Twitter, após a divulgação do relatório, Lyell descreveu ter de suportar as tensões entre o CE — que controlava a correção do artigo sobre ela e estava alerta na época sobre como outras figuras da SBC falavam sobre os abusos — e líderes de outras entidades, que defenderam sua história, mas poderiam ter enfrentado retaliação por se manifestar.

Ela recebeu um pedido de desculpas do CE em fevereiro de 2022, e um acordo não revelado. Os integrantes do EC, segunda a Guidepost, não sabiam que ela havia apresentado queixas por difamação e também já havia recebido uma proposta de acordo em maio de 2020.

Hannah Kate Williams também processou o CE por negligência em reagir aos abusos cometidos por seu pai, que trabalhava em entidades da SBC, bem como por supostos esforços para difamá-la, quando ela veio a público com seu caso.

Os advogados do CE criticaram Greear por repetir os nomes de 10 igrejas que foram citadas na investigação do Houston Chronicle por empregarem pastores abusivos e pedir a um subcomitê do CE para investigá-los. Guenther disse que eles seriam processados por difamação e trabalhariam para limpar os nomes das igrejas. Boto ligou para uma das igrejas para se desculpar.

Meses depois, Boto se opôs à criação do comitê de credenciais, que analisaria se uma igreja violou critérios sobre abuso ou outras questões que a tornariam “não mais uma igreja em cooperação amigável” com a SBC.

O comitê de credenciais, que foi reconfigurado para esse novo propósito em 2019, também frustrou as vítimas de abuso, porque era confuso e ineficiente, disse a Guidepost. Não fornecia orientações por escrito, nenhum treinamento e nenhuma equipe de apoio em tempo integral.

Por causa do escopo limitado, que foi autorizado com base na política da SBC, o comitê não foi capaz de abordar os erros das igrejas no passado, nem podia fazer investigações para determinar a culpa ou a inocência de um pastor, apenas a resposta da igreja. Como resultado, levava uma média de nove meses para chegar a uma decisão — e alguns casos nunca tiveram um retorno. Alguns dos pedidos submetidos não conseguiam chegar ao site tosco, como o comitê exigia, para desafiar a filiação de uma igreja.

Nos últimos três anos, o comitê processou 30 pedidos que lhe foram submetidos e desassociou apenas 3 igrejas por abuso. Em cada caso, a ofensa era óbvia e flagrante: a igreja havia conscientemente empregado um agressor sexual. O comitê não fez nenhum comentário público sobre os resultados dos outros 27 pedidos submetidos que foram contabilizados pelo relatório recente. Os investigadores da Guidepost descobriram que cinco igrejas renunciaram voluntariamente [à sua filiação] e outra foi dissolvida durante o processo de revisão pelo comitê de credenciais.

Nova entidade e outras recomendações

A força-tarefa que supervisionou e divulgou a investigação do CE vê o lamento público como o primeiro passo para responder à investigação. Eles também pediram que os batistas do sul votassem para estabelecer uma nova força-tarefa que possa avaliar como implementar as mudanças recomendadas de forma alinhada à política batista.

O relatório oferece 30 páginas de recomendações para o CE e o comitê de credenciais, entre elas:

  • Criar uma entidade permanente para supervisionar a resposta e a prevenção ao abuso sexual
  • Lançar um “sistema de informação sobre os infratores”, ou seja, um banco de dados on-line do qual as igrejas possam participar voluntariamente, para denunciar abusos ou casos comprovados de abuso acobertado
  • Publicar uma lista de igrejas desassociadas e de indivíduos cujas ordenações ou graus foram revogados
  • Facilitar programas de ajuda às vítimas de abuso e fornecer compensação da SBC, por meio de doações, para cobrir despesas com ajuda médica e psicológica
  • Emitir um pedido de desculpas às vítimas e erguer um memorial, acrescentando um Domingo do Sobrevivente de Abuso ao calendário da SBC
  • Proibição de acordos de confidencialidade, exceto quando solicitado pelas vítimas
  • Exigir um código de conduta para quem for trabalhar na entidade ou frequentar um de seus seminários
  • Contratar um diretor de compliance ou diretor de ética e compliance para a equipe do EC

“Devemos dedicar nosso tempo e recursos não apenas para cuidar bem dos sobreviventes de abuso sexual, mas também para prover uma cultura de responsabilidade, transparência e segurança à medida que avançamos”, disse a força-tarefa, em comunicado divulgado com o relatório.

