Tim Keller praticou a graça que pregava

Em um mundo cada vez mais dividido, o legado do pastor-teólogo foi trilhar o caminho mais sublime — aquele menos percorrido.

Christianity Today May 19, 2023
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Dificilmente alguém poderia ser mais qualificado do que Timothy Keller para receber o Prêmio Kuyper de Excelência em Teologia Reformada e Testemunho Público. Deveria ter sido o ápice de uma carreira notável.

Keller aplicou a teologia reformada ao coração da cultura americana, enquanto pregava na Redeemer Presbyterian Church, em Manhattan, igreja que ele mesmo plantou em 1989 com sua esposa, Kathy. Os escritos de Keller apresentaram para novas gerações de cristãos em todo o mundo a teologia da vocação de Kuyper — sua visão de Deus que reivindica “cada centímetro quadrado” da criação para sua glória.

Mas a reação de muitos alunos e ex-alunos do Seminário Teológico de Princeton (PTS) revelou o quanto a cultura americana mudou de 1989 até 2017, quando Keller deixou o púlpito. As opiniões de Keller sobre a ordenação de mulheres e a homossexualidade contrariavam as normas predominantes no PTS e outros seminários tradicionais, sem mencionar a cultura mais ampla.

Por esse padrão em evolução, o próprio Abraham Kuyper não seria elegível para seu respectivo prêmio. Sob pressão de vários grupos de ativistas, os líderes do PTS voltaram atrás em sua decisão de conceder a Keller o Prêmio Kuyper de 2017 (que, desde então, tem sido organizado pelo Calvin College). O renomado pastor parecia prestes a se tornar mais uma vítima das guerras culturais em constante expansão.

Ou não.

Keller não recebeu o prêmio, mas concordou em dar as palestras mesmo assim. O PTS não queria premiá-lo, mas ele ainda foi tolerante com a instituição. E, por todo o protesto anterior, Keller recebeu aplausos entusiasmados, quando ele subiu ao palco, em 6 de abril de 2017. O presidente do PTS, Craig Barnes, entendeu a mensagem mais uma vez, quando voltou para dispensar a multidão.

Não assisti às palestras do PTS, mas entendo o carinho surpreendente por Keller.

Como um adolescente evangélico que se converteu no final da década de 1990, eu sabia que minha fé não era bem-vinda nos salões do poder, fosse nas salas de aula de uma escola particular de elite ou nos escritórios da Câmara dos Deputados dos EUA. Nunca esperei que meu zelo por Cristo me tornasse popular, famoso nem rico. Eu só queria ser fiel a Deus e ser obediente à sua Palavra, não importa para onde ele me levasse. Eu queria compartilhar minha fé sem reservas, mesmo entre multidões hostis.

E então, em 2007, encontrei um exemplo que me mostrou como fazer isso nos ambientes mais seculares da América. Timothy Keller compartilhou o evangelho com ousadia nas linguagens de sua época, sem humilhar nem exigir nada além de fé e confiança em nosso fiel e leal Salvador.

Quando a tragédia de 11 de setembro deu lugar a uma renovada e mais virulenta eclosão de guerras culturais, Keller mais uma vez foi exemplo, tomando um caminho diferente. Como editor-associado da Christianity Today em 2007, eu cobri o primeiro evento público da The Gospel Coalition (TGC), iniciativa da qual Keller foi co-fundador. Minha leitura inicial da Visão Teológica para o Ministério da TGC, elaborada por Keller, estabelecia uma agenda que eu, como um jovem cristão que amadureceu neste controverso século 21, poderia seguir.

Keller fazia com que eu me centrasse no evangelho de Jesus, que “enche os cristãos de humildade e esperança, mansidão e ousadia, de uma maneira única”. O evangelho bíblico não é como a religião tradicional, que exige obediência para sermos aceitos, ou como o secularismo, que vimos tornar a cultura americana mais egoísta e individualista.

Keller ensinou, em louvor a seu falecido amigo Jack Miller, que o evangelho diz: “Somos mais pecadores e falhos do que jamais ousamos acreditar, mas mais amados e aceitos em Jesus do que jamais ousamos esperar”.

Firme em meio à hostilidade

Uma raridade entre pregadores, Keller conseguia envolver tanto o coração quanto a mente das pessoas. Seus livros me apresentaram a críticos sociais cuja escrita eu mal conseguia compreender. Mas, de alguma forma, os livros de Keller também me pareciam profundamente simples em sua ênfase consistente no evangelho da graça.

Você pode ver essa dinâmica em ação em seu discurso do PTS, que tratou das palestras de Lesslie Newbigin, em Warfield, em 1984 no PTS. Nessas palestras, que em 1986 se tornaram o livro Foolishness to the Greeks: The Gospel and Western Culture, Newbigin defendeu um encontro da missão com a cultura ocidental, que se tornou pós-cristã. Não conheço muitos líderes cristãos que possam reivindicar simultaneamente a herança de Abraham Kuyper, do velho e famoso teólogo de Princeton, B. B. Warfield, e do missiólogo Lesslie Newbigin.

Mas esse era o dom de Keller. Não é um clichê — ele nunca parou de aprender nem de crescer. Em meu livro, Timothy Keller: His Spiritual and Intellectual Formation, descrevo seu desenvolvimento intelectual e espiritual como os anéis concêntricos do tronco de uma árvore.

Keller manteve o núcleo do evangelho que aprendeu com os evangélicos britânicos da metade do século 20, como J. I. Packer, Martyn Lloyd-Jones e John Stott. E cresceu, a fim de incorporar escritores tão variados quanto Charles Taylor, Herman Bavinck, N. T. Wright e Alasdair MacIntyre. E, de alguma forma, ele os sintetizou com Kuyper, Warfield, Newbigin e dezenas de outros mais.

A tarefa final de Keller, o grande projeto inacabado que ele deixou para nós, foi traçar para a missão no Ocidente do século 21 um curso que tivesse pouca semelhança com o contexto de classe média em Allentown, Pensilvânia, onde ele cresceu, na década de 1950.

Keller nem mesmo acreditava que seu próprio ministério bem sucedido em Nova York ofereceria muita orientação para as gerações que o sucederiam. Ele seguiu Newbigin, que identificou o Ocidente pós-cristão como a fronteira missionária mais resistente e desafiadora de todos os tempos.

Nenhuma das tradicionais respostas cristãs à cultura seria suficiente como base para um programa missionário eficaz nessas condições contemporâneas. Se é que valiam para alguma coisa, tais respostas só poderiam alertar os cristãos sobre o que não fazer. Os cristãos não devem se retirar como os Amish, nem perseguir o controle político como a Direita Religiosa, nem assimilar a cultura como fez o protestantismo histórico.

Keller comparou isso às categorias da obra de seu amigo James Davison Hunter, To Change the World: “postura defensiva contra” (direita religiosa), “postura de relevância para” (protestantismo histórico) e “postura de manter-se puro em face de” (Amish). Hunter propôs uma “presença fiel dentro de” como uma alternativa mais promissora, que Keller adotou como sua perspectiva pessoal em seu livro Igreja Centrada.

À medida que muitos cristãos americanos começaram a mudar suas táticas sociais e políticas, em 2016, Keller ficou sob crescente crítica e escrutínio de colegas evangélicos. Mas quem acompanhou seu trabalho ao longo das décadas pôde ver que não foi ele quem mudou.

Keller não fomentou tal oposição. Qualquer um que trabalhasse com ele poderia atestar sua extrema aversão ao conflito. Em todas as nossas conversas pessoais, não me lembro de ter ouvido um único comentário crítico dele dirigido a um irmão de fé.

Sua firmeza, mesmo sob essa hostilidade crescente, deu coragem e consolo a líderes mais jovens que ficaram desiludidos com a queda de tantos de nossos antigos heróis. Até eu me preocupei em descobrir segredos pouco lisonjeiros sobre ele, quando comecei a escrever sua biografia. Em vez disso, conversar com dezenas de amigos próximos e familiares de Keller que o conheciam desde a infância apenas confirmou minha experiência pessoal com ele.

Mas me aproximar de Keller não me levou a idolatrá-lo. Simplesmente me permitiu testemunhar 2Coríntios 4.7 em ação, um vaso imperfeito carregando o mais valioso dos tesouros — nada menos do que o poder insuperável de Deus.

Ame a igreja local

Keller pode ter questionado a própria capacidade de antecipar novos desafios para o Ocidente moderno. Mas, ainda assim, ele estabeleceu uma agenda que poderia reformular radicalmente as prioridades dos evangélicos — se estes tão-somente desligassem o noticiário e ouvissem. As palestras de Keller no PTS propuseram sete passos para um encontro da missão no Ocidente pós-cristão.

Primeiro, ele pleiteava uma apologética pública assim como a da obra Cidade de Deus, de Agostinho. Para isso, os leitores podem começar com a leitura de A fé na era do ceticismo, de Keller, um de seus clássicos negligenciados. Em segundo lugar, ele propôs uma terceira via entre a preocupação dos históricos com os problemas sociais e a preocupação dos evangelicais com os problemas espirituais: A justificação deve levar à justiça. Terceiro, ele desafiou os cristãos a criticarem o secularismo de dentro de sua própria estrutura, não a partir de uma construção externa. Tomando emprestado de Daniel Strange, Keller chamou esse processo de “realização subversiva”.

Quarto, como Keller havia insistido tantas vezes antes, ele encorajou os leigos a integrar fé e trabalho. Os não cristãos devem ver a diferença que a fé faz na vida cotidiana. Quinto, ele encorajou os americanos a aprenderem com a igreja global. Keller admitiu em sua palestra no PTS, em 2017, que os evangélicos conservadores nos Estados Unidos depositam um excesso de fé em sua própria metodologia e têm dificuldades para enxergar o reino de Deus como algo separado do interesse nacional americano.

Sexto, Keller destacou a diferença entre graça e religião. Como Richard Lovelace mostrou a Keller, em sua primeira aula no Seminário Teológico Gordon-Conwell, em 1972, os encontros missionários que produzem mudanças sociais dependem da graça, não das regras da religião. Somente a graça traz transformação espiritual. Sem o Espírito de Deus, somos impotentes para efetuar mudanças duradouras em nosso mundo caído.

Keller teria se destacado como professor, se tivesse ficado no Westminster Theological Seminary, em vez de se mudar para Nova York com sua jovem família e plantar a Redeemer Church. Ele ganhava dinheiro suficiente com seus livros e suas pregações, e provavelmente nunca lhe faltariam convites para falar em público. Mas Deus chamou Keller para o ministério pastoral, e foi isso que muitas vezes o diferenciou.

Mesmo quando Keller criticava os evangélicos, ele falava e escrevia como pastor que ama seu rebanho. O único mentor de Keller, Edmund Clowney, o ensinou a amar a igreja local, com todas as suas falhas e idiossincrasias. Com a mesma facilidade com que citava acadêmicos obscuros ou colunistas do New York Times, Keller pretendia edificar a igreja local. E no explosivo crescimento inicial da Redeemer Church, e novamente nos dias sombrios após o 11 de setembro, Keller testemunhou o Espírito se movendo de maneiras inesperadas e poderosas.

Como sétimo e último passo, Keller deixou aos evangélicos americanos uma visão de comunidade cristã que rompe as categorias sociais da nossa cultura. Essas comunidades prósperas dão credibilidade ao poder transformador do evangelho.

Keller citou a obra de Larry Hurtado em Destroyer of the Gods: Early Christian Distinctiveness in the Roman World. Neste estudo contundente, Hurtado mostrou como a igreja primitiva perseguida não apenas atacava judeus e gregos. Também os atraía. Os primeiros cristãos se opuseram ao aborto e ao infanticídio adotando crianças. Eles não retaliavam, mas sim perdoavam. Eles cuidavam dos pobres e marginalizados. Sua ética sexual estrita protegia e empoderava mulheres e crianças.

O cristianismo uniu nações hostis e grupos étnicos rivais. Jesus rompeu a conexão entre religião e etnia, quando revelou um só Deus para toda tribo, língua e nação. A fidelidade a Jesus superava geografia, nacionalidade e etnia na igreja. Como resultado, os cristãos ganharam perspectiva para que pudessem criticar qualquer cultura. E aprenderam a ouvir as críticas de outros cristãos inseridos em diferentes culturas.

