Barbie e Ken podem nos fazer lembrar do Éden

Para os cristãos, o último filme de Greta Gerwig é uma oportunidade para refletir sobre a “Queda afortunada”.

Christianity Today August 2, 2023
Courtesy of Warner Bros. Pictures

Questões sobre gênero e sexualidade assolam a igreja evangélica, da Southern Baptist Convention (SBC) à Presbyterian Church in America (PCA). Os livros sobre o tema estão proliferando. Nesse contexto, é compreensível que algumas pessoas vejam o novo filme da Barbie como mais uma saraivada nas guerras de gênero. Mas o mais recente projeto de Greta Gerwig tem camadas demais para ser lido por meio de uma hermenêutica literalista.

Em vez de oferecer uma afirmação cega do feminismo ou uma crítica ao patriarcado, o filme explora modos como usamos a ideologia para contornar a tarefa mais confusa que é crescer como seres humanos. As guerras de gênero não são exatamente o enredo, são mais o cenário do filme. Elas moldam o mundo em que Barbie e Ken buscam a maturidade.

Considere o arco do personagem Ken. Condenado a ser sempre “apenas Ken”, o namorado de Barbie encontra sua identidade por meio do relacionamento com ela. Ele “é submisso” ou se sujeita bajuladoramente a ela, seguindo-a para o mundo real. Uma vez lá, no entanto, ele tem a visão de uma vida diferente — uma visão na qual homens governam, mas, o que é ainda mais importante, sentem-se vistos e valorizados. Atribuindo isso ao Patriarcado™, Ken leva a ideia da superioridade masculina de volta à Barbielândia como um atalho para seu próprio crescimento.

O filme acompanha as recentes observações de Christine Emba de que os homens modernos estão vivendo “uma crise de identidade generalizada — como se não soubessem como ser”. Essa perda de identidade, segundo ela argumenta, é o que alimenta a popularidade dos gurus da masculinidade de direita , de Jordan Peterson a Andrew Tate. Essas vozes parecem oferecer aos homens jovens um caminho a seguir. O fato de isso muitas vezes tender à misoginia, como acontece na própria jornada de Ken, é apenas parte da questão.

Mais para frente, Ken reflete sobre as raízes de seu descontentamento, que têm menos a ver com a ordem social e mais a ver com uma abdicação de si mesmo, por meio de exibicionismo e uma identidade performativa.

A jornada da Barbie também é direcionada para longe dos estereótipos de gênero e mais voltada para uma personalidade madura. Ao contrário de Ken, no entanto, que toma consciência de seu próprio valor, ela aprende a abraçar a própria imperfeição.

Quando Barbie é inexplicavelmente tomada por pensamentos de morte e seus calcanhares tocam o chão, ela busca a ajuda da Barbie Estranha, uma pária que é semelhante a um guru. Em uma cena que lembra Matrix, a Barbie Estranha oferece a ela uma escolha: a Barbie pode voltar para a não-realidade ou pode se mover rumo ao conhecimento, aderindo a uma missão no mundo real.

Em vez de uma pílula azul ou vermelha, no entanto, ela oferece à Barbie um sapato rosa de salto alto ou uma sandália Birkenstock (uma sandália confortável que acomodará seus pés agora chatos). Mesmo que a Barbie queira escolher o sapato de salto alto e voltar a um estado de ignorância, várias questões e desafios a obrigam a deixar a Barbielândia em busca de respostas.

Tanto Barbie quanto Ken se aventuram para além seus clichês de plástico, a fim de descobrirem sua humanidade plena (e sexuada). Embora essas questões existenciais sejam revigorantes em um filme convencional, a verdadeira mágica encontra-se no modo como ambos se movem rumo à maturidade: por meio da imperfeição e do erro.

Para os evangélicos, enquadrar o amadurecimento à luz do pecado original pode ser algo profundamente perturbador, em especial porque Gerwig parece sugerir que o conhecimento experimental é necessário para o desenvolvimento humano. Em contraste, entendemos a narrativa de Gênesis como uma história de rebelião. Ao escolher o que era proibido, a mulher e o homem desobedecem e se colocam sob uma maldição que atormentará toda a sua existência — da terra sob seus pés (chatos) até seus próprios corpos.

Além do mais, muito da teologia e da prática evangélicas visa reverter essa maldição. Entendemos que Jesus é o Segundo Adão, que veio para redimir e restaurar o que foi perdido (Romanos 5.12-20). Todos ansiamos pelo dia em que seremos perfeitos novamente.

E, no entanto, dentro desse enquadramento, às vezes negligenciamos o processo pelo qual Deus nos santifica. Ao confessarmos nossa pecaminosidade, nós nos convencemos de que a vida com Cristo será uma linha ascendente de desempenho cada vez melhor que, mais adiante, resultará em perfeição. Tendo começado pelo Espírito, estamos bastante convencidos de que somos capazes de continuar por nossa própria força. Mas, na medida em que essa abordagem ao discipulado nega nossa humanidade, lutaremos para viver com nossa imperfeição. Como um conselheiro me disse recentemente: “Você não é um anjo, Hannah. Você é um ser humano.”

Nesse ponto, a teologia pode nos ajudar. Embora tenham uma compreensão correta da Queda como uma perda, os teólogos — de Ambrósio a Agostinho, de Tomás de Aquino a Wycliffe — também a denominaram de “Queda afortunada”, a qual revela a bondade de Deus de uma forma que a perfeição humana não consegue. Como John Milton apresenta a noção, em Paraíso Perdido:

Ó Bondade infinita, Bondade imensa!
Que todo bem desse mal produzirá,
E o mal transforma em bem [ainda] mais maravilhoso
Do que aquele que a criação primeiro trouxe à existência
Luz nascida das trevas!

Não pecamos para que a graça abunde (Romanos 6.1); e, no entanto, a graça é abundante. De alguma forma, Deus é capaz de pegar nossas falhas e, por meio delas, nos levar a uma compreensão mais rica e mais profunda de nós mesmos e de sua graça. Em uma ironia divina, só entendemos a graça quando dela precisamos. Ou como Jesus coloca em Lucas 7.47, aquele a quem pouco foi perdoado, ama pouco, enquanto aquele a quem muito foi perdoado, ama muito.

Desta forma, a santificação exige que deixemos para trás formas plásticas de ser e abracemos a humanidade que Deus nos deu, com todas as suas imperfeições. Exige que passemos de formas idealizadas para a complexidade de vidas encarnadas. Exige que deixemos para trás a Barbielândia.

Para os cristãos, esse processo é sustentado pela própria encarnação de Cristo, que afirmou a virtude da existência humana mesmo em um mundo amaldiçoado. E é garantido pela morte e ressurreição de Cristo, que oferecem perdão e esperança diante de nossas imperfeições.

Quando abraçamos essa imperfeição de nossa vida e aceitamos um mundo marcado por dúvida, pecado e morte, nós o fazemos confiantes na realidade do amor de Deus por nós. No fim, não são nossos erros que nos completam; antes, é Deus que redime nossos erros. É Deus que, apesar de conhecer todas as nossas fraquezas e desobediências, nos chama a descansar em sua perfeita obediência.

Ou como um amigo me disse recentemente, é Deus quem, por meio de Cristo, diz a seus filhos vacilantes: “Eu sei exatamente por que vocês estão onde estão, muito mais do que vocês mesmos sabem. As razões são ainda mais profundas do que imaginam. E eu vou assegurar isso pessoalmente a vocês. Apenas fiquem [aqui, comigo].”

E é desta forma que o amor de Deus nos torna reais.

Hannah Anderson é autora de Made for More, All That s Good e Humble Roots: How Humility Grounds and Nourishes Your Soul.

Tradução de Mariana Albuquerque.

Edição de Marisa Lopes.

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A dádiva espiritual do exercício físico

Este é o dia que o Senhor fez. Exercitemo-nos e regozijemo-nos nisso.

Christianity Today July 27, 2023
Wellness GM / Flickr

Apostar corrida com meu pai na calçada é um dos meus passatempos favoritos. Quando eu era mais nova, ele sempre vencia, e apenas desacelerava de vez em quando, para me deixar pensar que eu era rápida. Então, um belo dia, eu decolei, um pé passando veloz na frente do outro, e esse foi o súbito fim da sequência de vitórias de meu pai.

Meu amor pelo exercício físico começou quando criança, por gostar da presença e do envolvimento do meu pai, e se transformou em um amor vitalício pelos esportes: ginástica, dança, atletismo, líder de torcida, ciclismo e muito mais.

Quando me tornei cristã, aos 22 anos, descobri uma nova dimensão em minhas atividades favoritas. Paulo escreveu em 1Timóteo 4.8: “O exercício físico é de pouco proveito; a piedade, porém, para tudo é proveitosa, porque tem promessa da vida presente e da futura”. Ao aconselhar os cristãos a serem treinados na boa doutrina e no discernimento, Paulo sabia que isso exigia diligência e esforço — assim como o treinamento físico exige.

Hoje mais do que nunca as pessoas conhecem o rigor do exercício em primeira mão. Nos Estados Unidos, por exemplo, nós nos tornamos uma nação de atletas amadores: corredores, ciclistas, praticantes de ioga e devotos do CrossFit. Cerca de metade dos adultos americanos cumprem as diretrizes federais atuais para a prática de atividades aeróbicas. Isso pode não parecer muito, mas é o índice mais alto já registrado. Milhões de crianças praticam esportes organizados [esportes que fazem parte de ligas ou programas do governo], tanto que a questão não é se seu filho vai praticar algum esporte, mas quais serão os esportes que ele escolherá praticar. Este ano, meu filho, que está no jardim de infância, ficou todo entusiasmado ao vestir suas caneleiras rosa e começar no futebol.

Estamos certos em nos preocupar com o que acontece quando nosso amor pelo condicionamento físico é levado ao extremo — a excesso de exercício, pressão, competição — e a igreja deve continuar a nos alertar contra qualquer hobby que se torne um ídolo. Mas antes de revirarmos os olhos diante de outro desafio de condicionamento físico ou de outro treino do dia que algum amigo postar no Facebook, faríamos bem em comemorar o lado bom de nossa crescente aceitação da prática de atividades físicas.

Os estudos reiteradamente apontam os benefícios do exercício em todas as fases da vida: corpo mais saudável, humor mais feliz, pensamentos mais claros, sono mais profundo. Mas também há benefícios espirituais. Na medida em que o condicionamento físico continua a ocupar um espaço maior em nossas rotinas diárias e em nosso discurso cultural, há potencial para nós, como cristãos, apreciarmos melhor nossos corpos, dados por Deus, nossos esforços e a criação de Deus. As disciplinas envolvidas no exercício são semelhantes às que podemos usar na vida cristã — com resistência para terminar a corrida.

Logo após minha conversão, comecei a associar meu amor pelo bom condicionamento físico a um novo propósito, mas isso ampliou-se ainda mais depois que tive meu filho. Percebi que meu corpo nunca mais seria o mesmo. Deus transformou qualquer potencial ansiedade que eu tivesse em relação a estrias ou a peso depois da gravidez em entusiasmo para ver como ele poderia me usar de novas maneiras, enquanto eu treinava.