“Reconhecemos que qualquer ato de arrependimento requer obediência e sacrifício contínuos, deliberados e dedicados. Este é o chamado de nosso Salvador para nos unirmos como um corpo e segui-lo”.

Christa Brown, sobrevivente de abuso e defensora [da apuração dos casos], disse em sua apresentação à Guidepost que não tinha esperança de uma mudança significativa, mas que ainda orava para que o relatório “trouxesse uma pequena dose de justiça”.

“A Convenção Batista do Sul tem a obrigação moral de proteger a vida, os corpos e a humanidade de crianças e dos congregantes em suas igrejas afiliadas, de fornecer cuidados e validação para TODOS que foram abusados sexualmente pelo clero da denominação batista do sul”, escreveu ela, “de garantir a responsabilização de abusadores e facilitadores, e de criar sistemas que garantam que esses absurdos desumanos e inconcebíveis não persistam nas gerações futuras”.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Como perder o debate sobre o aborto, mesmo o tendo ganhado

A influência cultural cristã só se sustenta quando é apoiada pela credibilidade moral da igreja.

Christianity Today May 17, 2022
Illustration by Christianity Today / Source Images: Jordan Lye / Doug Armand / Getty

Este artigo foi adaptado da newsletter (em inglês) de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Como indicam sucessivos vazamentos da Suprema Corte dos Estados Unidos, a decisão Roe v. Wade, que legalizou o aborto por quase 50 anos nos Estados Unidos, provavelmente será derrubada em breve.

A questão de qual rumo tomará a ética pró-vida a partir desse ponto não será decidida por tribunais nem mesmo por casas legislativas, mas sim pelo estado da igreja nos Estados Unidos — e esse é um domínio bem mais complexo. De fato, para cristãos pró-vida como eu, a advertência deveria ser que é possível “ganhar” e “perder”, ao mesmo tempo, uma cultura que defenda a vida.

Ambos os lados do debate sobre o aborto têm vozes que estão alertando seus compatriotas sobre os exageros. Alguns governadores pró-vida parecem despreparados para falar em entrevistas sobre exceções para os casos de estupro e incesto ou sobre a legalidade de DIUs e outros dispositivos contraceptivos.

E muitos estão alertando os ativistas pró-escolha que eles correm o risco de perder o apoio da opinião pública por protestarem na frente das casas de juízes ou por tentarem aprovar projetos de lei extremamente abrangentes em nível estadual, que garantam o aborto legal durante os nove meses de gestação e por qualquer motivo.

Há décadas alguns de nós vêm argumentando que uma estratégia “emocional e intelectual” por si só não é suficiente para lidar com essa questão. Não se pode afirmar que bebês ainda não nascidos são nossos próximos sem procurar proteger seus direitos mais básicos por lei. E aqueles de nós que são chamados de defensores da “vida inteira” argumentaram que uma estratégia emocional e intelectual só para mulheres em crise não é suficiente.

Devemos ter um ativismo de verdade, que vá desde a luta por uma rede de proteção por parte do governo até o apoio às congregações de igrejas que estejam dispostas a cuidar dos pobres e de seus filhos. Ao fazê-lo, nos opomos à ideia que vemos frequentemente associada a questões de injustiça racial: “Basta salvar as pessoas e as questões raciais se resolverão por si mesmas”.

Mas, embora precisemos de mais do que apenas uma estratégia emocional e intelectual, também não precisamos de nada menos que isso. Se a sociedade não se importar com a humanidade de seu próximo que está em perigo — seja esse próximo uma mulher grávida ou um bebê que ainda está dentro do ventre materno — nenhum conjunto de leis se sustentará por muito tempo.

Talvez o maior perigo aqui não seja o que grupos focais ou dados de pesquisas dizem sobre o aborto, mas algo que não tem nada a ver com aborto — a credibilidade moral da igreja.