Em vez de manter suas palestras no PTS, Keller poderia ter desafiado a administração e cancelado tudo. Isso teria angariado maior atenção e apoio de seus colegas evangélicos conservadores. Ele provavelmente poderia ter levantado mais dinheiro para seu ministério também. Mas Keller colocava seus ensinamentos em prática. Ele havia dito aos cristãos, durante anos, que o evangelho oferece uma alternativa distinta à intolerância do secularismo e ao tribalismo da religião.

Ainda não vejo evidências generalizadas de que os evangélicos tenham seguido os conselhos de Keller ou o seu exemplo. A intolerância tem sido respondida com intolerância; a hostilidade, com mais hostilidade.

Mas suspeito que, se o Espírito Santo nos abençoar com outro despertamento, nossas igrejas se parecerão mais com o que Keller imaginou — um lugar onde a graça mais uma vez encontrará um caminho em meio aos emaranhados da religião e do secularismo.

Collin Hansen atua como vice-presidente de conteúdo e editor-chefe da The Gospel Coalition.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Sair da cama é um ato de adoração

Pois Deus prepara uma mesa no deserto para os que estão sem esperança e enfrentam aflição mental.

Christianity Today May 17, 2023
Cottonbro Studio / Pexels

Em 2Coríntios 1.8, Paulo confessa que, em certo ponto, sofreu tamanha aflição “a ponto de perdermos a esperança da própria vida”, o que é uma observação impressionante — e de um tipo que não se esperaria de um dos maiores apóstolos de Cristo.

Mas o sentimento de perder a esperança de viver é surpreendentemente comum nas Escrituras. O profeta Elias pede a Deus que tire sua vida (1Reis 19.4). Jó lamenta não ter sido “levado direto do ventre para a sepultura” (10.19). O pregador de Eclesiastes (4.2-3) e o profeta Jeremias (15.10) também chegaram a desejar nunca terem nascido.

Quer o motivo de tanta angústia seja a perseguição religiosa, uma perda pessoal, a prevalência do mal na terra ou o fardo de ser um profeta de Deus, perder a esperança de viver não é uma experiência anormal.

Vemos tendências semelhantes nos dias de hoje. De acordo com os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos, a taxa de suicídio entre homens de 15 a 24 anos aumentou 8% em 2021 e, de acordo com a Mental Health America, mais de 20% dos adultos têm sofrido com algum tipo de doença mental.

Existem várias explicações possíveis para essas taxas crescentes de aflição mental — porém, para quem está sofrendo, há uma questão muito mais imediata: por que sair da cama para suportar tamanho sofrimento?

Embora possa parecer mórbido fazer esse questionamento, precisamos ter uma resposta.

A vida é cheia de alegria e de beleza; porém, uma hora ou outra, todos nós enfrentaremos o desafio do sofrimento mental. Para alguns de nós, ele assumirá a forma de uma doença mental diagnosticada. Para outros, virá na forma dos muitos sofrimentos da vida. Prestamos um grande desserviço uns aos outros ao reconhecermos o sofrimento mental somente quando houver um diagnóstico clínico oficial.

Mas essa angústia é algo que certamente acontecerá em algum momento de nossa vida — até mesmo para os filhos de Deus, como as Escrituras nos mostram. Os cristãos não estão imunes a isso. E podemos chegar a tal ponto de perdermos a esperança de viver. Quando esse dia chegar, precisaremos de uma resposta. Precisamos saber por que vale a pena levantar da cama para enfrentar o dia que temos pela frente. Alguns de nós terão que responder a essa pergunta todos os dias.

Felizmente, vivemos em uma época em que o estigma da doença mental foi drasticamente reduzido, mas acho que a maioria de nós ainda sofre sozinha. Pode ser que seja socialmente aceitável compartilhar sobre seu estado de saúde mental nas redes sociais, mas a experiência íntima do sofrimento permanece oculta. É sempre o seu sofrimento, no seu coração e na sua mente.

E acho que muitos de nós mantemos nossa dor trancada a sete chaves, pois não queremos incomodar os outros com nossos problemas. E mesmo que você receba ajuda de um profissional da área de saúde mental (o que eu recomendo enfaticamente), esse profissional não poderá decidir sair da cama por você. Ele ou ela pode lhe dar ferramentas e medicamentos para ajudar [no tratamento], mas, no final, será sempre você, Deus e a sua escolha.

Então, por que sair da cama?

Mesmo quando sua vida lhe parece um fardo, ela é um presente de Deus — uma dádiva que ele criou e sustenta, a cada momento, em um ato infinito de amor. A virtude dessa dádiva não depende de como nos sentimos ou das experiências que enfrentamos. Nosso desafio, porém, é viver essa dádiva todos os dias, mesmo em meio ao nosso sofrimento mental.

Levantar-se da cama para enfrentar o dia e carregar o fardo mundano de viver com alguma doença mental ou de enfrentar um sofrimento atroz por problemas da vida é um ato de adoração. Ele declara a virtude da vida em desafio à Queda. É um ato espiritual de oferecer seu corpo como sacrifício vivo, santo e agradável ao Senhor (Romanos 12.1).

Algumas vezes, sua mente e o mundo mentirão para você. Eles insistirão na falta de sentido da vida. Eles insistirão que não há alegria, paz nem esperança. E, nesses momentos, podemos clamar como Elias: “Já tive o bastante, Senhor” (1Reis 19.4). Contudo, em vez de castigá-lo por sua fraqueza ou sua falta de esperança, o Senhor enviou um anjo para alimentar Elias no deserto.

Esse é o Deus a quem servimos: um Deus que prepara uma mesa no deserto para aqueles que se sentem sem esperança. E algumas vezes você se encontrará nessa mesa.

Mas quando escolhe levantar da cama a cada dia, você também prepara uma mesa para o seu próximo. Você declara, com seu ser e suas ações, que a própria vida é boa. Quer você goste ou não, sua vida é um testemunho que atesta a bondade de Deus. Assim, quando abraçamos nossa existência, testemunhamos em voz alta ao nosso próximo: “Levante-se e coma” (1Reis 19.7).

Há esperança. Deus não nos abandonou — ele não nos abandona.

Para muitos de nós, levantar da cama às vezes exige um esforço hercúleo. Mas é precisamente nestes momentos que o nosso testemunho é mais profundo. Tomamos sobre nós o fardo da aflição mental porque sabemos que, no centro de nossa existência, não está a desesperança nem o sofrimento, mas sim a graça — a graça de Deus.

Agimos com base nessa graça, mesmo quando a única coisa que nossos corações sentem é falta de esperança. E quando nossos próximos nos veem levantando da cama, para afirmar a virtude básica de viver, eles são lembrados de que a vida deles também é boa.

Infelizmente, alguns de nós passarão por períodos de sofrimento tão intenso que sair da cama parecerá algo inimaginável. Em tempos assim, devemos contar com a ajuda de outras pessoas para que nos carreguem.

Um dos atos de misericórdia mais sagrados que podemos oferecer é a disposição de erguermos uns aos outros, quando perdemos toda a esperança. Isso pode vir na forma de enviar uma mensagem de texto encorajadora para alguém ou de sentar-se com uma pessoa que está desesperada — ou até mesmo de lhe dar um abraço.

E a graça que recebemos, quando um de nossos próximos nos carrega, um dia será transfigurada na graça que estenderemos a outros, quando eles precisarem ser carregados.

Reconhecer a realidade de que todos nós enfrentaremos o sofrimento mental em algum momento de nossa existência não diminui a beleza da vida. É precisamente em nossos momentos de total falta de esperança que, ao sairmos da cama, poderemos dar um testemunho mais poderoso da beleza da vida.

Um dia — talvez hoje, talvez amanhã, mas certamente na eternidade com Deus — todo sofrimento passará. Mas, por enquanto, nosso dever é viver a verdade de que nossa existência criada foi e é um ato de amor de um Deus de graça.

Tradução por Mariana Albuquerque

Edição por Marisa Lopes

O. Alan Noble é professor associado de inglês na Oklahoma Baptist University e autor de vários livros, entre eles On Getting Out of Bed: The Burden and Gift of Living.

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Books

Como Bethel e Hillsong assumiram o controle dos setlists de adoração

“Se você já teve a sensação de que a maioria das músicas de adoração parece igual, pode ser porque essas músicas… foram escritas por uns poucos compositores.”

Tour da Hillsong United em 2022

Tour da Hillsong United em 2022

Christianity Today May 17, 2023
Alberto E. Tamargo / Sipa USA via AP Images

No domingo de Páscoa, a banda de adoração da Bethel Community Church, em Redding, na Califórnia, abriu o culto com “This is Amazing Grace” [Maravilhosa Graça], um sucesso de 2012 que continua sendo um dos cânticos de adoração mais populares da última década.

Provavelmente, milhares de outras igrejas por todo os Estados Unidos [e no mundo inteiro] também cantaram essa música — ou outra muito semelhante a ela.

Um novo estudo descobriu que a Bethel e mais umas outras poucas megaigrejas dominaram o mercado de música de adoração nos últimos anos, produzindo sucesso após sucesso e assumindo o controle das paradas de adoração.

O estudo analisou 38 músicas que fizeram parte das listas das 25 melhores da Christian Copyright Licensing International (CCLI) e da PraiseCharts — organizações que rastreiam quais músicas são tocadas nas igrejas — e descobriu que quase todas se originaram em uma de quatro megaigrejas.

Todas as músicas do estudo — que variaram de “Our God” e “God is Able” a “The Blessing” [A Bênção] — estrearam nessas paradas entre 2010 e 2020.

Das músicas do estudo, 36 tinham vínculos com um grupo formado por quatro igrejas: Bethel; Hillsong; Igreja Passion City, em Atlanta; e Elevation, na Carolina do Norte.

“Se você já teve a sensação de que a maioria das músicas de adoração parece igual” — escreveram os autores do estudo — “pode ser porque as músicas de adoração que você provavelmente ouve em muitas igrejas são escritas por uns poucos compositores de umas poucas igrejas.”

A equipe de pesquisa, composta por dois líderes de adoração e três acadêmicos que estudam música de adoração, divulgou algumas descobertas iniciais no começo de abril.

Elias Dummer, líder de adoração e artista com músicas gravadas, disse que ele e seus colegas têm observado mudanças na música de adoração durante a última década. Eles queriam saber como as canções de adoração se tornavam populares entre as igrejas, disse ele. Eles também queriam saber como a indústria que produz e comercializa canções está moldando a vida de adoração das igrejas locais.

Dummer disse que muitos líderes de adoração acreditam que as melhores canções se tornam as mais populares nas igrejas. Eles também acreditam que essas músicas se tornam populares porque funcionam — as pessoas respondem a elas, durante os cultos, e querem cantá-las repetidamente. Mas isso não é exatamente verdade. Dummer e seus colegas descobriram que muitos dos sucessos mais recentes foram lançados como singles no Spotify e outros serviços de streaming, o que ajuda a alimentar sua popularidade.

“Existem mecanismos concretos por meio dos quais as músicas se tornam mais famosas”, disse ele. “Não são apenas as músicas que o Espírito Santo abençoa que chegam ao topo das paradas.”

Para o estudo, os pesquisadores compararam canções populares de adoração escritas antes de 2010 com aquelas escritas de 2010 a 2020. Essas primeiras canções eram frequentemente associadas a indivíduos que eram líderes de adoração, como Chris Tomlin e Matt Redman, não a igrejas, e vinham de várias fontes.

Contudo, a partir de 2010, os novos cânticos de adoração mais populares começaram a vir de bandas de adoração de megaigrejas — e os artistas de adoração mais populares começaram a se afiliar a essas igrejas.

Das 38 músicas do estudo, 22 foram inicialmente lançadas pelas quatro megaigrejas citadas anteriormente, e outras 8 músicas foram lançadas por artistas afiliados a essas igrejas. Mais 6 delas foram fruto de colaboração entre artistas dessas igrejas ou covers executados por essas igrejas.

Shannan Baker, pós-doutoranda da Baylor University, disse que as equipes de louvor das megaigrejas do estudo também popularizaram canções de outros artistas, como “Way Maker”, uma canção escrita por Sinach, conhecido músico nigeriano, bem como “Great are You Lord” e “Tremble”.

“Essas igrejas maiores, mesmo que não tenham estado envolvidas na composição das canções, as tornaram conhecidas”, disse ela.

Adam Perez, professor-assistente de estudos da adoração na Universidade Belmont, em Nashville, disse que as quatro megaigrejas mais influentes vêm todas da tradição carismática das igrejas protestantes. Todas elas, segundo disse ele, têm uma espiritualidade que acredita que Deus se torna presente, de “maneira significativa e poderosa”, quando a congregação canta um estilo particular de música de adoração.