Deus é gracioso em nos permitir desfrutar de exercícios, enquanto estamos aqui na terra. Na minha infância e adolescência, qualquer tipo de condicionamento físico geralmente era centrado em mim — como eu me sentia e como me saía. Agora, percebo que [ao praticar uma atividade física] posso dar glória a Deus, desfrutar dele e de sua criação, servir bem à minha família e desfrutar da atividade em si. Deus usa a ideia de treinar, de participar de uma corrida e de perseverar como formas de direcionar nossa atenção para nossa fé (Isaías 40.31, Hebreus 12.1, Romanos 3.5, 2Timóteo 4.7). Não é nenhuma surpresa que a prática de uma atividade física me lembre da corrida que está proposta diante de mim e da bondade de Deus nela.

Comecei a andar de bicicleta, e me pego apreciando Deus de novas maneiras. Quando eu pedalo por uma área verde e vejo flores amarelas brilhantes, avisto um raro esquilo branco em nosso parque local, desvio de um filhote de cobra que encontro pelo caminho, eu sei que existe um Deus. A criação clama seu nome, e é glorioso. Ele é criativo. Ele fez um mundo para que nós desfrutemos dele, o subjuguemos e exerçamos domínio e cuidado sobre ele (Gênesis 1.28-30).

Assim como Deus nos dá vários dons, ele também nos dá vários interesses para o bem dos outros. Por meio dos exercícios, fico mais alerta — mais atenta ao meu trabalho e à minha vida diária. Tenho mais energia para servir a minha família. Minha mente fica mais clara para o ministério. Sinto disposição para sair e orar. Fortaleço meus músculos para servir, bem como para beneficiar minha saúde em geral. E, assim como o atleta olímpico Eric Liddell, em Carruagens de Fogo, sinto o prazer de Deus.

Liddell disse: “Creio que Deus me fez com um propósito, mas ele também me fez veloz. E, quando corro, sinto o prazer dele.” Todos nós experimentamos isso no âmbito pessoal. Quando ando de bicicleta e uso o quadríceps que Deus me deu para subir uma colina que parecia impossível de vencer, sinto o deleite de Deus. Fui feita para velocidade e força, ainda que apenas em uma pequena dose.

Na bondade de Deus, podemos buscar a aptidão física e encontrar descanso sabendo que fomos feitos para um propósito. E, por sua graça, podemos glorificá-lo nisso.

Trillia Newbell é autora de Fear and Faith: Finding the Peace Your Heart Craves (2015) e United: Captured by God’s Vision for Diversity (2014). Quando este artigo foi escrito, ela era diretora de evangelização comunitária da Comissão de Ética e Liberdade Religiosa da Southern Baptist. Ex-instrutora de fitness, Trillia gosta de fazer exercícios em grupo, andar de bicicleta e ouvir música. Ela é casada com seu melhor amigo, Thern, e eles moram com seus dois filhos perto de Nashville. Você pode encontrá-la em trillianewbell . com e no Twitter em @ trillianewbell.

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Por que a misericórdia triunfa sobre o julgamento

Como cristãos, nossa justa ira contra o pecado nunca deve superar nossa compaixão pelos pecadores.

Christianity Today July 26, 2023
Michael Blann / Getty / Edits by CT

Na praça de São Petersburgo, um jovem chamado Fiódor Dostoiévski tremia na neve, lado a lado com outros detentos, todos presos por pertencer a um círculo literário acusado de traição à pátria.

Um sacerdote que carregava uma cruz conduzia os condenados em procissão, organizando-os em fileiras, enquanto a sentença era lida: morte por fuzilamento. No último segundo, porém, chegou um cavaleiro com uma mensagem do czar, previamente combinada: em vez de execução, Nicolau “misericordiosamente” comutara suas penas por trabalhos forçados.

Ao embarcar no trem de condenados que ia para o campo de trabalho forçado na Sibéria, Dostoiévski recebeu um exemplar do único livro que tinha permissão para ler na prisão: o Novo Testamento. Nos quatro anos de encarceramento que se seguiram, ele viria a considerar as injustiças da Rússia do século 19 à luz da misericórdia de Cristo.

Dostoiévski procurou entender como a misericórdia restaura os corações humanos — e, na verdade, a criação toda — à imagem justa de Deus. Ele escreveu: “Existem almas que, em sua estreiteza, culpam o mundo inteiro. Mas inunde uma alma como essa de misericórdia, dê-lhe amor, e ela amaldiçoará o que fez, pois há muitas sementes do bem nela. A alma se expandirá e contemplará o quão misericordioso é Deus e quão belas e justas são as pessoas”.

A necessidade de misericórdia é tão relevante hoje quanto era naquela realidade de Dostoiévski — mas pode ser difícil oferecer misericórdia em um mundo digno de julgamento.

Quando nossos olhos abrem-se para o reino de Deus, reconhecemos injustiças no mundo que antes não nos ocorriam. Ansiosos pela ordenação correta da vida, ficamos irritados com a condição caída da humanidade. Ficamos inquietos, talvez indignados ou mesmo enfurecidos pelas formas de maldade e opressão que vemos ao nosso redor.

Como resultado, a ira muitas vezes pode ser o pecado que assedia aqueles que anseiam por justiça. “Uma grande indignação se apoderou de mim”, diz o salmista, “por causa dos ímpios, que abandonam a tua lei” (Salmos 119.53, ESV).

Esta indignação brota de uma fonte legítima. Quanto mais reconhecemos o que é verdadeiro, bom e belo — e quanto mais ansiamos por tudo isso — maior é nossa inclinação para ficarmos bravos com o que é falso, mau e feio. Quanto mais andamos na luz, mais nos tornamos naturalmente perturbados pela treva moral (Tito 1.15; 1Pedro 4.1-6).

Isso é certo e precisamente verdadeiro quanto à ira dirigida contra o mal — contra o tirano que ataca pessoas inocentes, contra os golpistas que fazem de presa os idosos ou contra figuras de autoridade supostamente confiáveis que abusam de crianças. Esses exemplos de “ira justa” refletem o coração de Deus, uma indignação santa que se recusa a permitir que o mal prevaleça. E, no entanto, nossa ira sempre será imperfeita, porque nunca consegue captar a plenitude da pureza de Deus. De fato, como diz o Senhor: “Minha é a vingança; eu retribuirei” (Romanos 12.19).

A ira amarga e o antagonismo à escuridão — aquilo que alguns hoje podem chamar de o ultraje da cultura do cancelamento — nunca devem se tornar nosso modo normal de agir como cristãos. Em vez disso, Deus nos chama a buscar a redenção, “pois a ira do homem não produz a justiça de Deus” (Tiago 1.20). É a bondade de Deus que nos leva ao arrependimento (Romanos 2.4), e “a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tiago 2.13). Afinal, “a sabedoria que vem do alto é antes de tudo pura; depois, pacífica, amável, compreensiva, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sincera” (Tiago 3.17).

Essa era precisamente a mensagem da obra clássica de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, na qual o personagem principal, Ivan, representa a rancorosa punição e retribuição da “justiça” do mundo — que se opõe implacavelmente ao evangelho da misericórdia de Cristo. Nas próprias palavras de Dostoiévski, esse espírito de vingança “contrasta flagrantemente com o evangelho de Cristo, evangelho de amor que a tudo reconcilia e perdoa, e com a esperança de misericórdia infinita para o pecador que se arrepende”. Para o romancista russo, é isso que distingue a Cidade de Deus da Cidade dos Homens: a concessão da misericórdia divina.

Considere também o personagem Javert, da obra Les Misérables, de Victor Hugo, o inspetor de polícia cuja estreita interpretação da justiça tornou-se uma arma. Impulsionado por um compromisso farisaico com a letra da lei, ele não conseguia ignorar a menor das infrações. Javert não conseguia entender que a lei é sempre um meio para um fim maior — isto é, para a redenção — e não um fim em si mesma.

Aleksandr Solzhenitsyn acerta essa tecla, quando escreve: “Uma sociedade que se baseia na letra da lei e nunca alcança nada mais elevado está tirando muito pouca vantagem do alto nível das possibilidades humanas”. Pior ainda, tal sociedade se priva de sua mais profunda necessidade de misericórdia.

Em seu livro The Beatitudes through the Ages [As bem-aventuranças através dos tempos], Rebekah Eklund faz essa conexão a partir do ensinamento de Ambrósio de Milão (339–397), que promoveu a misericórdia como o fluxo natural e necessário da justiça. Citando Salmos 112.9, ele escreve: “dá aos pobres; a sua justiça permanece para sempre.” Da mesma forma, Agostinho (354–430) via as duas coisas em um relacionamento orgânico: “A maneira como você trata o seu mendigo [que está à sua porta] é a maneira como Deus trata o dele”.

Deus é cheio de misericórdia e concede essa plenitude a seus filhos. Não é por acaso que, quando o Senhor da glória apareceu a Moisés, no monte Sinai, e revelou seu caráter divino, ele escolheu dizer de si mesmo: “Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade” (Êxodo 34.6).

É impressionante. De todas as qualidades que Deus poderia ter enfatizado — sua santidade, sua soberania ou seu poder onipotente — ele escolheu destacar seu terno coração compassivo. Assim como a misericórdia tem importância central para Deus, também deve ter para nós. “Sejam misericordiosos”, diz Jesus, “assim como o Pai de vocês é misericordioso” (Lucas 6.36).

Somos misericordiosos não porque Deus iniciou o processo e depois nos deixa terminá-lo pelo poder de nossa vontade. Em vez disso, a cada passo do caminho, Deus dissolve nossa autoconfiança e alimenta nossa fé, até o desejarmos acima de tudo. É um projeto de misericórdia, no qual Cristo diz continuamente: “Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso” (Mateus 11.28). O Senhor nos conduz com “cordas de bondade” e com “laços de amor” (Oseias 11.4).

E quando experimentamos verdadeiramente a misericórdia de Deus, somos levados a partilhá-la com os outros.

Certa vez, perguntei a minha amiga Cecilia Horn, uma mulher piedosa e evangelista fervorosa, como ela cultiva o entusiasmo em compartilhar as boas novas. Jamais esquecerei sua resposta: “Por muitos anos, estive perdida e sem esperança, como uma prisioneira vivendo em uma caverna escura. Então, um dia, Deus me chamou das sombras para o brilho do sol do meio-dia. Imediatamente olhei para o céu e comecei a piscar, tentando ganhar perspectiva da maravilha da misericórdia de Deus. Continuo a piscar em grato maravilhamento que aprofunda minha fé e me compele a compartilhar as boas novas com outros.”

A lembrança de nossos dias passados de solidão e vergonha — quando estávamos afastados de Cristo e éramos estrangeiros quanto a suas promessas divinas, “sem esperança e sem Deus no mundo” (Efésios 2.12) — dilata os olhos de nosso coração e cultiva uma apreciação mais profunda pelo dom da misericórdia.

Com a igreja global clamamos Kyrie eleison, “Senhor, tenha misericórdia!”. Este é o ponto de partida e o fundamento do nosso chamado — pois, antes de podermos mostrar misericórdia para com os outros, nós mesmos devemos encontrá-la.

