Um caminho que não é para os fracos de coração

O custo da cruz em um mundo que ama o prazer.

Christianity Today February 18, 2024
Óleo sobre tela: Table Assemblage, Michelle Chun, 60x50 &quot

Então Jesus disse aos seus discípulos: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.” Mateus 16.24

Em algumas das palavras mais aterrorizantes das Escrituras, Cristo diz a seus discípulos: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mateus 16.24, ESV). Nesse ponto da história da Paixão, os discípulos ainda não sabiam o poder que tinham as palavras de Cristo. Eles certamente entendiam o que era uma cruz, e sabiam alguma coisa sobre os horrores da crucificação, mas ainda não sabiam que o próprio Cristo morreria nesse instrumento de tortura romana — nem sabiam as várias formas de sofrimento que cada um deles enfrentaria.

No cerne do cristianismo está o mandamento para negarmos a nós mesmos. Em uma cultura que gira em torno da autoafirmação, naturalmente fica cada vez mais difícil comunicar esse aspecto de forma eficaz. A ideia de negarmos a nós mesmos como um ato de espiritualidade é hoje algo vai contra o senso comum. Em seu livro, A Secular Age [Uma era secular], Charles Taylor fala do desafio da autonegação na era moderna: “Para muitas pessoas, hoje em dia, deixar de lado seu próprio caminho para se adequar a alguma autoridade externa simplesmente não parece compreensível como forma de vida espiritual”.

A autonegação não só é difícil; ela parece algo incompreensível em nossa época, um tempo em que a autorrealização é a pedra angular de uma vida boa. No entanto, nossa fé não nos pede que negligenciemos a autorrealização — ela apenas redefine os termos. De acordo com a história bíblica, fomos criados, na verdade, para negarmos a nós mesmos e, ao fazê-lo, realizamos nosso verdadeiro eu.

O mundo define realização como algo que flui do coração autêntico do indivíduo, como algo que não é restringido por nenhuma fonte externa. O cristianismo ensina que nosso coração é perverso e não é confiável — que desejamos coisas que não são apenas ruins, mas que fazem mal para nós.

Jesus ensina o paradoxo de que autonegação é autoafirmação (Mateus 16.25). A questão é apenas que os termos “auto” e “afirmação” são definidos por Deus, e não por nossos caprichos humanos falíveis. Quem nós somos (filhos de Deus) e o que significa para nós sermos pessoas realizadas (estarmos unidos com Cristo) não são coisas que dependam de nós. Estar com Cristo é estar livre de nossos desejos egoístas.

Portanto, devemos nos perguntar: o que significa negarmos a nós mesmos? Significa virarmos as costas para o pecado. Todo pecado consiste no ato de escolhermos nosso próprio caminho, contrariando a vontade de Deus para nós. É uma afirmação perversa do eu, que coloca nossos desejos à frente dos desejos do próximo e até mesmo de Deus.

A obediência é uma cruz que carregamos; é uma forma de sofrimento, embora seja um sofrimento que traz cura, paz e restauração. Gostamos de imaginar que a obediência a Deus é algo indolor, exceto, talvez, no caso de perseguição. Mas, mesmo quando o mundo não está nos punindo por nossa fé, o simples ato de escolhermos não pecar envolve sofrimento. No caso de pecados persistentes e profundamente arraigados, o arrependimento exige romper com maus hábitos, quebrar rituais familiares, abrir mão da desobediência. E isso tudo pode ser doloroso.

Por exemplo (algo que não reconhecemos o suficiente), escolher ser fiel no casamento exige que neguemos a nós mesmos o prazer da intimidade com outras pessoas. Para algumas pessoas, isso é fácil, mas pode ser uma negação profunda para outras. Afinal de contas, o mundo está repleto de pessoas bonitas, interessantes e adoráveis. Dizer “sim” [para o casamento] é dizer “não” [para algumas coisas]. Em nome dessa realização, eu nego a mim mesmo a opção de estar com outra pessoa.

Neste período da Quaresma, lembramos que essa forma de autonegação é um modelo para a vida cristã. Enquanto o mundo nos faz lembrar quão deliciosos são os seus prazeres — o quanto nós os “merecemos” e por que honrar nossos desejos é amar a nós mesmos —, nós, em vez disso, nos comprometemos com Cristo. Avareza, orgulho, inveja, luxúria, glutonaria — todos eles são pecados que somos mais do que capazes de abraçar como verdadeiros prazeres, mas que seguir a Cristo exige que neguemos. São prazeres que nos prejudicam, mas que, inicialmente, são agradáveis, assim como o pão que se come escondido (Provérbios 9.17).

O caminho cristão não é para os fracos de coração. Ele exige uma grande dose de coragem, humildade e autossacrifício. Mas temos um Salvador fiel, que é o modelo desse sacrifício para nós, que conhece o custo da negação e a beleza da fidelidade. E a fidelidade é bela. O mesmo Cristo que sofreu na cruz foi glorificado em seu corpo. E, da mesma forma, quando negamos a nós mesmos, somos glorificados para Deus. Recebemos uma paz que vem somente de negarmos nossos desejos pecaminosos e de nos deleitarmos em Deus.

Para refletir:



Como o cristianismo redefine a realização, contrastando-a com a visão secular de autorrealização?