Esses cânticos se tornam uma das principais formas de se conectar com Deus — em vez de orações, sacramentos ou outros rituais. Por causa de seu sucesso no mercado, essas igrejas mudaram as práticas espirituais e, às vezes, até a teologia de congregações de muitas tradições.

“A própria indústria se torna essa mão invisível”, disse ele. “Não nomeamos a teologia do louvor e da adoração — apenas a pressupomos. E usamos esse tipo de repertório de músicas para reforçá-la.”

O estudo não analisou especificamente as letras das canções mais populares. Baker disse que está analisando essas letras para um projeto diferente e detectou algumas tendências. Por exemplo, segundo ela disse, poucas das canções mais populares falam sobre a cruz ou a salvação.

“Muito disso é: O que Deus está fazendo por mim agora? E o que Deus prometeu fazer por mim no futuro?”, disse ela.

Baker disse que, no passado, artistas ou editores lançavam um livro de cânticos ou gravações de novas músicas de adoração, e, então, as igrejas escolhiam as músicas dessas coletâneas que melhor se encaixavam em seu contexto. Agora, Baker e outros pesquisadores se perguntam se essas megaigrejas estão direcionando quais músicas são usadas na adoração.

O estudo é baseado em dados sobre canções populares de adoração coletadas por Mike Tapper, professor de religião da Southern Wesleyan University. Tapper e seu colega Marc Jolicoeur, um ministro de adoração de New Brunswick, no Canadá, trabalharam em um estudo anterior sobre a rapidez com que os cânticos de adoração de sucesso aparecem e depois desaparecem.

Jolicoeur disse que quaisquer preocupações sobre a teologia daquelas quatro megaigrejas, ou sobre os recentes problemas na Hillsong, cujo escândalo envolve a renùncia de vários pastores, não parecem afetar a demanda por sua música.

A popularidade das músicas de adoração das megaigrejas não surpreende Leah Payne, professora de história religiosa americana no Portland Seminary, em Oregon. Payne, que estuda a indústria de música cristã, disse que esta provavelmente reflete padrões de adoração mais amplos. Enquanto a maioria das igrejas nos Estados Unidos são pequenas, a maioria dos cristãos adora em grandes igrejas. A pesquisa de 2020 da Faith Communities Today descobriu que cerca de 70% dos fiéis frequentam 10% das igrejas que estão no topo da lista.

“O fato de a música de adoração das megaigrejas ter uma participação maior no mercado de adoração corresponde à prática dos fiéis”, disse Payne.

Payne duvida que escândalos em igrejas como a Hillsong venham a afetar a popularidade de suas músicas — pois as pessoas têm um relacionamento com as músicas, não com os líderes da igreja.

Payne disse que as bandas de adoração das megaigrejas mais populares têm um talento especial para criar grandes canções pop. E sabem como se conectar com o público de massa — tanto presencialmente quanto por meio de serviços de streaming.

“Elas podem encarar de igual para igual alguns dos maiores artistas da música [secular]”, disse ela.

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Tradução por Mariana Albuquerque

Edição por Marisa Lopes

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A gratidão muda nossos desejos

Os cristãos adoram um Deus incomum, que concede estranhas dádivas de estranhas maneiras.

Christianity Today May 15, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Pexels

A gratidão anda em alta nos dias de hoje.

Desde meados dos anos 2000, quando foram lançados os escritos de Robert Emmons, adepto da psicologia positiva, surgiu uma verdadeira indústria em torno do estudo da gratidão. Vários projetos de pesquisa, edições especiais de periódicos acadêmicos, livros de referência e monografias acadêmicas inteiras foram dedicados ao tópico. Existem também centenas de periódicos, aplicativos de celular e podcasts que oferecem conselhos práticos sobre como viver com gratidão.

Os cristãos devem receber tudo com alegria. Afinal, devemos ser um povo de coração grato, talvez mais grato do que todos. E se levarmos em conta a melancolia da vida pós-pandêmica, toda essa amarga polarização política que vivemos e a cáustica cultura atual do cancelamento — seria difícil imaginar um momento melhor para duplicarmos o valor da gratidão.

Para os cristãos, é claro, a gratidão deve começar e terminar pela nossa gratidão a Deus. E, no entanto, muitos entre nós não experimentam isso com o tipo de frequência, de intensidade e de duração que pareceriam apropriados, considerando-se o quão extraordinários são os benefícios de Deus.

Por que lutamos para ser gratos a Deus com consistência, mesmo quando acreditamos — ou pelo menos dizemos acreditar — que Deus é nosso benfeitor supremo e incomparável?

Um dos problemas é a nossa desatenção. Podemos saber, em um sentido abstrato, que Deus é o benfeitor supremo; porém, até começarmos a prestar atenção para onde estão indo as dádivas que Deus, provavelmente não sentiremos gratidão. Outra questão é o ressentimento. Sabemos que muitas vezes Deus é bom para nós; mas também ficamos bravos, quando Deus não nos dá o que queremos, e, então, reprimimos nossa gratidão.

Prestar mais atenção e lidar com nosso ressentimento são coisas cruciais, se quisermos crescer em nossa gratidão a Deus. Contudo, mesmo quando tentamos ficar atentos e mesmo quando não ficamos com raiva de Deus, ainda assim pode ser difícil termos uma postura de gratidão consistente.

O movimento da psicologia positiva geralmente pressupõe que sabemos de antemão pelo que somos gratos, e tudo o que falta é ficarmos atentos e nos esforçarmos. Entretanto, a gratidão a Deus não é o tipo de coisa que brota naturalmente no coração humano.

Pense nas características que realmente acionam sua resposta espontânea de gratidão. Sentimos gratidão de forma mais espontânea e intensa quando um benfeitor, de maneira imprevisível e a um grande custo pessoal, concede a nós um benefício que satisfaz algum desejo que tínhamos.

No entanto, a benevolência de Deus para conosco estende cada parte deste contexto comum de gratidão até um ponto de ruptura. Pois, muito embora possa ser inesperada a forma que se manifesta a bondade de Deus para conosco, ele não tem como não ser onibenevolente, por sua própria natureza — ao contrário de nossos amigos e cônjuges. Em outras palavras, por que deveríamos nos surpreender quando Deus nos abençoa?

E não apenas isso, mas ao contrário de nossos entes queridos humanos, Deus não é limitado por tempo, energia, dinheiro ou conhecimento — então, em que sentido realmente custa para Deus ser generoso conosco?

Também podemos criticar o fato de que Deus pode nos dar alguma dádiva, mas ainda assim manter seu direito sobre ela. Por exemplo, Deus pode curar nosso câncer amanhã e simplesmente permitir que a doença volte daqui a seis meses.

Como mostra a vida de Jó, até mesmo as bênçãos de Deus podem, a qualquer momento, transformarem-se em tragédias. “O Senhor o deu, o Senhor o levou”, como diz Jó (1.21). Isso significa que, se nossa gratidão for apenas do tipo “conte suas bênçãos”, com certeza acabaremos amaldiçoando a Deus, exatamente como a esposa de Jó queria.

Entretanto, o que mais nos confunde é o fato de que, às vezes, Deus pode nos dar o que não desejamos: “dádivas” que ninguém deseja — como provações e tribulações, as quais, segundo Paulo diz, Deus usa para fazer crescer nossa fé.

Quando consideramos a gratidão a Deus apenas no contexto de experiências estereotipadas de gratidão interpessoal, acabamos nos concentrando em suas “bênçãos cotidianas” — como uma boa saúde, um bom emprego, uma família bonita. Essa mentalidade, porém, corre o risco de transformar Deus em uma máquina cósmica de venda automática, cujo papel principal é nos dar o que queremos.

Ao contrário disso, Paulo dizia que aprendeu a estar grato e contente em “toda e qualquer circunstância” (Filipenses 4.11) — e falava de seu sofrimento por Cristo (1.29-30; 3.10) no mesmo fôlego. Isso revela uma diferença marcante entre os bens do reino de Deus e os bens deste mundo.

Paulo ainda encoraja os cristãos em Filipos a pensarem nestas qualidades como dádivas: “Finalmente, irmãos, tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas coisas.” (4.8).

Portanto, a gratidão bíblica é moldada por aquilo que Deus considera amável, verdadeiro, nobre, justo e digno de louvor. Como João Crisóstomo explica em seu sermão sobre Filipenses: “O que significa ‘tudo o que for amável’? [Significa o que for] Amável para o que é fiel, amável para Deus.”

Essas dádivas do reino nos dão tudo o que precisamos para sermos amigos de Deus para sempre — porém, elas muitas vezes são completamente diferentes dos tipos de bênçãos que o mundo valoriza. Jesus fala disso, quando louva a Deus Pai por ocultar o reino dos céus dos “sábios e cultos” e revelá-lo aos “pequeninos” (Mateus 11.25).

Frequentemente, as dádivas de Deus não são simples nem diretas. Na verdade, elas podem nos desestabilizar e revelar nossa fragilidade básica, nosso vazio, nossas carências e nossa desobediência. Por causa disso, cultivar gratidão a Deus é algo que exige empenho. Como Jen Pollock Michel argumenta em Teach Us to Want, isso faz parte de um processo mais amplo, pelo qual aprendemos a desenvolver um “desejo santo” alinhado com Cristo.

Em um sermão de Natal, o teólogo Samuel Wells, certa vez, pregou que Deus era o materialista por excelência, porque ele reverte nossos desejos mesquinhos por brinquedos e bugigangas em um anseio santo pelo Deus conosco no Jesus encarnado, material.

Quando Paulo diz “Tudo o que fizerem, […] façam-no em nome do Senhor Jesus, dando por meio dele graças a Deus Pai” (Colossenses 3.17), ele está fundamentando a gratidão para além da dádiva da criação, e na dádiva da nossa nova vida em Jesus Cristo. Como observa Michael Gorman, Paulo ensinou que toda a vida cristã deve ser renovada “à imagem de Cristo”, e aí se inclui nossa gratidão pelas dádivas não convencionais de Deus.

Somente uma vida transformada — uma vida que Paulo descreve como estar “em Cristo” (2Coríntios 5.17) — pode criar em nós um novo conjunto de desejos eternos e uma disposição diferente para a gratidão.

Portanto, isso não significa que os cristãos devam ser mais gratos do que a média das pessoas, mas sim que seguir a Jesus nos permite sermos gratos pelos dádivas inesperadas de Deus — as quais podem surpreender, entristecer e confundir a gratidão de um mundo incrédulo e até nos deixar perplexos em nossa carne.

Assim, a gratidão cristã é a marca de uma nova vida, capacitada pelo Espírito à medida que formos treinados e transformados — às vezes de maneira dolorosa — em pessoas com estranhos desejos e que conseguem receber e se deleitar com estranhas dádivas concedidas de estranhas maneiras por um Deus incomum.

Esta é uma maneira totalmente nova de estar no mundo. Como diz Barth, “a gratidão deve ser entendida não apenas como uma qualidade e uma atividade, mas como o próprio ser e a própria essência” do cristão.

Em sua essência, a gratidão cristã é, antes de qualquer coisa, aprendermos a receber de Deus a nós mesmos. E o próprio cristianismo é um treinamento continuado sobre como ser grato por quem somos em nosso âmago: criaturas carentes que vivem pela graça. Isto é uma dádiva — embora seja uma dádiva difícil de se receber com gratidão.

Quando aprendemos a receber nossas vidas como dádivas de Deus, começamos a ver com mais clareza o que Deus considera louvável. Isso, por sua vez, nos permite valorizar uma nova forma de ser gratos, bem como identificar e apreciar o que é excelente e louvável sob uma luz inteiramente nova.

Tradução por Mariana Albuquerque

Edição por Marisa Lopes

Kent Dunnington é professor de filosofia na Biola University, em La Mirada, Califórnia.

Benjamin Wayman é titular da cátedra James F. e Leona N. Andrews em unidade cristã, na Greenville University, em Greenville, Illinois.

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Books

O que a solteirice revela sobre o mundo vindouro

Cristãos solteiros podem viver como sinais da nova criação.

Christianity Today May 10, 2023
Illustration by Abigail Erickson / Source Images: Getty, Pexels, Unsplash

C om as taxas de pessoas que permanecem solteiras a longo prazo em ascensão, nas sociedades ocidentais, os evangélicos estão cada vez mais refletindo sobre os desafios que isso representa para a igreja. Na obra The Meaning of Singleness: Retrieving an Eschatological Vision for the Contemporary Church [O significado da solteirice: resgatando uma visão escatológica para a igreja contemporânea], Danielle Treweek reformula a discussão em torno da imagem bíblica sobre a criação que virá. O autor e teólogo Barry Danylak conversou com Treweek — diretora fundadora do Ministério Single Minded e diaconisa da igreja anglicana em Sydney — sobre o cultivo de uma compreensão teológica robusta da solteirice.