Adaptado do capítulo 5, “The Face of Mercy,” da obra The Upside Down Kingdom: Wisdom for Life from the Beatitudes, da autoria de Chris Castaldo, publicada pela Crossway.

Chris Castaldo (PhD, London School of Theology) é o pastor sênior da New Covenant Church, em Naperville, Illinois.

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Culture

O que adianta a um cristão proteger uma instituição e perder a sua alma?

Nossa ambição não deve vir antes de nossa consciência.

Christianity Today July 26, 2023
Illustration by Ūla Šveikauskaitė

O falecido pastor Eugene Peterson, em uma carta a seu filho, também pastor, escreveu que o principal problema para o líder cristão é assumir a responsabilidade não apenas pelos fins, mas também pelos “caminhos e meios” que orientamos as pessoas a seguirem para alcançar esses fins. “Todas as três tentações a Jesus, feitas pelo diabo, tinham a ver com maneiras e meios”, escreveu ele. “Todos os objetivos do diabo eram excelentes. O diabo tinha uma declaração de visão insuperável. Mas os caminhos e meios eram incompatíveis com os fins”.

Losing Our Religion: An Altar Call for Evangelical America

Losing Our Religion: An Altar Call for Evangelical America

272 pages

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Como disse Peterson, o discipulado para o qual Jesus nos chama é “conduzido tanto pessoal quanto corporativamente, [é um discipulado] no qual há continuidade entre interior e exterior. [É] Uma vida em que somos cuidadosos e atentos tanto em relação ao como quanto em relação ao quê.”

Isso ocorre porque, conforme Peterson aconselhou, “se vamos viver a vida inspirada em Jesus, precisamos simplesmente vivê-la do jeito que Jesus viveu — afinal, ele é o Caminho, bem como a Verdade e a Vida”. Não existem cláusulas de emergência para escapar do caminho da Cruz.

O que parece ser popular neste momento nem é tanto um evangelho da prosperidade; é mais um evangelho da depravação. Neste evangelho da depravação, apelos ao caráter ou a normas morais são respondidos não com apelos de “Sou inocente!”, mas com minimizações do tipo “Caia na real!”

No entanto, esse evangelho da depravação tenta nos atrair. Não importa se você chega até ele adotando-o abertamente, com prazer pela crueldade e vulgaridade, ou se ele leva você ao tipo de cinismo que nunca espera nada melhor.

Nesse caminho reside o niilismo. Você se encontrará em situações, talvez até já esteja em uma dessas situações, em que tem o dever de se responsabilizar por uma instituição. Talvez seja apenas como alguém que detém poder de voto. Você pode simplesmente dar de ombros e votar em qualquer pessoa que seu partido lhe disser para apoiar. Ao longo do tempo, isso vai mudar você. Ou talvez seja como membro de uma igreja ou como integrante de alguma denominação ou ministério cristão.

Não confunda dons e talentos com caráter, seja em relação a você ou a qualquer outra pessoa. Você não deve esperar que seus líderes sejam alguém sem pecado. Eles pecarão, mas há uma diferença entre um ser humano pecador que se arrepende e um padrão [persistente] de corrupção. Nesse último caso, você terá que se perguntar como lidar com isso. Você deve lidar com a situação permanecendo onde está e buscando efetuar mudanças? Ou partindo e encontrando um novo lugar para viver e servir? Eu não sei. Isso depende muito de fatores que muitas vezes você simplesmente não consegue saber. Sugiro que pergunte a si mesmo onde estão suas vulnerabilidades.

Você é do tipo de pessoa que normalmente vira as costas e abandona a situação? Em caso afirmativo, encontre todos os motivos que puder pelos quais você deve ficar e fazer mudanças, antes de partir. Você é do tipo de pessoa que tende a se adaptar a uma situação, por obrigação, lealdade ou nostalgia? Se for assim, considere enfaticamente sair.

A prestação de contas por parte de nossas instituições é importante. São elas que nos transformam no que consideramos “normal”. Quando um comportamento horrendo começa a lhe parecer normal, não é só você que está em perigo.

A consciência é mais do que um simples alerta interno que diz: “Faça a coisa certa”. A consciência — assim como a razão, a imaginação e a intuição — é uma forma de saber que está profundamente enraizada na psique humana.

A consciência nos alerta para o fato de que vivemos em um cosmo moralmente estruturado, e que nossas vidas correm por uma linha do tempo que nos leva a um dia em que prestaremos contas (Romanos 2.15-16) a um tribunal diante daquele que suportou, por nós, seu próprio tribunal (João 19.13).

Isso capacita uma pessoa a ter uma visão de longo prazo do universo e de sua própria vida. Com uma visão de curto prazo (digamos, de cerca de cem anos), pode-se facilmente concluir que a ambição é o que move a vida. Pode-se concluir, assim como fazem o salmista e Jó, que os impiedosos prosperam e que, portanto, o caminho para a prosperidade é através da crueldade. A consciência, quando funciona bem, aponta a pessoa para um escopo mais amplo — para o dia em que tudo será levado a prestar contas e a vida de uma pessoa realmente começará.

Esse bom funcionamento da consciência começa com o ser, e não com o fazer. Isso é precisamente o que todos os tipos de movimentos do Evangelho enfatizam. “Pois pela graça vocês foram salvos pela fé. E isso não é obra sua; é dom de Deus, não vem de obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2.8-9, ESV). Tal afirmação é imediatamente seguida por: “Porque somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (v. 10).

A moralidade é importante, mas está enraizada na vida, e não o contrário. Se você está em Cristo, seus pecados são perdoados. Você está crucificado com Cristo e ressuscitou com ele. Não há nada a alcançar por mérito. É por isso que, na melhor das hipóteses, o cristianismo evangélico aponta para a moralidade — ou, melhor, para a santificação, conforme a linguagem bíblica — como uma manifestação de quem já somos em Cristo, não como uma forma de merecer o favor de Deus.

A moralidade, então, opõe-se ao moralismo ou ao legalismo. Como disse Martinho Lutero: “Não nos tornamos justos por praticar atos justos; antes, praticamos atos justos por termos sido justificados”.

A moralidade deve ser algo que é definido fora da pessoa e fora da situação. A Cruz é um julgamento definitivo contra o pecado objetivamente definido. O inferno também. O pecado tem a ver não apenas com aquilo que você está fazendo (embora certamente abrange isso), mas também com o tipo de pessoa que você está se tornando. Temos diferentes pontos de vulnerabilidade, e é por isso que temos que carregar os fardos uns dos outros. Observe onde estão esses pontos fracos em sua própria vida. Qual é a ambição que move você? Quem são as pessoas que quer que gostem de você?

Uma consciência inoperante, que não funciona, é informada por prioridades como ambição, segurança e pertencimento. Foi assim que Pôncio Pilatos acabou crucificando Jesus. Não foi porque ele estivesse planejando ver esse Messias morto, mas porque ele estava “desejando agradar a multidão” (Marcos 15.15). Pilatos, segundo escreve Mateus, “percebeu que não estava obtendo nenhum resultado, mas, pelo contrário, estava se iniciando um tumulto”; então, ele lavou as mãos sobre o assunto (Mateus 27.24). É assim que acontece. Pilatos viu o que estava em jogo pela perspectiva do que ele estava ganhando ou perdendo — naquele momento ou no decorrer de sua vida. Ele definiu sua missão em termos de ambição e segurança, e não em termos de consciência. E, assim, sua consciência se ajustou à sua ambição, e não o contrário.

O mesmo pode acontecer com você — não importa se você trabalha em uma mercearia, em uma firma de contabilidade, na associação de roteiristas ou como missionário. Seu ímpeto sempre será o de silenciar sua consciência, pois não consegue lidar com o que teme que ela possa exigir de você. E nessa direção está o desastre.

O problema não é que você se verá se movendo de maneiras que nunca desejou — mas sim que sequer perceberá de que modo está se movendo. Você nem mesmo perceberá que está perseguindo o selo de aprovação de qualquer multidão à qual deseje pertencer, para qualquer objetivo que deseje alcançar. Só depois que já for tarde demais você verá que não se reconhece mais.

Esse clamor por ambição e por pertencimento não levará a uma ausência de consciência, mas sim a uma consciência deturpada, que se envergonha do que não é vergonhoso e não se envergonha daquilo que de fato o é. A formação do caráter também funciona de dentro para fora. Jesus disse: “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro que está em seu coração, e o homem mau tira coisas más do mal que está em seu coração, porque a sua boca fala do que está cheio o coração” (Lucas 6.45).

A consciência limpa não conduz, como imaginamos, à paz interior, pelo menos não de imediato. Uma consciência limpa é uma consciência que está viva — e, portanto, vibra com apelos ao arrependimento e ao redirecionamento e com súplicas por misericórdia. Mas, a longo prazo, uma consciência limpa leva à paz — pois lança fora o medo.

Se a sua ambição for o seu padrão, você vive escravizado pelo que quer que possa acabar com a sua ambição. Se pertencer à sua tribo for o seu padrão, então, você ficará apavorado com qualquer ameaça de ser banido dela. Mas, se sua missão estiver alinhada com sua consciência, e se sua consciência estiver alinhada com o evangelho, então, você não precisa viver sob um medo paralisante e também não precisa viver defendendo a si mesmo.

É por isso que Jesus disse a seus discípulos: “Portanto, não tenham medo deles. Não há nada escondido que não venha a ser revelado, nem oculto que não venha a se tornar conhecido. O que eu lhes digo na escuridão, falem à luz do dia; o que é sussurrado em seus ouvidos, proclamem dos telhados” (Mateus 10.26-27).

Se você está ciente de que o Dia do juízo está por vir, não precisa invocar seu próprio dia do juízo agora. E se alguém lhe pedir alguma coisa à custa de sua integridade, saiba que o preço é alto demais.

Russell Moore é editor-chefe da CT. Adaptado de Losing Our Religion: An Altar Call for Evangelical America , da autoria de Russell Moore. Copyright©2023, licenciado por Sentinel, um selo da Penguin Random House LLC.

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Chamadas para algo muito maior do que uma Barbie

Por que meninas e mulheres desejariam se ver representadas por uma boneca de plástico?

Christianity Today July 19, 2023
Xinyi Song / Unsplash

Nota da edição em português: este artigo foi escrito em 2010, mas traz reflexões importantes para nós, hoje.

Na semana passada, em um café, uma completa estranha se sentiu encorajada a me mostrar um artigo do jornal local. Era um artigo sobre bonecas Barbie voltadas para a carreira. O Wall Street Journal (WSJ) relatava que uma pesquisa da época, feita no site da Mattel, pediu às pessoas que votassem em qual carreira deveria ter a próxima boneca Barbie [da coleção “Eu posso ser…”].