Para ver um exemplo de como é possível “ganhar” e “perder” um debate cultural ao mesmo tempo, basta olhar para um país do outro lado do Atlântico, a Irlanda.

Um livro recente do historiador Fintan O’Toole examina o colapso aparentemente repentino da influência cultural católica na terra de São Patrício, de maneiras que poderiam ser uma premonição do que poderia acontecer com a América do Norte evangélica.

O’Toole escreve, por exemplo, sobre a influência incontestada do arcebispo de Dublin, John Charles McQuaid. Sua influência era tamanha que o arcebispo poderia chamar uma rede de rádio para prestar contas por tocar uma música de Cole Porter — cuja letra (“Sempre sou fiel a você, querida, ao meu estilo”), na opinião do clérigo, representava uma “moralidade circunscrita”.

Um resenhista aborda o assunto sem rodeios, escrevendo: “A única moralidade circunscrita que McQuaid estava preparado para tolerar era o abuso de meninos e meninas por padres, e de mulheres das mais variadas origens por freiras, nas infames lavanderias Magdalene”.

A influência da igreja era inquestionável — a Irlanda divergia do restante da Europa Ocidental em questões morais relacionadas a aborto, contracepção, divórcio e assim por diante.

E, no entanto, como argumenta O’Toole, a influência da igreja teve longo alcance também em outros aspectos. Ele escreve que, quando vários casos de abuso sexual por parte do clero foram descobertos, os pais das crianças prejudicadas pareciam inclinados a pedir desculpas à igreja pelas “dificuldades” que esses padres abusivos enfrentavam.

“Esta foi a grande conquista da igreja na Irlanda”, escreve O’Toole. “A igreja mutilou com tanto sucesso a capacidade da sociedade de pensar por si mesma sobre o certo e o errado que eram os pais das crianças abusadas, e não o bispo que permitiu esse abuso, que ficavam ‘pedindo mil desculpas’.

“A igreja conseguiu criar um rebanho que, diante de uma quebra de confiança ultrajante, se preocuparia mais com o agressor do que com aqueles de quem ele abusou e poderia continuar abusando no futuro”, continua ele. “A igreja incutiu seu sistema de controle e poder tão profundamente nas mentes dos fiéis que estes mal conseguiam sentir raiva pela perpetração de crimes repugnantes contra seus próprios filhos”.

Embora alguns líderes evangélicos nos digam que termos como “gaslighting” e “abuso espiritual” sejam apenas vagos slogans terapêuticos para desconstrução, esses termos descrevem com perfeição o que O’Toole viu nos sistemas abusivos da igreja na Irlanda — e descrevem com a mesma facilidade o que muitos têm experimentado em contextos evangélicos.

O resultado final — talvez tanto para a América do Norte do novo nascimento quanto para a Irlanda católica — é uma igreja com uma força de influência cultural, se não uma autoridade moral, descomunalmente poderosa, mas que de súbito se vê sem credibilidade para impor sua ortodoxia.

E qual é o motivo disso? As pessoas não conseguiram suportar o que O’Toole chama de “a descoberta mais chocante de todas”, que foi “o reconhecimento, por parte da maioria dos fiéis, de que eles eram de fato muito mais santos do que seus pregadores, que tinham um senso mais claro de certo e errado, um senso mais honesto e leal de amor, compaixão e decência.”

A igreja na Irlanda é agora uma presença culturalmente vazia em comparação com o que já foi um dia. Hoje o aborto é legal na Irlanda, depois que um referendo popular, em 2018, revogou as leis que o impediam. Os abortos são, de fato, gratuitos e feitos através do serviço de saúde pública do país. O divórcio, a partir de 2019, também foi liberado.

Será que essas mudanças maciças e imprevisivelmente repentinas aconteceram por causa de táticas de mobilização ou mensagens que foram drasticamente aprimoradas pela “esquerda cultural” (para usar um rótulo mais comum)? Não.