Quais são alguns dos desafios que você vê para a definição de solteirice?

A solteirice é um conceito moderno que traz consigo muita bagagem. Pode significar coisas diferentes em diferentes contextos. Não abrimos 1Coríntios 7, por exemplo, e vemos Paulo falando especificamente sobre solteirice, mas sim sobre uma série de conceitos correlacionados, como virgindade e compromisso. Em outras partes das Escrituras, vemos categorias como a viuvez, e exemplos como os eunucos, em Mateus (19.12). Portanto, precisamos ser flexíveis na maneira como falamos sobre a solteirice, reconhecendo alguns dos pressupostos que estamos trazendo para esse conceito.

Qual é o principal problema com a forma como os evangélicos de hoje entendem a solteirice?

O principal problema é que, via de regra, temos uma compreensão teológica empobrecida da solteirice. E vejo duas tendências problemáticas que nos levaram a essa situação.

A primeira surge do fato de sermos muito bons em olhar para trás, para Gênesis, e desenvolver uma teologia do casamento a partir do relato bíblico da criação. Como cristãos, no entanto, também aguardamos o que está por vir, a nova criação que as Escrituras prometem. Portanto, temos que descobrir o que significa viver à luz dessa realidade para a qual nos dirigimos, e que as Escrituras nos dizem que já foi inaugurada.

A segunda tendência problemática é deixar de perceber o quanto somos produtos do mundo em que vivemos. Paulo adverte, em Romanos 12, contra a atitude de nos conformarmos com os padrões deste mundo (v. 2). Quando, porém, tratamos de questões como casamento, romance, sexo, amizade e comunidade, estamos sendo discipulados pelo mundo sem nem ao menos perceber.

Você aponta que muitos escritores evangélicos bem conhecidos veem a santificação pessoal como um dos principais propósitos do casamento. Por que você considera essa perspectiva como algo equivocado?

O casamento certamente pode ser útil para a santificação. Mas não devemos presumir que se casar é a melhor maneira de se tornar como Jesus. O Espírito Santo trabalha dentro de nós no contexto de todos os nossos relacionamentos, seja no relacionamento conjugal ou não. Eu por certo posso ver como o Espírito usa os laços do casamento para desafiar nossa pecaminosidade. Mas você não precisa de um cônjuge para ter sua pecaminosidade desafiada, seja pelo Espírito, seja pelas pessoas ao seu redor.

De que maneiras a solteirice é teologicamente significativa?

A abordagem típica para entender o significado teológico da solteirice depende de sua instrumentalidade. Em outras palavras, é uma questão do que você está fazendo com sua solteirice.

Obviamente, essa categoria é de fato importante. Mas estou tentando explorar se existe algo teologicamente significativo no status de solteiro por si só. Quando olhamos para a solteirice através das lentes da escatologia, conseguimos enxergar como ela tem implicações para questões como sexo, romance, companheirismo, comunidade, paternidade/maternidade e família. O que continua martelando em minha cabeça é o quanto uma teologia fiel da solteirice é algo de importância essencial para a nossa eclesiologia — para entendermos quem somos como igreja.

Você argumenta que os cristãos solteiros e celibatários podem informar uma compreensão mais expandida e biblicamente autêntica da sexualidade. Como isso pode acontecer?

Muitas vezes, a igreja vê o celibato como opressivo, em vez de expansivo. Há duas razões pelas quais considero que isso é errado.

A primeira é que pessoas solteiras e comprometidas em honrar a Deus com seu corpo podem ser um testemunho para os outros de que não são escravas de seus desejos sexuais. Em um mundo que celebra o desejo sexual como a totalidade de quem a pessoa é, solteiros celibatários podem mostrar que temos vidas ricas e plenas de realização.

A segunda razão leva as coisas ainda mais na direção de uma perspectiva escatológica. Como pessoas ressuscitadas na nova criação de Deus, seremos seres humanos em nosso estado mais perfeito. Manteremos nossa natureza sexual masculina ou feminina, mas, como vemos em Mateus 22, não expressaremos essa natureza por meio do sexo no casamento (v. 30). Se, na eternidade, eu serei um ser humano em meu estado mais perfeito, e esse meu estado de existência será celibatário, isso sugere que a sexualidade humana é orientada de forma mais ampla para o relacionamento. Os cristãos solteiros lembram ao mundo que ser sexual é mais do que apenas fazer sexo.

Como efetivamente inspiramos os solteiros cristãos de hoje — e, nesse aspecto, a igreja como um todo — a ver a solteirice como algo teologicamente significativo?

Em meu ministério pastoral, a grande maioria dos solteiros que conheci deseja se casar. Então, como eu lido com isso teologicamente e pastoralmente?

Acho que a resposta é ajudá-los a verem sua solteirice da maneira como Deus a vê. Nosso mundo pode enviar a mensagem de que sua solteirice é tão boa quanto você se sentir a respeito dela. Se você se sentir feliz e contente em ser solteiro, então, sua solteirice é boa. Mas se você se sentir infeliz e lutar com isso, então, sua solteirice é um tanto trágica. Meu desejo é pensar além dessa experiência pessoal de ser solteiro, para ver o significado que Deus incutiu na solteirice.

Para a igreja como um todo, a resposta é praticamente a mesma. Estejamos dispostos a voltar para as Escrituras e a ver como novos olhos os propósitos de Deus, tanto para o casamento quanto para a solteirice. Evidentemente, isso sempre parece mera desculpa ou subterfúgio, porque as pessoas querem mesmo é perguntar como a igreja deve lidar com a solteirice em um nível prático. E é importante lidar com isso. Contudo, sem levar em conta a teologia que está por trás, estamos apenas colocando um Band-Aid sobre uma ferida aberta.

Como sua própria experiência com a solteirice influenciou seu trabalho?

Interessei-me por esse assunto porque eu era solteira e permaneci assim, como poucos de meus amigos. Isso me levou a pensar teologicamente sobre os propósitos de Deus para esta parte da minha vida. Mas o que realmente consolidou isso para mim foi trabalhar no ministério e ser exposta a muitas mulheres solteiras que lutavam com questões semelhantes — não apenas mulheres que nunca se casaram, mas também viúvas e divorciadas.

E, mesmo que esta seja uma forma mais pragmática de ver as coisas, ainda é verdade: não acredito que eu pudesse ter feito toda essa pesquisa e reflexão, se fosse casada e tivesse filhos nestes últimos oito anos. Ser uma mulher solteira envolvida no ministério me permitiu investir neste projeto, que é uma grande dádiva para mim e, espero, para outras pessoas também.

Que conselho você daria a crentes que lutam com a solteirice?

Primeiro, leve essa luta a sério. Você não precisa sentir vergonha por estar lutando com isso. Existem sofrimentos reais envolvidos em todos os tipos de circunstâncias de vida, e a solteirice está bem incluída nisso.

Mas não se contente em permanecer nessa luta. Em espírito de oração, peça a Deus e a outros crentes que ajudem você a buscar crescimento e contentamento cristãos. E peça que você possa encontrar consolo e paz baseados na soberania de Deus sobre sua vida. Mesmo em meio à dor, podemos nos mover em direção à alegria que o evangelho nos concede, especialmente quando olhamos para a nova criação que nos espera.

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Cuidado com a nossa Torre de Babel!

A história de Gênesis 11 é sobre orgulho, mas não da maneira que pensamos.

Christianity Today May 10, 2023
Illustration by Jared Boggess

Nesta série intitulada Close Reading [Leitura Aprofundada], estudiosos da Bíblia refletem, a partir de sua área de especialização, sobre uma passagem que tenha sido formativa em seu próprio discipulado e que continua a falar com eles hoje.

Enquanto crescia na igreja, o relato da Torre de Babel (Gênesis 11.1-9) sempre aguçou a minha curiosidade. Uma ilustração [do relato] feita por um artista estava entre as poucas imagens que havia em minha Bíblia, e passei muitos sermões refletindo sobre ela. A imagem, colorida e vibrante, retratava uma cena da industriosidade humana repleta de elementos e de movimento — havia fumaça saindo de incontáveis fornos, bois e homens carregando pesadas cargas de tijolos, e trabalhadores que usavam andaimes e cordas para construírem uma estrutura de muitos andares.

Anos depois, decidi fazer minha tese de doutorado sobre essa passagem, a qual prosperou na imaginação popular, mas era mal trabalhada nos estudos acadêmicos. É uma história incrível — crucial, embora muitas vezes mal compreendida. É uma daquelas histórias que pressupõe da parte do leitor um conhecimento cultural significativo, sem o qual acabamos intuitivamente lhe impondo nossas suposições modernas, que podem levar a interpretações distorcidas.

Hoje, e durante séculos no passado, a interpretação comum dessa passagem tem sido a de que os construtores [da torre de Babel] estavam tentando invadir o céu, algo não muito diferente dos Titãs da mitologia grega, havendo um grau variável de intenções, a depender da imaginação do intérprete. Eles foram julgados culpados do grave pecado do orgulho e, segundo algumas linhas de leitura, de se recusarem a encher a terra, desobedecendo assim ao mandamento de Gênesis 1.28. A lição inevitável exorta contra os perigos da presunção do orgulho, da insolência da ambição e da loucura da desobediência.

Os seres humanos certamente são culpados de tais comportamentos rebeldes; nesta interpretação, porém, a torre é reduzida a uma metáfora de rebelião e de superação de limites. E eu sentia que algo importante estava faltando.

Acabei chegando à conclusão de que tal tipo de leitura, apesar de sua longa subsistência nas interpretações cristã e judaica, não se sustenta quando submetida a um exame minucioso, entre o qual incluímos o recente conhecimento obtido a partir de antigos textos da Mesopotâmia. Esta história fala sobre algo mais.

As duas potenciais transgressões dos construtores — o orgulho e a desobediência — começam a parecer explicações duvidosas, quando examinadas de perto. Gênesis 11.4 diz: “Vamos construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus. Assim nosso nome será famoso e não seremos espalhados pela face da terra”.

As pessoas tornam o próprio “nome […] famoso” por meio de qualquer coisa que faça com que sejam lembradas pelas gerações futuras. Tornar o próprio “nome […] famoso” é uma expressão que fala de honra e de uma reputação admirável. No Antigo Testamento, essa expressão é usada com mais frequência para se referir a Deus tornando o próprio nome famoso — um nome grandioso que aumenta sua reputação (veja Isaías 63.14; Neemias 9.10). Em umas poucas ocasiões, ela se refere a Deus tornando famoso o nome de alguém (como o de Abrão, em Gênesis 12.2, ou o de Davi, em 2Samuel 7.9 e 1Crônicas 17.8). É sempre algo positivo.

Gênesis 11 é a única vez nas Escrituras em que as pessoas estão tornando o próprio nome famoso, mas não significa que isso seja inerentemente um ato ofensivo. Quando acrescentamos informações que se encontram em outros textos do antigo Oriente Próximo (como A Epopeia de Gilgamesh e A Epopeia de Etana), aprendemos que querer tornar famoso o próprio nome é um esforço honrado, que se caracterizava por boas ações e grandes realizações. A maneira mais comum de as pessoas fazerem isso, no mundo antigo, era tendo filhos; seus descendentes seriam os que se lembrariam da pessoa, quando esta morresse. Não temos evidências que justifiquem a ideia de que tornar “famoso […] o nome” de alguém fosse algo inerentemente ruim no mundo antigo — ainda que na cultura de hoje possamos estar inclinados a pensar nisso como algo egoísta. No mundo antigo, isso era como ter um legado.

Quando voltamos nossa atenção para o desejo deles de não serem espalhados pela face da terra, novamente encontramos poucas evidências de que isso fosse uma transgressão. Gênesis 1.28 é explicitamente uma bênção, e não uma ordem para que se espalhassem, a qual os construtores mais tarde desobedecem. Uma bênção não pode ser desobedecida porque não acarreta obrigação nenhuma. É verdade que, gramaticalmente, o versículo está no imperativo, porém, no hebraico, os imperativos têm muitas funções além do comando. Nesse versículo de Gênesis especificamente, encher a terra é uma sentença de resultado que indica permissão ilimitada para frutificarem e se multiplicarem.

