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Ravi Zacharias International Ministries não fará mais apologética

Dias depois de convocar vítimas e anunciar planos para uma mudança de nome, a organização de Ravi Zacharias anuncia uma mudança dramática no ministério.

Christianity Today March 22, 2021
Courtesy of RZIM

Ravi Zacharias International Ministries (RZIM), que já foi o maior ministério de apologética do mundo, vai parar de atuar com apologética este ano.

A CEO Sarah Davis anunciou aos funcionários, na manhã de quarta-feira, que, ao longo dos próximos seis meses, o ministério, já reduzido, passará a atuar como uma instituição de caridade que concede doações.

Ela planeja doar dinheiro a organizações que cumpram seu propósito original de defender a verdade do evangelho, bem como a organizações que cuidam de vítimas de abuso sexual.

“RZIM não pode e não deve continuar a operar como uma organização em sua forma atual. Tampouco acreditamos que podemos apenas mudar o nome da organização e seguir em frente fazendo a mesma coisa”, disse Davis, que é filha de Zacarias e lidera o ministério desde a morte dele, em maio de 2020.

Os palestrantes do RZIM tiveram convites cancelados desde que vieram à tona as acusações contra Zacarias, em setembro. Nos últimos meses, à medida que as acusações eram investigadas e, por fim, foi confirmado o abuso perpetrado por seu falecido fundador, diminuíram as doações para o ministério que antes arrecadava de 35 a 40 milhões de dólares.

A investigação detectou “culpa muito além do que poderíamos ter imaginado”, reconheceu Davis na quarta-feira.

“O RZIM, como ministério, tem passado por algo diferente de tudo o que já vimos na história evangélica moderna”, disse Davis. “Nós, como ministério, temos processado uma ampla gama de emoções, incluindo intensa dor pelas vítimas de abuso, repulsa pelas ações de Ravi, desilusão, desânimo, raiva e incerteza quanto ao futuro do ministério que amamos e servimos”.

O ministério está atualmente passando por uma ampla revisão de sua cultura e estrutura, capitaneada pela empresa de consultoria Guidepost Solutions. Davis disse à equipe que eles podem esperar demissões de cerca de 60% do quadro, a começar imediatamente, bem como mudanças de liderança quando a revisão for concluída, em um prazo de quatro a seis meses.

Nesse ínterim, a equipe de cada departamento está sendo instruída a “concentrar seus dons, habilidades e recursos” em “arrependimento, restituição, aprendizado e serviço”.

Em meio a uma auditoria externa de sua cultura corporativa e das alegações de abuso, o Ravi Zacharias International Ministries anunciou que mudará de nome. Também pede que outras vítimas se apresentem e denunciem o abuso e o assédio sexual que tenham sofrido por parte de seu falecido fundador, mundialmente famoso.

O relatório investigativo divulgado em fevereiro confirmou acusações contra o apologista que datam de 2004, e encontrou provas adicionais de abuso até alguns meses antes de sua morte, em maio de 2020. Mas, embora a investigação tenha sido conclusiva, não foi abrangente.

Em um comunicado divulgado no fim de semana, o Ravi Zacharias International Ministries (RZIM) reconheceu que pode haver muito mais vítimas. Esta é a primeira vez que o RZIM pede diretamente às vítimas que se apresentem.

A empresa de consultoria Guidepost Solutions fará relatórios por telefone e e-mail como parte de sua auditoria do RZIM, enquanto a advogada das vítimas, Rachael Denhollander, servirá como contato confidencial com as vítimas. Foram disponibilizadas linhas telefônicas para contato em inglês, espanhol e francês.

“Continuamos a sofrer profundamente pelas vítimas que foram tratadas de maneiras completamente contrárias ao evangelho”, escreveu a CEO Sarah Davis no comunicado oficial. “Também reconhecemos dolorosamente e cada vez mais as falhas organizacionais que ocorreram e o arrependimento que precisa ocorrer tanto no coração quanto na ação”.

Davis disse que a auditoria é abrangente e deve levar meses. Demissões são esperadas em breve.

O ministério também anunciou que está removendo os conteúdos produzidos por Zacharias do site do ministério e de suas mídias sociais. As 12 filiais internacionais do RZIM estão avaliando do forma independente suas atividades ministeriais e planos para o futuro.

Ministério sabia sobre a acusação anterior

Os principais líderes do RZIM nos Estados Unidos e na Ásia sabiam de acusações contra Zacharias desde 2008, pelo menos, quando um integrante da equipe indiana relatou ao chefe do conselho de Cingapura que Zacharias havia sido visto com uma mulher com quem não tinha laços de parentesco, em um hotel em Cingapura. Zacharias estava segurando a mão dessa mulher e parecia ter intimidade com ela. Zacharias disse que tudo não passava de um mal-entendido, e o ministério não investigou, de acordo com documentos internos aos quais a CT teve acesso.

O integrante da equipe levantou a questão novamente em 2012, junto com perguntas sobre viagens de Zacharias à Tailândia, onde ele possuía dois apartamentos — um para si e outro para uma massagista. O ministério também não investigou isso. Em vez de fazê-lo, o conselho de Cingapura abriu uma investigação completa para saber se esse integrante da equipe estava espalhando boatos sobre Zacharias.

“Os diretores chegaram ao consenso de que comentários depreciativos de qualquer tipo, por qualquer uma das partes, devem cessar imediatamente, pois não glorificam ao Senhor”, escreveu o presidente do conselho de Cingapura, em um e-mail de 2012, ao qual a CT teve acesso. “Temos todos a mesma convicção de que irmãos devem se reconciliar quando há mal-entendidos. […] O trabalho do RZIM está causando grande impacto sobre descrentes, e qualquer disputa que vier a público trará danos irreparáveis às partes envolvidas e à organização”.

Argumentos semelhantes foram apresentados em outros escritórios internacionais do RZIM. Integrantes da equipe na Índia, nos Estados Unidos, no Reino Unido e no Canadá disseram à CT que foram demitidos quando levantaram preocupações semelhantes. A liderança apontava para a reputação de Zacharias. Ele era considerado como alguém irrepreensível e inquestionável.

A porta-voz do RZIM, Ruth Malhotra, em uma carta de 26 páginas ao conselho dos EUA, em que fala sobre a cumplicidade corporativa nos abusos cometidos por Zacharias, escreveu que a resposta estratégica da liderança às alegações apresentadas era “atrasar, negar, desafiar, difamar”. Segundo Malhotra, ela levantou dúvidas em 2017, quando Zacharias negou ter solicitado imagens sexuais explícitas de uma mulher no Canadá. Em vez de tentar responder às suas indagações, um líder sênior exigiu saber: “De que lado você está?”.

Após a investigação em 2021, o conselho dos EUA reconheceu os erros e prometeu uma revisão total da cultura e da liderança do ministério.

“Nossa confiança na negação de iniquidades morais por parte de Ravi e em suas explicações enganosas sobre e-mails e outros registros que se tornaram públicos foi totalmente equivocada”, disse o comunicado. “Também reconhecemos que, em situações de abuso prolongado, muitas vezes existem significativos problemas estruturais, além de problemas relativos à política e à cultura da organização. É imperativo que, onde essas particularidades existirem em nossa organização, tomemos medidas específicas para garantir que sejam devidamente diagnosticadas e tratadas”.

O conselho dos EUA é anônimo e a declaração não foi assinada por integrantes individuais. Não está claro quem escreveu a declaração ou se os integrantes do conselho concordaram com ela por unanimidade.

Reconhecimento internacional

Os 12 escritórios internacionais do RZIM também estão avaliando a própria cultura e tomando decisões sobre o futuro. A liderança nos respectivos países deve decidir se vão encerrar ou continuar as atividades, se vão permanecer afiliados ao ministério dos Estados Unidos ou separar-se dele, e se vão manter o nome de Zacharias ou abandoná-lo.

O ministério do Reino Unido e o ministério da América Latina anunciaram a intenção de se separar e estabelecer organizações apologéticas independentes. O conselho do ministério latino-americano fechou seu site após fazer essa declaração pública.

O RZIM da Espanha está avaliando os “próximos passos”, mas informou que recebeu “muitas expressões de encorajamento” para continuar fazendo apologética e evangelismo na Espanha.

A filial de língua alemã do RZIM, que atua na Alemanha, na Áustria e na Suíça, anunciou que fará um treinamento com a equipe sobre abuso e uma revisão de sua estrutura organizacional e da cultura interna.

“Olhando para trás, percebemos que nós, como instituto, tínhamos um viés sempre positivo em relação a Ravi Zacharias e que também confiamos demais nos mecanismos de controle interno do RZIM”, informou o ministério em um comunicado oficial. “Sentimos muito por essas falhas”.

O RZIM do Canadá está fechando as portas. “Nós reconhecemos a necessidade de uma abordagem apologética para o evangelismo”, o conselho canadense comentou. “Lamentavelmente, temos a convicção de que não é possível para o RZIM Canadá cumprir esse mandato no ambiente atual”.

O RZIM de Hong Kong, que atua no sudeste da Ásia e na Oceania, declarou que está considerando “todos os caminhos possíveis que honrem nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” e também disse: “Pedimos desculpas incondicionais pelo dano que causamos a outros por meio de nossa confiança indevida em Ravi”.

Os oficiais do RZIM na Índia e na Turquia traduziram o pedido de desculpas do conselho dos EUA, e publicaram as informações sobre a investigação, mas não fizeram declarações públicas individuais sobre o futuro desses ministérios. O RZIM do Oriente Médio não parece ter feito declarações públicas.

O RZIM da Romênia e o de Cingapura anunciaram períodos de oração e reavaliação.

O ministério romeno disse que está orando “para que Deus cure qualquer ferida causada pelas ações de Ravi Zacharias e qualquer decepção causada por essa notícia. Colocamos toda a nossa esperança em Sua graça e continuamos comprometidos em buscar e apresentar a #Verdade”.

O RZIM da África disse que sua principal prioridade é “orar pelas vítimas, ouvi-las e aprender com elas e seus advogados, buscar seu perdão, quando devido, e tomar as medidas que forem necessárias”.

Dois líderes africanos pediram desculpas pessoalmente a uma das vítimas. O ministério também está incentivando outras vítimas a se apresentarem.

“Dada a extensão da fraude e do abuso cometidos por Ravi”, pronunciou-se o ramo africano em sua declaração, “nós reconhecemos que pode haver muitas outras vítimas que sofreram, cujas histórias ainda não chegaram ao nosso conhecimento”.

Traduzido por Maurício Zágari

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O que Tomás de Aquino pode nos ensinar sobre o pastoreio de pessoas que estão sofrendo

Insights teológicos sobre a natureza da emoção humana.

Christianity Today March 22, 2021
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Lucas Sankey / Unsplash / Wikimedia commons

Quando eu tinha dez anos, lembro de meu pai estender a mão para cumprimentar um homem que a recusou, e ostensivamente pôs as mãos atrás das costas. Aquele senhor era um ex-membro de nossa igreja e estava com raiva de meu pai.

Essa cena constrangedora me ensinou o que significa ser pastor. Lembro-me de meu pai explicar sem amargura por que o homem estava com raiva. A forma como ele explicou nos ajudou a enxergar a dor daquele senhor.

Há um ditado comum da psicologia que diz que por trás da raiva existe o medo. E poderíamos acrescentar: por trás do medo existe a dor. Observei em meu pai uma capacidade saudável de reavaliar a raiva de alguém como dor. Ele não interpretou a emoção do homem como um julgamento lúcido contra si. Em vez disso, ele escolheu uma perspectiva que abria a possibilidade de empatia em relação à dor daquele homem.

Neste momento que estamos vivendo em nossa cultura, estamos engolfados por raiva, medo e dor — e os pastores não são exceção. Nossas agendas estão tomadas por um fluxo constante de pessoas zangadas. Isso é exaustivo. Para nós, é muito fácil internalizar essa raiva ou considerá-las pessoas deliberadamente rebeldes. Mas isso é um erro. Quando acusado de negligência pela doença de Lázaro, Jesus respondeu a Marta: “Teu irmão ressuscitará” (Jo 11.22-23). Ele viu a dor por trás da repreensão.

Todos precisamos de ajuda para entender as emoções confusas de nosso povo e de nosso coração. Como podemos pastorear pessoas iradas, ansiosas ou feridas? Um teólogo me ensinou mais sobre como pastorear os que sofrem do que qualquer outro: Tomás de Aquino. Talvez ele seja uma fonte surpreendente, pois é conhecido principalmente por suas refinadas distinções teológicas, não por seu coração pastoral (embora G. K. Chesterton lhe tenha atribuído as duas coisas, escrevendo que Tomás de Aquino “trazia em si um grande coração e uma grande mente”). Tomás de Aquino nos oferece principalmente clareza sobre a natureza da emoção e como interpretá-la.

Ele teve vários insights sobre as emoções humanas que podem nos ajudar em nosso trabalho pastoral. Para começar, ele enfatizou que a emoção humana está sempre ligada ao corpo. E insistia que não podemos compreender a dinâmica interna da raiva, do medo ou da dor interior sem compreendermos o corpo. Além disso, Tomás enfatizava que a emoção não opera em um nível deliberado e consciente, como operam o pensamento e as nossas escolhas. A emoção envolve reações e maneiras de ver, ambas inconscientes.

Emoções são ligadas ao corpo

O que significa estar ansioso? Meu coração se acelera; meu estômago está embrulhado. Minha mente gira em torno de possibilidades negativas. A ansiedade está nos sentimentos? Ou nos pensamentos? Quem determina se estou ansioso: meu corpo ou minha mente?

Tomás de Aquino diz que ambos fazem parte da minha ansiedade. Ele argumenta, em sua Summa Theologica, que nossa alma é responsável não apenas pelo pensamento, mas pela própria vida com todas as suas capacidades. A alma é o “primeiro princípio vital” em todas as criaturas vivas. Todos os nossos poderes fluem de uma união corpo-alma, desde nossos poderes digestivos ou de cura até nossos poderes emocionais e de percepção, bem como nossas capacidades de pensar e fazer escolhas. Somos seres holísticos. Portanto, a ansiedade, por exemplo, é um movimento da alma que vem “por meio de uma mudança corporal”. Na opinião de Tomás de Aquino, não devemos separar corpo e alma — e nenhum dos dois, sozinho, produz uma emoção.

Por esse motivo, a saúde deficiente do corpo afeta as emoções, como um carburador com vazamento afeta o funcionamento de um trator. Mas, ao contrário de um trator, o corpo está se refazendo continuamente. Nossos pensamentos, ações e experiências formam hábitos que contribuem para estados emocionais futuros. Além disso, nosso corpo forma hábitos por meio de nossas vias neurológicas e climas hormonais.