“A Mattel deu-lhes a opção de escolher entre as profissões de arquiteta, apresentadora de telejornal, engenheira da computação, ambientalista e cirurgiã”, relata o WSJ, que obteve mais de 600 mil votos durante um período de quatro semanas. “Garotas de todo o mundo votaram de forma esmagadora na versão apresentadora da Barbie […] Mas, no final da primeira semana, uma crescente onda de votos de adultos para a Barbie engenheira da computação superou a escolha popular. Engenheiras da computação que souberam da votação lançaram uma campanha viral na Internet, para obter votos e garantir que a Barbie se juntasse a elas. Ambas as bonecas foram produzidas e colocadas no site da Mattel.

A mulher gentil e excêntrica que brandia a página de jornal parecia muito mais entusiasmada com as novas aspirações de carreira da Barbie do que eu mesma; contudo, a história do WSJ sugere que muitas mulheres têm sentimentos fortes sobre o simbolismo da Barbie. O que há nessas bonecas que as mulheres tanto levam para o lado pessoal?

Talvez eu estivesse mais interessada se a carreira de Barbie refletisse mais de perto a minha. Em Ohio, uma sacerdotisa da igreja episcopal tomou recentemente esse assunto em suas próprias mãos, e criou uma versão sua da Barbie: a Reverenda da Alta Igreja. Embora ela não esteja à venda pela Mattel, esta Barbie lhe rendeu 6 mil amigos em sua página no Facebook e uma história contada pelo Religion News Service, na semana passada.

Meu primeiro pensamento, ao ler sobre a Reverenda Barbie, foi de hesitação quanto à ideia de encorajar meninas a “aspirarem” ao sacerdócio. Em vez de carreira, não é o sacerdócio um chamado?

Então, pensei também que qualquer carreira que seguirmos deve ser ordenada por Deus, independentemente do campo em que se encontre. “Eu posso ser…” soa inspirador na superfície, mas sua desvantagem é que somente as aspirações de Deus irão satisfazer os desejos do nosso coração.

Naquele dia, no café, o artigo gerou uma conversa sobre o polêmico tema da Barbie no papel de modelo a ser seguido. “Por um momento, cheguei a pensar que ela estava falando sobre a Mattel fazer uma Barbie Barista”, eu disse a outra barista que estava ali.

“Ninguém acha que as meninas devem sonhar em ser baristas”, ela respondeu. Não discuti com ela, pois sabia que provavelmente estava certa. Mas isso é bobagem, porque, mesmo que não tenhamos um ícone na forma de uma boneca de plástico, é perfeitamente possível ter um impacto profundo nas pessoas ao seu redor, não importa o lugar que você esteja ou qual carreira tenha.

Há algo de atrativo em uma representação icônica de quem somos. Mas uma boneca de plástico só pode, evidentemente, representar as qualidades mais tangíveis: ela é definida pelo que faz (sua carreira) e por sua aparência (e muito já foi escrito sobre isso). Até mesmo a Reverenda Barbie é caracterizada apenas pelas ferramentas físicas de seu ofício: suas vestimentas e os itens de sua sacristia.

Ainda que não possa ser bem expressada em plástico, a vida cristã é definida em termos muito diferentes de “eu posso ser…”. Por exemplo: “Eu sou a justiça de Cristo” (1Coríntios 1.30). E “eu sou descendente de Abraão” (Gálatas 3.29). Nosso relacionamento com Deus não é um acessório de status. É bom saber que o padrão da Barbie é algo fabricado e que Jesus não espera que sejamos perfeitos para nos salvar.

Não podemos esperar que a Mattel represente a fé em plástico ou que encoraje as meninas a procurarem uma vocação que esteja além da carreira. No entanto, evidentemente, a Barbie continua a ter um impacto na cultura feminina e na imaginação infantil; portanto, eu me pergunto: De que maneira qualidades intangíveis, como fidelidade e sabedoria, conectam-se com os sonhos de meninas em serem mulheres adultas?

Alicia Cohn é escritora freelancer e mora em Denver. Seu twitter é @aliciacohn.

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Lições para criar raízes no local em que vivemos

Mais pessoas estão preferindo morar em um só lugar. Mas como podemos viver assim de forma intencional?

Christianity Today July 18, 2023
Szabo Viktor / Unsplash

O culto de lamento da nossa igreja aconteceu em março; havíamos nos mudado para Cincinnati no verão anterior. Não compareci ao culto pensando em minha própria tristeza — mas ela me alcançou, no silêncio sombrio e melancólico consagrado àqueles que compareceram. A dor de nossa mudança recente me atingiu em cheio, enquanto estava sentada ali, no banco da igreja, naquela noite de inverno. Deixar o lar, ainda que voluntariamente, acarreta uma ladainha sem fim de perdas.

Eu poderia ter acreditado que a pandemia da COVID-19 contribuiu para um aumento na mobilidade geográfica, uma vez que empresas — como a do meu marido — venderam suas sedes e optaram por manter a força de trabalho totalmente remota. Essa flexibilidade nos permitiu mudar de cidade para cuidar de um de nossos pais, já idoso, e a maioria dos americanos ainda relata ter o desejo de trabalhar de casa em período integral (enquanto apenas 13% o fazem).

Dados recentes, no entanto, revelam que há quatro décadas a mobilidade geográfica está em declínio nos Estados Unidos. Embora os distúrbios causados pela pandemia tenham levado a um aumento inicial no deslocamento de pessoas (muitas vezes de zonas urbanas para subúrbios ou zonas rurais), esses números se estabilizaram. Mais americanos estão criando raízes.

Talvez nosso apetite nacional pela transitoriedade esteja diminuindo. Ainda assim, confesso que me sinto pessimista em relação ao nosso compromisso coletivo em criar raízes e uma responsabilidade geográfica. Em nossos novos ambientes de teletrabalho, telessaúde e teleigreja, parece quase tão fácil optar por se desligar de um lugar quanto é optar por pertencer a ele. Com vidas socialmente mediadas, não há ausências imediatas e agudas a preencher, se você mudar de endereço. Com os acordos de trabalho remoto, há menos oportunidades de fazer novos amigos. Na verdade, ao comparar nossa mudança de 2022 com a de 2011, algo que me pareceu curioso é o quão pouca coisa muda hoje em dia, apesar da mudança na localização geográfica.

Cada vez mais parece não haver nada de inevitável em se criar raízes em um só lugar. Podemos trabalhar de casa, fazer compras de casa, socializar de casa, assistir cultos de casa. (De acordo com o relatório State of the Church Tech, da Pushpay, publicado em janeiro de 2023, 89% das igrejas ainda estão oferecendo um modelo híbrido de culto online e presencial, sendo que este último tipo sofreu um declínio de 5% na frequência.) A quase totalização de nosso ambiente digital imita a alienação material do subúrbio americano, que se desdobrou em meados do século 20 — embora agora a porta da garagem nunca precise ser aberta.

À medida que fica mais difícil viver e criar raízes, torna-se mais urgente que as igrejas incorporem uma identidade local e se comprometam a amar os geograficamente próximos de carne e osso.

O pertencimento a um lugar pode parecer um fator incidental para o florescimento humano em uma sociedade móvel; porém, de acordo com a história bíblica, um lugar é uma das primeiras dádivas de Deus para seu povo. Em Where Mortals Dwell [Onde os Mortais Habitam], obra de Craig Bartholomew, o estudioso do Antigo Testamento realoca o conhecido arco narrativo da criação, queda e redenção para dentro do contexto de lugar.

Como conta Bartholomew, bem no começo, o povo de Deus foi alocado — recebeu um lar físico com Deus, no Jardim do Éden que o Criador havia plantado para eles. A maldição do pecado não significou apenas o afastamento de Deus; mas também deslocamento — um exílio do jardim e a perda da estabilidade geográfica. A história da salvação, então, trata da recuperação de todos os aspectos do shalom perdido, entre eles a bênção de um lar físico e geográfico. Na Nova Jerusalém, seremos reconciliados com Deus — e realocados em uma cidade cujas luzes nunca se apagam.

Sem dúvida, hoje é preciso um esforço intencional para recebermos o lugar onde vivemos como uma dádiva, e não uma limitação. No mundo físico, há interrupções e contingências — fricções — que posso escolher evitar, quando opto por uma experiência de vida virtual. Existem próximos reais sofrendo na vida e, se eu permitir contato aberto [com eles], suas necessidades podem facilmente se impor de formas inconvenientes — como no dia em que um vizinho me confidenciou, dez minutos antes de uma ligação de trabalho, uma angústia de cortar o coração.

Mesmo com o compromisso de amar responsavelmente o lugar em que vivemos, nossos esforços podem ser frustrados pela ignorância. Com o desaparecimento dos jornais locais na última década, temos menos recursos para ficar sabendo dos problemas atuais enfrentados por nossos bairros, cidades e vilas. Quando as redações locais desaparecem (e, com elas, as reportagens sobre reuniões do conselho municipal, reuniões do conselho escolar e arrecadação de fundos na comunidade), isso corresponde a “menor participação dos eleitores, maior polarização [e] uma erosão geral do engajamento cívico”, segundo reportagem de McKay Coppins, da The Atlantic. É difícil amar de maneira significativa um lugar sem conhecer seus anseios e esperanças, suas dores e problemas.

As igrejas que levam a sério suas identidades locais podem desenvolver em seus membros o amor por um lugar e seu povo — mas isso também exigirá intencionalidade. Obrigará os líderes da igreja a dizerem de maneira franca e gentil: “A menos que sua saúde impeça você, participe presencialmente [dos cultos e atividades]”. Exigirá que as igrejas aprendam sobre os lugares em que foram plantadas — e que tragam esse aprendizado para a experiência da adoração comunitária.

Reconheço que tem uma parte particularmente formativa da liturgia de nossa igreja em Toronto — a Oração pela Igreja e pela Cidade — da qual sinto muita falta. Era a parte do culto em que orávamos pelo sindicato dos professores que estava ameaçando entrar em greve; quando elevávamos a Deus os nomes dos nossos líderes municipais; quando louvávamos a Deus pelos parques da nossa cidade. O culto semanal sempre levantava meus olhos e atraía a minha atenção para as realidades concretas da nossa cidade e de suas necessidades. Suspeito que esta seja uma experiência mais rara do que comum, pois muitas igrejas acham mais fácil, e talvez menos divisivo, falar do mundo do porvir em vez deste mundo em que vivemos.

Mas se a fidelidade cristã for algo encarnado (e sempre é), criar raízes locais não é opcional. O amor não pode ser arremessado de longe. Muitas vezes, o amor toma a forma de uma lasanha caseira, que apareceu na minha porta em setembro do ano passado, quando um membro da minha nova igreja soube que eu estava doente. (Até aquele momento, tínhamos ido apenas seis vezes à nova igreja.) Eu poderia facilmente ter pedido comida pelo Uber Eats, mas isso teria me impedido de experimentar a bênção de aprender a pertencer à minha nova família de fé.

Acabamos de comemorar o aniversário de um ano de nossa mudança para Cincinnati, e de dois meses como membros de uma igreja local. Ainda tenho muito a aprender sobre minha nova cidade e preciso me esforçar muito para amar meus novos próximos de maneira significativa. Mas sou grata por me sentir menos estrangeira, especialmente na igreja.

“Seja bem-vinda”, dizem eles, nas manhãs de domingo, entregando-me o boletim da igreja. E eu realmente acho que eles dizem isso de coração.