É verdade que, em Gênesis 11, as pessoas não querem se espalhar — mas isso não é o mesmo que não querer encher a terra. Eles são uma família, e famílias resistem à dispersão. Vemos a mesma relutância na história de Abrão e Ló (Gênesis 13). Em Gênesis 11, a relutância em se espalhar é o que os motiva a buscarem uma solução, que se encontra, logicamente, na urbanização.

Se querer deixar um legado (tornar o próprio “nome […] famoso”) e ter o desejo de permanecer em comunidade (a relutância em se espalhar) são coisas normais e inquestionáveis, resta-nos, então, começar do zero para descobrir do que trata essa passagem. Se limitarmos o relato da Torre de Babel a uma lição de moral sobre orgulho ou desobediência, acabaremos perdendo o entendimento mais profundo que este relato nos oferece sobre Deus e nosso relacionamento com ele. Começar por uma investigação do mundo antigo pode nos fornecer uma nova direção.

Quando comecei minha pesquisa, surgiram dois elementos importantes para iluminar esta passagem da Escritura e revitalizar sua interpretação. O primeiro elemento é que quase todos os intérpretes, em primeiro lugar, hoje reconhecem que torres, como essa que é descrita no relato em questão, são chamadas zigurates, e, em segundo lugar, hoje sabem por que foram construídas — o que é mais importante.

Os zigurates não eram construídos para que as pessoas subissem ao céu, mas sim para que um deus descesse do céu.

Na cultura do antigo Oriente Próximo, os zigurates eram uma parte importante do complexo de um templo. Eles eram construídos próximos aos templos e eram considerados espaços sagrados, reservados aos deuses. Os zigurates não eram construídos para que as pessoas subissem ao céu, mas sim para que um deus descesse do céu. A ideia era que a torre fornecesse um compartimento pelo qual os deuses pudessem fazer sua grande entrada no templo onde seriam adorados.

Uma vez de posse dessa informação, não podemos deixar de notar que, bem no centro do relato de Gênesis 11, Deus desceu (v. 5) — mas não ficou nada satisfeito. O povo não pretendia tornar o próprio nome famoso por orgulho; eles provavelmente acreditavam que estavam tornando o próprio nome famoso ao fornecer um meio para que Deus descesse e fosse adorado. Então, qual é o problema nessa passagem? Por que Deus está descontente? E ainda mais, uma vez que não estamos construindo zigurates em nossos dias, o que essa passagem significaria para nós hoje?

Aqui precisamos levar em conta o outro elemento que aprendemos sobre os zigurates. Acreditava-se que um deus descia [do céu] e entrava no templo para receber adoração e, no antigo Oriente Próximo, a adoração consistia em rituais destinados a atender às supostas necessidades dos deuses. Os babilônios, entre outros povos, acreditavam que os deuses tinham necessidades — como comida, moradia, roupas e assim por diante — e que os deuses haviam criado as pessoas para suprirem essas necessidades. Isso era tudo com o que os deuses se importavam.

A prática religiosa, nesse sistema, não era definida pela fé ou pela doutrina, pela ética ou pela teologia; era essencialmente definida como cuidado e alimentação dos deuses. O resultado dessa mentalidade era uma codependência em um relacionamento simbiótico entre deuses e seres humanos, que era inteiramente transacional: as pessoas cuidariam dos deuses e os deuses protegeriam as pessoas e lhes trariam prosperidade. O sucesso era obtido quando se encontrava o favor de um deus, e o favor era obtido quando se supria as necessidades desse deus — na verdade, todos os seus caprichos. Divindades paparicadas faziam cidades prosperarem.

Isso nos ajuda a ver por que as pessoas em Gênesis 11 acreditavam que construir a cidade com sua torre tornaria o nome delas famoso. Isso faria com que um deus ficasse em dívida com elas, e então, prosperariam e sua fama se espalharia — elas seriam pessoas agraciadas por um deus.

O problema não era que elas queriam tornar o próprio nome famoso. O problema era que elas estavam explorando o relacionamento com Deus para tornarem o próprio nome famoso. E isso sim é algo com o qual podemos nos identificar. A construção de espaços sagrados deve ser motivada pelo desejo de engrandecer o nome de Deus, e não pelo desejo de engrandecer o nosso próprio nome. Quantos de nossos grandes projetos na igreja — nossos programas, nossos projetos de construção, nossos podcasts de longo alcance, nossas grandes multidões de pessoas — estão focados em nossa própria glória, em nosso próprio sucesso, e não nos de Deus?

Em minha ânsia de ser um intérprete atento e fiel, aprendi que a melhor forma de ler as narrativas da Bíblia não é lê-las isoladamente. Os narradores interligam essas narrativas, à medida que seguem seus propósitos literários e teológicos. O relato da Torre de Babel conclui uma sequência de narrativas em Gênesis 1 a 11, e também fornece a ligação para tipos muito diferentes de narrativas que se seguem, no restante do livro.

Gênesis 1 estabelece a presença de Deus na Criação, ponto que é esclarecido em Êxodo 20.8-11. Quando Deus descansou no sétimo dia, ele não cessou, não parou (shabbat, em hebraico) meramente; ao contrário, ele se assentou em seu trono (em seu “lugar de descanso”; veja Salmos 132.14). O jardim do Éden descreve pessoas vivendo em um espaço sagrado. Lamentamos com frequência que o acesso delas à presença de Deus foi interrompido, em Gênesis 3.

O que podemos ter deixado de perceber é que, no capítulo 11, os construtores da torre estão promovendo uma iniciativa que visa restabelecer a presença de Deus entre eles. Somente depois de muitos anos de estudo fiz essa conexão de que, depois que Deus rejeita a iniciativa equivocada e egoísta deles de concretizar sua presença, o capítulo seguinte dá início ao que se destaca como a contrainiciativa de Deus: a aliança oferecida a Abrão.

É digno de nota que, para o mundo antigo, esta aliança não tinha como premissa a ideia de que Deus tenha necessidades. Deus oferece a Abrão os mesmos tipos de benefícios que os deuses ofereciam no mundo antigo — ele se oferece para tornar grande o nome de Abrão. Mas há uma diferença incrível: esta oferta não é baseada em um transacionalismo codependente. A aliança oferece uma maneira diferente de ser no relacionamento com Deus.

Embora as narrativas em Gênesis 1—11 sejam frequentemente vistas como “histórias de trangressão”, uma leitura alternativa, sugerida pelo teólogo J. Harvey Walton, é que elas representam estratégias inadequadas, por intermédio das quais as pessoas tentam restabelecer a ordem para si mesmas, por meios comumente usados no mundo antigo. Por exemplo, ser como Deus (Gênesis 3), construir uma família (Gênesis 2), desenvolver a civilização (Gênesis 4), edificar cidades e explorar o favor de Deus, tudo isso se mostra inadequado para restabelecer uma ordem duradoura. Deus criou os seres humanos à sua imagem para que trabalhem ao lado dele nesse esforço de restabelecer sua ordem. No entanto, os seres humanos decidiram que prefeririam ser construtores independentes para restabelecer a ordem para si mesmos.

Gênesis 1–11 acompanha modelos inadequados para encontrar essa ordem, assim como Eclesiastes acompanha modelos inadequados para resolver a questão da falta de sentido. Em contraste com essas tentativas humanas de encontrar ordem, Gênesis oferece a aliança, então, como meio de restabelecer a ordem.

Essa compreensão forma um forte vínculo entre Gênesis 1–11 e Gênesis 12–50, no sentido de que as tentativas inadequadas da humanidade servem como prelúdio para o único caminho bem-sucedido: um relacionamento com Deus, por meio de uma aliança que não se baseia na necessidade mútua, que eventualmente restabelece a presença de Deus (no tabernáculo e no templo), e é o meio de Deus para trazer ordem por intermédio de seu povo.

Se há alguma trasngressão em Gênesis 11, ela se encontra nas motivações egoístas das pessoas, por pensarem que poderiam lucrar e construir sua reputação paparicando a Deus. Mas, talvez ainda mais importante seja a ideia de que, mais uma vez, as tentativas das pessoas de gerarem uma ordem para si mesmas, por meio de seus próprios esforços e em seu próprio benefício, estão fadadas ao fracasso. Deus oferece o único caminho para a ordem, e este caminho é por meio de um relacionamento adequado com ele. Ele é a fonte e o centro da ordem. Assim sempre foi, e assim sempre será.

À luz dessa exegese do texto bíblico e da compreensão de seu antigo contexto no Oriente Próximo, o que devemos pensar sobre o relato da Torre de Babel? Como nosso entendimento pode se propagar em nossa vida, como seguidores de Jesus?

Os planos e os propósitos de Deus sempre foram estar em relacionamento com as pessoas que ele criou e habitar entre elas.

Certamente, esta passagem nos leva a perceber que, sempre que nossa abordagem a Deus cheirar a transacionalismo, tal pensamento não merece espaço na compreensão que temos de nosso relacionamento com ele. Um potencial ganho, nesta vida ou na próxima, nunca deve ser o principal motivador de nossa fé — Deus é digno, e isso, por si só, deve ser suficiente para nos comprometermos com ele em todos os aspectos da vida. Sou diariamente desafiado pela realidade de que Deus não precisa dos meus dons, da minha atenção, das minhas orações, da minha adoração nem do meu companheirismo. Sou eu que estou em dívida com ele, e não ele comigo.

Além disso, devemos reconhecer que, por mais que a civilização e a cultura possam ser instrumentos de ordem, elas também podem trazer perturbação, desordem. Não podemos confiar nelas para gerar uma ordem última para nossas vidas ou nosso mundo. Encontramos descanso (ordem) tomando sobre nós o jugo de Cristo, e não tendo todas as nossas inseguranças e tribulações resolvidas a nosso contento.

Esta passagem — e Gênesis por inteiro — também nos relembra que Deus planejou, desde o início, estar conosco. Precisamos ter uma “teologia do Emanuel” — “Deus conosco” reflete um desejo de Deus e um privilégio nosso. O Emanuel não é apenas uma história de Natal. Os planos e os propósitos de Deus sempre foram ter um relacionamento com as pessoas que ele criou e habitar entre elas. Isso foi algo que teve início no jardim do Éden e se reflete no propósito do templo. Também é algo que irrompeu em uma nova realidade na encarnação e alcançou alturas inimagináveis no Pentecostes, quando Babel foi revertido, e as pessoas se espalharam por todo o mundo, não em consequência de um projeto fracassado, mas com a presença de Deus dentro delas mesmas.

Ansiamos pelo culminar desses planos e desses propósitos na nova criação: “Agora o tabernáculo de Deus está com os homens, com os quais ele viverá. Eles serão os seus povos; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus.”(Apocalipse 21.3).

O relato da Torre de Babel desempenha em Gênesis o papel de nos ajudar a entender o que significa ser um seguidor de Deus — ser alguém que optou por ser um participante nos planos e propósitos de Deus. Não é surpresa o fato de ser isso que Jesus pediu a seus seguidores: que desistissem de seus desejos e caminhos pessoais para segui-lo. Que o nome dele seja santificado, não o nosso; que a vontade dele seja feita, não a nossa; que venha o reino dele, não o nosso.

Sou pessoalmente desafiado a ser um verdadeiro seguidor de Jesus ao adotar essas perspectivas sobre a natureza da minha fé e a razão do meu compromisso com Cristo. A história da Bíblia, que me fascinou quando eu era um garotinho, continua falando comigo muitas décadas depois, embora hoje eu entenda sua mensagem em termos muito diferentes. Sou pessoalmente desafiado por ela a viver como um verdadeiro seguidor de Jesus ao me lembrar, diariamente, que minha fé não é algo sobre mim — é algo sobre o Deus que procuro servir.

John Walton é professor de Antigo Testamento no Wheaton College e autor de vários livros, entre eles, Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament e Wisdom for Faithful Reading: Principles and Practices for Old Testament Interpretation , no prelo.

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A tentação evangélica de provar que estamos certos

Os cristãos devem dizer não à ânsia de querer impressionar, que vem da insegurança.

Christianity Today April 29, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Getty

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Para receber a newsletter em inglês, inscreva-se aqui.

Por muito tempo, temi que meus colegas cristãos evangélicos americanos estivessem cedendo à terceira tentação de Cristo: sacrificar a integridade pela conquista do poder. No entanto, no ano passado, comecei a me perguntar se não estamos caindo em uma tentação totalmente diferente — aquela que menos entendemos e à qual menos aprendemos a resistir.

