Igrejas brasileiras estão na linha de frente de um desacordo entre os governadores de estados e o presidente Jair Bolsonaro sobre as medidas de quarentena destinadas a conter a disseminação do novo coronavírus, que já infectou mais de 11.100 brasileiros e matou 486. Bolsonaro se opõe ativamente aos governadores e diz que um isolamento total acabará por destruir a economia brasileira.
No final de março, Bolsonaro aprovou um decreto que acrescentou atividades religiosas à lista de “serviços essenciais”, o que significa que as igrejas podem permanecer abertas, mesmo que os cidadãos sejam solicitados a ficar em casa. O decreto foi anulado por um tribunal federal no dia seguinte. Nas ruas, no domingo seguinte, ele novamente defendeu que as pessoas voltassem ao trabalho.
“Abra as igrejas, por favor, precisamos delas”, implorou repetidamente uma mulher em um dos vídeos que Bolsonaro postou nas mídias sociais. Ele respondeu com palavras tranquilizadoras.
Analistas políticos afirmam que Bolsonaro está atendendo sua base eleitoral – os politicamente influentes evangélicos, que ajudaram a levar o presidente de extrema direita ao poder nas eleições de 2018 -, deixando que saibam que não foram esquecidos. O Brasil abriga o maior número de católicos do mundo – cerca de 123 milhões, de acordo com o último censo oficial. Mas os evangélicos são uma força crescente. O censo de 2010 contou 42 milhões de fiéis, cerca de 20% da população do país. Uma pesquisa divulgada em janeiro pelo Datafolha concluiu que os protestantes agora representam 1 em cada 3 brasileiros.
"Nenhum partido político no Brasil consegue reunir tantas pessoas, em tantos lugares, tantas vezes por semana como as igrejas", disse à Associated Press Carlos Melo, professor de ciências políticas do instituto Insper, em São Paulo. "E as pessoas tendem a seguir as instruções dos pastores."
Pastores bastante influentes apoiam a posição do presidente com relação ao COVID-19, embora respeitando, relutantemente, as determinações dos governadores e cancelando cultos ou os realizando online. "Pergunto o que é pior: coronavírus ou caos social?", disse à AP Silas Malafaia, um dos pastores mais proeminentes e controversos do Brasil, que lidera a Assembléia de Deus Vitória em Cristo. "Posso garantir que a convulsão social é pior."
Embora os protestos de figuras neopentecostais como Malafaia tenham atraído as atenções da mídia, muitas igrejas evangélicas do Brasil há bastante tempo decidiram seguir o conselho dos especialistas em saúde e suspender os cultos.
Miguel Uchôa, bispo primaz da Igreja Anglicana no Brasil, em Recife, que representa igrejas evangélicas alinhadas ao conservador movimento anglicano GAFCON, proibiu todas as suas igrejas de realizar “qualquer tipo de reunião presencial”. Desde 26 de março, dos cultos dominicais aos pequenos grupos estão acontecendo online.
"Entendemos que a igreja deve colaborar como puder para deter o avanço do vírus e ajudar a salvar mais vidas", disse ele à CT.
“Templo e Igreja são coisas diferentes”, disse à CT Alexandre Ximenes, bispo da Igreja Episcopal Carismática do Brasil em Recife. “Concordo com o fechamento dos templos para grandes reuniões, por acatar as orientações dos sanitaristas e não contribuir para o aumento do problema! Bom senso e exemplo!”
“A missão da Igreja não se resume a preparar o homem para viver no céu, mas, também, cabe a ela a missão fundamental de ensinar a ele como se comportar na terra, o que eu chamo de evangelho horizontal”, disse à CT Fernando Firmino, bispo da Igreja Nova Vida em Araripina. “Sendo assim, devemos aproveitar esse tempo para mostrar aos nossos liderados a necessidade de sermos bons cidadãos, usando uma fé que não nos arrebata do bom senso e da razão.