Como pastor, preciso lembrar que emoção não é o mesmo que ação deliberada. Quando confundimos os dois, presumimos que as pessoas têm mais controle imediato sobre seus sentimentos do que realmente têm. Hábitos emocionais são respostas corporais acumuladas ao que uma pessoa tem pensado, ouvido, visto e vivenciado ao longo do tempo. Eles surgem da interação misteriosa entre natureza, estímulos e agência. Essa reação emocional de corpo inteiro pode afetar o modo como alguém experimenta toda a vida. Substâncias químicas neurológicas também influenciam sua perspectiva, para o bem ou para o mal. Reconhecer o papel que o corpo desempenha na emoção pode ajudar um pastor a responder com compaixão a alguém que está sobrecarregado.

Emoções têm lógica própria

Minhas mãos estão suando, mas estou firmemente preso ao carrinho da montanha-russa por um resistente aparato de segurança. Eu sei que estou bem, mas será que meu corpo também sabe? Como posso discordar de meu corpo sobre o perigo que corro? O corpo deve ter lógica própria.

Tomás de Aquino nos ajuda a compreender nosso conflito interno — como podemos sentir algo e, ao mesmo tempo, rejeitar esse sentimento. Na Summa Theologica, ele faz uma distinção entre duas formas de juízo que fazemos: o “juízo rápido” do corpo e o juízo da razão. Podemos chamá-los de percepção e pensamento. Isso é semelhante à sua distinção entre emoções e escolhas. A verdade é que a maioria de nossas reações emocionais vem de percepções inconscientes.

É por isso que as emoções muitas vezes parecem nos acometer. Por exemplo, quando vemos um rosto zangado e agressivo, não pensamos: Esta pessoa pode ser um perigo para mim. Simplesmente sentimos medo. Quando pessoas traumatizadas passam por uma experiência que desencadeia seu trauma, elas não pensam: É racional eu ter um ataque de pânico agora? Elas simplesmente têm.

Como pastor, preciso lembrar que a percepção também não é uma ação deliberada. É importante distinguir entre pensamentos automáticos e inconscientes que as pessoas possam ter e seus pensamentos reflexivos e conscientes.

Emoções respondem à experiência

Os seres humanos são iguais e diferentes dos cães de Pavlov. Sim, alimentos doces ou saborosos podem nos fazer salivar. Mas também podemos reagir a estímulos complexos, como a perspectiva de ir à academia. Como passamos a nos sentir de forma positiva ante à perspectiva de irmos à academia? Não é apenas falando a nós mesmos sobre isso. É também experimentando a academia — talvez por meio do treino pessoal ou das pessoas que frequentam a academia. A experiência pode forjar nossos desejos.

Na Summa Theologica, Tomás de Aquino enfatiza que nossas emoções respondem diretamente a objetos concretos, a partir dos quais aprendemos experiencialmente. Por exemplo, aprendemos a ter medo de queimaduras ao tocar em um fogão quente. Como resultado, a formação de nossas emoções depende, em parte, de nossas ações e, em parte, de nosso pensamento.

Nossas palavras moldam nossas experiências, e nossas experiências dão a nossas palavras um conteúdo emocional. Dizer a mim mesmo: “A aranha não é perigosa” não é suficiente para mudar minha emoção sobre isso. Minha emoção muda quando ajo de acordo com essa crença, segurando a aranha sem que ela me faça mal. As experiências nos ensinam.

Como pastor, preciso lembrar que as lições que as pessoas aprendem com a experiência podem ferir ou curar. Por exemplo, a experiência pode ter ensinado a certo membro da igreja que homens, pais ou pastores não são confiáveis. Esse membro pode reagir ao seu pastoreio de modo consistente com sua experiência anterior, e essa reação pouco terá a ver com você. Compreender as feridas causadas por experiências pode despertar o interesse compassivo do pastor com relação à pessoa que sofre.

Mas a pessoa que sofre também pode encontrar cura por meio da experiência da vida espiritual no corpo de Cristo. A comunidade da igreja tem um papel a desempenhar na santificação e na cura. O corpo de Cristo ministra a nutrição do Cabeça [que é Cristo] pelos dons que seu Espírito concede (Rm 12.3-8; Ef 4.11-16; Cl 2.19). A liturgia também ensina o corpo sobre a morte e a ressurreição em Cristo, sobre a dependência constante do alimento espiritual de Cristo.

Presença curadora de Deus

Existe uma última maneira pela qual Tomás de Aquino nos ensina a ajudar os que sofrem. Aprendi com ele que a cura e a alegria verdadeiras vêm principalmente por meio da comunhão com Deus. A comunicação é para a comunhão. Por mais útil que seja entender a nós mesmos e a nossa dor, em última análise a alegria vem por meio da presença do Amado.

Toda a humanidade está alienada de Deus e anseia pela fonte de toda bondade e alegria. Tomás de Aquino explica isso em um comentário à carta de Paulo aos Gálatas: “A perfeição última, pela qual uma pessoa se torna perfeita interiormente, é a alegria, que nasce da presença do Amado. Quem tem o amor de Deus, porém, já tem o que ama, como diz 1João 4.16: ‘quem permanece no amor de Deus permanece em Deus, e Deus nele.’ E a alegria brota disso”.

Para Tomás de Aquino, a grande esperança da humanidade é que Jesus nos traz para a comunhão da Trindade. A encarnação, a vida, o sofrimento, a morte e a ressurreição de Jesus nos restauram ao nosso Amado. Ao assumir a carne, “o impassível Deus sofre e morre”, unindo-nos a si mesmo em sua morte e ressurreição, Tomás de Aquino escreve em seu comentário sobre 1Coríntios. E, em Cristo, também temos o Espírito Santo. O Espírito cura nossas emoções por sua presença e por seus dons. Tomás de Aquino diz: “o Espírito Santo habita em nós por meio do amor”. Esse amor cura e orienta nossas emoções.

O bom pastoreio modela e ministra a presença de Deus. Encontramos as ovelhas onde estiverem, muitas vezes perdidas, zangadas e com medo. E conduzimos as ovelhas ao pastor, que é manso e humilde de coração (Mt 11.29). Esse pastor dá um Consolador que geme conosco, intercedendo por nós (Rm 8.23,26-27).

Deus é, podemos dizer assim, uma presença destituída de ansiedade em meio a nossas necessidades. Tomás de Aquino nos ensina que Deus entra em comunhão conosco não para preencher alguma deficiência em si mesmo, mas para nos fortalecer. Nele devemos experimentar bondade e integridade. Tomás escreve na Summa Theologica: “Deus pretende apenas comunicar a própria perfeição [a nós], que é sua bondade”.

Ao ministrarmos os dons de Cristo a seu rebanho, precisamos incorporar sua sabedoria mansa e humilde, que é “pura. Também é pacífica, sempre amável e disposta a ceder a outros. É cheia de misericórdia e é o fruto de boas obras. Não mostra favoritismo e é sempre sincera” (Tg 3.17). Podemos fazer isso por meio de uma escuta não defensiva, compassiva e interessada, mesmo diante de emoções como ansiedade e raiva. Consolamos os aflitos “com o consolo que nós mesmos recebemos de Deus” (2Co 1.4).

Tomás de Aquino nos ajuda a consolar os outros, ensinando-nos perguntas sábias: Como o corpo está envolvido nessa emoção? Que juízos estão sendo feitos de forma automática? Como a experiência ensinou essa pessoa a fazer esses juízos? Em última análise, essas perguntas nos permitem levar os sofredores gentilmente à presença de Deus, tanto agora quanto pela eternidade. Pois, um dia, Deus “habitará com eles. [. . .] Ele lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor”(Ap 21.3-4).

Matthew LaPine é o autor de The Logic of the Body: Retrieving Theological Psychology. Ele é pastor de desenvolvimento teológico na Cornerstone Church e palestrante na Salt Network School of Theology em Ames, Iowa.

Traduzido por Maurício Zágari

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O que é nacionalismo cristão?

Uma explanação sobre como essa crença difere de outras formas de nacionalismo, do patriotismo e do cristianismo.

Christianity Today March 15, 2021
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Cameron Smith / Mohammad Aqhib / Unsplash / Reza Estakhrian / Getty Images

Nota da edição em português: sabemos que este artigo foi escrito tendo a realidade norte-americana como ponto de partida, mas acreditamos que boa parte do que está escrito aqui pode iluminar nossos pensamentos sobre o tema quando aplicado a países de língua portuguesa.

Você provavelmente já viu manchetes recentes sobre os males do nacionalismo cristão, especialmente desde dois episódios: a Marcha de Jericó, que aconteceu no mês de dezembro, em Washington, DC, e o episódio em que uma multidão de apoiadores de Trump — muitos deles ostentando símbolos, slogans ou emblemas cristãos — se rebelou e invadiu o Capitólio dos EUA, no dia 6 de janeiro.

Afinal, o que é nacionalismo cristão e em que ele difere do cristianismo? Ou do patriotismo? Como deve ser o pensamento dos cristãos com relação a nações, em especial sobre os Estados Unidos? Se o nacionalismo é algo ruim, isso significa que devemos rejeitar por completo a nacionalidade e a lealdade nacional?

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O que é patriotismo; é algo bom?

Patriotismo é o amor ao país. É diferente do nacionalismo, que é uma discussão sobre como definir nosso país. Os cristãos devem reconhecer que o patriotismo é bom porque toda a criação de Deus é boa, e o patriotismo nos ajuda a apreciar nosso lugar específico dentro dessa criação. Nosso afeto e lealdade em relação a uma parte específica da criação de Deus nos ajudam a fazer a boa obra de cultivar e melhorar o pedaço da criação no qual vivemos. Como cristãos, podemos e devemos amar o nosso país — o que também significa trabalhar para melhorá-lo, mantendo-o aberto a críticas e trabalhando por justiça, quando ele errar.

O que é nacionalismo?

Existem muitas definições de nacionalismo e um debate intenso sobre a melhor forma de conceituá-lo. Revisei a literatura acadêmica padrão sobre nacionalismo, e encontrei vários temas recorrentes. A maioria dos estudiosos concorda que o nacionalismo começa com a crença de que a humanidade é divisível em grupos culturais mutuamente distintos e internamente coesos, definidos por traços compartilhados como idioma, religião, etnia ou cultura. Partindo disso, segundo os estudiosos, os nacionalistas acreditam que cada um desses grupos deve ter seu próprio governo; que os governos devem promover e proteger a identidade cultural de uma nação; e que grupos nacionais soberanos fornecem significado e propósito para os seres humanos.

O que é nacionalismo cristão?

Nacionalismo cristão é a crença de que a nação é definida pelo cristianismo e que o governo deve tomar medidas efetivas para mantê-la assim. Popularmente, os nacionalistas cristãos afirmam que os EUA (e outros países) são e devem continuar a ser uma “nação cristã” — não apenas como uma observação relativa à história americana, mas como um programa prescritivo para aquilo que o país deve continuar a ser no futuro. Estudiosos como Samuel Huntington defenderam uma tese semelhante: que os EUA são definidos por seu passado “anglo-protestante”, e que perderemos nossa identidade e nossa liberdade se não preservarmos nossa herança cultural.

Os nacionalistas cristãos não rejeitam a Primeira Emenda e não defendem a teocracia, mas acreditam que o cristianismo deve desfrutar de uma posição privilegiada na arena pública. O termo “nacionalismo cristão” é relativamente novo, e seus defensores geralmente não o usam em relação a si mesmos, embora ele descreva com precisão os nacionalistas americanos, que acreditam que a identidade americana é inseparável do cristianismo.

Qual é o problema com o nacionalismo?

A humanidade não é facilmente divisível em unidades culturais mutuamente distintas. As culturas se sobrepõem e suas fronteiras são confusas. Uma vez que as unidades culturais são difusas, elas não servem como uma boa base para a ordem política. As identidades culturais são fluidas e é difícil traçar suas fronteiras, embora as fronteiras políticas sejam rígidas e semipermanentes. Tentar estabelecer a legitimidade política com base em semelhanças culturais significa que a ordem política correrá constante risco de ser vista como ilegítima por um ou outro grupo. O pluralismo cultural é algo em essência inevitável em todas as nações.

Mas isso é realmente um problema ou apenas uma preocupação abstrata?

É um problema sério. Quando os nacionalistas dedicam-se a edificar sua nação, eles têm de definir quem faz e quem não faz parte dela. Mas sempre há dissidentes e minorias que não se enquadram ou não conseguem se conformar ao modelo cultural preferido dos nacionalistas. E na ausência de autoridade moral, os nacionalistas só podem se estabelecer por meio da força. Os estudiosos são quase unânimes em afirmar que os governos nacionalistas tendem a se tornar autoritários e opressores na prática. Por exemplo, em gerações anteriores, uma vez que os Estados Unidos tinham o protestantismo como religião praticamente oficial, não respeitavam a verdadeira liberdade religiosa. O que é ainda pior, os Estados Unidos e muitos estados da federação usaram o cristianismo como um instrumento para apoiar a escravidão e a segregação.

O que os nacionalistas cristãos desejam, e em que isso difere do engajamento cristão normal na política?

Os nacionalistas cristãos querem definir os EUA (ou outro país) como uma nação cristã, e querem que o governo promova um modelo cultural específico como a cultura oficial do país. Alguns têm defendido que seja feita uma emenda à Constituição, a fim de reconhecer a herança cristã do país. Outros a defendem a fim de reinstituir a oração nas escolas públicas. Alguns trabalham para entronizar uma interpretação nacionalista cristã da história americana nos currículos escolares, que inclua a visão de que os EUA têm um relacionamento especial com Deus ou foram “escolhidos” por Ele para cumprir uma missão especial na terra. Outros defendem restrições à imigração, mais especificamente para evitar uma mudança na demografia religiosa e étnica americana ou uma mudança na cultura americana. Outros ainda desejam dar mais poder ao governo, a fim de que tome medidas mais firmes para coibir o comportamento imoral.

Parte deles — como o estudioso Samuel Huntington, por exemplo — têm argumentado que o governo dos Estados Unidos deve defender e consagrar como predominante a sua cultura “anglo-protestante”, com o intuito de garantir a sobrevivência da democracia americana. E, às vezes, o nacionalismo cristão fica mais evidente não por sua agenda política, mas pelo tipo de atitude com que é sustentado: uma presunção não declarada de que os cristãos têm direito a um lugar de primazia na arena pública, pois são herdeiros do legado verdadeiro ou essencial da cultura americana, e também de que os cristãos têm o direito presumido de definir o significado da experiência americana, porque se veem como os arquitetos, primeiros cidadãos e guardiões da América.

Como isso é perigoso para os EUA?