Os Evangelhos nos dizem que, logo após o batismo de Jesus no Jordão, o Espírito o dirigiu ao deserto, onde o Diabo colocou diante dele três tentações (Mateus 4.1-11; Lucas 4.1-13). Uma tentação foi transformar pedras em pão — para que Jesus, sob a direção do Diabo, satisfizesse seus próprios apetites.

Esta foi, evidentemente, a tentação primordial da humanidade (Gênesis 3.1-3). Ela é fácil de entender, pois todos nós lutamos com nossos apetites — apetites por comida, por sexo, por bebida — de maneiras que podem torná-los extremados.

A outra tentação era que o Diabo daria a Jesus “todos os reinos do mundo e o seu esplendor” (Mateus 4.8), desde que Jesus se tornasse um satanista momentâneo. (Alerta de spoiler: Jesus rejeitou esta oferta.)

Novamente, a maioria de nós é capaz de entender isso, pois quase todo mundo é tentado em algum momento a trocar princípios por poder. Para uns poucos, esse poder é uma posição na Casa Branca; porém, para muitos de nós, é simplesmente poder dar a última palavra no jantar da família, em casa, ou conseguir sentar no melhor lugar da mesa de reuniões, no trabalho.

Essa tentação ainda está em ação e transcende quase todos os limites tribais. Formas de marxismo cristianizado muitas vezes cedem a essa tentação, substituindo um evangelho de arrependimento e fé por meramente subjugar estruturas sociais opressoras. O nacionalismo cristão faz a mesma coisa — substituindo a fé do novo nascimento pelo cristianismo cultural do tipo sangue e solo.

Mesmo assim, passei a acreditar que a maior tentação que enfrentamos agora pode ser aquela que parece estar mais distante de nós.

É a segunda tentação no relato de Mateus e a última no de Lucas. O Diabo levou Jesus a Jerusalém “e o fez ficar no ponto mais alto do templo. ‘Se tu és o Filho de Deus’, disse ele, ‘atira-te daqui’” (Lucas 4.9). Satanás tinha até um versículo bíblico para acompanhar essa tentação — uma passagem de Salmos 91: “Porque a seus anjos ele dará ordens a seu respeito, para que o protejam em todos os seus caminhos; com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra” (Lucas 4.10-11; Salmos 91.11-12).

Alguns de vocês que estão lendo isso realmente resistiram à tentação de se atirar de lugares altos. Muitos outros entre vocês nunca chegaram nem mesmo a cogitar isso. No entanto, em ambos os casos, vocês provavelmente nunca foram tentados a fazê-lo pelo mesmo motivo que Jesus foi: para forçar um sinal visível de que ele era, de fato, “o Filho de Deus”.

Como sempre, Jesus reconheceu o que estava acontecendo, é claro. E, em resposta, ele citou uma passagem de Deuteronômio 6.16, que diz na íntegra: “Não ponham à prova o Senhor, o seu Deus, como fizeram em Massá.” A que este versículo se refere?

O lugar se chamava “Massá e Meribá”, segundo a Bíblia nos diz, “porque ali os israelitas reclamaram e puseram o Senhor à prova, dizendo: ‘O Senhor está entre nós, ou não?’” (Êxodo 17.7).

O povo de Israel — o mesmo que Deus havia libertado do Egito com as águas do mar que se abriram e com uma coluna de fogo — começou a debater com uma seca, pois se perguntava se Deus era realmente quem dizia ser: um Deus que ia adiante e atrás deles. Eles perguntaram a Moisés: “Por que você nos tirou do Egito? Foi para matar de sede a nós, aos nossos filhos e aos nossos rebanhos” (v. 3). Eles perderam a confiança e queriam um sinal.

Nos dias de Jesus, o templo era mais do que apenas um prédio alto. Era o lugar em que Deus havia prometido habitar. O Ungido fazer a pergunta “O Senhor está entre nós, ou não?”, no templo, teria sido de fato uma pergunta e tanto.

Se Jesus tivesse se atirado do templo, os anjos — talvez até mesmo doze legiões deles — provavelmente o teriam resgatado. Jesus teria verificado, de forma tangível, em sua humanidade, o que Deus lhe disse nas águas do Jordão: “Tu és o meu Filho amado; em ti me agrado” (Lucas 3.22).

Ainda mais do que isso, as multidões lá embaixo teriam visto isso acontecer. Isso teria vindicado publicamente Jesus perante o próprio povo da cidade na qual, mais tarde, ele seria crucificado. Ninguém ousaria sugerir que ele estava possuído por demônios, que era um lunático, um insurgente enrustido ou um colaborador secreto de Roma. Ele teria provado ser o Ungido de Deus.

Jesus teria forçado um sinal. E Jesus chamou isso de pecado.

Em 2010, o cientista político James Davison Hunter identificou que a “característica distintiva” da psicologia política atual é o que Friedrich Nietzsche chamou de “ressentimento”. Embora inclua ressentimento, escreveu Hunter, vai além disso, de modo a envolver “uma combinação de raiva, inveja, ódio, fúria e vingança como motivação da ação política”.

O tempo provou que Hunter estava certo. Muito do que se passa por “ação política” ou mesmo apenas por “engajamento cultural” tem a ver, na verdade, com um sentimento de lesão — mais especificamente, um sentimento de humilhação: “Você pensa que é melhor do que eu, e vou provar que você está errado”.

Queremos ser justificados — em público. Não queremos só vencer; queremos “trucidar” quem nos maltratou ou zombou de nós. Queremos ser respeitados, ser reafirmados, se não por outro motivo, ao menos para crescermos em número e em poder político.

A maior parte do restante do mundo consegue enxergar isso como aquilo que de fato é: falta de confiança. Queremos provar que estamos certos porque não nos lembramos de quem somos nem por que estamos aqui.

Todos nós já ouvimos falar do famoso astro do rock que se exalta com o garçom de um restaurante ou com o segurança de uma boate, dizendo com raiva: “Você não sabe quem eu sou?” A ira por trás dessa pergunta geralmente vem do medo que o astro de rock sente de que a resposta seja: “Não sei; quem é você?”

Ao se referir aos incidentes em Massá e Meribá, Deus disse, por meio do salmista, que os israelitas “me puseram à prova, embora tivessem visto a minha obra” (Salmos 95.9, ESV). Eles se esqueceram de quem eram.

Jesus não agiu assim. Ele acreditava que era exatamente quem seu Pai disse que era: o Filho amado de Deus. Assim, ele não precisava clamar pela satisfação imediata de seus apetites; seu Pai antes já havia alimentado com maná e o faria novamente. Ele não precisava buscar poder imediato sobre as nações; ele não receberia poder no lugar da humilhação, mas sim por meio dela (Filipenses 2.5-11).

Quando esquecemos a história que a Bíblia nos conta — aquela em que ela nos inclui — começamos a ver o nosso público como qualquer turba ou homem forte que nos proteja ou respeite. Quando nos esquecemos do tribunal de Cristo, queremos um tribunal agora. Queremos provar que estamos certos agora.

Deus provaria a unção de Jesus não pela vindicação, mas pela ressurreição (Romanos 1.3-4). Mas mesmo assim, Jesus não precisava provar a si mesmo.

Como aponta Richard Hays, estudioso do Novo Testamento, o Cristo ressurreto “não apareceu no Templo para castigar seus oponentes; ele não apareceu a Pilatos nem a César, em Roma. As aparições da Ressurreição não foram algo como “e agora, você ainda se acha melhor do que eu?”, perante aqueles que não acreditaram em Jesus ou que não o respeitaram. Em vez disso, ele apareceu a seus seguidores — às mulheres no sepulcro, aos homens nos barcos, ao pequeno rebanho reunido na montanha.

Mesmo quando o vacilante Tomé exigiu ver as feridas da crucificação, e Jesus graciosamente o atendeu, o pequeno grupo que viraria o mundo de cabeça para baixo deixou o local não para provar que estavam certos, mas para dar testemunho de algo real — de Alguém vivo. Suas palavras não foram “O Senhor está ou não entre nós?” mas sim “Meu Senhor e meu Deus!” (João 20.28).

E se fizéssemos o mesmo? Que tal se fôssemos uma igreja tão confiante em nossa própria identidade em Cristo que, por fim, não tivéssemos nada a provar, mas sim algo a dar — vida e descanso, paz e alegria?

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera seu Projeto de Teologia Pública.

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Crítica textual e inerrância

Como posso conciliar minha crença na inerrância das Escrituras com comentários nas traduções da Bíblia, dizendo que determinado versículo não se encontra ‘nos melhores manuscritos’?

Christianity Today April 29, 2023
Illustration by Abigail Erickson / Source Images: Getty, Unsplash

Nota da edição em português: este artigo foi escrito em 2002, mas acreditamos que ele traz reflexões importantes para os dias atuais.

“Como posso conciliar minha crença na inerrância das Escrituras com comentários nas traduções da Bíblia, dizendo que determinado versículo não se encontra ‘nos melhores manuscritos’?” – Carol Stanley, Manchester, New Hampshire

A resposta a essa pergunta guarda um paralelismo com a resposta de Charles Spurgeon, que disse, quando lhe pediram para conciliar a liberdade humana com a predestinação divina: “Eu nunca concilio amigos”. Ele sustentou que as duas realidades se encaixam. No caso que estamos discutindo, acontece o mesmo.

Vamos falar primeiro dos manuscritos. Os livros do Novo Testamento circularam primeiramente em forma de cópias feitas à mão, e essas cópias feitas pelos monges continuaram até Gutenberg inventar a imprensa, no século 15. Qualquer um que já tenha copiado um texto à mão sabe com que facilidade letras, palavras e até mesmo linhas inteiras são deixadas de fora ou repetidas. A tradição dos manuscritos do Novo Testamento não ficou livre disso.

Além do mais, é claro que alguns copistas, ao se depararem com o que julgaram ser erros de cópia, fizeram o que pensavam ser correções. Alguns desses copistas acrescentaram à margem palavras e frases ampliadas, as quais o próximo copista incorporou ao próprio texto bíblico, por pensar que era onde elas deveriam estar. Como o processo de cópia era feito com reverência e cuidado profissional, os manuscritos variam pouco no geral, exceto por deslizes ocasionais desse tipo. A comparação de manuscritos revela muitas passagens que claramente precisam ser corrigidas neste nível de detalhe.

A versão King James do Novo Testamento foi traduzida a partir do “Textus Receptus” (texto recebido) — a tradição manuscrita predominante na época — e publicada em 1611. Novas descobertas de manuscritos levaram a pequenos ajustes nesse texto, e onde ainda houver incerteza sobre a redação exata ou a autenticidade, as margens das versões modernas honestas nos dirão isso. A nova King James, por exemplo, embora ainda siga o “Textus Receptus”, traz notas conscienciosas dessas coisas, à medida que ocorrem.

Não havendo outros fatores que causem diferenças, os manuscritos são “melhores” quanto mais próximos forem do original — isto é, quando forem de data mais próxima do original.

No Novo Testamento, apenas uma palavra em cada 1 mil gera algum tipo de dúvida, e nenhum ponto de doutrina é perdido, quando versículos que não se encontram “nos melhores manuscritos” são omitidos. (Como exemplos, veja Mateus 6.13b, 17.21, 18.11; Marcos 9.44, 46, 49, 16.9-20; Lucas 23.17; João 5.4; e Atos 8.37). Tais têm sido “o cuidado e a providência singulares” de Deus em preservar sua Palavra escrita para nós (Confissão de Westminster I.viii).

Então, como tudo isso se relaciona com a própria fé do cristão na inerrância bíblica — isto é, com a crença na total verdade e confiabilidade do texto verdadeiro e de tudo o que ele ensina?

Segundo a visão de Jesus e de seus apóstolos, a Sagrada Escritura é Deus pregando, instruindo, mostrando e nos contando coisas, e testificando de si mesmo por meio do testemunho humano de profetas, poetas, pessoas que narram a história de um ponto de vista teológico e pessoas que observam a vida de um ponto de vista filosófico. A inerrância da Bíblia não é a inerrância de qualquer texto ou de qualquer versão publicada, nem é a inerrância da interpretação de ninguém, como também não é a inerrância de quaisquer lapsos dos escribas ou de acréscimos piedosos, mas inautênticos, incorporados durante a transmissão do texto.

Em vez disso, a inerrância das Escrituras relaciona-se com o significado expresso pelo escritor humano em cada livro e para com todo o corpo de verdade e sabedoria reveladas da Bíblia.