"Por isso, acredito que o culto online, neste período de isolamento, tem sido, além de uma ferramenta reveladora de nossa fé e espiritualidade, uma revelação da nossa responsabilidade social", disse ele.
“Para nossa surpresa, essas reuniões na internet com grupos de igrejas tiveram um efeito surpreendente no incentivo e no fortalecimento das pessoas”, disse Augustus Nicodemus Lopes, pastor na Primeira Igreja Presbiteriana de Recife, à CT. "A maioria está confiante em Deus e está sendo confortada, mesmo diante das terríveis perspectivas que se apresentam."
"Preparamos nosso povo para enfrentar as dificuldades da vida, que aconteceram até com fiéis como Jó, João Batista e o apóstolo Paulo", disse Lopes. "Eles aprenderam que o sofrimento serve para nos tornar semelhantes a Cristo, desejar mais as coisas de Deus e tirar nosso coração das coisas deste mundo."
Lopes e cinco outros líderes brasileiros explicaram mais à CT sobre sua decisão de suspender os cultos presenciais:
Robinson Grangeiro, pastor da Igreja Presbiteriana de Tambaú, em João Pessoa; fundador do Instituto Kuyper; e chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie:
“A postura da Igreja Presbiteriana de Tambaú, sob a orientação do Sínodo da Paraíba, do qual sou presidente, tem sido, desde o início, de irrestrito apoio às medidas que as autoridades sanitárias brasileiras têm adotado para a prevenção e o combate à ameaça da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Apesar do grande valor da celebração comunitária do povo de Deus, o entendimento é que, em uma situação de claro risco de contágio e morte, a nossa teologia instrui claramente à participação cidadã consciente e colaboradora. É assim que nos ensina a Sagrada Escritura e a boa e saudável teologia reformada acerca da autoridade do magistrado civil, que tem sua esfera de atuação, enquanto cabe à Igreja o exercício dos meios de graça, da proclamação do evangelho e do envolvimento nos grandes desafios de transformação social. Desta forma, a excepcionalidade de não podermos nos reunir está nos levando ao uso massivo das tecnologias de informação e comunicação, como forma de continuar assistindo espiritualmente as ovelhas e testemunhando da nossa confiança que o Senhor do tempo e da História passará conosco, em sua providência, por esta travessia, até chegarmos ao porto seguro da sua vontade boa, perfeita e agradável.”
Lisânias Moura, pastor da Igreja Batista do Morumbi, em São Paulo:
“Não devemos manter nossos cultos presenciais por três razões. Primeiro, porque é cuidado com o rebanho. Creio que essa é a maior razão. Segundo, porque não devemos tentar a Deus. Ele não nos pediu para sermos heróis da fé, mas para obedecermos inclusive às autoridades. E cultuar não se resume à adoração no templo. Não estamos sendo perseguidos. Se abrirmos, mesmo que proibamos os mais velhos de virem aos cultos, os mais novos virão e poderão ser contaminadores ou contaminados. Terceiro, indiretamente, a Igreja sentirá que Igreja nao é o templo e que adoração nao se resume a culto comunitário, mas, sim, a adorar a Deus sozinho ou com a família. Aqui na Igreja Batista do Morumbi, tomamos a decisão de nao termos cultos presencias, mesmo antes de o governo pedir ou determinar. E nossa razão primária foi cuidar melhor do rebanho, bem como comunicar que estamos cuidando.”