O nacionalismo cristão tende a tratar os outros americanos como cidadãos de segunda classe. Se fosse totalmente implementado, não respeitaria a plena liberdade religiosa de todos os americanos. Aumentar o poder do Estado por meio de “legislações morais”, visando regulamentar condutas, sempre traz o risco de exageros, que estabeleceriam um precedente ruim e concederiam poderes ao governo que mais tarde poderiam vir a ser usados contra os cristãos. Além disso, o nacionalismo cristão é uma ideologia predominantemente sustentada por americanos brancos e, portanto, tende a exacerbar as divisões raciais e étnicas. Nos últimos anos, o movimento tem crescido como algo cada vez mais caracterizado pelo medo e pela crença de que os cristãos são vítimas de perseguição. Alguns estão começando a defender que os cristãos americanos precisam se preparar para lutar, fisicamente, para preservar a identidade da América, um argumento que contribuiu para os acontecimentos de 6 de janeiro.

Como o nacionalismo cristão é perigoso para a igreja?

O nacionalismo cristão carrega o nome de Cristo para uma agenda política terrena, proclamando que seu programa é o programa político para todo crente verdadeiro. Isso está errado em princípio, não importa qual seja a agenda, pois somente a igreja está autorizada a proclamar o nome de Jesus e a levar seu padrão ao mundo. É ainda pior quando um movimento político defende algumas causas injustas, como é o caso do nacionalismo cristão e do iliberalismo que o acompanha. Nesse caso, o nacionalismo cristão está chamando o mal de bem e o bem de mal; está usando o nome de Cristo como uma folha de figueira para cobrir seu programa político, tratando a mensagem de Jesus como uma ferramenta de propaganda política, e a igreja como serva e líder de torcida do Estado.

Como o cristianismo é diferente do nacionalismo cristão?

O cristianismo é uma religião que se concentra na pessoa e na obra de Jesus Cristo, definidas segundo a Bíblia cristã e os Credos Apostólico e Niceno. É o ajuntamento de pessoas “de todas as nações, tribos, povos e línguas”, que adoram a Jesus (Ap 7.9); é uma fé que une judeus e gregos, americanos e não americanos. O cristianismo é político, no sentido de que seus adeptos sempre entenderam sua fé como algo que se presta a desafiar, afetar e transcender suas lealdades terrenas — embora não haja uma visão única sobre quais implicações políticas fluem da fé cristã, exceto que devemos temer a Deus, honrar o rei (1Pe 2.17), pagar nossos impostos, amar nosso próximo e buscar a justiça.

O nacionalismo cristão é, em contraste, uma ideologia política que se concentra na identidade nacional dos Estados Unidos. Inclui uma compreensão específica da história americana e do governo americano que são, obviamente, extrabíblicos — uma compreensão que é contestada por muitos historiadores e cientistas políticos. E o que é mais importante, o nacionalismo cristão inclui prescrições de políticas específicas que alega serem bíblicas, mas que são, na melhor das hipóteses, extrapolações de princípios bíblicos e, na pior, contraditórias a eles.

Os cristãos podem ser politicamente engajados sem serem nacionalistas cristãos?

Sim. Os cristãos americanos, no passado, foram exemplares em ajudar a estabelecer a experiência americana, sendo que muitos cristãos americanos trabalharam para acabar com a escravidão, a segregação e outros males. Eles assim fizeram porque acreditavam que o cristianismo exigia que eles trabalhassem por justiça. Mas eles trabalharam para promover os princípios cristãos, e não o poder cristão ou a cultura cristã, que é a principal distinção entre o engajamento político cristão normal e o nacionalismo cristão. O engajamento político cristão normal é humilde, amoroso e sacrificial; rejeita a ideia de que os cristãos tenham direito a um lugar de primazia na arena pública, ou que tenham direito presuntivo de dar continuidade à sua predominância histórica na cultura americana. Hoje, os cristãos devem procurar amar seu próximo buscando justiça na arena pública, inclusive trabalhando contra o aborto, promovendo a liberdade religiosa, fomentando a justiça racial, protegendo o Estado de direito e honrando os processos constitucionais. Essa agenda é diferente de promover a cultura cristã, a herança ocidental ou os valores anglo-protestantes.

Paul D. Miller é professor de prática de relações internacionais na Universidade de Georgetown e pesquisador da Comissão de Ética e Liberdade Religiosa.

Traduzido por Erlon Oliveira.

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A maioria dos “sem igreja” ainda mantém a fé

Quando a pesquisa vai além da membresia, o afastamento das instituições religiosas torna-se mais matizado.

Christianity Today March 14, 2021
Prixel Creative / Lightstock

Sou pastor de uma igreja batista em uma pequena cidade na zona rural de Illinois, nos EUA. Quando o prédio atual da igreja foi inaugurado, em 1968, havia mais de 300 membros. Na década de 1990, havia cerca de cem. Quando me tornei pastor, em 2006, eram apenas 50. Agora, em um bom domingo, posso olhar do púlpito e ver 20 almas nos assentos.

Onde foram parar todos? Tornei-me um cientista social, em parte, para tentar descobrir isso. Em meu próximo livro, The Nones: Where They Came From, Who They Are, And Where They Are Going ["Os sem igreja": De onde vêm, quem são e para onde vão", em tradução livre], documentei em detalhes como e por que tantos americanos hoje integram as fileiras dos não afiliados a nenhuma instituição religiosa nos Estados Unidos.

O que descobri foi que, embora muitas pessoas tenham se afastado de uma afiliação religiosa, elas não deixaram para trás todos os aspectos da religião e da espiritualidade. Portanto, embora um número cada vez maior de americanos possa não se identificar mais como cristão, eles ainda comparecem a um culto algumas vezes por ano ou mantêm sua fé em Deus.

A realidade é que muitos dos sem igreja na verdade são frequentadores de alguma igreja.

Os sem igreja por pertencimento

A desfiliação religiosa atingiu o ponto mais alto de todos os tempos — sendo reivindicada por quase um quarto da população — quando medida por meio de pesquisas sobre pertencimento religioso. A General Social Survey [GSS, ou Pesquisa Social Geral], por exemplo, faz uma versão comum da pergunta: “Qual é a sua preferência religiosa?” Os entrevistados podem escolher entre uma longa lista de opções, entre as quais a opção “não tem religião”.

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Em 1972, apenas 1 em cada 20 americanos não tinha afiliação religiosa. Essa fatia aumentou apenas marginalmente, nas duas décadas seguintes, antes de começar sua escalada, na década de 1990. Os não afiliados saltaram cerca de 4 pontos percentuais entre 1993 e 1996, e passaram a quase 1 em cada 6 (perto de 15%) no novo milênio.

O número de entrevistados que assinala a alternativa “não tem religião” continuou a crescer, atingindo a marca de 1 em 5, em 2012 (19,6%) e perto de 1 em 4 (23,7%) na onda mais recente da pesquisa disponível.

Há ampla evidência surgindo de que a GSS subestima a parcela de americanos que não pertencem a nenhuma religião, porque alguns entrevistados podem ficar mais relutantes em indicar a um entrevistador, em uma entrevista ao vivo, que não são filiados a nenhuma religião. Ainda assim, todas as pesquisas concordam neste ponto: aqueles sem tradição religiosa estão crescendo a cada ano; é a chamada ascensão dos sem igreja.

No meu livro, observo como a única outra tradição religiosa a mudar de tamanho de forma significativa são os protestantes tradicionais (como os metodistas unidos e os episcopais). Os dados indicam que muitos dos sem igreja são pessoas que foram criadas em uma dessas tradições, mas se afastaram dela quando adultos.

Os sem igreja por comportamento

Embora o pertencimento seja a forma mais popular de aferir a religiosidade, existem outras dimensões da vida religiosa. Se acreditarmos que “ações falam mais alto do que palavras”, podemos verificar se o comportamento religioso mudou tão drasticamente.

Um bom lugar para verificar isso é a frequência à igreja. A ciência social sabe que reuniões de adoração públicas são cruciais para gerar capital social, fornecer educação teológica e encorajar os fiéis a permanecerem devotados aos princípios de sua tradição religiosa.

Assim como a filiação religiosa, a frequência a igrejas nos Estados Unidos tem diminuído desde os anos 1970, mas de forma cada vez maior.

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Na década de 1970, cerca de 3 em cada 10 americanos indicavam que compareciam aos cultos religiosos pelo menos uma vez por semana. No outro extremo do espectro, cerca de 2 em cada 10 diziam que nunca ou raramente compareciam a cultos religiosos. A porcentagem de americanos que se enquadrava nessa categoria de frequência mais baixa à igreja permaneceu estável durante a década de 1980, e aumentou gradativamente daquele ponto em diante. Na década de 2010, quase um terço de todos os americanos disse que nunca frequentava uma igreja ou a frequentava menos de uma vez por ano.

Ao mesmo tempo, a proporção de americanos que frequentavam semanalmente caiu lentamente. Entre os anos 1990 e 2010, a participação nesta categoria principal caiu cerca de 2,5%. Atualmente, cerca de um quarto frequenta semanalmente ou mais, e dois terços assistem a um culto religioso pelo menos uma vez por ano.

O que está causando essa queda na frequência? Por décadas, os cientistas sociais acreditaram que os jovens se afastariam da religião no início da idade adulta, mas voltariam para a igreja quando se casassem, tivessem filhos e se estabelecessem. Isso foi verdade em relação aos baby boomers, mas agora os dados indicam que, entre os grupos mais jovens, isso não está ocorrendo tanto. Mais jovens estão parando de frequentar a igreja aos 20 anos e nunca mais voltam.

Os sem igreja por crença

A dimensão final da religiosidade é a crença religiosa. Essas perguntas são notoriamente difíceis de fazer em pesquisas, mas a GSS começou a explorar o tópico em 1988.

Os entrevistados podem selecionar entre seis opções a resposta para a pergunta: “Qual afirmação mais se aproxima de expressar aquilo em que você acredita sobre Deus?” As respostas variam de “Eu sei que Deus realmente existe e não tenho dúvidas sobre isso”, a uma opção ateísta, “Eu não acredito em Deus”, além de uma que descreveria uma crença agnóstica: “Não sei se Deus existe, e não acredito que haja alguma maneira de descobrir.” É razoável supor que aqueles que escolhessem a opção ateísta ou a agnóstica seriam contados como “sem igreja”, quando se trata de crença religiosa.

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Em 1988, apenas 5,1% dos americanos escolheram a opção ateísta ou agnóstica na pesquisa. Vinte anos depois, esse número aumentou para 8%, com 3% escolhendo a opção ateísta. Desse ponto em diante, a parcela dos que mantiveram essas crenças subiu para cerca de 11% nas duas últimas ondas da pesquisa.

Reunindo as três categorias

A maioria dos americanos de todas as religiões (60%) não pode ser classificada como sem igreja em qualquer dessas três categoriais: por pertencimento, por comportamento ou por crença. Mas, entre os 40% que se desfiliaram de igrejas por ao menos uma das três categorias, poucos podem ser classificados como sem igreja em todos os sentidos.

O diagrama de Venn ilustra como os 40% restantes da população estão situados em torno dessas três dimensões da religião. Observe que o comportamento — não frequenta a igreja — é o motivo mais comum pelo qual alguém se enquadraria.

Quarenta por cento dos sem igreja não frequentam a igreja, mas ainda se identificam com uma afiliação religiosa e acreditam em Deus em algum nível. Outro quarto dos sem igreja não vai à igreja nem indica estar filiado a qualquer grupo religioso (a interseção dos círculos verde e amarelo), mas ainda tem fé em Deus. Esses dois grupos representam dois terços dos sem igreja.

Não é de admirar que a pesquisa tenha mostrado que os não afiliados nos Estados Unidos têm a mesma probabilidade de retornar à igreja e reivindicar uma identidade cristã quanto de se tornarem ateus e agnósticos. Em meu livro, escrevo que quase 20% das pessoas que se identificaram como “nenhuma opção em particular” tinham mudado sua classificação para cristão, apenas quatro anos depois. E essa categoria “nenhuma opção em particular” representa perto de 1 em cada 5 americanos. A colheita é abundante!

Quanto aos dois fatores restantes, fica claro que pertencimento é o próximo a cair no esquecimento, seguido pela crença religiosa. Apenas um quarto de todos os sem igreja indica ter uma visão ateísta ou agnóstica de Deus (todos aqueles representados pelo círculo vermelho).

O centro do diagrama de Venn indica que apenas 15,3% da população dos que são sem igreja em uma categoria o são em todas as demais. Isso equivale a cerca de 6% do público em geral que, ao mesmo tempo, não pertence a uma tradição religiosa_,_ não frequenta a igreja e tem uma visão de mundo ateísta ou agnóstica.

Como escreveu no ano passado Ed Stetzer: “Seria um erro descartar 25% da população como inalcançável ou agir como se todos dessa faixa fossem ateus. Também seria um erro pensar que a igreja, como a conhecemos hoje, atrairá os sem igreja”.

Ele disse a líderes eclesiásticos: “Os não afiliados não são os inalcançáveis”. Mas para os líderes envolverem esse segmento crescente da população em suas comunidades e, com sorte, em suas igrejas, devem captar uma imagem precisa do espectro que abrange a não afiliação religiosa nos Estados Unidos.

Compreender a composição e a trajetória desse grupo é crucial, mas é incrivelmente mais fácil fazer uma generalização excessiva sobre um grupo com base no que ele não é, do que com base no que ele tem em comum. Eu gostaria de poder dar às igrejas uma lista simples de atitudes que os pastores podem adotar para trazer os sem igreja de volta, mas há pelo menos 60 milhões de adultos sem igreja nos Estados Unidos e 60 milhões de razões pelas quais eles deixaram a religião institucionalizada.

Tentar entender esse grupo de uma perspectiva sociológica é um bom começo, mas os cristãos precisam estar dispostos a ouvir os sem igreja. Conversar com eles — sem julgá-los, buscando entender suas preocupações e sua história — é a melhor abordagem que a igreja pode adotar para lidar com essa mudança significativa no cenário religioso americano.

Ryan P. Burge é professor assistente de Ciências Políticas na Eastern Illinois University. Sua pesquisa aparece no site [Religion in Public](https://religioninpubseu tweetlic.blog/contributors/burge-2/), e seu Twitter é @ryanburge.

Traduzido por Maurício Zagari.

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Books

Morre Luis Palau, que pregou o evangelho de Portland à América Latina e além

O evangelista argentino passou de tradutor de Billy Graham a pregador que levou milhões de pessoas, de mais de 80 países, a seguirem Jesus.