Jen Pollock Michel é apresentadora de podcast, palestrante e autora de cinco livros, entre eles In Good Time: 8 Habits for Reimagining Productivity, Resisting Rush e Practicing Peace (Baker Books, 2022).

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Não quero que meu filho herde meus pecados

A saúde física de meu filho não deve me preocupar mais do que seu bem-estar espiritual.

Christianity Today July 18, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons

Nos últimos anos, tivemos avanços revolucionários no campo da biotecnologia — em particular nas áreas de terapia celular humana e edição de genes.

Em março, especialistas se reuniram para a terceira conferência global, a fim de discutir os dilemas éticos envolvidos em seu trabalho — menos de cinco anos depois que um geneticista chinês anunciou que havia realizado uma “cirurgia genética” para impedir que dois bebês gêmeos herdassem do pai a doença causada pelo vírus HIV. Atualmente, pesquisas relacionadas à triagem de embriões para doenças poligênicas, entre elas diabetes do tipo 1, são objeto de intenso debate.

Alguns estão preocupados que a capacidade de fazer tais coisas possa um dia levar a uma espécie de “tecnoeugenia” e a “bebês projetados geneticamente”, hipóteses em que os futuros pais poderiam escolher os traços genéticos de seus futuros filhos — ou simplesmente editar os distúrbios genéticos de seus filhos para criar a melhor vida possível.

Como mãe que sofre de diabetes do tipo 1 (DT1), entendo esse impulso subjacente de proteger meu filho, mesmo sabendo que ele foi criado à imagem de Deus. Vivo em constante estado de alerta e me preocupo com a possibilidade de meu filho vir a desenvolver a própria doença crônica que tenho.

O diabetes do tipo 1 é uma doença autoimune que altera a vida da pessoa e não tem cura. A pesquisa mais atual sobre sua causa aponta para um forte fator genético — complexo e poligênico — que aumenta o risco de diabetes em crianças cujos pais têm DT1. Em minha própria família, fui diagnosticada 14 anos depois de minha irmã, consolidando a ligação genética por trás daquilo que, de outra forma, pareceria um diagnóstico aleatório. Hoje, se meu filho desenvolvesse DT1, essa ligação seria óbvia: ele herdou a doença de mim.

Conhecendo o risco que meu filho herdou de vir a desenvolver DT1, oro contra isso diariamente, pedindo ao Senhor que mantenha meu menino saudável. Estou sempre ansiosa para fazer qualquer coisa que possa poupá-lo de herdar a mesma doença que afeta todos os aspectos da minha própria vida.

Exceto por esse medo, para mim é fácil construir uma ligação com meu filho baseada nos traços de personalidade e nas habilidades que temos em comum — e fico feliz sempre que as pessoas notam nossas semelhanças. Ele se parece com você; ele tem o seu nariz! Se ele gostar de beisebol quando crescer, agradeceremos à carreira de seu pai na liga juvenil por isso. E se ele acabar gostando de ciência, felicitarei a mim mesma e a meu diploma de engenharia por esse fato.

Meu encorajamento, porém, às vezes vai além das qualidades objetivamente positivas de meu filho. Quando a teimosia e o orgulho aparecem — ou quando ele reage rapidamente com raiva — eu me divirto com esses ecos da minha própria força de vontade e da minha determinação, em vez de reconhecê-los como os primeiros brotos das tendências pecaminosas que meu filho herdou e aprendeu de mim.

Hoje, muitos de nós nos apegamos à própria saúde física e a de nossos familiares como o ápice da segurança. Mas, como mãe, o medo de transmitir meus pecados — que são fatais, sem a esperança que temos em Jesus — deve ser muito maior do que o medo de transmitir minhas doenças genéticas. E, embora eu seja sensível e vigilante para observar todos os sinais possíveis do meu diabetes, muitas vezes negligencio uma herança bem mais perigosa e provável: meus pecados persistentes e devastadores.

Será que os seres humanos realmente herdam o pecado? A ciência e a Bíblia dizem que sim. Não é apenas um desejo narcisista de nos vermos em nossos filhos; estudos mostram que a composição genética de um indivíduo pode determinar até 60% de seu temperamento. Além disso, o ambiente em que a criança vive e as pessoas responsáveis por cuidarem dela contribuem para sua personalidade de forma inequívoca, ainda que menos quantificável.

A questão da natureza versus a questão da criação é algo difícil de responder, quando estamos criando nossos pequeninos — já que eles podem imitar comportamentos aprendidos tão cedo quanto qualquer maneirismo inato venha à tona. Contudo, quer meu filho seja geneticamente predisposto ao orgulho por causa do meu DNA, quer ele simplesmente observe minha atitude arrogante, internalize minhas emoções e imite minhas reações, as características resultantes certamente são transmitidas por mim.

Como pais, é fácil ignorar os pecados de nossos filhos, especialmente quando esses pecados nos são familiares — tanto por causa de uma percepção autoconsciente de nossa própria culpa quanto por uma ignorância esperançosa, mas obstinada, sobre sua existência neles. Mas a Bíblia aponta para o dano persistente do pecado herdado.

Por causa de Adão, todos os seres humanos herdam a natureza pecaminosa (Romanos 5.12), porém, — assim como acontece com características genéticas específicas — os pais também podem transmitir certos pecados.

Os livros bíblicos de Reis e Crônicas traçam as fraquezas das linhagens reais de Israel e Judá. O rei Jotão fez o que era certo aos olhos do Senhor — exceto por deixar de destruir os altares onde as pessoas faziam sacrifícios para outros deuses (2Reis 15.34-35). Essa negligência se tornou uma armadilha para seu filho, Acaz, que, então, fez ídolos em todas as cidades (2Crônicas 28.25). A desobediência parcial do pai tornou-se o calcanhar de Aquiles do filho, levando-o à completa ruína.

E por mais atos de fidelidade pelos quais o rei Davi seja conhecido, ele também é lembrado por dois pecados que o definem — o adultério com Bate-Seba e o assassinato do marido dela (2Samuel 11). Davi lidou com esses pecados em sua vida pessoal, mas os ignorou passivamente na vida de seus filhos: Amnon, que cometeu adultério, e Absalão, que assassinou Amnon e mais tarde arquitetou um golpe.

Esses relatos bíblicos nos dizem que o pecado geracional não só existe como também destrói. Os pecados negligenciados pelos pais podem causar divisões na família, perdas físicas e separação de Deus. E a Escritura diz que, assim como qualquer doença fatal, todo pecado leva à morte (Romanos 6.23; Tiago 1.15).

O pecado é uma doença para a qual todos nascemos com uma propensão inata, propensão essa que posso optar por adular ou combater. E, muito embora eu não possa evitar a natureza pecaminosa de meu filho, posso levar sua saúde espiritual tão a sério quanto sua saúde física.

Mas, antes que eu possa fazer isso, em primeiro lugar, preciso assumir a responsabilidade pelos impulsos pecaminosos em minha própria vida.

Assim como Acaz foi arruinado por um pecado que não parecia incomodar Jotão, meu filho pode vir a ser profundamente impactado por alguma desobediência que estou de forma impensada modelando em minha própria vida. Aqueles dois dedos de fofoca ou aquele programa de TV lixo que pretendo parar de assistir podem até me parecer inofensivos — mas essas sementes podem ganhar força e poder na vida de meu filho.

Se algum dia ele fosse diagnosticado com diabetes, posso antecipar um sentimento de culpa de partir o coração junto com a necessidade de me desculpar pela dor que certamente enfrentará em seu futuro. Será que eu sentiria a mesma responsabilidade em relação a quaisquer hábitos pecaminosos que eu possa inadvertidamente ter passado para ele?

Em segundo lugar, preciso levar a sério até mesmo o menor sinal de pecado.

Se eu percebesse que meu filho apresenta algum sintoma inicial de diabetes, eu o reconheceria imediatamente e cairia de joelhos em oração. Mas quando se trata de perceber sinais de inveja ou indícios de amargura, eu logo os afasto. Estou familiarizada com os primeiros sinais de DT1, por isso, posso identificá-los rapidamente — eu os conheço porque convivo com eles. O mesmo é verdade para os pecados específicos que podemos ter em comum. Isso me dá uma responsabilidade especial (e capacidade!) para entender e lidar com o pecado do meu filho.

O reconhecimento persistente do pecado — tanto em nós mesmos quanto em nossos filhos — é um processo desconfortável. Mas, em última análise, isso me dá a oportunidade de mostrar ao meu filho o socorro prometido na graça de Jesus, em vez de ignorar sua necessidade de misericórdia e de santificação.

Como pais, dar o exemplo dessa necessidade da graça exige que confrontemos o pecado. Quando se trata de ensinar às crianças em que acreditar, muitas filosofias se concentram em não forçar demais. E, embora eu certamente não queira incutir-lhe vergonha, estou mais do que disposta a enfrentar algum desconforto — se tão somente eu souber que isso poderia proteger meu filho das consequências do pecado e evitar seu sofrimento a longo prazo.

Mostrar a meu filho a bondade de um Deus que nos vê, nos perdoa e nos ama deveria, na verdade, afrouxar meu controle sobre sua saúde física. Minha obsessão com o bem-estar da minha família serve apenas como um lembrete de que não tenho controle sobre isso. Posso me inscrever em todos os estudos, monitorar todos os sintomas e orar todas as noites, e meu filho ainda assim pode vir a desenvolver diabetes do tipo 1. Na verdade, ele pode desenvolver alguma doença ainda mais assustadora e grave que me pegará completamente desprevenida. Onde isso nos levará?

Em última análise, isso não significa apenas que há coisas piores a temer do que doenças crônicas; antes, significa que há promessas melhores do que a saúde física a esperar. Em Marcos 2.5-12, Jesus perdoou os pecados de um paralítico que foi baixado diante dele por amigos [através de uma abertura no teto]. A multidão ficou perplexa, esperando estática que Jesus o curasse.

Como mãe, sou culpada por confundir essas coisas. Frequentemente, ignoro a verdadeira necessidade de meu filho crer em Jesus e o miraculoso perdão dos pecados que Jesus opera — em favor de algum estado temporário de saúde e bem-estar do meu filho.

Continuarei a orar para que meu filho nunca herde meu diabetes, mas posso descansar no fato de que nossos corpos eternos serão poderosos e imperecíveis (1Coríntios 15.42-43). Descanso no fato de que o sofrimento físico é temporário — mas identificar o pecado, levá-lo a sério e apontar meu filho para o perdão de Jesus terão um impacto eterno.

Por mais que eu ore para que meu filho seja saudável, o objetivo que mais anseio é que meu filho conheça o Senhor, reconheça seus pecados e se liberte de seu fardo. E se ele herdar alguma coisa de mim, espero que seja essa minha compreensão da graça.

Anna Taylor é mãe, engenheira biomédica e escritora. Sua experiência em ensaios clínicos, combinada com um mestrado em ciência e religião, a ajudam a conciliar a Sagrada Escritura com a ciência, o sofrimento e o ceticismo.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Books

O que as árvores nos ensinam sobre vida, morte e ressurreição

Além de Deus e das pessoas, elas são os seres vivos mais mencionados na Bíblia.