Hideide Brito Torres, episcopisa da Igreja Metodista do Brasil, em Brasília:
“A Igreja Metodista, por meio de seu colégio de bispos e episcopisas, optou por, logo de início, interromper as atividades nos templos. Procuramos orientar pastores e pastoras a conduzir cultos online, fazer fonovisitas, gravar mensagens nos aplicativos e realizar reuniões de célula por programas para esse fim. Nosso entendimento é que a aglomeração num momento como este contraria toda a perspectiva de ser pastor e pastora, que é manter o rebanho seguro. Há um texto em Provérbios que, embora se aplique aos rebanhos de animais, simbolicamente representa a tarefa do pastoreio também na igreja e o temos usado neste contexto: Provérbios 27.23. Nas orientações escritas a pastores e pastoras, lembramos as recomendações de Martinho Lutero durante a epidemia de peste bubônica: nossa tarefa é cuidar dos doentes e amparar os que sofrem, mas não podemos, nós mesmos, nos tornar motivo de que mais pessoas fiquem doentes. Seguindo essa prescrição, estamos tomando todos os cuidados necessários e obedecendo às orientações para manter a quarentena pelo tempo necessário, entendendo que, depois, teremos muito tempo para os abraços e beijos, que estamos guardando para o reencontro físico. Por enquanto, estamos vivendo um tempo precioso, em que a Igreja de Cristo se reinventa e redescobre suas origens neotestamentárias, nas casas e nos grupos menores. Também estamos tendo de nos voltar à Palavra de Deus, optando pela mensagem do arrependimento, do quebrantamento, da esperança e da firmeza, em vez de centralizar em vaticínios ou declarações que podem alarmar e não confrontar e consolar biblicamente. Que Deus nos ajude e poupe muitas vidas nesta pandemia.”
Jorge Henrique Barro, professor de teologia da Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA), em Londrina:
“Este tem sido um momento na história do Cristianismo, em nível mundial, que tem exigido e requerido que igrejas e lideranças religiosas reflitam sobre o significado da palavra 'culto', como também o significado de 'ajuntamento'. O 'isolamento social', dentre muitas implicações para a Igreja, leva-a a refletir sobre o conceito bíblico de 'comunhão'. Em 'Vida em comunhão', Dietrich Bonhoeffer escreveu que 'a pessoa que não suporta a solidão deve tomar cuidado com a comunhão'. Estar 'juntos fisicamente' não é sinônimo de 'comunhão'. Pode não passar de um ajuntamento de pessoas. Por outro lado, 'a pessoa que não se encontra na comunhão, que tome cuidado com a solidão', conclui Bonhoeffer. Os cristãos estão sendo forçados a experimentar a comunhão de outras formas que não apenas a presencial. Graças à tecnologia, mesmo isolados socialmente, aqueles que podem dela usufruir já experimentam a comunhão em Jesus Cristo que não se limita ao culto presencial (1Co 1.9). As igrejas e os cristãos devem manter seus cultos e buscar a comunhão de outros modos que não a presencial. Deus não está deixando de ser adorado neste 'isolamento social', mas, certamente, deixará de ser honrado se seus filhos e filhas forem instrumentos de morte para o próximo. Neste momento, honrar a Deus é cuidar de si para cuidar do próximo.”
Ziel Machado, vice-reitor do Seminário Servo de Cristo e pastor da Igreja Metodista Livre Nikkei, em São Paulo:
“Tenho dificuldade em entender o conceito de culto online. Suspeito que por trás deste conceito exista uma 'gramática do espetáculo', onde o evento tem primazia sobre a relação. É algo sobre o qual ainda estou meditando. Não posso ser tão categórico e não desejo julgar os meus irmãos. Minha reflexão tem uma base teológica. Por exemplo, quando o Senhor nos diz que estará sempre conosco e que quando dois ou três (e não dois mil ou três mil) estiverem juntos, em seu nome, ali ele estaria. Para mim, o culto acontece neste lugar: em seu nome. Há um aspecto histórico, de aprender a ser Igreja na eclesia, mas, também, na diáspora, que são duas realidades ligadas à dinâmica da igreja peregrina no mundo. Ou seja, é lindo estarmos juntos fisicamente, mas podemos estar juntos sem ser fisicamente. Então, ainda estou refletindo. Em nosso caso, encorajamos o culto de 'dois ou três', nos lares, em nome de Jesus. O que tenho gravado pelo YouTube são videos como recursos devocionais para que as pessoas em casa possam ter algo para orientá-las em seu tempo de culto. Assim, em minha igreja, não estão ocorrendo cultos no ambiente do templo, somente nos lares. O que fazemos online são as reuniões de pequenos grupos.”