Luis Palau

Luis Palau

Christianity Today March 11, 2021
Courtesy of Luis Palau Association

O evangelista Luis Palau morreu, aos 86 anos, de câncer de pulmão. Imigrante da Argentina que viveu nos Estados Unidos, Palau se tornou um dos sucessores mais proeminentes de Billy Graham e compartilhou o evangelho em mais de 80 países ao redor do mundo. Seu ministério levou milhões de pessoas a tomarem a decisão pessoal de seguir Jesus.

Palau pregou o evangelho a chefes de estado da América Latina, e, quando a Cortina de Ferro caiu, na antiga URSS, suas cruzadas reuniram uma ampla gama de cristãos, incluindo protestantes, ortodoxos e católicos. Quando jovem, Palau atuou como intérprete de Billy Graham, que mais tarde ajudou a financiar a organização de evangelismo de Palau, quando ela começou oficialmente, em 1978.

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Palau começou a evangelizar durante um momento histórico para o evangelicalismo latino-americano. O pentecostalismo havia acabado de chegar à região, no início do século 20. Nas décadas de 1960 e 1970, o equatoriano René Padilla e o peruano Samuel Escobar começaram a defender a Missão Integral, desafiando um evangelicalismo que eles acreditavam centrar-se muito estreitamente na salvação pessoal e individual, em detrimento de questões sociais mais amplas. Palau não seguiu essa trajetória. Seus escritos em espanhol criticavam a Teologia da Libertação e seu ministério focava em conversões. Muito de seu trabalho posterior, no entanto, buscou envolver ativamente a comunidade, especialmente na cidade em que vivia nos EUA, Portland, no estado do Oregon.

“Palau pregava o evangelho de uma maneira incrível, acessível, e que colocava as prioridades espirituais como algo voltado para a salvação pessoal em Cristo. Mas ele também tinha certa consciência social”, afirmou o professor de história da Notre Dame, Darren Dochuk. “Se não era um evangelho social completo, sua mensagem estava ciente das questões sociais”.

Na década de 1990, o ministério global de Palau começou a se concentrar intencionalmente nos Estados Unidos. Sob a influência de seus filhos, que assumiram papéis de liderança ativa no ministério, seus eventos evangelísticos se tornaram cada vez mais marcados por shows de rock e projetos de serviço comunitário. Em 1999, o New York Times fez uma enquete sobre quem poderia suceder Billy Graham. Palau foi o mais votado.

Apesar de ter vivido sua vida adulta nos Estados Unidos, Palau permaneceu conectado com a América Latina em grande parte pelo rádio — o mesmo meio pelo qual ouviu Billy Graham pregar pela primeira vez, quando era adolescente, evento que inspirou sua atuação no evangelismo. Ele frequentemente contratava canais de televisão para que fizessem a transmissão simultânea de suas cruzadas, em horário nobre. Além de suas pregações públicas, ele também aparecia no canal de TV local, respondendo a perguntas dos telespectadores e levando os moradores ao Senhor.

Palau cresceu em Ingeniero Maschwitz, uma pequena cidade a cerca de 50 quilômetros de Buenos Aires. Ele nasceu em 1934, o único menino de sete filhos. Sua família era bilíngue, pois seus avós paternos imigraram da Espanha, após a Primeira Guerra Mundial, e sua mãe vinha de uma família de origem escocesa e francesa. Os pais de Palau, Luis Palau Sr. e Matilde Balfour de Palau, tornaram-se cristãos depois que Edward Rogers, um alto executivo britânico da indústria do petróleo, deu uma Bíblia à mãe de Palau. Rogers foi uma grande influência espiritual na vida de Palau, durante sua infância e, quando o pai de Palau morreu de forma inesperada, ajudou financeiramente a família.

A experiência de conversão pessoal de Palau aconteceu enquanto ele estava em um acampamento de férias, em 1947, e um conselheiro do acampamento o levou a Cristo.

“Você não precisa ter uma história de cair o queixo sobre como aceitou Jesus. Ela só precisa ser sua ”, escreveu Palau mais tarde, em um livro de memórias. “Alguns veem uma luz vinda do céu, como a experiência da estrada de Damasco, que os faz passar da condição de ‘o principal dos pecadores’ para os braços de Jesus. Outros são apenas crianças começando a aprender o que significa pecado, e a luz vinda do céu se parece mais com a luz tremulante de uma lanterna iluminando as páginas da Bíblia, enquanto uma chuva fria cai ao redor. Tudo o que importa em nossa conversão é a sua realidade”.

Palau aprendeu inglês com os pais, que eram bilíngues, quando ele ainda era muito jovem. Grande parte de sua educação também foi em inglês, primeiro em um internato britânico e, depois, em uma prestigiosa academia associada à Universidade de Cambridge.

Depois de terminar os estudos e encontrar trabalho em uma agência do Banco de Londres, Palau ouviu pela primeira vez a voz de Billy Graham no rádio, quando era um adolescente, na Argentina. Dali a alguns anos, o próprio Palau solicitaria à rádio local um espaço para que ele mesmo fizesse sermões. Inicialmente inclinado a seguir a advocacia, Palau começou a sonhar com um ministério de evangelismo em massa, em escala global, nos mesmos moldes que marcavam as cruzadas de Billy Graham. Mais ou menos na mesma época, ele participou de um estudo bíblico conduzido pelo pastor e escritor americano Ray Stedman, que, nos meses seguintes, instou Palau a se mudar para os Estados Unidos, a fim de ser treinado para o ministério.

Quando chegou à área da baía de São Francisco, na Califórnia, Palau foi morar com Stedman, que também era mentor do jovem Chuck Swindoll. A orientação de Stedman ia além de indicar livros ou dar conselhos. Ele levava Palau consigo a sessões de aconselhamento congregacional, zombava de sua formação legalista e o divertia com suas histórias surpreendentemente francas, que pareciam desafiar tabus. Stedman o encorajou a frequentar o Seminário Teológico de Dallas, mas Palau se sentiu intimidado pelo compromisso de quatro anos, e optou por um programa de um ano na Multnomah School of the Bible (hoje, Multnomah University).

Em Multnomah, Palau conheceu sua esposa, Patricia, uma moradora do Oregon que tinha seus próprios sonhos relacionados ao evangelismo global. Depois que se casaram, mudaram-se para Detroit e, em seguida, passaram um tempo em Costa Rica, Colômbia e México, pela agência missionária Overseas Crusades. À medida que a família cresceu — eles acabaram tendo quatro meninos —, o casal decidiu criar os filhos no Oregon. Palau continuou a viajar, enquanto Pat ficava em casa. Certa vez, aos 57 anos de casamento, Palau calculou que eles haviam passado 15 anos separados, por causa de suas viagens.

“Nunca me esqueci do fato de que muitos dos momentos mais preciosos da vida de meus filhos ocorreram sem a minha presença”, escreveria Palau posteriormente. “Não me arrependo da escolha que fiz. Mas lamento as muitas memórias que ocorreram sem que eu estivesse presente”.

Palau teve um breve encontro com Billy Graham, quando o americano visitou a Argentina, mas seus caminhos se cruzaram novamente quando Palau estava perto de completar 30 anos. Palau tinha em Billy Graham um exemplo, e imitava sua estratégia centrada em cidades, a nomeação de empresários de sucesso para o conselho ministerial, a citação nos sermões de eventos atuais, o recrutamento de atletas famosos para dar testemunhos em seus eventos e a organização de cruzadas somente se uma coalizão formada por diversas igrejas o convidasse. No início de seu ministério, Palau traduziu para Billy Graham e, ao longo de seus ministérios de décadas, eles trabalharam juntos em várias ocasiões.

As cruzadas de Palau frequentemente ocorriam após décadas de ministério de igrejas locais e sociedades bíblicas, muitas delas pentecostais. Além de se dirigir às multidões, Palau e sua equipe evangelística buscavam se reunir com os líderes da região. “Um encontro de doze minutos, agendado com o presidente da Guatemala, Carlos Arana Osorio, durou uma hora; o presidente aceitou uma Bíblia de Palau, declarando que queria estudá-la”, relatou a CT, em 1974.

Talvez o amigo mais famoso de Palau tenha sido o ditador guatemalteco Efraín Ríos Montt (que tinha como amigos vários líderes evangélicos), que mais tarde seria condenado por genocídio. (A condenação foi anulada.) “É ótimo ter um presidente cristão como modelo”, disse Palau à CT, em 1983. “A mão de Deus parece estar sobre ele”.

Apesar de seu ministério internacional e da turbulência política que a América Latina enfrentou na segunda metade do século 20, Palau ganhou a reputação de raramente fazer comentários sobre política.

“Aqueles que são chamados a entrar na arena política devem considerá-la um ministério do Senhor. Eu não me importo se ele ou ela é de esquerda, de direita, um ateu ou um líder religioso. Sempre falo aos políticos: ‘A autoridade de sua posição é delegada por Deus e você é um ministro de Deus’”, disse Palau, em 1996. “Portanto, eu os incentivo a pensar em justiça e retidão, e a defender os pobres e necessitados. Esse é o papel de um político”.

Além de suas ligações com líderes políticos, Palau também era amigo de longa data do homem que se tornaria um dos argentinos mais famosos do mundo: Jorge Bergoglio. Quando esse amigo se tornou o Papa Francisco, em 2013, Palau comemorou a nomeação.

“Foi emocionante, por causa da Argentina, de sua personalidade e por sua abertura em relação aos cristãos evangélicos”, disse ele à CT, em 2013. “Eu fiquei um pouco emocionado simplesmente por tê-lo conhecido”.

Esse espírito de parceria ecumênica também marcou as cruzadas de Palau, que, muitas vezes, refletiram meses de parceria com igrejas locais e construção de laços de confiança entre cristãos afastados havia muito tempo. Rotineiramente, essas colaborações se estendiam para além do alcance de congregações protestantes. Em países como Egito e Rússia, onde evangélicos e cristãos ortodoxos havia muito tempo se desentendiam, as cruzadas serviram como catalisadores para parcerias. Na América Central, católicos e carismáticos participaram de seus eventos.

Essa camaradagem não se estendeu necessariamente a seu país de adoção. Em 1976, Palau cancelou uma cruzada em Chicago, dirigida a cristãos hispânicos, em razão da divisão entre cristãos pentecostais e não pentecostais.

“Curiosamente, os Estados Unidos são o país mais difícil do mundo para se fazer com que denominações trabalhem juntas. O país levanta a bandeira de ser ‘uma nação sob Deus’, mas é pura teoria”, disse Palau à CT, em 1996. “O principal trabalho em uma cruzada, em qualquer cidade, não é tocar os não convertidos. É unir as igrejas para tocarem os não convertidos”.

Apesar de sua herança argentina, quando ele deixou a América do Sul, seu treinamento teológico, seus relacionamentos e a estrutura de seu ministério fizeram com que grande parte do mundo considerasse Palau um americano.

“Ele adota o modelo de Billy Graham. E tem por trás de si essa grande organização que lhe proporciona um sistema de prestação de contas, experiência gerencial, arrecadação de fundos e legitimidade”, disse Daniel Ramirez, professor associado de religião na Claremont Graduate University. “Isso vem dos Estados Unidos. Isso não vem da América Latina”.

Com o tempo, a presença de Palau nos Estados Unidos tornou-se mais forte — e começou a se diferenciar do modelo que muitos de seus eventos internacionais haviam adotado. Seus filhos o convenceram a abandonar a palavra cruzada e trocá-la por festival — sugestão a qual ele resistiu no início. Ele, como muitos de seus contemporâneos, começou a trocar os espaços de arenas esportivas por parques localizados no centro das cidades. Muitos eventos também começaram a incluir projetos de serviço comunitário. Durante um recesso de primavera, ele transmitiu sua programação para dezenas de igrejas, via satélite, encorajando as congregações a alcançarem estudantes universitários por meio de festas na praia, com bandas locais, palestrantes e esportes.

“Ele era claramente ortodoxo, mas, ao mesmo tempo, sem ser desagradável”, disse Ed Stetzer, diretor executivo do Billy Graham Center, do Wheaton College. “Isso é algo que nem todo mundo consegue [ser] em um cenário nacional. Ele conseguiu”.

Vários anos depois, seu ministério, baseado na área de Portland, também chamou a atenção por construir relacionamentos intencionais com o então prefeito, homossexual assumido, e por colaborar com uma cidade que ostentava uma reputação secular e progressista. Às vezes, Palau preocupava-se com o fato de que o foco crescente do ministério em servir à comunidade pudesse ofuscar o evangelismo para o qual ele se sentia chamado.

“Corremos o risco de passar por uma transformação completa e nos tornarmos como os liberais”, disse ele à CT, em 2008. “Não devemos diluir o evangelho porque estamos almoçando com políticos. Estou comprometido com a pregação do sangue e da cruz de Jesus”.

Por meio de seus festivais na América, ele também buscou relacionamentos intencionais com a comunidade latina.

“Os latinos estão em melhor posição para levar a mensagem do evangelho a este país, por causa de nosso alto compromisso com a família e porque os hispânicos têm um senso de abandono em prol do evangelho”, disse Palau. “Mal acabo de citar um versículo da Bíblia e eles já explodem em aplausos!” Nos comícios feitos no Chicago Pavilion, da Universidade de Illinois, Palau citava a primeira parte de um versículo bíblico e o público dizia o restante, em altos brados.

Palau também acreditava que os latinos poderiam servir de ponte para unir comunidades brancas e negras polarizadas. “Não nos isolamos, como os brancos, dos problemas da cidade, e não temos as mesmas mágoas históricas da comunidade negra”, afirmou.

“A onda latina no evangelicalismo também mudará a própria igreja evangélica”, disse Palau. “A corrente predominante da igreja evangélica se tornou muito à vontade nesta cultura. Ela perdeu seu fogo, seu senso de convicção de certo e errado”.

Apesar da polêmica situação política em muitos dos países que Palau visitou, na maioria das vezes ele evitou ofensas, com algumas exceções. Em 1977, Palau falou para mais de 60.000 pessoas no País de Gales, ao longo de um mês. Mas, em 2005, a cidade de Cardiff cancelou uma recepção para Palau alegando que tinha “crenças evangélicas extremadas”. Naquele mesmo ano, Palau instou as igrejas domésticas chinesas a se registrarem oficialmente como igrejas para “receberem mais liberdade e bênçãos do governo”. Seus comentários provocaram forte resistência de defensores da liberdade religiosa.

Mesmo com a expansão de seu ministério nos Estados Unidos, Palau lamentava a falta de paixão do Ocidente pelo evangelismo.

