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Entendendo o autismo pelo olhar de um autista

Em um relato sincero de alguém que vive dentro do espectro, um professor da Taylor University nos convida a ver suas “deficiências” como dádivas.

Christianity Today September 22, 2022
Illustration by Jianan Liu

A palavra tem poder e, muitas vezes, de maneiras sutis. Rótulos, por exemplo, nos ajudam a distinguir as coisas; aliás, uma parte importante da ciência consiste em criar rótulos para características recém-descobertas da realidade. Mas a rotulagem torna-se algo complicado na área das ciências humanas, principalmente quando estamos lidando com tipos diferentes de pessoas.

On the Spectrum: Autism, Faith, and the Gifts of Neurodiversity

On the Spectrum: Autism, Faith, and the Gifts of Neurodiversity

Brazos Press

256 pages

$12.59

Nunca esquecerei o conselho que recebi de um dos professores do meu programa de doutorado em psicologia: nunca devemos nos referir a pessoas com esquizofrenia como “esquizofrênicas”, disse ele, porque isso as desumaniza, pois parece reduzi-las ao seu transtorno. O conselho fez eco à minha crença cristã de que as pessoas com esquizofrenia são feitas à imagem de Deus.

Os rótulos, porém, são ainda mais poderosos no mundo de hoje. Para muitos, eles servem como marcadores identitários em uma paisagem política e cultural cada vez mais fluida. Daniel Bowman Jr., poeta e professor de inglês da Taylor University, ilustra essa dinâmica em sua obra On the Spectrum: Autism , Faith , and the Gifts of Neurodiversity [Sobre o espectro: autismo, fé e as dádivas da neurodiversidade]. Esse fascinante e comovente livro de “memória em ensaios”, escrito por um evangélico incomumente reflexivo e transparente, visa reformular nossa maneira de pensar sobre o autismo, sugerindo novos rótulos para descrevê-lo.

Bowman desafia certos estereótipos que muitas pessoas associam ao autismo, o que torna o livro extraordinariamente atraente, mesmo que possa fazer dele um porta-voz um tanto controverso da comunidade autista. No entanto, é precisamente o seu notável grau de autoconsciência que lhe permite oferecer algumas descrições impressionantes de como é ser autista.

Bowman compartilha de forma honesta sobre a ansiedade social, a “desregulamentação executiva”, a tendência de afastar os outros, os colapsos periódicos e a vergonha significativa. Esses relatos oferecem uma abertura valiosa para enxergarmos os tipos específicos de sofrimento sentidos por, ao menos, alguns daqueles que têm autismo.

Vestindo o rótulo

Os ensaios de Bowman giram em torno de alguns temas comuns. Estar no espectro autista, segundo ele argumenta, é uma forma legítima de ser humano que é tragicamente patologizada e incompreendida pela “maioria neurotípica” (por aqueles sem autismo). O livro convida os leitores a ouvir as vozes dos próprios autistas, a fim de que realmente entendam os autistas e o autismo “a partir de dentro”.

Bowman defende que a beleza, a arte e a literatura contribuem significativamente para o florescimento do ser humano, em especial quando surgem de fontes inesperadas, como os marginalizados. O livro, que exemplifica sua própria visão com palavras, experimenta diferentes gêneros textuais, inclusive algumas entrevistas e uma carta que ele escreveu a dois queridos mentores (embora, infelizmente, não tenha poemas!). Mas Bowman nos encanta com suas histórias, e estas formam a maior parte do livro.

Especialmente tocante é seu relato sobre o fato de perceber gradualmente que poderia ser autista (um diagnóstico que só foi confirmado por profissionais em 2015). Bowman sentiu um alívio palpável quando descobriu a verdade, pois esta dava sentido a padrões de sofrimento que ele havia tido ao longo da vida. Desde o diagnóstico, Bowman acolheu o autismo como parte central de sua identidade.