Augustus Nicodemus Lopes, pastor na Primeira Igreja Presbiteriana de Recife:
“A crise causada pela pandemia de coronavírus provocou reações diferentes nos membros da minha congregação. Somos uma igreja reformada com cerca de 800 pessoas. Damos grande ênfase à pregação da Palavra de Deus e ao cuidado pastoral. No entanto, seguindo a orientação das autoridades brasileiras, suspendemos nossos cultos e nossa atividades por um tempo, para evitar contaminação. Muitos de nossos membros enfrentaram este momento de crise com confiança e paz em Cristo. Mas há outros que sofrem de solidão, medo e ansiedade.
“Nossos pastores estão cuidando ativamente do rebanho, por meio de reuniões virtuais na internet, onde ensinam as Escrituras e oram juntos. Nós aprendemos a usar aplicativos de conferências para esse fim. Para nossa surpresa, essas reuniões da internet com grupos da igreja tiveram um efeito surpreendente no incentivo e no fortalecimento das pessoas. A maioria delas está confiante em Deus e sente-se consolada, mesmo diante das terríveis perspectivas diante de nós. Outras estão realmente muito angustiadas e exigem mais cuidado pastoral direto. A maioria está em sua casa, esperando o fim da quarentena. Distribuímos diretrizes para cultos domésticos, sugerimos livros para leitura e transmitimos mensagens de conforto e esperança pela internet. Eu diria que, em geral, pelo menos até agora, quando a crise ainda está no início, os crentes em nosso entorno estão reagindo bem.
“Eles aprenderam há muito tempo que nosso Deus está no controle de todas as coisas. Ele governa as nações. Ele faz todas as coisas funcionarem juntas, pelo bem de seus filhos. Ao contrário de muitas igrejas neopentecostais, que sempre dizem que Deus quer nos dar prosperidade financeira, saúde e felicidade neste mundo, preparamos nosso povo para enfrentar as dificuldades da vida, que ocorreram até mesmo para crentes fiéis como Jó, João Batista e o apóstolo Paulo. Eles aprenderam que o sofrimento serve para nos tornar semelhantes a Cristo, desejar mais as coisas de Deus e tirar nosso coração das coisas deste mundo. Eu acredito que a maioria da congregação pensa assim.
“Nada acontece no mundo se não for da vontade de Deus. Jesus disse no sermão escatológico (Mateus 24) que epidemias, guerras, pragas, fomes e terremotos acontecerão antes da vinda do Senhor. Essas coisas ocorrem para nos fazer perceber que somos fracos e pecadores, incapazes de controlar nosso destino, e nos fazer olhar para Deus e buscar ajuda dele. Um único vírus, em questão de meses, trouxe o caos ao mundo inteiro e abalou a civilização da humanidade até as fundações. Quão fraca, frágil e vulnerável é a humanidade! Desastres como esse nos ajudam a ver nossa total cegueira diante de nossa situação real e a repensar nosso otimismo e nossa esperança no homem.
“Isso não significa que, no meio de todo esse sofrimento, nosso Deus não sinta compaixão por quem está sofrendo. A mesma Bíblia que mostra que ele governa as nações também diz que simpatiza com os pobres, os aflitos e os necessitados. No meio de tudo isso, ele está abençoando cada pessoa de maneiras que, por enquanto, não podemos perceber ou entender. Existem muitos relatos de pessoas que encontraram Deus no meio da crise, outras que aprenderam a amar seus vizinhos e a ajudar com suas necessidades. Nosso Deus está sempre presente, na calma e na tempestade. Vivemos coram Deo – na presença de Deus.”
Reportagem adicional de Diane Jeantet, da Associated Press
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