“Na América do Norte e na Europa, no entanto, acho que, embora haja muita discussão sobre evangelismo, é difícil encontrar evangelismo de verdade”, disse ele à CT, em 1998. “Os cristãos evangélicos da América do Norte pagam com satisfação qualquer quantia para ir a um show. Eles lotam centros cívicos para sessões de louvor e adoração, e até mesmo para convenções de batalha espiritual e intercessão. Mas quando se trata da batalha face a face, que consiste em falar às pessoas de maneira gentil, mas direta, sobre sua necessidade de Cristo, esses números caem de forma abrupta. Em muitas igrejas, a resposta ao desafio de proclamar o evangelho em sua cidade é: ‘Por que devemos fazer isso?’ e ‘Isso é dispendioso’”.

Mais de 15 anos depois, Palau reafirmou suas convicções.

“Nós, cristãos — especialmente os anglo-saxões — temos essa ideia de que já sabemos o que o outro está pensando, antes mesmo de começarmos a falar com ele. Mas, na realidade, não sabemos ”, disse Palau. “O Espírito Santo disse que convenceria o mundo do pecado, da justiça e do juízo. Você acredita nisso? Eu acredito.”

Palau deixa esposa, quatro filhos e muitos netos.

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Books

O pensamento evangélico sobre a Trindade costuma ser notavelmente revisionista

O teólogo Matthew Barrett diagnostica nosso afastamento de uma compreensão ortodoxa de Pai, Filho e Espírito Santo.

Christianity Today March 9, 2021
Illustration by Rick Szuecs / Source image: Envato

Em geral, os cristãos evangélicos americanos têm uma visão conservadora das Escrituras e da moralidade. De acordo com o teólogo Matthew Barrett, entretanto, suas afirmações mais básicas sobre Deus costumam ser notavelmente revisionistas.

Barrett, professor do Midwestern Baptist Theological Seminary e editor executivo da Credo Magazine, é o autor de Simply Trinity: The Unmanipulated Father, Son, and Spirit. O livro — uma continuação de sua obra de 2019, None Greater: The Undomesticated Attributes of God — faz duas coisas. Primeiro, mostra como uma boa parte da teologia evangélica sobre a Trindade se afastou da tradição cristã clássica. Em segundo lugar, recruta um verdadeiro “time dos sonhos” de professores adeptos de toda essa tradição para trazer os leitores de volta ao porto seguro da ortodoxia bíblica. O tom é acessível, mas as fontes são profundas.

Como o evangelicalismo se equivocou em sua compreensão da Trindade? Barrett apresenta um amplo leque, mas se concentra no desenvolvimento, na teologia recente, do que ele chama de “trinitarismo social”. Os proponentes dessa visão, que é mais uma postura comum do que uma escola monolítica, tendem a conceber a unidade de Deus como uma comunidade de pessoas. Barrett apresenta algumas de suas principais figuras, incluindo teólogos liberais, como Jürgen Moltmann e Leonardo Boff, e teólogos conservadores americanos, como Wayne Grudem e Bruce Ware.

A marca do trinitarismo social é a sua disposição para se apropriar das relações entre as pessoas da Trindade como modelo para vários projetos sociais. Para liberais como Moltmann e Boff, isso pode significar invocar um status igual para Pai, Filho e Espírito, a fim de promover uma visão igualitária da sociedade. Conservadores como Grudem e Ware às vezes apontam para supostas hierarquias dentro da Trindade — por exemplo, algo que eles chamam de “submissão eterna” do Filho ao Pai — como base para suas visões complementaristas sobre os papéis dos gêneros. (Muitos complementaristas discordam. Liam Goligher, pastor da Tenth Presbyterian Church, soou o alarme há vários anos, em uma postagem de blog na qual acusava Grudem e Ware de minar a unidade que existe entre Pai, Filho e Espírito.) A obra Simply Trinity fornece uma análise detalhada de como as tendências revisionistas em relação à teologia trinitária se estabeleceram no mundo aparentemente conservador do evangelicalismo americano.

Qual é o caminho de volta? Na segunda parte de seu livro, Barrett resgata os ensinamentos trinitários clássicos, abordando a relação entre eternidade e história, ao mesmo tempo em que afirma a unidade e a simplicidade de Deus. As doutrinas que ele aborda — a “geração eterna” do Filho, a “processão eterna” do Espírito e as “operações inseparáveis” do Deus triúno — podem parecer bastante elevadas, mas Barrett as explica com facilidade e clareza.

Entre esses capítulos, Barrett também oferece um único capítulo em que examina a afirmação de Grudem, Ware e outros de que o Filho é “eternamente subordinado” ao Pai. Ele mostra corretamente que as relações de origem entre Pai, Filho e Espírito afetam profundamente nosso entendimento da salvação.

O livro não é perfeito. Barrett nem sempre se aprofunda o suficiente ao abordar as raízes do revisionismo recente ou as glórias da compreensão cristã clássica da Trindade. E ele falha em situar o trabalho de reflexão sobre a Trindade no âmbito de questões mais amplas da formação espiritual cristã, o que restringe o foco do livro principalmente a questões de debate intelectual e interpretação bíblica.

Isso não corresponde exatamente ao estilo do pensamento cristão clássico. Considere o pai da igreja do século IV, Gregório de Nazianzo, por exemplo. Em suas Cinco Orações Teológicas, ele certamente aborda passagens da Bíblia sobre o Pai, o Filho e o Espírito — mas somente depois de refletir sobre a preparação espiritual necessária para o colóquio trinitário.

Em suas Confissões, Agostinho demonstra que Deus, conforme caracterizado nas Escrituras, é uma pessoa diferente de qualquer outra. Mas os trinitarismos sociais, de esquerda ou de direita, tendem a cometer o erro de fazerem falsas analogias entre Deus e outras pessoas. A menos que tratemos da raiz desse problema, continuaremos a ver sintomas de erros teológicos surgindo de quando em quando.

Ainda assim, a obra Simply Trinity percorre um bom caminho no sentido de identificar e eliminar algumas dessas tendências prejudiciais. Para qualquer um que tenha lido postagens confusas sobre a Trindade nos últimos anos, o livro o ajudará a recuperar seus rumos teológicos. E, para quem busca recuperar as riquezas de adorar a um Deus em três pessoas, Barrett provará ser um guia mais do que capaz.

Michael Allen é professor de Teologia Sistemática no Reformed Theological Seminary, em Orlando, Flórida. Ele é coeditor da obra The Oxford Handbook of Reformed Theology.

Traduzido por Maurício Zágari

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Uma nota dos editores sobre a investigação de Ravi Zacharias

Por que publicamos más notícias sobre líderes cristãos — mesmo depois que eles faleceram

Christianity Today February 28, 2021
Michal_edo / Getty Images

A Christianity Today é motivada por um profundo amor pela igreja. Esse amor às vezes é doloroso, especialmente quando significa divulgar evidências de comportamentos nocivos por parte de líderes de ministérios. Essas alegações são difíceis de publicarmos e podem ser difíceis de ler. Com o passar dos anos, alguns leitores já se perguntaram por que publicamos evidências de transgressões cometidas por líderes de ministérios que, exceto por isso, fazem o bem no mundo. Outros leitores, que em geral apóiam o jornalismo investigativo, acham que este deveria ser direcionado para fora de nossa comunidade cristã em particular. Mas nosso compromisso com a busca da verdade transcende nosso compromisso com a tribo. E, ao relatar a verdade, cuidamos de nossa comunidade.

O amor nos constrange a amar aqueles que foram feridos por líderes de um ministério — não apenas as vítimas imediatas, mas incontáveis outras, que veem as consequências do pecado e do abuso cometido por líderes, e se perguntam se os cristãos realmente se importam. O amor profundo pela igreja também nos constrange a amar os líderes de ministérios que erram. Frequentemente, a revelação é necessária para que cheguem ao arrependimento.

Nosso amor nos leva a investigar as alegações — ou a dar continuidade a nossas investigações — mesmo quando um líder acusado já faleceu. A devastação do pecado persiste muito tempo depois da morte de um líder. Devemos pedir às vítimas que carreguem sozinhas, nas sombras, o fardo, o trauma e a vergonha de suas experiências? Não. Nem as boas obras de um líder nem sua morte devem silenciar as vítimas. E as pessoas que pecam precisam da graça que vem com a luz. A morte impossibilita a oportunidade de um pecador se arrepender, mas não a oportunidade de uma vítima se restaurar e se libertar.

A igreja como um todo precisa dessa luz, por mais dolorosa que seja. A Christianity Today não empreende o longo e oneroso trabalho de investigar acusações com o intuito de criar uma lista de pecadores notórios. Nosso objetivo é a correção — não apenas dos líderes sobre os quais fazemos revelações, mas de todos nós.

A Bíblia fala muito claramente sobre falhas e faltas até mesmo de suas figuras mais heróicas. O herói supremo das histórias bíblicas e o herói supremo de nossas próprias histórias não é o ser humano com todos os seus pecados, mas sim o Deus que opera em pessoas pecadoras, para redimi-las e cumprir seus propósitos. Quando a Escritura detalha os erros graves de seus heróis, é “útil para o ensino,para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça” (2Tm 3.16). Não editamos nem cortamos essas partes. Da mesma forma, também relutamos em deixar de lado ou mitigar alegações feitas contra líderes cristãos. Procuramos investigar e divulgar essas histórias de forma justa. Não presumimos culpa e não privilegiamos os poderosos; esperamos que nossos leitores também evitem esses erros.

Contamos essas histórias, em parte, para que a igreja possa aprender com elas. Elas nos lembram de nossa vulnerabilidade, da própria necessidade de transparência e de prestar contas e, em última análise, da necessidade que todos temos da graça de Jesus Cristo e da obra transformadora do Espírito Santo. Mas também estamos cientes de que as pessoas que figuram nessas histórias não são meras ilustrações de sermões. Aqueles que foram explorados não estão aqui para nos ajudar. Nós é que estamos aqui para ajudá-los: para esclarecer os fatos, para expor injustiças e hipocrisias, para dar voz aos feridos, para lamentar com eles e para garantir a outros como eles que não estão sozinhos. O julgamento pertence a Deus somente. Mas trazer luz às trevas é responsabilidade de todos nós, mesmo enquanto sofremos.

Traduzido por Maurício Zágari

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Ravi Zacharias ocultou centenas de fotos de mulheres, abusos durante massagens e uma alegação de estupro

Seu ministério expressa pesar pela “confiança indevida” em um líder que ocultou sua má conduta sexual.

Christianity Today February 28, 2021
Illustration by Mallory Rentsch / Source Image: Courtesy of RZIM

Uma investigação de quatro meses descobriu que o falecido Ravi Zacharias aproveitou-se de sua reputação como apologista cristão mundialmente famoso para abusar de massoterapeutas, nos Estados Unidos e no exterior, por mais de uma década, enquanto o ministério liderado por seus familiares e aliados leais falhou em responsabilizá-lo por sua conduta.

Zacharias usava sua necessidade de submeter-se a massagens e as viagens frequentes ao exterior para ocultar seu comportamento abusivo, e atraía suas vítimas ao criar confiança por meio de conversas sobre temas espirituais e ofertas de fundos diretamente de seu ministério.

Um relatório de 12 páginas, divulgado na quinta-feira pelo Ravi Zacharias International Ministries (RZIM), confirma os abusos cometidos por Zacharias em spas que ele possuía em Atlanta, e revela mais cinco vítimas nos EUA, bem como evidências de abuso sexual na Tailândia, na Índia e na Malásia.

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Mesmo uma checagem limitada nos antigos dispositivos eletrônicos de Zacharias revelou contatos de mais de 200 massagistas nos Estados Unidos e na Ásia, e centenas de imagens de mulheres jovens, incluindo algumas que as mostravam nuas. Zacharias solicitiu e recebeu fotos até poucos meses antes de sua morte, em maio de 2020, aos 74 anos.

Zacharias usou dezenas de milhares de dólares de fundos do ministério, que deveriam ser destinados a “esforços humanitários”, para pagar quatro massoterapeutas. Ele lhes forneceu moradia, educação e uma quantia mensal por longos períodos de tempo, de acordo com os investigadores.

Uma mulher disse aos investigadores que “depois que ele providenciou para que o ministério lhe desse apoio financeiro, ele exigiu sexo dela”. Ela chamou isso de estupro.

A mulher afirmou que Zacharias “a fez orar com ele para agradecer a Deus pela ‘oportunidade’ que ambos receberam” e, como fazia com outras vítimas, “ele a chamava de sua ‘recompensa’ por levar uma vida de serviço a Deus”, diz o relatório. Zacharias advertiu a mulher — uma irmã em Cristo — que, se ela o denunciasse, seria responsável por milhões de almas que se perderiam, quando sua reputação fosse prejudicada.

As descobertas, juntamente com detalhes revelados ao longo de meses de investigações internas no RZIM, desafiam a imagem que muitos têm de Zacharias.

Quando ele morreu, em maio, foi elogiado por seu testemunho fiel, seu compromisso com a verdade e sua integridade pessoal. Agora está claro que, nos bastidores, o homem por tanto tempo admirado por cristãos ao redor do mundo abusou de inúmeras mulheres e manipulou pessoas ao seu redor para fazerem vista grossa.

Os advogados da auditoria Miller & Martin, Lynsey Barron e William Eiselstein, contratados pelo RZIM para investigar o caso, entrevistaram 50 testemunhas e examinaram os telefones celulares que Zacharias usou de 2014 a 2018. No final, os advogados disseram: “Estamos confiantes de que descobrimos evidências suficientes para concluir que o Sr. Zacharias se envolveu em má conduta sexual”, embora a investigação não tenha sido exaustiva.

O conselho do RZIM divulgou um comunicado, junto com as conclusões da investigação, expressando arrependimento e assumindo parte da responsabilidade:

“Ravi se envolveu em uma série de medidas abrangentes para ocultar seu comportamento de sua família, seus colegas e amigos. No entanto, também reconhecemos que, em situações de abuso prolongado, muitas vezes existem problemas estruturais, políticos e culturais significativos. […] Nossa equipe, nossos mantenedores e o público confiaram em nós para orientar, supervisionar e garantir a probidade de Ravi Zacharias, e nisso falhamos”.

O RZIM contratou a auditoria Miller & Martin após uma reportagem da Christianity Today, de setembro de 2020 sobre alegações de abuso por parte de três mulheres que trabalharam nos spas de Zacharias. Inicialmente, a liderança do ministério afirmou não acreditar nas mulheres. Hoje, isso mudou.

“Acreditamos não apenas nas mulheres que tornaram suas denúncias públicas, mas também em outras mulheres que não haviam feito denúncias públicas contra Ravi, mas cujas identidades e histórias foram descobertas durante a investigação”, disse o comunicado.