Christianity Today July 12, 2023
Veeterzy / Unsplash

Sempre adorei árvores. Amo a aparência delas, sua sombra, o som do vento em suas folhas e o sabor de cada fruto que produzem. A primeira vez que plantei uma árvore foi na minha infância, com meu pai e meu avô, quando eu estava nos primeiros anos do ensino fundamental. Desde então, continuei a plantá-las. Certa vez, quando era estudante de medicina, minha esposa e eu arborizamos a rua inteira onde morávamos. Mas, doze anos atrás, quando me ofereci para plantar árvores em nossa igreja, um dos pastores me disse que eu tinha a teologia daqueles ativistas ambientais que abraçam árvores. E isso não foi um elogio da parte dele.

A igreja, no caso, era conservadora. Acreditava que a Escritura é a Palavra de Deus inspirada e inerrante. E era por isso que frequentávamos essa igreja. Como um membro me explicou certa vez: “Uma vez que alguém pega essa ladeira escorregadia do liberalismo, quem sabe onde vai parar”.

Minha primeira reação ao comentário do pastor foi: “Talvez eu esteja errado. Talvez Deus não se importe com as árvores.”

Naquela época, toda a nossa família era nova no cristianismo. Minha filha ainda não havia se casado com um pastor. Meu filho ainda não era um pediatra missionário na África, e eu ainda não tinha escrito livros sobre teologia aplicada nem pregado em mais de mil faculdades e igrejas ao redor do mundo. Afinal, o que sabia eu sobre a teologia das árvores?

Mas desde que encontrei o evangelho pela primeira vez, aos 40 anos, a Bíblia tem sido minha bússola. Assim, quando fui chamado de abraçador de árvores, eu me voltei para as Escrituras em busca de orientação.

Deus ama as árvores

Além das pessoas e de Deus, as árvores são os seres vivos mais mencionados na Bíblia. Há árvores no primeiro capítulo de Gênesis (v. 11-12), no primeiro salmo (Sl 1.3) e na última página do Apocalipse (22.2). Como que para enfatizar todas essas árvores, a Bíblia se refere à sabedoria como uma árvore (Provérbios 3.18).

Todo personagem e todo evento teológico de importância na Bíblia tem uma árvore associada consigo. A única exceção a esse padrão é José, mas no caso de José, a Bíblia lhe faz o maior dos elogios: José é uma árvore (Gênesis 49.22). Na verdade, Jeremias exorta todos os crentes a serem como uma árvore plantada junto às águas e que estende as suas raízes para o ribeiro (17.7-8).

A única descrição física de Jesus na Bíblia encontra-se em Isaías. “Quer reconhecer o Messias quando ele chegar?” Isaías pergunta. “Procure o homem que se assemelha a uma pequena árvore crescendo em um terreno árido” (53.2, paráfrase minha).

Você acha as árvores bonitas? Se acha, está em boa companhia. Deus também adora árvores. Quando grifamos cada frase que faz menção a uma árvore, nos três primeiros capítulos de Gênesis, podemos ter uma boa noção do que Deus pensa sobre as árvores. Quase um terço das frases cita uma árvore.

Gênesis 2.9 declara que as árvores são “agradáveis aos olhos”. E não há hesitação nesse padrão estético ao longo de toda a Bíblia. Quer Deus esteja instruindo seu povo sobre como fazer candelabros (Êxodo 25.31-40), decorar os ornamentos do templo (1Reis 6) ou fazer a borda do manto do sumo sacerdote (Êxodo 28.34), o padrão de beleza é sempre uma árvore (e seus frutos). Se fôssemos ver qual é o assento mais confortável que encontramos hoje em uma casa, é bem provável que ele fique de frente para uma televisão. No céu, o trono de Deus fica de frente para uma árvore (Apocalipse 22.2-3).

Em Gênesis 2, Deus faz duas coisas com as próprias mãos. Primeiro, ele forma Adão e sopra em suas narinas o fôlego de vida (v. 7). Então, antes que Adão pudesse expirar o ar de seus pulmões pela primeira vez, Deus vira para o outro lado e planta um jardim (v. 8). É aqui, sob as árvores, que Deus coloca amorosamente Adão, dando-lhe a tarefa de “cuidar delas e cultivá-las” (v. 15, KJV). As árvores têm suas tarefas exclusivas e divinamente estabelecidas a cumprir. Deus as encarrega de manter os seres humanos vivos (Gênesis 1.29), fornecer-lhes um lugar para viver (Gênesis 2.8) e fornecer alimento para sustentá-los (v. 16).

Por mais estranho que pareça, as Escrituras continuamente retratam as árvores como coisas que se comunicam. Elas batem palmas (Isaías 55.12), cantam de alegria (1Crônicas 16.33) e até discutem (Juízes 9.7-15). O que torna esse padrão especialmente estranho é que criaturas que evidentemente se comunicam — como peixes ou pássaros — são praticamente mudas na Bíblia. Ao longo dos milhares de anos que as pessoas têm lido a Bíblia, esse fato tem sido considerado mera poesia. Nas últimas duas décadas, porém, os cientistas que estudam as árvores descobriram algo fascinante sobre elas: elas realmente se comunicam. Elas contam, compartilham recursos e conversam entre si usando um sistema apelidado de “Wood Wide Web” [algo como uma rede mundial de árvores].

A floresta está desaparecendo

Apesar da verdadeira floresta de árvores que vemos nas Escrituras, a maioria das pessoas de hoje nunca ouviu um sermão sobre árvores. Mas não foi sempre assim. Dê uma olhada em alguns dos títulos dos sermões de Charles Spurgeon e você terá uma indicação do que as pessoas estavam ouvindo do púlpito, da metade para frente do século 19: “Cristo, a Árvore da Vida”, “A Árvore no Átrio de Deus”, “ Os cedros do Líbano”, “A macieira no bosque”, “A beleza da oliveira”, “O som das amoreiras”, “A árvore sem folhas” e assim por diante. Spurgeon, o “príncipe dos pregadores”, nunca teve dificuldade em enxergar tanto florestas quanto árvores nas Escrituras.

As árvores não desapareceram apenas de nossos sermões, como também estão desaparecendo das Bíblias. Tenho em minha estante uma Bíblia de Estudo King James, publicada na época de Spurgeon, que contém mais de 20 páginas sobre o assunto de árvores e plantas, entre as quais estão várias ilustrações de árvores de página inteira. Em 2013, a mesma editora lançou uma edição atualizada dessa Bíblia que deixou de fora todas essas páginas dos comentários. No índice, restam apenas três entradas sob a palavra “árvore”; o índice de outra Bíblia de estudo ainda mais recente que está em minha estante não contém nenhuma entrada relacionada à palavra árvore.

Se as árvores já foram lugar-comum em sermões e Bíblias de estudo, elas também eram presença garantida na literatura cristã. Se voltarmos mais de mil anos no tempo, até uma das peças mais antigas da literatura inglesa, The Dream of the Rood [O Sonho da Santa Cruz], ouviremos a história da Paixão ser contada do ponto de vista de uma árvore.

Mesmo em tempos mais recentes, escritores de ficção cristã como George MacDonald, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis impregnaram suas obras com uma teologia das árvores arraigada na Bíblia. Seja na imagem do céu escrita sob a pena de MacDonald, em sua obra At the Back of the North Wind [Nas Asas do Vento Norte], seja em Lothlórien, na Terra Média, o paraíso das árvores de Tolkien, seja na forma como as árvores reagem quando Aslan se move na Nárnia de C. S. Lewis, cada um desses autores retrata uma imagem do shalom entre as árvores. Os mocinhos vivem embaixo ou dentro ou ao redor de árvores. Eles valorizam, protegem e até conversam com as árvores. Em contraste, os vilões da história, como Tash e Sauron, são claramente exterminadores de árvores — até mesmo de árvores falantes!

O que explica a crescente ausência de árvores no imaginário cristão atual? As razões são muitas e complexas, mas provavelmente se concentram no ressurgimento da heresia do dualismo do primeiro século: o mundo criado por Deus é mau e apenas as coisas espirituais refletem a glória de Deus. Uma das principais falhas dessa filosofia é que ela deprecia tudo que Deus disse que era “bom” na criação. Como Paulo disse em Romanos, vocês ficam sem desculpas para não acreditar em Deus se derem um passeio pela floresta. Por meio da natureza, somos confrontados com evidências irrefutáveis do poder e da glória de Deus (veja Romanos 1.19-20). Se as árvores e o restante do mundo criado por Deus fossem inerentemente corruptos, a afirmação de Paulo seria um equívoco.

De volta à Árvore da Vida

O problema de subtrair as árvores de nossa teologia é que Deus as colocou na Bíblia por uma razão. Havia duas árvores no centro do Jardim do Éden. Uma delas (a Árvore da Vida) representava a conexão da humanidade com o divino e o eterno. A outra (a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal) representava a ação humana — e possível rebelião. Quando Adão e Eva comeram da árvore proibida, eles tentaram encobrir seu crime depredando as próprias árvores que foram encarregados de “cultivar” (Gênesis 2.15; 3.7). O próximo movimento deles foi correr e se esconder entre elas (Gênesis 3.8). O capítulo três de Gênesis termina com Adão e Eva sendo banidos do Jardim. O que é a Bíblia, então, senão a história de Deus atendendo à necessidade que a humanidade tem de um Salvador, para nos levar de volta à Árvore da Vida?

Sem as árvores na Bíblia, as águas de Mara teriam continuado amargas para sempre (Êxodo 15.25), Golias, o gigante de Gate, não teria sido derrotado na disputa (1Samuel 17.43) e Davi teria perdido o sinal para a batalha (1Crônicas 14.15). Sem as árvores, Débora não teria um lugar para julgar [as questões] em Israel (Juízes 4.5), e Deus não teria chamado seu povo para que fossem carvalhos de justiça (Isaías 61.3). Não haveria amendoal (Luz, que foi renomeada Betel, significa amendoeira) para que Jacó adormecesse e sonhasse com uma escada de madeira que transpusesse o abismo entre céu e terra (Gênesis 28.10-19), e Jó não teria proferido sua famosa frase sobre árvores e ressurreição (Jó 14.7). E o que é mais importante, sem árvores é impossível entender a Queda ou a morte expiatória de Jesus.

Isaías previu que o povo de Deus deixaria de notar o “broto tenro” que ele havia plantado para a salvação deles (Isaías 53.2), profecia que se cumpriu no primeiro capítulo do evangelho de João. Esta é a cena em que Filipe foi a Natanael, dizendo: “Achamos aquele sobre quem Moisés escreveu na Lei, e a respeito de quem os profetas também escreveram: Jesus de Nazaré, filho de José” (João 1.45). E Natanael deu sua célebre resposta: “Nazaré? Pode vir alguma coisa boa de lá?” “Venha e veja”, exortou Filipe (v. 46). Quando Jesus viu Natanael se aproximar, ele disse: “Aí está um verdadeiro israelita, em quem não há falsidade” (v. 47, KJV). Jesus poderia ter dito com a mesma facilidade: Aí está um Israel (alguém que lutou com Deus e perseverou) em quem não restou nenhum Jacó (malandro). Nathaniel certamente entenderia o elogio.