Muitos pesquisadores acreditam que as mudanças culturais na Irlanda se devem, em grande parte, a uma reação contra a própria igreja. Essa reação foi motivada pelas forças culturais da secularização em guerra contra a igreja? Não. Ela aconteceu porque pessoas que antes reverenciavam a igreja perceberam que a própria igreja não acreditava no que ensinava.

O’Toole aponta para uma necessidade cultural que havia no passado, a de se obter uma anulação por um conselho eclesiástico para terminar um casamento. Ele observa que um dos membros desse conselho era um padre acusado, em bases críveis, de ser um predador sexual de menores — e que estava sob a autoridade de líderes também acusados, em bases críveis, de encobrir esse abuso.

A corrupção de qualquer instituição não decide, evidentemente, a moralidade ou imoralidade de quaisquer ações, nem a correção ou não correção de quaisquer crenças. Martinho Lutero acreditava que a igreja romana medieval estava errada sobre as indulgências e o purgatório, mas estava certa sobre a eficácia dos sacramentos e a existência de um céu e um inferno. E, no entanto, como Jesus disse: “Ai daquele por quem vier a pedra de tropeço” (Lucas 17.1, NASB).

Eu escrevi acima que o colapso cultural da igreja irlandesa foi o “resultado final” de suas hipocrisias e seus escândalos tremendamente públicos, mas isso não está bem certo. Como cristão, não acredito que o “resultado final” seja a Irlanda ter virado as costas para a igreja, ou qualquer outra mudança sociológica ou histórica.

Em vez disso, o verdadeiro resultado final é o juízo de Deus. E embora esse juízo seja algo bem menos quantificável, deveria ser muito mais aterrorizante.

O que o movimento pró-vida mais precisa não é de mais influência cultural ou política do evangelicalismo. De fato, muito do que precisa ser feito para alcançar esse tipo de influência é, em si mesmo, parte da nossa crise de credibilidade.

A influência cultural de curto prazo sem autoridade moral pode levar a alguns ganhos. Mas, a longo prazo, esses ganhos não podem ser sustentados. E o mais importante é que o que podemos perder por causa de uma igreja influente, mas carnal, é muito mais do que o que podemos ganhar — e o que perdemos pode ser muito difícil de recuperar.

O que o mundo mais precisa dos evangélicos é que sejamos um povo que realmente acredita no que diz. Quer o mundo concorde ou discorde de nós sobre o aborto, ou sobre qualquer outro assunto, eles precisam nos ver amando crianças em situação de vulnerabilidade — estejam elas dentro do útero, em lares abusivos, em lares adotivos ou nos bancos das nossas igrejas.

Eles precisam que lutemos por justiça não apenas na arena pública, mas, o que é mais importante, que mantenhamos um alto padrão de integridade e responsabilidade.

Eles precisam nos ver dando demonstrações daquilo em que dizemos crer — ou seja, que toda a vida é vivida diante da face de Deus e que nada pode ser encoberto diante do tribunal de Cristo. Eles precisam ver o testemunho de que o novo nascimento que reivindicamos é mais do que apenas uma marca.

A influência pode ser importante, se for usada da maneira certa. Mas a credibilidade é ainda mais importante. E a próxima geração, dos que já nasceram e dos que ainda não nasceram, conta conosco para recuperar essa credibilidade.

Russell Moore lidera o Public Theology Project da Christianity Today.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Books

Alerta: 26 milhões de pessoas pararam de ler a Bíblia regularmente durante a COVID-19

O declínio acentuado pode estar relacionado à queda na frequência à igreja.

Christianity Today May 16, 2022
Dylan Ferreira / Unsplash

Quando os pesquisadores que trabalharam no relatório anual Estado da Bíblia, da Sociedade Bíblica Americana, viram as estatísticas da pesquisa deste ano, acharam difícil acreditar nos resultados. Os dados dizem que cerca de 26 milhões de pessoas tinham praticamente ou completamente parado de ler a Bíblia no ano passado.

“Revisamos nossos cálculos. Verificamos novamente nossa matemática e repassamos os números de novo… e de novo”, escreveu John Plake, pesquisador-chefe da Sociedade Bíblica Americana, no relatório de 2022. “O que descobrimos foi surpreendente, desanimador e perturbador.”