Em um período de oito meses, o RZIM passou da necessidade de repensar como seria o trabalho do ministério, após a morte de seu fundador, à urgência de ter de se reestruturar totalmente, à medida que cristãos dentro e fora da organização perdiam a confiança em seu líder de longa data.

Vários preletores e membros da equipe do RZIM deixaram o ministério, durante o curso da investigação, preocupados com a resposta inicial de altos funcionários às alegações. A filial canadense do RZIM suspendeu os esforços de arrecadação de fundos e coleta de doações até abril, enquanto a Zacharias Trust, com sede no Reino Unido, ameaçou deixar o ministério, caso o RZIM não se desculpasse com as vítimas e implementasse grandes mudanças. (Atualização: no dia seguinte à divulgação do relatório sobre as investigações, a diretoria do Reino Unido votou unanimemente em favor de deixar o RZIM e pela escolha de um novo nome).

Mesmo antes da divulgação do relatório, na noite de quinta-feira, a liderança do RZIM implementou mudanças para reduzir o envolvimento da família Zacharias. Margie Zacharias, viúva de Ravi, deixou o conselho e o ministério em janeiro, enquanto sua filha, Sarah Davis, deixou o cargo de presidente do conselho, embora continue como CEO.

Membros da equipe interna do RZIM dizem que o ministério — a maior organização apologética do mundo — planeja fazer uma redução drástica de tamanho para apenas dez apologistas americanos e alguns palestrantes internacionais, apoiados por uma pequena equipe.

Investigação limitada por um acordo de sigilo

Além de confirmar relatos anteriores de abusos nos spas de Zacharias, o novo relatório corroborou as alegações feitas há 4 anos por Lori Anne Thompson, uma canadense que diz que Zacharias a pressionou para enviar textos e fotos sexualmente explícitos. O caso dela foi o primeiro escândalo sexual relacionado a Zacharias a se tornar público, e inspirou outras vítimas a se apresentarem.

Zacharias processou Lori Anne Thompson em 2017, sob a alegação de que a carta de seu advogado ao conselho do RZIM, com acusações de abuso sexual, era, na verdade, uma tentativa elaborada de extorsão. O conselho escreveu, na quinta-feira: “acreditamos que Lori Anne Thompson disse a verdade sobre a natureza de seu relacionamento com Ravi Zacharias”.

Os investigadores entrevistaram outras testemunhas que “relataram conduta semelhante” à das acusações de Thompson, e encontraram evidências que apontam para a existência de um padrão de seis anos de trocas de mensagens de texto com outras mulheres, antes e depois de Lori Anne.

Entretanto, Lori Anne Thompson e seu marido, Brad, não puderam participar da recente investigação. O espólio do falecido apologista recusou os pedidos dos investigadores para revogar um acordo de sigilo (NDA), a fim de permitir que os Thompsons falassem sobre o que aconteceu. Seu advogado, Basyle Tchividjian, disse aos investigadores que, com tudo o que veio à luz, o fato de os Thompson ainda estarem vinculados a um acordo de sigilo é “inaceitável”.

Davis escreveu, em um e-mail enviado para todo o ministério, que o RZIM “pediu uma modificação no acordo de sigilo, para fins de investigação”, mas a organização não tem autoridade sobre o espólio, que é controlado por sua mãe, Margie Zacharias. O espólio também se recusou a permitir que os advogados pessoais de Zacharias entregassem qualquer evidência coletada de seus dispositivos pessoais na época, deixando uma lacuna nos registros examinados pela auditoria Miller & Martin.

De acordo com o relatório das investigações, no entanto, Zacharias continuou solicitando imagens de conteúdo sexual de outras mulheres, enquanto chegava a um acordo com os Thompson, defendia-se publicamente e assegurava à liderança e à equipe do RZIM que não havia feito nada de errado e que não havia necessidade de investigar.

“Embora ele tenha dito à sua equipe que seu verdadeiro erro no caso Thompson foi não ter alertado alguém de que estava recebendo fotos de outra mulher, não temos nenhuma indicação de que ele tenha procurado a administração do RZIM ou mesmo seu Conselho, nas mais de 200 ocasiões em que ele recebeu fotos de mulheres, durante o caso Thompson e depois”, diz o relatório.

Na verdade, um dia depois de Zacharias ter declarado publicamente, em 2017, que havia aprendido uma “lição difícil e dolorosa” com sua comunicação com Lori Anne Thompson, ele recebeu mais fotos de outra mulher, conforme descobriram os investigadores. Essa mulher passou a enviar-lhe fotos nuas também.

Uma coisa mudou, no entanto. Depois do caso Thompson, os investigadores notaram que Zacharias aprimorou sua técnica para excluir suas mensagens de maneiras que não pudessem ser detectadas nem descobertas.

Em seu comunicado, divulgado com o relatório, a diretoria do RZIM reconheceu sua falha e pediu desculpas a Lori Anne Thompson.

“Estávamos errados”, diz o comunicado. “É com profundo pesar que reconhecemos que, por não acreditarmos nos Thompson e por perpetuarmos privada e publicamente uma narrativa falsa, eles foram caluniados por anos e seu sofrimento foi imensamente prolongado e intensificado. Isso nos deixa com o coração partido e envergonhado”.

‘Ele foi capaz de ocultar sua má conduta à vista de todos’

Muito do abuso descoberto pelos investigadores aconteceu no contexto de massagens, a que Zacharias recorria para tratar uma lesão crônica nas costas. Ele viajava regularmente com uma massagista pessoal e criticou um colega de equipe do RZIM, o qual questionou a “aparência de conduta imprópria” por Zacharias agir assim.

Embora os investigadores não tenham entrevistado fontes no exterior, descobriram evidências de que Zacharias costumava se encontrar com massagistas quando viajava.

“Ele costumava agendar sessões de massagem em seu quarto de hotel quando, supostamente, estava sozinho”, disse o relatório. “De acordo com suas mensagens de texto, às vezes ele se encontrava com as terapeutas no saguão do hotel, e outras vezes as orientava a ir direto para o seu quarto”.

Em Bangkok, no início dos anos 2010, ele foi proprietário de dois apartamentos, um deles localizado no mesmo prédio de uma de suas massagistas, descobriram os investigadores. Um aplicativo de notas em seu celular incluía traduções, para o tailandês e o mandarim, de frases como “Eu gostaria de ter uma bela lembrança com você”, “um pouco mais longe” e “seus lábios são especialmente belos”.

As massoterapeutas e as mulheres retratadas nos álbuns do celular de Zacharias eram décadas mais jovens do que ele, muitas na casa dos 20 anos.

A investigação não encontrou nenhuma evidência de que a liderança ou a equipe do RZIM soubesse da má conduta sexual de Zacharias. Também mostra que o ministério tinha pouca ou nenhuma ingerência sobre as ações de seu fundador.

“Como sua necessidade de tratamentos com massagens era bem conhecida e aceita, ele conseguiu ocultar sua má conduta à vista de todos”, diz o relatório.

Zacharias falava sobre a importância de “salvaguardas físicas” para “proteger minha integridade”, mas o relatório da auditoria Miller & Martin observa que “Como arquiteto dessas ‘salvaguardas físicas’, o Sr. Zacharias sabia muito bem como evitá-las”.

A investigação confirmou que Zacharias mentiu sobre não ficar sozinho com outra mulher que não fosse sua esposa ou suas filhas. Ele também mantinha vários telefones celulares, o tempo todo, com planos de internet móvel diferentes do RZIM, e nunca usava a rede sem fio do escritório. Zacharias dizia que era por segurança, mas isso garantia que sua comunicação não pudesse ser monitorada.

O comunicado do conselho do RZIM reconhece que ficou “gravemente aquém do esperado” e expressa pesar “por termos permitido que nossa confiança indevida em Ravi resultasse em menos supervisão e prestação de contas por parte dele do que teria sido sábio e amoroso”.

Cada exemplo no relatório contrasta com o testemunho público de um líder — e de um ministério — conhecidos por pregar integridade e verdade.

“Aqueles de vocês que me viram em público não fazem ideia de como eu sou na vida privada”, Zacharias disse a seus apoiadores, em uma palestra que deu, cerca de um ano antes de morrer, registrada em uma gravação compartilhada com a CT. “Deus faz. Deus faz. E eu encorajo você, hoje, a assumir o compromisso de dizer: ‘Eu serei em minha vida privada o homem que receberá o elogio divino:'Muito bem, servo bom e fiel’”.

Muitos que viam Zacharias como mentor, modelo e pai espiritual têm tentado lidar com essas novas informações, seus sentimentos de traição e as dúvidas sobre a própria responsabilidade nisso tudo.

“Eu me sinto desapontado comigo mesmo e com outros, pois poderíamos ter pressionado mais fortemente contra a onda de lealdade submissa, para exigirmos respostas melhores bem antes, já que não há nenhuma parte do credo evangélico que honre a covardia ou sacrifique a consciência”, escreveu Dan Paterson, ex-chefe do RZIM na Austrália, no Facebook, na quarta-feira à noite.

“Tenho uma profunda sensação de temor ao Senhor, sabendo que um dia também eu prestarei contas, pois, assim como foi com o relatório sobre RZ, tudo o que for feito sob o manto das trevas será dado a conhecer. Jesus vem para restaurar a justiça por meio do juízo. Oh, como gostaria que Ravi tivesse se arrependido aqui!”

Mudanças no RZIM

O conselho (cujos nomes não estão disponíveis publicamente) e a liderança estão planejando um acerto de contas desde que o relatório provisório dos investigadores preparou o RZIM, em dezembro, para esperar o pior.

Ao entrar no processo, em setembro de 2020, a posição oficial do ministério era de que as alegações não podiam ser verdadeiras, mas que conduziria uma investigação para limpar o nome de Zacharias. A princípio, o RZIM contratou o escritório de um dos advogados que processou os Thompsons. Várias pessoas de dentro do ministério disseram que o vice-presidente Abdu Murray sugeriu recrutar um ex-policial “durão” para rastrear os acusadores e descobrir informações que o ministério poderia usar para desacreditá-los.

O RZIM mudou de rumo e contratou a auditoria Miller & Martin no início de outubro, depois que vários dos preletores disseram que consideravam as alegações verossímeis, e exigiram que o ministério fizesse uma investigação real e confiável.

“Acredito que cada um de nós carrega certo grau de responsabilidade pelas coisas para as quais todos temos sido cegos, também por aquelas que permitimos involuntariamente, ou aquelas contra as quais não nos pronunciamos e pelas que permitimos ir adiante e continuar”, disse Sam Allberry, um dos preletores, a colegas no Reino Unido.

Como a CT relatou anteriormente em uma reportagem, disputas em torno de questões como cumplicidade e responsabilidade perturbaram o ministério por meses, enquanto a investigação prosseguia. No início do novo ano, o RZIM estava se preparando para uma divisão.

Davis informou à equipe que alguns escritórios globais podem decidir se separar do RZIM e se tornarem organizações nacionais independentes. Atualmente, cada escritório tem contrato social ou estatuto nacional próprios, como instituição de caridade, e está associado ao ministério sediado nos Estados Unidos por meio de um “contrato de afiliação”. Isso permitiu que o RZIM atuasse como um único ministério global.

“Temos sido capazes de operar como uma só organização, na prática, por mais de 35 anos. No entanto, um momento de crise como o nosso fez com que alguns de nossos conselhos precisassem tomar decisões separadas da matriz e do Conselho Internacional, a fim de chegarem às melhores decisões para sua entidade, segundo seu entendimento”, escreveu Davis.

Alguns apologistas mais antigos do RZIM acham que a separação por país é a única maneira de preservar partes do ministério que estão fazendo um bom trabalho.

John Lennox, matemático e apologista da Irlanda do Norte, que participou de famosos debates com Richard Dawkins, Christopher Hitchens e outros “novos ateístas”, pediu enfaticamente que a filial britânica do RZIM se separasse da matriz. Lennox desvinculou-se de qualquer associação com o RZIM um dia após a CT ter noticiado as acusações sobre os spas, mas disse aos apologistas britânicos que ficaria feliz em trabalhar com eles, se formassem uma organização independente.

“As acusações atuais são de natureza tão séria que não posso estar envolvido em nenhuma atividade em andamento como representante do RZIM”, escreveu Lennox em um comunicado aos conselhos do Reino Unido e dos EUA. “Em minha opinião, a organização deveria receber outro nome e passar por uma reestruturação fundamental, da organização em si e do conselho. Isso precisa ser feito, e bem rápido, caso se queira preservar o potencial dessa maravilhosa jovem equipe de apologistas em qualquer sentido coletivo que seja”.

Outros conselhos nacionais também estão em processo de se desvincular da matriz nos EUA, de acordo com várias fontes de dentro do ministério. O conselho canadense disse em um comunicado que “está claro que este ministério não pode ser construído sobre as estruturas anteriores”, mas “deve ser construído sobre novas abordagens e novos relacionamentos”.

O ministério canadense de apologética também demitiu quatro membros da equipe, incluindo Daniel Gilman, um preletor que decidiu acreditar nas mulheres que acusaram Zacharias de abuso sexual e que desafiou frontalmente a liderança do RZIM a reconhecer sua cumplicidade. Gilman disse à CT que estava profundamente preocupado que o ministério que ele amava escolhesse mudar de nome, porém, sem se arrepender.

O pacote de rescisão de Gilman incluiu um acordo de sigilo, que o impediria de tomar parte em “qualquer ação em relação à qual fosse razoavelmente possível prever que viria a causar dano à reputação” do RZIM ou “ter sobre ela algum reflexo negativo”. Gilman protestou e o acordo de sigilo foi substituído por um acordo para manter a confidencialidade das informações dos mantenedores.

Espera-se que ocorram muito mais demissões em breve. Os funcionários do RZIM disseram à CT que supõem que o ministério internacional, que já contou com 100 preletores e 250 funcionários em todo o país, seja reduzido a uma fração disso. Davis disse à equipe que as demissões serão anunciadas nas semanas seguintes à divulgação do relatório da auditoria Miller & Martin.

“Esta é uma decisão muito difícil, necessária apenas por causa da situação em que nos encontramos”, escreveu ela. “Sentimos profundamente por isso”.

Após a redução no quadro de pessoal e as separações das filiais de outros países, a equipe que permanecerá provavelmente será formada por alguns dos preletores mais próximos de Zacharias, que têm relacionamentos bem sólidos com os principais mantenedores do ministério. Os integrantes do quadro de pessoal do RZIM esperam que esse núcleo inclua os palestrantes Michael Ramsden, Abdu Murray e Vince Vitale, e seja liderado por Davis.

Davis deixou o cargo de presidente do conselho, passando a liderança para Chris Blattner, executivo aposentado de uma empresa do ramo de energia e importante mantenedor de Minnesota. Durante a crise, porém, Davis assumiu mais a gestão do dia a dia do RZIM, pondo seu nome pessoalmente em todas as comunicações internas e externas.