Anteriormente, Jesus tinha visto Natanael debaixo de uma figueira (João 1.48). A Bíblia não registra o que Natanael estava orando no momento em que Jesus o viu, mas a simples menção a essa ocasião permitiu queNatanael soubesse, sem sombra de dúvida, que Jesus era o Messias. Talvez Natanael tivesse implorado ao Senhor para ver o Messias em vida. Ele pode até ter ido longe a ponto de lembrar a Deus que estudara os profetas em um esforço para reconhecer o Messias.

Mas Natanael havia esquecido as palavras do profeta Isaías: “Ele cresceu diante dele como um broto tenro, e como uma raiz saída de uma terra seca. Ele não tinha qualquer beleza ou majestade que nos atraísse, nada em sua aparência para que o desejássemos” (53.2). Como Isaías previu, algo realmente grande viria de uma cidade que tinha o nome de uma pequena árvore: Nazaré!

Jesus prosseguiu, dizendo a Natanael que ele veria a escada com que Jacó sonhara há muito tempo: “Vocês verão o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem” (João 1.51). Um plano de resgate que envolvia árvores estava se desenrolando no tempo, quer Natanael o reconhecesse ou não.

Portanto, não surpreende o fato de que Jesus tenha falado sobre árvores serem arrancadas e lançadas ao mar pela fé (Lucas 17.6). Também não é nenhuma surpresa que ele tenha falado sobre seus discípulos darem frutos (João 15.8) ou que os tenha instruído a permanecerem nele, como ramos frutíferos em uma videira vivificante (15.4-6). Como disse Paulo, os crentes são como um ramo ou rebento enxertado em uma árvore (Romanos 11.17-18).

Jesus é um carpinteiro durão — do tipo que consegue erguer sozinho duas folhas de compensado de três quartos de polegada. Ele é duro de matar. Desde o momento em que ele nasceu, seus inimigos começaram a atentar contra a sua vida. Eles tentaram matá-lo quando bebê (Mateus 2.16-18), apedrejá-lo (João 10.31-39) e jogá-lo de um penhasco (Lucas 4.29), mas não funcionou. Jesus podia passar 40 dias sem comer, subir em um ringue com o adversário mais difícil do planeta e sair vencedor após três rounds (Mateus 4.1–11). Não adiantou tentar afogá-lo — ele também escapou disso (Mateus 14.22-33).

Não, a única coisa que poderia prejudicar o carpinteiro de Nazaré era uma árvore. Por quê? Porque aquele que é pendurado num madeiro é amaldiçoado (Deuteronômio 21.23, Gálatas 3.13), não aquele que é esfaqueado, apedrejado ou queimado. (Observe que, no hebraico, a palavra para forca e árvore é a mesma.) Sem árvores, não há ressurreição, nem Boas Novas na manhã de Páscoa. A cruz é realmente uma árvore da vida derrubada pelo pecado do homem. No entanto, o sangue de Jesus fez com que uma árvore morta, usada como instrumento de tortura romana, se tornasse o símbolo da vida eterna — a Árvore da Vida. Jesus é a Árvore da Vida, e um dia seus seguidores comerão das folhas dessa árvore e serão curados (Apocalipse 22.2, 14).

Um novo tipo de porta

Comecei a vida como carpinteiro. Eu nunca parei realmente. Nos últimos anos, reformei completamente a casa em que moro — portas, pisos, tudo.

Uma parte da carpintaria que separa os guerreiros de fim de semana dos carpinteiros experientes é pendurar portas maciças do zero. As portas, ao longo do tempo e das culturas, são notoriamente semelhantes. São penduradas em dobradiças e se fecham em um batente. Uma porta é encimada por um batente — ou, como diz a Bíblia, uma porta tem duas ombreiras laterais e é encimada por uma verga [viga superior] (Êxodo 12.22). Quando o sangue do Cordeiro Pascal foi aplicado a essas três vigas, na época do Êxodo, a porta foi selada e o anjo da morte não pôde entrar.

Em uma celebração de Páscoa há 2 mil anos, Jesus fez um novo e estranho tipo de porta. Lembre-se, é uma porta estreita. Ao contrário de todas as outras portas que precisam de três vigas, essa utiliza apenas duas: uma vertical e outra horizontal. Quando o sangue de Jesus é aplicado a essas duas vigas de madeira em cruz, a porta para o céu se abre. Não há outra maneira de destrancá-la.

Acredito que a Bíblia tenha uma porção de árvores porque as árvores nos ensinam sobre a natureza de Deus. Assim como uma árvore, Deus está constantemente se doando. As árvores nos dão vida muito antes de os seres humanos terem ideia da existência do oxigênio. As árvores nos dão vida, beleza, alimento e sombra. A escrivaninha em que estou escrevendo é feita de madeira de bordos. Não é de admirar que Deus use árvores para nos instruir sobre a vida, a morte e a ressurreição. As árvores, assim como Deus, nos dão vida mesmo após a morte.

Você poderia pensar que Jesus tem algo contra árvores, depois que foi crucificado. Mas não parece ser esse o caso. Na manhã de Páscoa, quando Maria desceu para colocar flores no sepulcro, tinha os olhos vermelhos de tanto chorar. Ela olhou para cima e viu Jesus. Mas não o confundiu com um soldado, um oficial do império ou um mercador. Ela o confundiu com um jardineiro (João 20.15). E isso não foi um erro. Ele é o novo Adão, que retoma o trabalho de onde o velho Adão falhou — cuidando do jardim e o cultivando. Seu convite para nós, no último capítulo da Bíblia, é para que guardemos seus mandamentos, a fim de que possamos encontrá-lo em uma árvore — a Árvore da Vida, diante do trono de Deus, cujos ramos dão frutos em todas as estações e cujas folhas são para a cura das nações.

Um investimento no futuro da humanidade

Aqueles que plantam ou que protegem árvores por causa de sua fé estão em boa companhia. Na verdade, a igreja onde um dia suspeitaram que eu tivesse tendências de abraçar árvores acabou plantando árvores em seu terreno. E ainda mais, o logotipo da igreja agora exibe uma Árvore da Vida estilizada. Acredito que essa resposta seja um símbolo do que acontecerá quando os cristãos redescobrirem as árvores que Deus plantou nas Escrituras e reflorestarem sua fé.

Abraão foi a primeira pessoa na Bíblia a plantar árvores. Naquela época, Abraão não possuía sequer um metro quadrado de terra. Biblicamente falando, o plantio de árvores começou como um ato altruísta de fé. “E Abraão, por sua vez, plantou um bosque em Berseba e ali invocou o nome do Senhor, o Deus eterno” (Gênesis 21.33, KJV). Em virtude da maneira como as árvores funcionam, o ato de Abraão fez do mundo um lugar melhor.

Hoje, entendemos o papel de uma árvore nos ciclos globais de oxigênio, carbono e água. Mas tudo isso era desconhecido por Abraão. No entanto, o bosque de Abraão é uma bênção para todas as famílias da terra (veja Gênesis 12.3). Abraão plantou para a próxima geração, e para a geração seguinte.

O Antigo Testamento termina com uma advertência para pensarmos a longo prazo e agradecermos por aqueles que vieram antes de nós. Os corações de uma geração devem se voltar para os corações da geração seguinte, e vice-versa (veja Malaquias 4.6). Só o Senhor conhece o coração de um homem, mas, no caso de Abraão, o plantio e a proteção de árvores eram evidências tangíveis do que havia em seu coração. Pensar a longo prazo é algo que vem de Deus. Pensar a curto prazo não. Talvez esta seja outra razão pela qual o primeiro salmo diz que o homem justo é como uma árvore.

De fato, o escritor do primeiro salmo nos proporciona uma das percepções mais claras sobre o que Deus pensa a respeito das árvores. O rei Davi dançou e bradou de alegria, quando a arca — que levava a Escritura, um vaso com o maná e um ramo de amendoeira — foi transferida para o tabernáculo que ele havia construído. Ele escreveu um cântico de ação de graças para celebrar a ocasião. O cântico anseia pela segunda vinda do Messias. Até mesmo as árvores se juntam à celebração: “Regozijem-se as árvores do bosque na presença do Senhor , porque vem a julgar a terra” (1Crônicas 16.33, ARA). A Bíblia diz que muitas pessoas se esconderão sob as rochas para evitar o juízo na Segunda Vinda, mas não as árvores. Elas finalmente terão o seu dia do juízo e sabem exatamente qual será o veredicto.

Eu creio que Jesus voltará para julgar os vivos e os mortos, como diz a Bíblia. Mas e aqueles que argumentam que a volta do Senhor nos livra de qualquer preocupação com as árvores? “Todos os recursos”, dizem eles, “devem ser aplicados no evangelismo”.

Se alguém acredita nisso e age dessa forma, eu digo: “Amém!” Mas muitas vezes esse sentimento se expressa com a mesma sinceridade com que Judas Iscariotes defendeu os pobres, enquanto Maria ungia Jesus com fino perfume (veja João 12.1-8).

As árvores são um investimento de Deus no futuro da humanidade. Elas são a única coisa viva a quem Deus dá um anel a cada aniversário. Só ele sabe o momento exato da volta de Cristo. Espero que seja amanhã de manhã. Mas, enquanto aguardo, plantarei árvores que levarão um século para crescer e tentarei espalhar o evangelho como se não houvesse amanhã.

Matthew Sleeth é médico, palestrante, autor e diretor executivo da Blessed Earth, uma organização que promove o cuidado com a criação. Seu livro, Reforesting Faith: What Trees Teach Us About the Nature of God and His Love for Us (WaterBrook), foi lançado em abril de 2019.

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Um inesperado consolo para pais e mães em Eclesiastes

Para Deus não há desafios novos, pois sua provisão continua imutável.

Christianity Today July 12, 2023
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Envato / Vlada Karpovich / Pexels / Rosmarie Wirz / Getty

Em um recente fórum para pais, sobre o tema crianças e tecnologia, que aconteceu em minha igreja, dei um exemplo discreto de fracasso dos meus anos como mãe de adolescentes. Mesmo naquele momento em que eu contava de novo a história, pude sentir o nó do pânico no meu estômago, o mesmo que senti quando o fato aconteceu em tempo real.

Nada inspira mais medo em nós do que quando nossas responsabilidades como pais se cruzam com as duras realidades do nosso mundo. E os pais de hoje enfrentam sua parcela de medos legítimos.

Entre as mídias sociais, as mudanças na ética sexual, escândalos de abuso sexual, pandemia, pornografia e todos os desafios habituais da criação de filhos, o consenso é claro: ser pai e mãe hoje em dia é difícil. Os pais cristãos estão com medo, talvez com mais medo do que já vi antes, em meus 25 anos de ministério.

Queremos proteger nossos filhos da tentação e da influência negativa, mas a tarefa parece algo impraticável. Podemos nos sentir impotentes, como alguém que tem de navegar por águas desconhecidas com monstros por todos os lados. Mas em meio aos meus medos como mãe, o Senhor me trouxe à mente uma ajuda atemporal para servir de bússola: Ele me lembrou daquilo que não muda.