Acho que ele diria que isso o capacitou a ver o que há de bom em sua condição e a perceber o máximo possível do potencial que Deus lhe deu. A alegria que ele hoje irradia ao compartilhar sobre o autismo é algo contagiante, e deve encorajar outros como ele a compartilhar suas histórias pessoais.

Isso leva a uma das maiores surpresas do livro, pelo menos do meu ponto de vista: Bowman acolhe ativamente o rótulo de “autista”. Na verdade, ele até prefere usar o termo “autistas” em vez de “pessoas com autismo”, a designação mais geral (e, segundo eu pensava, mais respeitosa). Ele aprecia profundamente quando os amigos levam em consideração seu autismo, pois isso significa que eles o apoiam como autista.

Na visão de Bowman, esse tipo de reconhecimento direto contraria a forma dominante como abordamos o autismo hoje, a qual ele chama de “paradigma da patologia”. Do ponto de vista de Bowman, tendemos a enxergar as pessoas autistas através de uma lente redutora — um prisma objetivo e científico que amplia as capacidades físicas, sociais e emocionais que podem faltar aos autistas. Isso, segundo ele argumenta, reflete os preconceitos da maioria neurotípica, que vê o autismo meramente como um transtorno psicológico.

Dentro dessa mentalidade, o autismo envolve um conjunto de sintomas negativos, muitas vezes definidos e avaliados por observadores insensíveis, que não são autistas e que se sentem desconfortáveis quando expostos a eles. Também poderíamos chamá-lo de “paradigma científico”, dada sua origem no estudo empírico e no tratamento do autismo.

Com toda a probabilidade, uma forma ou outra do paradigma científico é o que ainda prevalece entre muitos dos que trabalham com pessoas autistas hoje (como seria o caso da maioria dos meus professores de psicologia). Bowman, porém, acredita que essa abordagem apenas exacerba a alienação que os autistas já tendem a sentir. Ao se concentrar nos problemas do autismo em vez de nas pessoas autistas, e ao se esforçar para administrar e minimizar os sintomas, esse paradigma pode se assemelhar a um esquema para controlar os autistas em benefício da maioria neurotípica.

Bowman, em contrapartida, prefere o “paradigma da neurodiversidade”, que parte da perspectiva dos autistas e vê o autismo como uma questão de diferença neurológica, e não uma anomalia. Para dar um exemplo, os defensores da neurodiversidade interpretariam o comportamento de se balançar (que os autistas chamam de “stimming”) como um mecanismo calmante e útil de enfrentamento. Bowman lamenta a falta de curiosidade e de empatia da maioria neurotípica para com os autistas.

Muitas das sugestões de Bowman ajudam a reverter padrões arraigados de preconceito e de ignorância. Outras, no entanto, repousam em terreno mais instável. Um professor contemporâneo que Bowman cita afirma que “o comportamento de pessoas [autistas] não é aleatório, desviante nem bizarro”. De acordo com outro, “O conceito de um ‘cérebro normal’ ou de uma ‘pessoa normal’ não tem mais validade científica objetiva do que [tem] o conceito de uma ‘raça superior’— e não serve a nenhum propósito melhor”.

Tais declarações podem ser interpretadas, de forma caridosa, como esforços para minar o estigma do autismo e combater os sentimentos de vergonha entre as pessoas que estão no espectro. Mas elas também parecem patentemente enganosas, em especial em relação às formas mais severas de autismo. O próprio Bowman se esforça bastante para ajudar os leitores a compreender os desafios singulares que ele enfrenta.

É importante lembrar que o transtorno do espectro autista, conforme a Associação Americana de Psiquiatria o define em seu manual de diagnóstico padrão, varia muito em suas manifestações.

Em uma ponta do espectro estão pessoas com “desempenho mais alto” e “necessidades de apoio menores”. No outro extremo estão as pessoas com “desempenho mais baixo” e “necessidades de apoio maiores”, uma categoria que abrange deficiências intelectuais graves (como, por exemplo, adultos com idade mental inferior a quatro anos), sérias dificuldades com linguagem e comunicação e padrões de comportamento autolesivo (como morder, bater com a cabeça, puxar o cabelo) que podem causar danos corporais permanentes.