O conselho do RZIM declarou na quinta-feira que “À luz dos resultados da investigação e da avaliação contínua, estamos buscando a vontade do Senhor em relação ao futuro deste ministério […]. Dedicaremos tempo à oração e ao jejum, enquanto discernimos a direção de Deus, e falaremos sobre isso em um futuro próximo”.

O RZIM anunciou que está trazendo a advogada das vítimas, Rachael Denhollander, para instruir o conselho e a liderança sobre a questão do abuso sexual, e aconselhá-los sobre as melhores práticas para o futuro. O ministério também contratou uma empresa de consultoria de gestão para avaliar “estruturas, cultura, políticas, processos, finanças e práticas” do RZIM e propor reformas.

Oração respondida

O segredo do abuso de Zacharias começou a ser desvendado no dia de seu funeral, em maio de 2020. Uma das massoterapeutas que ele apalpou, na frente de quem se masturbou e a quem pediu imagens sexualmente explícitas, assistia em estado de choque enquanto o apologista era homenageado e celebrado em uma transmissão ao vivo. Pessoas famosas, incluindo o vice-presidente Mike Pence e o astro do futebol cristão Tim Tebow, falavam de Zacharias em termos elogiosos.

Ninguém tem coragem de dizer a verdade? ela pensou. Ninguém?

Ela se preocupava com outras mulheres que poderiam estar sofrendo também, no anonimato. E orou para que algo acontecesse.

A mulher buscou no Google “Escândalo sexual de Ravi Zacharias” e encontrou o blog RaviWatch, administrado por Steve Baughman, um ateu que vinha rastreando e relatando acusações contra Zacharias desde 2015. Baughman postou no blog as falsas declarações de Zacharias sobre suas credenciais acadêmicas, acusações de sexting (anglicismo que se refere à divulgação de conteúdos eróticos e sensuais através de celular) e o processo judicial subsequente. Quando a mulher leu sobre o que aconteceu com Lori Anne Thompson, reconheceu que o mesmo acontecera a ela.

Pelo que ela sabia, esse blogueiro ateu era o único que se importava com o fato de Zacharias ter abusado sexualmente de pessoas e ter escapado ileso. Ela procurou Baughman e, mais tarde, conversou com a Christianity Today sobre os spas de Zacharias, as mulheres que trabalhavam lá e os abusos que aconteciam a portas fechadas.

A funcionária dos spas disse à CT que não esperava nada do RZIM. Nem mesmo um reconhecimento. Muito menos um pedido de desculpas. Um ministério multimilionário, construído em cima do nome de um homem e de sua reputação, jamais admitiria a verdade de seus segredos, ela pensou.

Ela só veio a público porque queria que outras mulheres — também feridas por Zacharias, ou vítimas de outros cristãos famosos e celebrados — soubessem a verdade. Ela queria que soubessem que não estavam sozinhas.

Esta semana, ela acredita que Deus respondeu sua oração.

“Acho que aconteceu no tempo perfeito de Deus”, disse. “No tempo dele; do jeito dele. O Senhor está fazendo isso, e o que vai sobrar é o que Deus quer que sobre”.

Traduzido por Maurício Zágari

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Profecias não cumpridas sobre Trump ensinam uma lição de humildade

Em vez de perseguirmos os profetas que se desculparam, seria melhor nos juntarmos a eles.

Christianity Today February 23, 2021
Matthew Hatcher / Getty Images

As profecias fracassadas sobre a reeleição de Donald Trump podem ter danificado a credibilidade da ala carismática independente do evangelicalismo nos EUA, mais do que qualquer evento desde os escândalos com televangelistas da década de 1980. Elas levaram alguns não cristãos a criticarem o próprio cristianismo e, com razão, nos chamam à reflexão.

Não me entendam mal: eu mesmo sou carismático, e a maioria dos pastores pentecostais e carismáticos que conheço não estava prestando atenção a tais profecias. Milhões de visualizações e compartilhamentos on-line, no entanto, mostram que muitas pessoas estavam.

O primeiro passo para corrigir os erros é admitir que os cometemos. À medida que nos aproximamos da posse do presidente Joe Biden, alguns dos que profetizaram a reeleição de Trump continuam irredutíveis de que estavam corretos. Talvez a eleição tenha sido fraudada ou será anulada, ou, em algum reino místico, Trump seja espiritualmente presidente de fato. Alguns apenas mudam de assunto. Infelizmente, seus seguidores ferrenhos podem se contentar com isso.

Outros reconhecem que profecias devem ser testadas e, ao aceitar a vitória de Biden, agora admitem tacitamente que estavam errados. No entanto, certos profetas atraíram a atenção de carismáticos e não carismáticos, ao confessarem publicamente que suas profecias estavam de fato equivocadas e pedirem desculpas.

R. Loren Sandford, Jeremiah Johnson e Kris Vallotton expressaram recentemente contrição e até arrependimento por profetizarem incorretamente que Trump venceria novamente em 2020. Todos os três exortam-nos a orar e a trabalhar respeitosamente com o novo governo.

Suas explicações sobre como eles podem ter a princípio ouvido incorretamente a voz de Deus podem ajudar na prevenção de erros semelhantes no futuro. Enquanto isso, aqueles de nós que possam ser tentados a dizer a eles “Eu avisei”, devem se lembrar que Deus exige a mesma humildade de nós (Gl 6.1; 1Ts 5.19-20).

Suas confissões, assim como os exemplos de profetas por toda a Escritura, oferecem algumas precauções bem úteis sobre a influência da pressão dos pares, do orgulho e da presunção — e a necessidade de os cristãos permanecerem cautelosos sobre previsões e abertos à correção, quando suas interpretações se mostrarem falsas.

Profetas e pressão dos pares

Das vozes proféticas que circulam hoje, Sandford, mestre em teologia pelo seminário Fuller, é a única que já conheço há vários anos. Ele tem um histórico muito bom. Sou testemunha de que, no início do mandato do presidente Trump, ele previu que uma crise econômica causada por circunstâncias externas abalaria o quarto ano de governo de Trump, e que os eventos subsequentes dependeriam em parte de Trump aprender a controlar sua retórica divisiva.

Mesmo assim, Sandford acabou concordando com o coro profético que anunciava a reeleição do presidente. Ele agora confessa que permitiu que o consenso de outros profetas influenciasse seu próprio coração.

“Até agora, eu sempre buscava ao Senhor por conta própria, recebia primeiro a palavra dele e só depois, então, comparava com o que outros estavam dizendo”, escreveu ele, em um pedido público de desculpas na semana passada. “Minha primeira confissão, portanto, é que me afastei dessa disciplina. Eu me deixei ser influenciado por uma corrente predominante e ser levado por ela. Ao fazer isso, realmente comprometi o que o Senhor já havia me dito anos antes.”

A pressão dos pares pode ser considerável; um mensageiro exortou Micaías, “Veja, todos os outros profetas estão predizendo que o rei terá sucesso. Sua palavra também deve ser favorável”(1Rs 22.13). Micaías ficou sozinho proclamando a verdade, e foi preso por isso. (Nos Estados Unidos de hoje, ele simplesmente perderia sua fatia de atenção nas mídias sociais.) Jeremias ficou confuso porque sua mensagem contradizia a de todos os outros profetas (Jr 14.13).

A revisão por pares tem seu lugar; na igreja em Corinto, por exemplo, onde poucos haviam se convertido há mais de dois anos, aqueles que profetizavam precisavam julgar as palavras uns dos outros (1Co 14.29); o Espírito capacita a julgar (1Co 2.13-16). Mas é possível criar uma dependência excessiva dessa rede de segurança baseada na revisão por pares: “Portanto”, declara o Senhor, “estou contra os profetas que roubam uns dos outros as minhas palavras” (Jr 23.30).

Profetas e orgulho

Todos os crentes ouvem a voz de Deus: no mínimo, seu Espírito testifica ao nosso espírito que somos filhos de Deus (Rm 8.16). Alguns têm o dom de ouvir Deus de maneira mais clara do que outros; Deus concede medidas de fé para diferentes dons, e, assim, alguns profetizam — ouvem e falam por Deus — mais plenamente (Rm 12.3,6).

Infelizmente, se ficarmos confiantes demais em nosso dom, podemos falar além da medida que nos foi concedida. (Essa é uma tentação à qual nós, que temos o dom de ensino, também podemos sucumbir; certamente isso costuma acontecer com aqueles cujo “dom” é comentar coisas on-line.) O orgulho pode nos enganar: nós, seres humanos, somos tentados a tomar para nós o crédito por uma obra ou um dom que pertence a Deus. Um dom — seja de profecia, ensino, contribuição ou algo parecido — não nos torna melhores do que ninguém; por definição, é algo que recebemos; não se baseia em nosso mérito (1Co 4.7).

Ouvir a voz de Deus não é algo que acontece da mesma forma para todos: Visões e sonhos são frequentemente como enigmas que requerem interpretação, ao contrário de quando Deus fala pessoalmente, como fez com Moisés (Nm 12.6-8). A maioria de nós experimentará esse conhecimento face a face apenas quando vir Jesus, em sua volta (1Co 13.8-12). Impressões e até mesmo profecias mais claras ainda fluem através de vasos frágeis. A garantia do Senhor de que tudo ficará bem nem sempre significa que o desfecho será aquele único cenário que supomos que esse “tudo bem” significa.

Os profetas mais humildes, quando estavam errados, pediam desculpas. Mesmo quando falarmos já de início, devemos permanecer humildes e expressar nossas opiniões com cuidado, quando não temos certeza.

Profetas e presunção

Às vezes, podemos querer ouvir algo do Senhor diferente do que ele tem para nos dizer. Sandford lamenta ter sido vítima, em parte, da “tendência de ouvir o que queremos ouvir”.

Às vezes, podemos ser tentados a falar simplesmente porque as pessoas esperam ouvir algo de nós; assim, porém, podemos correr o risco de contar com as mais vagas impressões ou inclinações, completando-as com “visões inventadas por [nós] mesmos e que não vêm da boca do Senhor” (Jr 23.16). “Não enviei esses profetas, mas eles foram correndo levar sua mensagem; não falei com eles, mas eles profetizaram. Mas se eles tivessem comparecido ao meu conselho, anunciariam as minhas palavras ao meu povo e teriam feito com que se convertessem do seu mau procedimento e das suas obras más” (Jr 23.21-22).

Julian Adams, que profetizou de maneira específica e precisa para mim e minha esposa, também me disse que alguns esperavam que ele profetizasse sobre certos eventos vindouros. Ele disse que resistiu, pois o Senhor simplesmente não lhe dissera nada sobre esses eventos. Adams não profetizou sobre o resultado da eleição. Não há nisso nenhuma surpresa: o Senhor não mostrou tudo sobrenaturalmente nem mesmo a Eliseu (2Rs 4.27).

Embora a coincidência seja possível, futuristas não são profetas. A profecia bíblica trata de declarar a palavra do Senhor, algo que é mais uma questão de revelar o coração de Deus (anunciar) do que predizer (prever). Ser um futurista competente — alguém que prevê tendências com base em eventos atuais e informações significativas — tem valor para o planejamento, mas não é idêntico ao dom bíblico de profecia. E mesmo os futuristas estão sujeitos a fazerem previsões tendenciosas, quando obtêm notícias de apenas uma fonte, seja ela de direita ou de esquerda.

Também precisamos ser flexíveis na aplicação do que acreditamos ter ouvido. Jeremiah Johnson fez muitas previsões precisas, incluindo a eleição de Trump em 2016, mesmo quando ele ainda era uma aposta bem remota, no início das primárias republicanas. Em seu pedido de desculpas, no entanto, ele confessa que focou excessivamente em algumas das coisas que ouvira antes. O fato de Deus nos mostrar um propósito para um período não significa que esse continuará sendo o seu propósito.

Jonas ficou zangado, quando Deus retirou o juízo que prometera contra os ninivitas (Jn 3.4–4.3), mas o Senhor lembrou Jeremias que arrependimento ou apostasia afetaria os desfechos (Jr 18.6-11). Deus tinha um propósito, ao fazer com que Samuel ungisse Saul como rei de Israel. Mas Samuel não presumiu que essa instrução anterior significava que Deus houvesse planejado que Saul continuaria a reinar, se não amadurecesse em seu chamado.

Elias profetizou a obliteração da dinastia de Acabe, mas Deus lhe disse depois que, por causa do arrependimento de Acabe, o juízo seria adiado (1Rs 21.28-29). Meus amigos teólogos têm uma série de pontos de vista sobre como explicar isso; meu entendimento pessoal é que, embora Deus conheça de antemão os desfechos, ele geralmente fala conosco apenas o que precisamos no momento. Precisamos estar prontos para mudar de curso, quando necessário.

Profetas e plataformas públicas

Reis perversos tendiam a dar palco a falsos profetas ou a corrompê-los por meio de favores políticos (1Rs 18.22; 22. 6-7; 2Rs 3.13; 2Pe 2.15). Mas quem oferece um palco aos profetas de hoje, sejam eles verdadeiros ou falsos?

A prestação de contas local evitou alguns erros e facilitou o processo de reflexão para aqueles que se arrependeram publicamente de seus erros públicos. Atos 13 nos mostra profetas e mestres liderando a comunidade da igreja em Antioquia. Mesmo quando o profeta visitante Ágabo previu uma fome global (que aparentemente atingiu diferentes partes do Império Romano do Oriente em épocas diferentes), os crentes em Antioquia tiveram de decidir como responder a isso (At 11.27-30). Aqueles que ouvem a voz de Deus devem ser testados e desenvolver sua prática em pequenos grupos (análogos às antigas igrejas nas casas) e em outros níveis locais potencialmente menos prejudiciais, antes de atingirem projeção nacional.

Infelizmente, as mídias sociais tornam quase impossível controlar a projeção nacional, e cristãos norte-americanos consumistas tendem a gravitar em torno do que estão inclinados a ouvir (2Tm 4.3-4). Não é culpa dos verdadeiros profetas e mestres se os falsos costumam ter mais projeção e visualizações. Os tempos em que a voz profética silencia na terra são tempos de desespero ou mesmo tempos de juízo (1Sm 3.1; Sl 74.9; Is 29.10-12), mas os tempos em que a falsa profecia domina são piores (Jr 37.19; Zc 13.1-6).

Isso significa que a lei da oferta e demanda pode afetar a mídia religiosa: quando as pessoas não desejam profecia verdadeira, elas optarão pela falsa. As pessoas dizem “aos profetas: Não nos revelem o que é certo! Falem-nos coisas agradáveis, profetizem ilusões” (Is 30.10). “Os profetas profetizam mentiras, os sacerdotes governam conforme a direção dos profetas, e o meu povo gosta dessas coisas. Mas o que vocês farão quando tudo isso chegar ao fim?” (Jr 5.31, nrsv).