Meus filhos enfrentaram desafios sem precedentes com tecnologia e pressões sociais? Em certo sentido, sim. Mas, observando mais de perto, eram velhos desafios envoltos em novas embalagens. O Livro de Eclesiastes faz um grande esforço para enfatizar que não há nada de novo debaixo do sol.

Sempre considerei essa mensagem um pouco deprimente, mas em tempos tumultuados, ela emergiu como a força estabilizadora de que eu tanto precisava. Aqueles desafios não eram inéditos. Aquelas águas não eram desconhecidas. O Deus eterno olha para esta geração e não vê problemas novos. E não só isso, como ele também está pronto, como sempre esteve, para ser fiel a esta geração e a todas as gerações.

Meus filhos seriam fatalmente subjugados pelas tentações diante deles? Não, e louvado seja Deus por isso. Há muito tempo aprecio a garantia, dada em 1Coríntios 10.13, de que Deus sempre provê uma maneira para escaparmos da tentação. Mas criar adolescentes me ajudou a meditar neste versículo: “Não sobreveio a vocês tentação que não fosse comum aos homens”. As tentações desta geração não são novas nem algo que nunca se viu antes. Elas são tão antigas quanto a história da humanidade.

O que nos parece ser sem precedentes é apenas outro mecanismo para cometer um velho pecado, um método atual para ceder a uma tentação antiga. A tecnologia nos propicia novas maneiras de sucumbir à velha tentação da luxúria. As tendências culturais nos propiciam novas maneiras de sucumbir a velhas tentações como autodeterminação, obstinação e adoração de si mesmo. Pais ansiosos podem se lembrar que esses pecados comuns sempre vêm acompanhados da mesma provisão de Deus para deles escapar.

Pais de todas as gerações lutam com medos legítimos e ilegítimos. Suspeito que pais cristãos de gerações anteriores, que criaram filhos em meio a fome, perseguição, pobreza, pestes, escravidão e guerra, questionariam se de fato enfrentamos desafios excepcionais na nossa geração.

Os mesmos poços profundos de sabedoria que estavam disponíveis para eles estão disponíveis para nós. As mesmas escapatórias para as tentações comuns estão disponíveis para nós e para nossos filhos. O mesmo Deus que foi rocha e fortaleza para eles é rocha e fortaleza para nós, hoje.

Por mais que queiramos, não podemos manter nossos filhos a salvo do mundo. O que podemos fazer é educá-los e orientá-los tendo em vista os medos certos, informados sobre os riscos que nos cercam, ancorados no temor a Deus.

Como observou Tim Kimmel, nossa tarefa não é criar filhos seguros, mas sim criar filhos fortes. As crianças têm um “nariz espiritual” sensível. Elas podem sentir o cheiro do medo em nós. Devemos dar-lhes o perfume de Cristo em nossas interações diárias com elas. Portanto, que nossa paternidade e nossa maternidade sejam motivadas não pelos medos da nossa geração, mas pelo temor do Senhor.

O temor do Senhor é o princípio da sabedoria. Os pais motivados pelo devido temor irão exalar o perfume inconfundível de que as crianças precisam para crescerem fortes em um mundo que é, sempre foi e sempre será inseguro.

Quando nós, como pais, somos um exemplo de calma diante da incerteza e de sabedoria diante da tentação, convidamos nossos filhos a terem a mesma força de caráter. Nós os convidamos a temer como se deve, em uma era que nada tem de excepcional.

Jen Wilkin é esposa, mãe e professora de Bíblia. Ela é a autora de Women of the Word e None Like Him. Seu twitter é @jenniferwilkin.

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Jesus já te decepcionou?

É no mundo real que declarações como “não seja feita a minha vontade, mas a tua” têm um significado poderoso.

Christianity Today July 5, 2023
James Tissot / Brooklyn Museum

Nota da edição em português: Este artigo foi originalmente escrito em 1970 por Elisabeth Elliot, mas ainda traz reflexões importantes para os dias de hoje.

Uma mulher que veio almoçar em minha casa, num dia de verão, foi embora determinada a ler alguns de meus livros. Ela começou, infelizmente, por um romance (o único romance que escrevi), e depois me escreveu uma carta muito gentil, na qual me agradecia pelo almoço e dizia que tinha lido o livro, mas gostaria que eu tivesse “acrescentado” algo mais a ele. Ela achava que o livro deveria terminar, segundo suas palavras, com uma “compreensão mais profunda e sem decepções com Jesus”.

Eu sei exatamente como ela se sente. Muitos de nós gostaríamos de “acrescentar” esse algo mais. Adoraríamos poder nos levantar na congregação dos justos e dizer: “Nunca me decepcionei com Jesus”.

O problema é que o livro precisava ser fiel à vida, e descobri que a vida me conduz a muitos becos sem saída, a lugares sombrios e a selvas sem trilhas, lugares onde o que eu gostaria de ver acrescentado simplesmente não o é, e as explicações que morro de vontade de encontrar jamais aparecem.

Além do mais, encontro coisas dessa forma não apenas em minha própria experiência de vida, mas também em descrições disso que estão registradas na Bíblia, a qual é precisamente verdadeira em relação à vida. Todos nós já ouvimos argumentos dizerem que, quando o pecado é retratado na Bíblia, ele também é claramente identificado e punido. Engoli isso por muitos anos, mas, um belo dia, decidi verificar essa alegação e descobri que não era verdade. Existem alguns atos horrendos registrados no Antigo Testamento, dos quais as pessoas aparentemente se safaram (a história da concubina do levita, em Juízes 19, é um exemplo). Existem incontáveis episódios que falam de mentira, trapaça e esquemas egoístas. Há fracassos, derrotas, esperanças frustradas, mortes — e muitas histórias terminam bem longe de serem satisfatórias. Nada lhes é “acrescentado”.

Ora, mas o Novo Testamento foi acrescentado. Ele lança uma grande torrente de luz sobre o Antigo Testamento e descreve a esperança do mundo, a redenção por Cristo e tudo o que isso significa. Mas, mesmo no Novo Testamento, na vida do próprio Jesus, que veio mostrar em carne como Deus é, há ocasiões em que as pessoas se decepcionam. De fato, elas estavam especificamente desapontadas com Jesus.

Os sábios que vieram encontrar o rei recém-nascido ficaram perplexos, quando chegaram ao palácio do rei e souberam que não fora lá que o nascimento tinha ocorrido. Deve ter sido embaraçoso, confuso e decepcionante para eles.

Quando tinha doze anos, Jesus magoou sua mãe por ter saído sozinho, sem falar com ela. Depois de vários dias de viagem e de preocupação agonizante, seus pais o encontraram, e ele tinha uma explicação pronta, mas Maria não pôde conter uma repreensão. “Por que você nos tratou assim?” Foi a reação de uma mãe humana. Como poderia ela tê-lo entendido?

Muitas vezes imaginei coisas que devem ter acontecido, quando Jesus era aprendiz de carpinteiro. Um homem deixa um assento de madeira para consertar, mas encontra a oficina vazia, quando volta para pegar sua encomenda. Jesus mais uma vez foi atrás de cuidar dos negócios do Pai. Posso facilmente imaginar a exasperação de José, quando seu [uso do] tempo não coincidia com o de Jesus.

Os Evangelhos contam sobre certos momentos em que os discípulos procuraram por Jesus em todos os lugares, pois estavam precisando desesperadamente dele, e não puderam encontrá-lo. Multidões o seguiam, cercavam-no, imploravam e bajulavam-no, até que ele não tinha mais tempo nem para comer. Jesus deve ter desapontado e enfurecido alguns dos que integravam essas multidões.

É uma questão simples para nós, hoje, olhar para o registro das Escrituras e ver que ninguém deveria ter ficado desapontado. Mas a verdade é que muitos ficaram desapontados, pois eram humanos.

O que os amigos de João Batista pensaram, quando contaram a Jesus sobre a prisão de João e o perigo iminente de ele ser executado, e Jesus não fez absolutamente nada a respeito, exceto enviar uma mensagem estranha? Ele não foi sequer visitar João na prisão, muito menos libertá-lo. A palavra que ele enviou deve ter parecido enigmática, na melhor das hipóteses, se não uma zombaria, naquelas circunstâncias: “feliz é aquele que não se escandaliza por minha causa” (Mateus 11.6). Mas o Filho de Deus sabia que essa mensagem poderia ser confiada a João, em quem confiava, além disso, para morrer o que parecia ser uma morte sem sentido — em que uma jovem dançarina tola e sua mãe perversa e cheia de intrigas manipularam tudo.

Decepcionar é deixar de satisfazer esperanças ou expectativas. Somos humanos e, portanto, ignorantes, cegos, egoístas. Como podemos deixar de nos sentir desencorajados, quando Deus não age de acordo com nossas expectativas? Muitos homens nas Escrituras ficaram desapontados e bradaram suas queixas contra Deus — Jó, por exemplo, em linguagem quase insuportavelmente vívida; e o salmista, que repetidamente perguntava: “Até quando, ó Senhor?” “Esqueceu-se Deus de ser misericordioso?”

Que alívio é para mim encontrar esses clamores humanos no livro inspirado! Sei que não estou sozinha em minhas decepções. Não fui deixada em um deserto uivante e desolado, enquanto todos os que realmente amam a Deus ascendem firmes a alturas reluzentes, muito além da minha visão. Jonas sentiu ervas daninhas sobre sua cabeça. Pedro começou a afundar. Jó sentiu que havia sido abandonado em um lugar de chacais, e disse isso — ele perguntou a seus amigos, aqueles “consoladores” que sabiam as respostas para os seus problemas: “Vocês vão falar enganosamente a favor dele [de Deus]? (Jó 13.7)

Portanto, para ser bem sincera, não posso dizer que nunca fiquei desapontada. Se eu pudesse dizer isso, seria onisciente, ou ao menos uma profetisa, pois as coisas aconteceriam exatamente conforme o esperado e o aguardado.

A gentil mulher que me escreveu aquela carta queria que eu, como autora, fosse onipotente e consertasse tudo. Por que eu não poderia acrescentar coisas, para que tudo saísse perfeito? Porque eu não sabia o suficiente. Minha heroína não sabia o suficiente, e, nesse aspecto, eu estava tentando ser fiel à vida. É na vida, no mundo real, aqui embaixo, onde as coisas dão e não dão certo, que o justo deve viver pela fé. Quando ficamos sinceramente desapontados com a maneira como o Deus em quem confiamos lidou com as coisas, quando o que aconteceu não foi nada do que queríamos — é então que declarações como “Não seja feita a minha vontade, mas a tua” têm um significado poderoso. Que sólida confiança o velho João Batista teve, enquanto estava em correntes — cativo, condenado, solitário, abençoado, mas não ofendido.

Elisabeth Elliot foi escritora e palestrante, autora de livros como Através dos Portais do Esplendor e Uma Vida de Obediência. Era formada pelo Wheaton College e foi missionária.

Tradução por Mariana Albuquerque

Edição por Marisa Lopes

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