A crença na inerrância envolve um compromisso por antecipação de receber como algo que vem de Deus tudo o que a Bíblia — ao se interpretar para nós, por meio do Espírito Santo, de maneira natural e coerente — ensina. E assim se molda a nossa compreensão da autoridade bíblica.

Portanto, os inerrantistas devem dar as boas-vindas ao trabalho dos especialistas em crítica textual, que estão sempre tentando eliminar o que não é autêntico, e nos mostrar exatamente o que os escritores bíblicos escreveram, nem mais nem menos. O caminho para a mente de Deus é por intermédio da mente dos escritores [escolhidos por Deus], exatamente como se expressaram, sob sua direção, em suas próprias palavras, conforme eles as escreviam.

A crítica textual está a serviço da inerrância; ambas são amigas. A inerrância valoriza o significado das palavras de cada escritor, enquanto a crítica textual verifica se as palavras que temos de cada escritor são puras e intactas. Essas duas sabedorias são necessárias, se quisermos nos beneficiar plenamente da Palavra escrita de Deus.

J.I. Packer foi editor executivo da CT e professor de teologia no Regent College, em Vancouver.

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Books

Astronauta da NASA pede orações pela nova missão lunar

Um cristão que deseja ver a vontade de Deus ser feita “assim na terra como no céu” será o piloto do primeiro voo para a lua em mais de 50 anos.

O astronauta Victor Glover está em frente à cápsula Oríon, que ele pilotará ao redor da lua, como parte da missão Artemis 2.

O astronauta Victor Glover está em frente à cápsula Oríon, que ele pilotará ao redor da lua, como parte da missão Artemis 2.

Christianity Today April 21, 2023
NASA / Kim Shiflett

Quando a Artemis 2 decolar, em algum momento no final do ano que vem, quatro astronautas estarão presos em uma cápsula, com o formato de goma de mascar, no topo de uma torre de foguetes mais alta do que a Estátua da Liberdade. O controle da missão fará a contagem regressiva — 10, 9, 8, … — e uma explosão controlada com 8,8 milhões de libras de força irá disparar, lançando os quatro astronautas da costa da Flórida em órbita terrestre alta, onde outro motor, acendendo uma mistura de hidrogênio líquido e oxigênio, os empurrará para além dos limites da Terra, pela primeira vez em mais de meio século.

E Glover, piloto da espaçonave, dirá algumas palavras a Deus.

Ele disse à CT que também ouvirá a Deus, ao prestar atenção à calma quietude em sua mente, na qual ele pode formular seus próprios interesses e desejos, dizendo verdadeiramente: “Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.”

“Eu sei que Deus pode nos usar para seus propósitos”, disse Glover. “Quando Jesus estava ensinando os discípulos a orarem, ele usou aquela oração bem específica que todos nós conhecemos: ‘Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome…’ Então, ouça, eu sou um mensageiro do reino de Deus; que a vontade dele seja feita.”

Na segunda-feira, Glover foi designado como uma das quatro pessoas que liderarão o retorno da humanidade à Lua, mais de 50 anos depois que paramos de ir para lá. Os outros membros da tripulação são Reid Wiseman, Jeremy Hansen e Christina Koch, que será a primeira mulher a ir para a lua.

Glover, que tem 46 anos, é capitão da Marinha e voou em missões de combate no Iraque, antes de se tornar piloto de testes, astronauta da NASA e membro da tripulação da Estação Espacial Internacional. Ele se tornará o primeiro homem negro a ir à lua, quebrando uma barreira racial que a agência espacial americana criou, sem explicação, na década de 1960.

Ele também é um cristão comprometido, membro de uma Igreja de Cristo e, ocasionalmente, ensina na escola dominical. Ele levou na bagagem um kit com cálices preparados para a Santa Ceia e uma Bíblia impressa, quando foi para o espaço pela primeira vez, em 2020. Glover mencionou Deus no início e no final de sua declaração, na coletiva de imprensa de segunda-feira, quando a tripulação da missão Artemis 2 foi apresentada.

“Coloquei Deus intencionalmente na frente, no primeiro comentário, e no fim”, disse ele à CT. “É assim que tento viver minha vida também. O começo, o fim e por todo o caminho.”

Se esta missão à lua for bem-sucedida, a Artemis 2 será seguida pela Artemis 3, que pousará na lua e montará um acampamento. Mais astronautas irão em seguida, com planos para desenvolver a infraestrutura e fomentar a ciência que poderá, em breve, permitir que os seres humanos se lancem da lua para Marte.

Glover, ao falar na coletiva de imprensa, imaginou a missão como uma corrida de revezamento, na qual o bastão da descoberta é passado de geração em geração, de tripulação em tripulação, cada vez mais longe no espaço.

A missão Artemis 2, no entanto, não parece ser uma extensão da Apollo 17, de 1972, a última missão à lua, quando os astronautas exploraram a superfície lunar com um rover [veículo de exploração espacial] e fizeram testes sobre os efeitos dos raios cósmicos em ratos. Ela tem mais em comum com a Apollo 8, a primeira espaçonave tripulada a deixar a órbita terrestre baixa. Frank Borman , Jim Lovell e William Anders voaram ao redor da lua para provar que todo o equipamento funcionava, pesquisar a superfície em busca de possíveis locais de pouso e olhar para a Terra, pela primeira vez, a partir desse ponto de vista.

A Artemis 2 também está programada para fazer um sobrevoo — viajando mais de 200 mil milhas para dar a volta na lua, indo cerca de 4.600 milhas para o outro lado, antes que a gravidade os atraía, tracione-os e os aponte de novo para a Terra, para a viagem de volta.

Um jornalista espacial disse: “A tarefa deles é dominar um novo sistema de transporte e voltar para casa, a fim de contar a todos sobre ele”. Isso é verdade, mas “dominá-lo” envolve testar se uma espaçonave que nunca voou com pessoas pode sustentar a vida. Nas palavras da NASA, eles precisam “testar os […] sistemas de sustentação da vida e validar as capacidades e técnicas necessárias para seres humanos viverem e trabalharem no espaço profundo”.

Glover testará especificamente o quão bem a cápsula em forma de goma, a Oríon, pode ser manobrada no espaço sob controle humano.

Enquanto aguardava para saber se seria designado para a missão Artemis 2, porém, Glover descobriu que suas orações se voltavam menos para o que aconteceria no espaço e mais para o que aconteceria na Terra. Ele temia que ser negro fosse algo divisivo.

“Não quero ser divisivo”, disse ele à CT. “Quero representar o povo americano.”

Ele deu um tapinha no emblema da bandeira americana, costurado na manga esquerda. “Eu uso isso”, disse ele, “muito intencionalmente. Assim, orei muito sobre a questão. Mais do que o fato de eu estar ou não na missão, orei sobre como lidar com isso.”

Glover acredita na importância da diversidade e diz que ela é essencial para o futuro da NASA, agência que precisa representar toda a América e as aspirações de toda a humanidade. Mas ele gostaria que alguém já tivesse quebrado a barreira racial. Poderia ter sido Ed Dwight, um candidato a astronauta negro, na década de 1960, que não foi escolhido para nenhuma das missões Apollo. Poderia ter sido Guion Bluford, que se tornou o primeiro homem negro no espaço, em 1983, ou Mae Jemison, a primeira mulher negra, em 1992, se a NASA tivesse ido à lua naqueles anos. Em vez disso, será no século 21, e com Glover.

“Tive uma conversa com meu chefe”, lembrou Glover. “Eu disse: ‘Realmente espero que a NASA não diga: ‘Vamos enviar o primeiro homem negro à lua’. Disse a eles que, se isso acontecesse, eu colocaria as “asas” na mesa. Eu disse isso não porque este não seja um marco importante. Na verdade, é um passo vital a ser considerado pelas agências espaciais dos dias de hoje. Contudo, esta mensagem [de ser o primeiro homem negro a chegar na lua] pode ser divisiva e eu não quero ser divisivo.”

Quando veio o anúncio, pouco depois de Joe Biden se tornar presidente, as palavras usadas foram “primeira mulher” e “primeira pessoa de cor”.

“Não foi exatamente o que eu disse, mas está bem próximo”, disse Glover. “Eles estavam fazendo exatamente o que as pessoas esperavam que fizessem.”

Mas ele decidiu não renunciar. Enquanto orava, ele pensou em como poderia representar a América e, se Deus permitisse, também aumentar o apreço pelo emblema da bandeira americana. Ele pediu que Deus o ajudasse a transitar pela cultura e pela política.

Glover ainda estava nervoso com isso, quando subiu ao palco da estação espacial da NASA, em Houston, na segunda-feira (3). Os outros candidatos a astronauta que poderiam ter sido selecionados para a missão estavam na sala para o anúncio. Será que eles invejariam seu lugar na Artemis 2? Será que menosprezariam seus anos de treinamento e experiência — de 24 missões de combate, 3 mil horas de voo, três pós-graduações, quatro caminhadas espaciais — por causa da cor de sua pele? Suas expressões diriam: ‘Deveria ter sido eu o escolhido’?

“Isso meio que me preocupava, a ideia de subir ao palco e olhar para os rostos dos meus colegas”, disse Glover. “Mas, ao olhar para os seus rostos, pude ver amor e apoio. Isso, para mim, foi a coisa mais significativa do anúncio. Passar pelo dia de ontem [segunda-feira, dia 3] aliviou muito o medo.”

Agora, sete meses antes do lançamento programado, seus pensamentos podem se voltar totalmente para a missão e a lua.

A última vez em que esteve no espaço, disse Glover, ele realmente se sentiu mais próximo de Deus. Não por estar acima do céu, mas porque, como diz Tiago 4.8, quando você se submete a Deus e se aproxima dele, Deus se aproxima de você.

Ler a Bíblia no espaço foi uma experiência poderosa. Glover se lembra de estar na ausência de gravidade, em seus aposentos, na Estação Espacial Internacional, e de ler Filipenses 4. Algumas das palavras eram tão familiares para ele, como o versículo 13, que diz na Nova Versão King James: “Posso todas as coisas em Cristo que me fortalece”. Mas havia outras passagens que ele sentiu como se estivesse lendo pela primeira vez. Como no versículo 12, no qual Paulo escreve: “Aprendi a ter fartura e a ter fome”.

Glover nunca havia notado isso antes. Expressava exatamente como ele se sentia a respeito de si mesmo, de seu treinamento e de sua missão.

“Minha esposa me perguntou se eu estava nervoso, antes de fazer minha primeira caminhada espacial. Eu disse que não, que realmente tinha feito tudo o que podia para me preparar, inclusive orar e ler minha Bíblia. Eu falei a ela sobre esse versículo”, lembrou ele. “Estou satisfeito com meus estudos e minha preparação. Posso ficar tranquilo. Mas também posso estar faminto pelo que vou fazer amanhã.”

Glover espera levar sua Bíblia impressa para o espaço novamente, embora ainda não saiba se isso será possível. Ele também poderia ter as Escrituras em um tablet, o que atende melhor às exigências de peso, mas prefere um livro de verdade.

Ele espera ter fome e fartura novamente, quando chegar a hora. Ainda há muito a ser equacionado para a missão. Os desafios — o perigo — estão surgindo diante dele.

“Sabemos dos riscos de que estamos falando. Este é o primeiro voo desse veículo espacial”, disse. “Meu maior medo — talvez eu ainda esteja processando isso.”

Assim, ele dirá algumas palavras de oração, quando os foguetes da Artemis 2 dispararem e os quatro astronautas decolarem. Ele espera que outros cristãos também orem, quando assistirem ao lançamento; quando acompanharem a missão; quando lerem sobre os planos de retornar à lua e passar por ela, para explorar Marte.

“Orem por nossa tripulação”, disse ele. “Orem pelo equipamento. Orem pela equipe no mundo inteiro que nos apoia nisso. E a missão mais difícil de todas é aquela em que nossas famílias estão prestes a embarcar. Se vocês puderem orar por nossas famílias, será incrível.”

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Books

Morre Charles Stanley, pregador do ministério “In Touch” que liderava com fé obstinada

O pastor da Primeira Igreja Batista de Atlanta vivia de acordo com o lema “Obedeça a Deus e deixe que ele lide com as consequências”.

Charles Stanley

Charles Stanley

Christianity Today April 20, 2023
Illustration by Christianity Today / Source Images: Courtesy of In Touch Ministries

Certa vez, Charles Stanley levou um soco no rosto por causa de sua igreja. O pastor de longa data e pregador frequentemente elogiado, que morreu nesta terça-feira (18) aos 90 anos, lutou muito para liderar sua congregação batista do Sul, conquistando reputação por sua fiel obstinação, seu compromisso de seguir a vontade de Deus e sua vida de oração devota.