Se os consumidores com determinada tendência, seja ela política ou de outra natureza, quiserem ouvir profecias que apoiem seus desejos, os profetas que atenderem a essas necessidades se tornarão mais populares. A história recente sugere que alguns deles manterão a maior parte dos seus seguidores, mesmo quando suas profecias falharem.

Especialmente em tempos difíceis, a maioria dos profetas diz às pessoas o que elas querem ouvir (Jr 6.14; 8.11; 14.13), tornando as coisas ainda mais difíceis para os verdadeiros profetas (15.10, 15–18; 20.7-18). Mas Deus revela o ônus da prova: “Os profetas que precederam a você e a mim, desde os tempos antigos, profetizaram guerra, desgraça e peste contra muitas nações e grandes reinos. Mas o profeta que profetiza prosperidade será reconhecido como verdadeiro enviado do Senhor se aquilo que profetizou se realizar” (Jr 28.8-9).

Descartando o essencial?

No outro extremo dos inflexíveis defensores das profecias estão aqueles que são tentados a rejeitar a profecia por completo, descartando o bebê junto com a água do banho. Quando Paulo nos exorta a examinar tudo, ele também nos adverte a não desprezarmos a profecia (1Ts 5.19-22). Quando ele nos exorta a examinar as profecias (1Co 14.29), também nos incita a buscar esse mesmo dom (1Co 14.1, 39).

Aquela que pode ser a denúncia mais embasada da Bíblia contra os falsos profetas (Jr 23) é entregue por um verdadeiro profeta, Jeremias. “‘O profeta que tem um sonho, conte o sonho, e o que tem a minha palavra, fale a minha palavra com fidelidade. Pois o que tem a palha com o trigo?’, pergunta o Senhor” (Jr 23.28).

Três pessoas desconhecidas, que não se conheciam nem tampouco conheciam a mim, profetizaram separadamente a Médine Moussounga, no Congo, que um dia ela se casaria com um homem branco que tinha um ministério importante. Não há muitos homens brancos no Congo. Mesmo assim, Médine e eu estamos casados há cerca de 19 anos.

Sou um professor de Bíblia que passa a maior parte do tempo aprendendo mais sobre as Escrituras. Aqueles a quem chamamos de profetas e mestres têm muito a aprender uns com os outros; os profetas podem oferecer discernimento sobre como as Escrituras se aplicam à nossa geração (observe Hulda em 2Rs 22.11-20). Mas, hoje em dia, nem os profetas nem os mestres estão escrevendo as Escrituras.

Enquanto as profecias e intuições espirituais devem ser testadas, as Escrituras chegam a nós já tendo passado no teste; há boas razões pelas quais as palavras de Jeremias estão em nosso cânon, ao passo que as dos profetas fracassados de sua época não estão. As Escrituras oferecem um fundamento seguro.

Ainda assim, mesmo as Escrituras devem ser interpretadas, e diferentes interpretações (e tendências políticas) vêm à tona no ensino também. Aqueles de nós que exercem o dom de ensino lidam com a Palavra de Deus de uma forma muito mais explícita; mesmo assim, até nós muitas vezes divergimos em nossas interpretações. Quando nós, mestres, dizemos “A Bíblia diz”, mas estamos errados, nossa interpretação é falsa. Os mestres serão julgados com rigor (Tg 3.1); portanto, nós também devemos ser humildes e abertos à correção.

Se julgássemos os mestres com a mesma severidade com que alguns julgam os profetas — uma interpretação errada e você está fora — provavelmente não teríamos mais mestres hoje em dia. (Com base no contexto, eu divirjo da interpretação inflexível de Deuteronômio que muitos dão a profecias hoje, mas esse é outro assunto.) As Escrituras, porém, geralmente reservam os rótulos de falsa profecia e de falso ensino para os erros mais sérios. Se isso significa que nossos comentários e nossas aulas devem explicar corretamente cada versículo que lemos, a maioria de nós solicitaria uma aposentadoria precoce agora mesmo!

Perseguição ou purificação?

Temos uma bagunça para organizar no cenário cristão dos Estados Unidos, hoje em dia. Depois que o Congresso certificou a vitória do presidente Biden, Johnson se arrependeu publicamente por profetizar a reeleição de Trump. Para seu espanto, alguns cristãos professos o denunciaram, amaldiçoaram-no e até ameaçaram sua vida . Embora devamos evitar teorias de conspiração, sacerdotes e profetas planejaram conspirações reais para matar o Jeremias bíblico, por causa de suas profecias antipatrióticas (Jr 11.21; 26.11). Defensores obstinados de falsidades podem se mostrar inflexíveis.

Em vez de perseguirmos o arrependido, seria melhor nos juntarmos a eles. Embora ainda acredite que Trump seria a melhor escolha, Johnson lamentou que muitos cristãos depositassem sua esperança nele. Nenhum presidente e nenhum partido político, de direita ou de esquerda, pode ocupar o lugar de Jesus. Não são apenas os profetas que precisam de arrependimento.

Nós, cristãos, podemos discordar uns dos outros, mas quando permitimos divisões entre nós, por colocarmos a política acima do corpo pelo qual Cristo morreu, o arrependimento é necessário. Os profetas arrependidos nos mostram um caminho a seguir. Se buscamos avivamento, então, arrependimento e humildade são um bom ponto de partida.

Se o Senhor nos humilhou, também nos deu uma oportunidade de aprender. Que possamos abraçar esta oportunidade e dar os passos necessários, reunindo diferentes dons no corpo de Cristo e, acima de tudo, a humildade.

Craig Keener é Professor de Estudos Bíblicos no Asbury Theological Seminary. Ele é o autor de Christobiography: Memories, History, and the Reliability of the Gospels, ganhador do CT Book Award de 2020.

Traduzido por Erlon Oliveira

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Dissipando o nevoeiro de mentiras e ‘fake news’

As velhas e boas práticas da pregação e do discipulado podem confrontar as conspirações que ameaçam a maneira que conhecemos a verdade.

Christianity Today February 16, 2021
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Samuel Corum / Stringer / Brent Stirton / Staff / Getty

Alguns dos desordeiros que invadiram o Capitólio dos Estados Unidos no início de janeiro bradavam repetidamente sua exigência: “enforquem Mike Pence”. Alguns, porém, provavelmente pensavam que o ex-vice-presidente já estava morto.

Nos recantos mais periféricos da base do ex-presidente Donald Trump, em particular aqueles influenciados pela teoria da conspiração QAnon, há um boato de que que Pence foi executado por um tribunal militar dirigido por Trump, no ano passado. O mesmo aconteceu com os Obamas, os Clintons, o presidente Joe Biden e o chefe de justiça John Roberts. As notícias que mostram essas pessoas [supostamente mortas] aparentemente reagindo a fatos atuais, segundo reza a lenda, são simplesmente geradas por computador. Ou talvez hologramas. Ou atores? Ou clones!

Evidentemente, isso é absurdo. Também é totalmente inatacável: não podemos submeter Biden à rotina de ceticismo dos duvidosos Tomés a cada novo teórico da conspiração. Mesmo se pudéssemos, não existe no mundo evidência externa que esse tipo de teoria não consiga explicar e descartar.

O mais incrível sobre esse tipo de crença, porém, é que uma parte significativa das pessoas que a defendem se descreveria como cristão evangélico. Seus dados biográficos em mídias sociais são adornados com palavras ou expressões como “cristão conservador”, “cristão que crê na Bíblia”, “em luta pela fé”, “João 3.16”, “temente a Deus”, “cristã, esposa e mãe”. Eles compartilham versículos da Bíblia, às vezes na mesma postagem em que estão teorizando sobre alguma conspiração. Dizem ter fé de que Deus fará uma reforma na governança americana, da qual as supostas execuções são apenas uma parte. Eles podem ser pessoas que frequentam a igreja — talvez a sua igreja.

A maioria dos americanos politicamente engajados — seja de modo geral, seja entre os cristãos em particular — não acredita em nada tão primitivo assim. Mas essa teoria sobre execuções de figuras em altos postos não é exatamente a aberração que poderíamos esperar. “Em minha experiência e em minhas conversas com pastores, estamos ficando cada vez mais alarmados com o predomínio da crença em teorias da conspiração e ideias políticas bizarras, especialmente desde a eleição”, disse Daniel Darling, que é pastor, vice-presidente sênior da National Religious Broadcasters, colaborador da CT e autor de vários livros, entre eles A Way with Words: Using Our Online Conversations for Good.

A perspectiva de Darling, que ele compartilhou comigo em uma entrevista por e-mail em janeiro, é apoiada por dados de uma nova pesquisa da Lifeway. Ao menos metade dos pastores protestantes na América dizem que “frequentemente ouvem membros de [suas] congregações repetindo teorias da conspiração que ouviram sobre por que algo está acontecendo no país”, a pesquisa da Lifeway detectou. A tendência parece ser mais forte, disse Scott McConnell, diretor executivo da Lifeway Research, “em círculos politicamente conservadores, o que corresponde a porcentagens mais altas em igrejas lideradas por pastores protestantes brancos”.

“Para a maioria dos pastores com quem converso, isso representa uma fração de suas congregações”, Darling me disse, “talvez entre os mais engajados politicamente ou os mais conectados on-line. E, no entanto, é o suficiente para deixar muitos pastores preocupados”, em especial sobre a questão de “como muitos [cristãos] estão reféns de seus meios de comunicação preferidos, que estão se tornando cada vez mais extremistas, e como muitos deles parecem resistentes a ouvir refutações sensatas.”

O efeito disso é uma crise epistêmica, e não é exclusivamente um fenômeno marginal. A mentira mais sutil pode ser a mais forte — “aquele que julga estar firme, cuide-se para que não caia!” (1Co 10.12). Essa crise é mais do que um problema político urgente; também é uma questão urgente de discipulado cristão, pois os cristãos devem ser pessoas que amam a verdade (Jo 8.31-32).

A epistemologia é simplesmente o estudo do conhecimento: O que e como conhecemos? Quais são as fontes confiáveis de conhecimento? O mundo é realmente como nós o percebemos? Se a verdade existe (como afirmam os cristãos), podemos acessá-la corretamente? Estamos em uma crise epistêmica porque nossas respostas a essas perguntas, na esfera pública, são uma bagunça desastrosa .

Um nevoeiro epistêmico está invadindo nossas casas e nossas mentes por meio de ferramentas como a reprodução automática de vídeos e a rolagem infinita.

Os últimos cinco anos da política americana foram uma época de “fatos alternativos ” e “ verdade [que] não é verdade ”. Acusações a respeito de “fake news”, algumas justas e outras cinicamente caluniosas, espalham-se rápido e de forma abrangente. Os meios de comunicação convencionais são rejeitados por serem imprecisos ou tendenciosos (uma crítica frequentemente merecida!), embora sejam ainda piores os traficantes de boatos digitais, que se ocultam atrás de pseudônimos e estão surgindo para substituí-los. Muitos na direita abraçam a “dreampolitik” — se lhes parecer certo, acredite — enquanto entre muitos, na esquerda, uma ênfase totalizada na experiência pessoal como mediadora do conhecimento torna a comunicação impossível entre as linhas de identidade. O resultado é que temos certeza sobre coisas que não garantem certeza e ficamos duvidosos acerca de fatos básicos. Um nevoeiro epistêmico está invadindo nossas casas e nossas mentes por meio de ferramentas como a reprodução automática de vídeos e a rolagem infinita .

Quis conversar com Darling porque acho que posso descrever bem esse problema. Certamente o reconheço quando o vejo, inclusive — para minha consternação — em minha própria família. Mas geralmente fico sem saber o que fazer a respeito. Eu sei com que se parece, em minha vida, praticar o que Graeme Wood no The Atlantic chamou de “higiene mental” (a qual, a meu ver, também é uma higiene espiritual). “A luta é algo interno e familiar para todos os que consomem mídia”, escreveu Wood, e para mim isso significou limites — muitas vezes violados — no que diz respeito a tempo e conteúdo do meu consumo de mídia, bem como uma rotina diária que inclui ler as Escrituras antes de ler meu celular.

Mas e quanto a outras pessoas, que podem nem mesmo reconhecer que existe uma crise epistêmica? Não posso impor meus limites e minha rotina a elas. G. K. Chesterton, em Ortodoxia, desaconselhou a discussão com o teórico da conspiração, e recomenda, em vez de dar-lhe “fôlego”, mostrar-lhe que há “algo mais limpo e fresco fora da sufocação de um único argumento”. Mas o que isso significa na era dos smartphones, quando uma fonte infinita de polêmica e confusão está sempre em nosso bolso?

Comentários públicos — como este próprio artigo — não podem fazer muito, Darling me disse. Servem a “um propósito”, escreveu ele, “mas isso deve ser resolvido de forma relacional” e na igreja local. "Muitos evangélicos são catequizados muito mais por podcasts, eruditos e políticos do seu nicho político favorito” do que pela Bíblia, ele continuou, "uma caracterização que suspeito que possa ser indesejável, mas é indiscutível, se considerarmos o tempo concedido a cada uma dessas coisas.

“Então, talvez os pastores precisem voltar àquele tipo de pregação tradicional, que nos adverte contra más influências e nos exorta a ‘renovar nossa mente’ (Rm 12.2) com as Escrituras”, disse Darling, e ao mesmo tempo incluir em suas práticas de discipulado “uma ênfase sustentada e matizada sobre o que significa engajar-se na política de maneira saudável.” As igrejas podem usar grupos pequenos, recomendar leituras, pesquisas e podcasts, bem como aulas para treinar e incentivar os membros. Deixar de abordar as questões do engajamento político e do consumo de conteúdo, segundo Darling, significa “ceder esse terreno aos mercadores do medo e aos conglomerados de mídia que trocam olhos por lucro”.

E tudo isso deve acontecer no contexto do amor cristão: em amizade; oração, jejum e batalha espiritual (Ef 6.10–18); “suportando e perdoando uns aos outros” (Cl 3.13). E Darling concluiu: "Podemos não ser capazes de tirar as pessoas da crise epistêmica, mas podemos apelar à virtude e à missão cristãs, fazendo perguntas como: Isso realmente vale nosso tempo e energia?"" Isso nos ajuda a “viver de maneira digna da vocação que recebemos” (Ef 4.1)? Isso direciona a mente de alguém para Cristo? Não precisamos acreditar no clone do Biden para que a resposta seja “não”.

Bonnie Kristian é colunista da Christianity Today.

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