Em 2021, cerca de 50% dos americanos disseram que liam a Bíblia por conta própria pelo menos de três a quatro vezes por ano. Essa porcentagem permaneceu mais ou menos estável desde 2011.

Em 2022, porém, caiu 11 pontos. Agora, apenas 39% dizem que leem a Bíblia inteira várias vezes por ano ou que a leem mais. É o maior e mais acentuado declínio já registrado.

De acordo com o 12º relatório anual Estado da Bíblia , também não foram apenas os leitores ocasionais das Escrituras que não abriram tanto suas Bíblias em 2022. Mais de 13 milhões dos leitores da Bíblia mais engajados — assim classificados pela frequência de leitura, pelos sentimentos de conexão com Deus e pelo impacto nas decisões do dia a dia — disseram ter lido menos a Palavra de Deus.

Atualmente, apenas 10% dos americanos relatam ler diariamente a Bíblia. Antes da pandemia, esse número era de aproximadamente 14%.

Plake acha que a mudança dramática mostra como a leitura da Bíblia — mesmo a leitura individual da Bíblia — está ligada à frequência à igreja. Quando os cultos regulares foram interrompidos pela pandemia e pelos decretos sanitários governamentais relativos à pandemia, isso afetou não apenas as comunidades cristãs, mas também os indivíduos cristãos em casa.

“A grande questão nessa polêmica é a COVID-19”, disse ele à CT. “Como estamos rastreando e investigando o que realmente aconteceu em relação ao envolvimento com as Escrituras em 2022, percebemos que havia alguns grandes problemas acontecendo nos Estados Unidos, no momento em que estávamos coletando os dados.”

A pesquisa do relatório Estado da Bíblia coletou dados em janeiro de 2022, quando a variante ômícron do coronavírus estava se espalhando.

A maioria das igrejas permaneceu aberta, mantendo a opção da transmissão online. Apenas cerca de 3% não se reuniram presencialmente, de acordo com a Lifeway Research. Mas a pandemia teve um impacto visível na frequência à igreja. O Pew Research Center descobriu que quase um terço dos fiéis regulares não retornaram aos templos das igrejas. Alguns optaram por participar online, mas outros desistiram completamente.

E, ao mesmo tempo, houve um declínio acentuado na leitura da Bíblia.

Don Whitney, professor de espiritualidade bíblica no Seminário Teológico Batista do Sul e autor da obra Spiritual Disciplines for the Christian Life, acha que provavelmente há uma conexão causal. Ficar isolado de outros cristãos tem um impacto “letal” na leitura individual da Bíblia, disse ele. Quando as pessoas não estão na igreja, elas não são lembradas das bênçãos das Escrituras e de sua importância para suas vidas. E elas não são encorajadas pelo que outros cristãos compartilham sobre suas respectivas leituras da Bíblia.

A igreja também é o principal lugar onde as pessoas aprendem como ler a Bíblia.

“Isso é claramente responsabilidade da igreja local”, disse Whitney. “A igreja deve ensiná-los.”

É um livro desafiador, e mesmo que as pessoas acreditem, em tese, que seria bom ler a Bíblia, isso não significa que elas saibam como compreender uma determinada passagem ou mesmo por onde começar.

“Elas nunca leram um livro em sua vida que chegasse perto do tamanho da Bíblia, e como nunca leram antes, acham que não conseguem fazê-lo agora”, disse Whitney. “Pode ser que você esteja pensando: ‘Comece a se mexer que você chega na lua.’ Eu penso que temos que mostrar a eles a viabilidade disso.”

Mesmo as pessoas que leem a Bíblia com frequência não leram muito, de acordo com uma pesquisa da Lifeway. Apenas um em cada cinco americanos leu a Bíblia inteira, enquanto um em cada quatro nunca leu mais do que alguns parágrafos.

“Para a maioria das pessoas, [a Bíblia] é quase que um livro de referência”, disse Scott McConnell, diretor executivo da Lifeway Research. “Elas consultam a Bíblia quando estão à procura de algo que precisam ou que alguém precisa. Ou abrem a Bíblia aleatoriamente e leem a página em que abriram.”