A maioria dos pais de crianças que sofrem com necessidades de apoio maiores ficaria perplexa com apelos bem-intencionados à “neurodiversidade”. Eles são gratos pelos avanços terapêuticos e não têm problema em chamar o autismo de transtorno. Contudo, não parece ser uma questão de um “lado” estar certo e o outro estar errado. Dadas as grandes variações entre as pessoas no espectro, parece natural que alguns de seus defensores se concentrem em garantir diagnósticos precisos e tratamentos eficazes para transtornos graves, enquanto outros se concentrarão em confrontar os estereótipos e os estigmas que atrapalham alguns autistas.

Fraqueza que aperfeiçoa

A fé cristã desempenha um papel central (se não exclusivo) na história de Bowman. Ainda que ele possa relatar vários episódios em que se sentiu estigmatizado na igreja por causa de seu autismo, ele afirma prontamente, com Paulo, que o “poder [de Deus] se aperfeiçoa na fraqueza” (2Coríntios 12.9).

No entanto, a perspectiva cristã sobre o sofrimento e a fraqueza dos seres humanos contém riquezas que nem os pontos de vista neurodiversos nem os neurotípicos podem, isoladamente, alcançar. As Escrituras nos dizem que Cristo veio “não para os sãos”, mas para “os doentes” (Lucas 5.31). Ele prometeu descanso a “todos vocês que estão cansados ​​e sobrecarregados” (Mateus 11.28). Ele declarou que os “pobres de espírito” são bem-aventurados (Mateus 5.3), porque em seu reino muitos “primeiros serão os últimos, e os últimos serão primeiros” (Marcos 10.31).

Essa inversão de valores ancora a ideia cristã de redenção. Em Cristo, todas as nossas fraquezas comparativas tornam-se ocasiões para que sua glória brilhe ainda mais, e somos convidados a reinterpretá-las à luz de sua morte e sua ressurreição. Isso significa que, como cristãos, não negamos a fraqueza e aceitamos que o normal inclui certas capacidades físicas, mentais e emocionais. No entanto, também somos chamados a protestar, quando pessoas que possuem essas características são privilegiadas e colocadas acima de pessoas que não as possuem, especialmente quando esse tipo de hierarquia se manifesta dentro da igreja. E somos chamados a seguir o exemplo de Deus, exaltando os humildes e os desprezados. Como Paulo nos lembra: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes” (1Coríntios 1.27).

É fácil entender por que alguns são tentados a negar suas deficiências e seus transtornos, ou a revesti-los como formas diferentes de bem. Mas vê-los do ponto de vista de Deus nos ajuda a apreciar tanto os fardos reais que essa condição lhes impõe quanto a glória que ela revela.

Entrar em acordo com nossas deficiências e nossos transtornos leva tempo — talvez até uma vida inteira. E requer amor e apoio abundantes dos outros. Para mim, é neste ponto que o livro de Bowman mais me incomoda. Só porque acredito que todos somos feitos à imagem de Deus não significa que eu trate todos de acordo com essa verdade, ou que eu busque relacionamentos com essa verdade em mente. Fico um pouco envergonhado, portanto, em dizer que, apesar da minha formação psicológica (ou talvez por causa dela), nunca de fato levei em conta o valor de entender o mundo em que os autistas habitam.

Assim, tenho um sentimento de gratidão a Bowman, por ele ter atraído este leitor neurotípico para o mundo dele e ter desafiado alguns dos meus preconceitos. Graças ao livro dele, espero que, da próxima vez que encontrar um autista, eu seja um pouco mais curioso, relacional e compassivo.

Eric L. Johnson é professor de psicologia cristã na Houston Baptist University.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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