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Estamos Sendo Fiéis ao Fugir de uma Epidemia? O que Martinho Lutero nos Ensina Sobre o Coronavírus

Uma reflexão pastoral sobre epidemias, escrita pelo reformador alemão, pode orientar estudantes de medicina como eu e cristãos na China — e em todos os lugares por onde o vírus tem se espalhado.

Christianity Today March 4, 2020
Mallory Rentsch / Source Image: Betsy Joles / Stringer / Getty Images

Do seu epicentro em Wuhan, na China, o atual surto de coronavírus está fomentando o medo e impactando viagens e negócios mundo afora. Somente na China 3,000 pessoas já morreram e mais de 95.000 foram infectadas em cerca de 75 países — número maior que a epidemia de SARS em 2003.

Os moradores de Wuhan, uma importante cidade tão populosa quanto Chicago, nos EUA, estão sob bloqueio do governo e atividades públicas foram suspensas, inclusive as celebrações do Ano Novo Chinês (que começou em 25 de janeiro). Cristãos chineses, em Wuhan e na China em geral, têm enfrentado decisões difíceis, como se devem voltar para casa para visitar a família (semelhante a milhões de chineses durante o feriado do Ano Novo Lunar), deixar a área continental, ou até mesmo se devem se reunir para os cultos de domingo.

Mas os seguidores de Jesus estão certos em fugir de uma epidemia enquanto pessoas estão sofrendo ou morrendo?

Cristãos alemães no século XVI fizeram essa mesma pergunta ao teólogo Martinho Lutero.

Em 1527, menos de 200 anos após a Peste Negra ter dizimado metade da população da Europa, a praga ressurgiu na própria cidade de Lutero, Wittenburg, e em cidade vizinhas. Em sua carta “Se Alguém Deve Fugir de uma Praga Mortal”, o famoso reformador reflete sobre as responsabilidades do cidadão comum durante um contágio. Seus conselhos servem como um guia prático para cristãos enfrentando o problema de surtos contagiosos em nossos dias.

Em primeiro lugar, Lutero argumenta que qualquer pessoa que tenha uma relação de serviço com o próximo tem a responsabilidade vocacional de não fugir. Os que estão no ministério, escreveu ele, “devem permanecer firmes diante do perigo da morte”. Os doentes e moribundos precisam de um bom pastor que os fortaleça, conforte e administre os sacramentos — para que não lhes seja negada a Eucaristia antes de sua morte. Oficiais públicos, incluindo prefeitos e juízes, devem permanecer e manter a ordem pública. Os funcionários públicos, incluindo médicos e policiais, devem continuar seus deveres profissionais. Até os pais e responsáveis têm deveres vocacionais em relação aos filhos.

Lutero não limitou o cuidado dos doentes aos profissionais de saúde. Numa época em que Wuhan enfrenta uma escassez de leitos e pessoal hospitalar, seu conselho é especialmente relevante. A cidade, uma das maiores da China, com uma população de cerca de 11 milhões, está em processo de construção rápida de dois novos hospitais para acomodar uma crescente multidão de pacientes com coronavírus. Os cidadãos leigos, sem qualquer treinamento médico, podem encontrar-se em condições de prestar assistência aos doentes. Lutero desafia os cristãos a ver oportunidades de cuidar dos doentes como se estivessem cuidando do próprio Cristo (Mt 25: 41–46). Do amor a Deus emerge a prática de amar ao próximo.

Mas Lutero não incentiva seus leitores a se exporem de forma imprudente ao perigo. Sua carta aborda constantemente dois temas concorrentes: honrar a santidade da própria vida e honrar a santidade dos necessitados. Lutero deixa claro que Deus dá aos seres humanos uma tendência à autoproteção e confia que eles cuidarão de seus corpos (Ef 5:29; 1 Cor. 12: 21–26). “Todos nós”, diz ele, “temos a responsabilidade de afastar esse veneno da melhor maneira possível, porque Deus nos ordenou que cuidássemos do corpo”. Ele defende medidas de saúde pública, como quarentenas, e a procura a atendimento médico quando disponível. De fato, Lutero propõe que não fazer isso é agir de forma imprudente. Assim como nossos corpos são dádivas de Deus, também são os remédios disponíveis no mundo.

E se um cristão ainda assim deseja fugir? Lutero afirma que essa pode ser, realmente, a resposta fiel do crente, desde que seu próximo não esteja em perigo imediato e que haja outros que “cuidem e acolham os doentes em seu lugar”. Notadamente, Lutero também lembra aos leitores que a salvação é independente dessas boas obras. Em última análise, ele ordena que “cristãos devotos … cheguem à sua própria decisão e conclusão”, quer fujam ou permaneçam durante epidemias, confiando que eles chegarão a uma decisão fiel através da oração e meditação nas Escrituras. Participar na obra de cuidar do doente surge da graça, não da obrigação.

No entanto, o próprio Lutero não teve medo. Apesar das admoestações de seus colegas da universidade, ele permaneceu para ministrar aos doentes e moribundos. Ele urge seus leitores a não terem medo de “uma pequena fervura” no serviço ao próximo.

Apesar dos filhos de Deus enfrentarem sofrimentos aqui na terra, todos os que professam a fé em Cristo compartilham a promessa celestial de um dia serem livres da doença e do sofrimento. Numa carta aberta em que pede a oração de cristãos de todo o mundo, um pastor anônimo de Wuhan afirma que “a paz de Cristo não consiste em nos tirar do desastre e da morte, mas em ter paz diante do desastre e da morte, pois Cristo já venceu essas coisas.” Tanto Lutero quanto o pastor anônimo de Wuhan expressam a realidade do sofrimento, mas reconhecem que a palavra final não pertence à morte ou ao sofrimento.

Essa semana meus avós na China me enviaram uma mensagem dizendo que estão bem, mas que estão “vivendo como ratos” em seu apartamento, saindo apenas quando necessário. Coincidentemente, 2020 é o Ano do Rato no zodíaco chinês — justamente o animal portador de pulgas que causaram diversas pestilências por toda a Europa no século XIV. Meus avós vivem na província de Sichuan, a oeste de Wuhan, onde mais de 100 casos de coronavirus já foram confirmados. É impossível não pensar neles nesse momento, assim como meus outros familiares que atualmente moram na China. Na esperança de enviá-los máscaras que estão esgotadas em muitas lojas na Ásia, meus pais e eu descobrimos essa semana que até mesmo nos Estados Unidos as lojas já não têm mais máscaras.

Nessa atmosfera de medo em volta do surto, me volto à carta de Lutero para me orientar. Como estudante de medicina e futura médica, tenho um compromisso vocacional de cuidar dos doentes — sejam eles acometidos pelo coronavirus, tuberculose ou influenza. Sim, tomarei precauções. Mas Lutero me lembra que, independente de qualquer coisa, são pessoas que merecem cuidado.

“Quando te vimos doente?” perguntam os justos na parábola das ovelhas e dos cabritos, e Jesus responde, “Sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt. 25: 39,40). Se e quando o coronavirus invadir nossas comunidades, como responderemos fielmente?

Emmy Yang é pesquisadora em Teologia, Medicina e Cultura na Duke Divinity School e estudante de medicina na Icahn School of Medicine no complexo hospitalar Mount Sinai.

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