Ele também acredita que a comunidade cristã é fundamental para a leitura da Bíblia.

“Jesus Cristo nos convidou a segui-lo, e essa é uma decisão que devemos tomar individualmente. Mas ele planejou que nós o sigamos em comunidade com outros crentes”, disse ele. “Muitas pessoas [estão] sentindo falta desse reforço por parte de outras pessoas, que pode ocorrer semanalmente.”

Mas mesmo que a leitura da Bíblia tenha caído drasticamente em 2022, ainda há muito interesse contínuo na Bíblia por parte daqueles que nunca, raramente ou excepcionalmente a leem. De acordo com o relatório Estado da Bíblia, um terço daqueles que nunca leram a Bíblia dizem que estão muito ou extremamente curiosos sobre ela.

Muitos deles, diz Plake, recorrerão às Escrituras em um momento de necessidade.

“O que descobrimos é que muitas pessoas, quando chegam a um momento difícil, perguntam-se: ‘A Bíblia tem algo a me dizer? Isso pode me ajudar com o problema que estou enfrentando?’”, disse ele. “Essas pessoas começam a buscar com curiosidade e a explorar as Escrituras. Isso abre para elas um mundo totalmente novo da Palavra de Deus, e um relacionamento com Deus e com o seu povo.”

Há evidências de que isso ainda está acontecendo, mesmo em 2022. O número de pessoas baixando aplicativos da Bíblia está crescendo e novos aplicativos estão entrando no mercado, alguns deles com promessas de ajudar os usuários a desenvolverem um hábito diário de adoração. Dois podcasts bíblicos lideraram as paradas da Apple no início do ano.

E as Bíblias impressas ainda continuam sendo uma opção popular.

“As vendas de todas as nossas versões bíblicas aumentaram este ano”, disse Melinda Bouma, vice-presidente e editora de Bíblias da Zondervan. “Tivemos aumentos nas vendas de todas as edições.”

Isso inclui tudo, desde Bíblias usadas para estudo pessoal e devocionais até Bíblias para presentear e Bíblias voltadas para educação ou evangelismo. Mas o mercado de Bíblias tem desenvolvido cada vez mais produtos especificamente voltados para pessoas que não leem a Bíblia tanto quanto gostariam.

“Aprendemos que, em última análise, nosso trabalho é criar Bíblias que tornem mais fácil para as pessoas começarem a ler a Palavra de Deus”, disse Bouma. “Acreditamos que oferecer várias opções [é] o que prepara os leitores para superarem o desafio de arranjar tempo para ler a Bíblia.”

Os cristãos podem achar desanimadores os resultados do relatório Estado da Bíblia, disse Plake. Mas o declínio na leitura da Bíblia não é inevitável nem irreversível. E, caso esteja ligado à frequência à igreja e à conexão com a comunidade cristã, então, aqueles que se preocupam em conectar as pessoas com as Escrituras podem concentrar seus esforços nesse ponto.

“Não está tudo bem. Mas quando não está tudo bem, como reagimos? Essa é a questão crítica para a igreja”, disse Plake.

“Estou confiante de que seremos capazes de mudar a maré do envolvimento com as Escrituras… mas isso só acontece quando nos reunimos e dizemos que vamos servir nossas comunidades com a esperança que encontramos na Palavra de Deus.”

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Apple PodcastsDown ArrowDown ArrowDown Arrowarrow_left_altLeft ArrowLeft ArrowRight ArrowRight ArrowRight Arrowarrow_up_altUp ArrowUp ArrowAvailable at Amazoncaret-downCloseCloseEmailEmailExpandExpandExternalExternalFacebookfacebook-squareGiftGiftGooglegoogleGoogle KeephamburgerInstagraminstagram-squareLinkLinklinkedin-squareListenListenListenChristianity TodayCT Creative Studio Logologo_orgMegaphoneMenuMenupausePinterestPlayPlayPocketPodcastRSSRSSSaveSaveSaveSearchSearchsearchSpotifyStitcherTelegramTable of ContentsTable of Contentstwitter-squareWhatsAppXYouTubeYouTube