Frequentemente repetia seu lema de vida, que aprendeu com seu avô: “Obedeça a Deus e deixe que ele lide com as consequências”. Esse tipo de obediência não viria sem um custo, dizia Stanley, mas Deus recompensa a fé obstinada.

“Meu avô me disse: ‘Charles, se Deus disser para você atravessar de cabeça um muro de tijolos, corra para o muro’”, escreveu ele em suas memórias, publicadas em 2016 , “‘e quando você chegar lá, Deus fará um buraco para você atravessar.’”

Stanley foi o pastor da Primeira Igreja Batista de Atlanta por 51 anos. Ele começou como ministro adjunto, em 1969, quando a megaigreja tinha 5 mil membros, e permaneceu no púlpito até 2020, quando tinha cerca de 15 mil membros. Ele também pregava diariamente no rádio e na televisão, por meio do In Touch Ministries [Ministério em Contato], que fundou em 1972; Stanley foi amplamente considerado um dos melhores pregadores de sua geração, junto com Charles Swindoll e Billy Graham.

O filho de Stanley, Andy, também é pastor de uma megaigreja em Atlanta e pregador muito elogiado. Eles foram a única dupla de pai e filho a figurar nas listas dos pregadores vivos mais influentes, da Lifeway Research ou do Seminário Teológico George W. Truett.

Stanley foi membro fundador da Moral Majority e da Christian Coalition, serviu como presidente da Convenção Batista do Sul em um momento crucial da luta entre conservadores e moderados, e escreveu mais de 50 livros.

O futuro pregador nasceu em 1932 em Dry Fork, Virgínia, cidade que mais tarde ele diria ser tão pequena que não estava no mapa. Seu pai, também chamado Charles, morreu quando Stanley tinha apenas nove meses.

Sua mãe, Rebecca Hardy Stanley, conseguiu um emprego em uma fábrica têxtil, no meio da Grande Depressão, e ganhava cerca de 45 reais por semana. Quando não estava trabalhando, levava o filho a uma igreja pentecostal e o ensinava a ler a Bíblia e a orar.

“Ainda posso ouvir a voz dela citando meu nome para Deus e dizendo a ele que ela queria que eu o seguisse em tudo o que ele me chamasse para fazer”, contava Stanley.

Aos 12 anos, Stanley aceitou Jesus como seu Salvador. Dois anos depois, ele discerniu seu chamado para pregar e se dedicou ao ministério.

Rebecca se casou de novo, quando Stanley era adolescente. Seu segundo marido era alcoólatra e abusivo. O jovem Stanley tentou enfrentar o padrasto, chegando a apontar uma faca para ele certa vez. Ele implorou à mãe que se divorciasse, mas ela permaneceu comprometida com a união, por causa de sua fé.

O fato de ter sofrido com a violência teve um impacto para o resto da vida de Stanley, lembrou ele mais tarde.

“A menos que eu estivesse no comando, eu ficava muito, muito desconfortável”, disse ele. “Eu era muito, extremamente combativo e competitivo. Tanto que eu trouxe para meu ministério o espírito de sobrevivência. Ou você faz ou você morre. Faça o que for necessário para vencer. não importa o que seja”.

Stanley frequentou a Universidade de Richmond com uma bolsa de estudos, pela qual sua mãe orou. Na universidade, ele conheceu e se casou com Anna Margaret Johnson, estudante do curso de artes, que era da Carolina do Norte. Eles se casaram em 1955.

Depois de se formar no Southwestern Baptist Theological Seminary, Stanley assumiu uma igreja batista no estado natal de sua esposa, pregando na Fruitland Baptist Church e ensinando no Fruitland Baptist Bible Institute (que agora é um College). Ele se mudou para Fairborn, no estado de Ohio; Miami, na Flórida; e Bartow, também na Flórida, antes de aceitar o chamado para ser ministro associado na proeminente megaigreja batista no centro de Atlanta, em 1969.

Dois anos depois, o pastor sênior renunciou e Stanley foi convidado a assumir a função até que um substituto pudesse ser encontrado. Ele próprio se candidatou ao cargo, mas o placar do comitê responsável pela busca foi de 5 votos contra ele e 2 a favor.

À medida que a busca prosseguia, no entanto, a frequência aos domingos começou a aumentar, as ofertas começaram a aumentar e um número crescente de membros da igreja sugeriu que Stanley deveria assumir o pastorado. Vários diáconos — sutilmente, e depois não tão sutilmente — pressionaram Stanley a renunciar.

Stanley se recusou a ceder à pressão.

“As pessoas queriam se livrar de mim”, disse ele. “Mas não podiam me dizer o motivo. Elas simplesmente disseram que eu apenas pregava sobre como ser salvo, a vinda de Jesus e como ser cheio do Espírito Santo. Eu ri e pensei: Bom Deus, espero que isso seja verdade!

Stanley provocou mais conflitos, quando removeu alguns professores da escola dominical apesar das objeções do superintendente da escola dominical, que disse que o pastor não tinha autoridade para tomar essa decisão.

Um diácono condenou a “busca declarada pelo poder” de Stanley, de acordo com o relatório da Constituição de Atlanta, e vários líderes disseram que estavam “inquietos” com a “paixão desordenada do pastor pelo poder político” e com sua “confiança extravagante quanto à sua compreensão da vontade de Deus.”

Em uma acalorada reunião da igreja, um dos membros do conselho da igreja deixou escapar um palavrão.

Stanley disse: “Agora você precisa tomar cuidado com aquilo que você fala”.

O membro do conselho retrucou: “Não, é você quem precisa tomar cuidado”, e então deu-lhe um soco, acertando o rosto de Stanley.

Andy, que tinha 13 anos na época, estava assistindo de um dos bancos da frente da igreja. Ele disse que o pai sequer vacilou, quando foi atingido. Ele também não revidou, conquistando uma vitória moral e ganhando a discussão.

“Eu vi meu pai oferecer a outra face”, escreveu mais tarde o jovem Stanley, “mas ele nunca virou as costas e fugiu”.

Quando os membros da igreja fizeram uma reunião de três horas, para decidir se manteriam Stanley, a maioria votou sim. A igreja, então, votou para fazer de Stanley o pastor sênior.

Ele esperou uma semana para anunciar se aceitaria ou não o cargo. Trinta e seis dos 59 diáconos da Primeira Batista renunciaram.

Stanley trouxe essa mesma tenacidade para a Convenção Batista do Sul, quando foi eleito presidente, em 1984. Seus partidários esperavam que ele fosse a pessoa que resolveria a briga entre conservadores e moderados na denominação. Seus oponentes temiam o mesmo — e teve até um presidente de seminário que conclamou uma “guerra santa” contra os conservadores, inclusive contra Stanley, que insistia em mais uniformidade teológica na denominação, em detrimento da autonomia congregacional.

Os conservadores disseram que estavam detendo um deslize liberal, especialmente nos seminários e nas organizações de políticas públicas da denominação. Em seu primeiro ano como presidente, Stanley apoiou medidas que impediam as congregações de ordenar mulheres. Na época, havia 13 pastoras na SBC e mais de 220 ordenadas.

No segundo ano, superando a oposição para ser reeleito com 55% dos votos, Stanley usou seu poder como presidente e sua habilidade em manobras legislativas a fim de nomear uma chapa de conservadores para importantes conselhos batistas.

A maior luta do ministério de Stanley, no entanto, foi para salvar seu casamento e para permanecer no púlpito, após o divórcio.

Anna Stanley pediu o divórcio em 1993, sem explicação e usando apenas as iniciais do casal, A.S. e C.S. A notícia se espalhou mesmo assim e causou alvoroço na Primeira Igreja Batista. A congregação nunca havia permitido que um homem divorciado servisse no ministério, e Stanley havia ensinado que homens divorciados ficavam desqualificados para o ministério.

Stanley anunciou do púlpito que o casal não estava se divorciando, mas estava separado e trabalhando em seu casamento. Anna alterou o processo uma semana depois, a fim de pedir a separação formal em vez do divórcio, e, então, desistiu do processo.

Ela entrou com novo pedido de divórcio em 1995.

“Estou consternada com a recusa de meu marido em aceitar o estado crítico de nosso casamento”, disse Anna Stanley em uma declaração ao Atlanta Constitution. “Em vez disso, ele fez repetidos anúncios do púlpito de que progressos estavam sendo feitos em direção à nossa reconciliação, quando, na verdade, era exatamente o oposto. Eu opto por não contribuir para esta mentira.”

Não havia alegações de infidelidade ou de comportamento imoral. Anna dizia que o marido há muito tempo deixara suas prioridades claras, e que ela não era uma delas.

Vários líderes da igreja — que agora tinham uma frequência semanal regular de cerca de 13 mil pessoas — quiseram que Stanley deixasse o cargo, ao menos temporariamente. Outros o pressionaram a renunciar. Um deles foi Andy Stanley, que estava pastoreando um campus satélite em rápido crescimento e era visto como o herdeiro aparente da Primeira Igreja Batista de Atlanta.

Anos depois, o jovem Stanley diria que só queria que seu pai se oferecesse para renunciar, e desse à igreja a chance de optar por manter seu amado pastor. De acordo com ele, depois que escutou a palavra “renunciar”, seu pai não ouviu mais nada.

Charles reagiu duramente e declarou que seu filho era um inimigo. Andy deixou a igreja, distanciando-se de seu pai, e fundando a North Point Community Church, uma megaigreja seeker-sensitive [sensível àqueles que buscam] que cresceria para mais de 40 mil pessoas.

O velho Stanley descreveu esse período como o mais difícil e solitário de sua vida.

“As primeiras vezes em que fui ao supermercado à noite sozinho, em que fiquei sozinho na casa vazia foram difíceis. Mas pensei: Ok, Deus, aqui estou ”, disse Stanley. “Minha esposa foi embora. Para um pastor, isso é um desastre. Serei demitido da igreja porque as pessoas sempre pensam o pior. Bem, minha igreja não fez isso. Eles disseram: ‘Veja bem, você esteve aqui quando precisamos de você. Agora somos nós que estaremos ao seu lado.’”

A igreja votou por manter Stanley, mesmo que a separação continuasse. Quando Anna pediu o divórcio pela terceira vez, em 2000, e conseguiu por fim ao casamento, um membro do conselho anunciou que Stanley continuaria como pastor sênior. A congregação respondeu à notícia batendo palmas, em pé.

Embora alguns líderes evangélicos tenham condenado a decisão de Stanley de continuar no ministério como um homem divorciado, dizendo que ele estava minando o testemunho moral dos evangélicos, pouco mudou na Primeira Igreja Batista de Atlanta. Se alguma coisa mudou, disse Stanley, foi que seu divórcio fez dele um ministro mais eficaz.

“Era Romanos 8.28. Deus sabia o que ele estava fazendo”, disse Stanley. “As pessoas diziam: ‘[Antes] Eu não conseguia ouvir você pregar. O que você sabe sobre solidão, mágoa, dor, sofrimento e perda? Agora, posso ouvi-lo porque agora sei que você sabe como me sinto.’”

Stanley se reconciliou com seu filho por meio de aconselhamento, e os dois pastores de megaigreja fizeram terapia juntos. O velho Stanley falou sobre a morte de seu pai, seu relacionamento traumático com o padrasto e sua necessidade de manter o controle. Ele convidou Andy para pregar na Primeira Igreja Batista de Atlanta, em 2007. O sermão do Stanley mais jovem tratava de um tema familiar: “O custo de seguir a Cristo”.

A pregação de Charles Stanley foi amplamente elogiada em seus últimos anos, especialmente por sua simplicidade, praticidade e eficácia. Ele também falava com frequência da importância da oração e de sua própria prática de se ajoelhar diariamente para falar com Deus.

“Para mim, esse é o segredo”, disse ele à Christianity Today . “É o segredo para tudo. Pois, ao se ajoelhar, você está reconhecendo a Deus — você está afirmando que precisa de sua ajuda, sua percepção, sua compreensão, ou de sua coragem, ou sua fé, seja lá o que for”.

Quando lhe perguntavam que conselho daria a seus netos, se eles entrassem para o ministério, ou o que ele escreveria em sua lápide quando morresse, Stanley voltava ao lema sobre fé inabalável: “Obedeça a Deus e deixe que ele lide com as consequências.”

Ele deixa o filho, Andy; a filha, Becky Stanley Brodersen; e seis netos. Anna Stanley morreu em 2014.

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