Durante o período da Quaresma, quais áreas específicas de autonegação se destacaram para você no devocional? Como essas áreas podem ser aplicadas em nossa vida, durante este período?

O Dr. Alan é professor associado de inglês na Universidade Batista de Oklahoma, consultor da organização Christ and Pop Culture e autor de três livros.

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A vida como uma flor que murcha

A Quarta-feira de Cinzas quebra nossa ilusão de invencibilidade.

Christianity Today February 14, 2024
Óleo sobre tela: Poppies & Dogwood, Elizabeth Bowman, 2023.

“O homem nascido de mulher vive pouco tempo e passa por muitas dificuldades. Brota como a flor e murcha. Vai-se como a sombra passageira; não dura muito.” (Jó 14.1-2)

Todos os anos, por volta da Quarta-Feira de Cinzas, uma encosta perto de nossa casa, nas montanhas do oeste da Carolina do Norte, fica tomada pelo amarelo dos narcisos em flor. Eles são as primeiras flores que desabrocham na primavera, e seu tom dourado contrasta fortemente com os tons cinzas e marrons da paisagem de inverno.

Por mais brilhantes que sejam as flores, elas têm vida curta. Nos dias seguintes a seu florescer, os narcisos são açoitados pelo vento frio e rigoroso que vem das montanhas, e que sempre dura mais do que esperamos. Uma geada tardia ou uma nevasca inevitavelmente se agarrará às pétalas trêmulas, e às vezes interromperá a exibição de sua beleza. Depois de umas poucas semanas, as flores que restarem estarão murchas e marrons, e acabarão caindo na terra endurecida pelo gelo, frustrando nosso otimismo de que os dias mais quentes estão próximos.

Não é de se admirar que Jó — um homem cujo sofrimento parece grande, na narrativa bíblica — tenha comparado a fragilidade de sua vida passageira à de uma flor delicada. Embora possuísse uma riqueza extraordinária, embora fosse contado entre os justos, ele era vulnerável. Jó era íntegro, prudente e tão suscetível a calamidades quanto qualquer outra pessoa. Seus bens foram destruídos pelo fogo e pelo fio da espada, seus filhos foram mortos em um desastre natural e ele perdeu a boa saúde por causa de uma doença dolorosa. Na esteira de todas essas catástrofes, Jó compreendeu por completo algo que é terrivelmente verdadeiro em relação a todos nós: nossos dias, vividos no rescaldo da Queda, são devastados pelos ventos, são efêmeros.

Para muitos de nós que vivemos em situação privilegiada é muito fácil ter uma sensação de controle: nossa geração tem acesso sem precedentes a alimentos, água, abrigo e assistência médica. Nossa capacidade de fazer escolhas sobre a área em que trabalharemos, com quem nos casaremos e a quais comunidades nos juntaremos é algo que não tem precedentes na história.

Enquanto isso, a indústria da autoajuda e do bem-estar incutiu em nós a noção de que podemos contornar qualquer sentimento ou experiência desconfortável. A exaustão pode ser atenuada com a receita certa de suco verde ou com algum óleo essencial, o caos pode ser controlado pelo aplicativo perfeito de gerenciamento de tempo, a tristeza pode ser atenuada por meio da atenção plena ou da meditação, e o tédio pode ser aliviado por algum serviço de streaming ou alguma plataforma de mídia social.

Além disso, como cristãos, podemos acreditar que uma teologia sólida e um compromisso inabalável com as disciplinas espirituais podem servir como uma muralha contra as agressões da vida. Talvez os amigos de Jó tenham presumido a mesma coisa em relação a seu justo companheiro.

Aos poucos, a mentira vai se instalando: Posso controlar meus resultados. Posso evitar o sofrimento.

Essa ilusão de invencibilidade explica por que muitos de nós nos sentimos desnorteados — e até mesmo ofendidos — quando as dificuldades inevitavelmente chegam. É humilhante perceber que o sofrimento e a morte fazem parte da vida do ser humano, independentemente de nossas virtudes, vigilância ou privilégios. Nossas vidas se parecem menos com fortalezas bem construídas e mais com flores efêmeras. Estamos todos dolorosamente expostos, tão vulneráveis quanto os narcisos que brotam no frio brutal.

Jesus nos lembra da realidade potencialmente perturbadora de que Deus “manda chuva sobre justos e injustos” (Mateus 5.45, NASB). Mas, no mesmo sermão, Jesus nos diz para não nos preocuparmos; para não temermos a respeito do que comeremos, beberemos ou vestiremos. “Vejam como crescem os lírios do campo”, diz ele (6.28).

Os lírios vestem-se de beleza, sem nenhum esforço próprio. Eles “não trabalham nem tecem" porque Deus é o artista que supervisiona tanto o seu florescer quanto o seu desvanecer. E esse mesmo Deus sabe do que precisamos. A humilhação da impotência pode, às vezes, levar a uma forma inesperada de descanso, a uma cessação dos nossos esforços para controlar os resultados, a uma pausa em nosso próprio labutar.

Fiz da minha missão observar como os narcisos daquela encosta crescem, admirar seu brilho, em vez de lamentar sua brevidade. Embora a vida daquelas flores seja breve, elas são de fato um farol de esperança — um lembrete concreto de que as estações de fato mudam, de que o calor sempre chega e de que a glória é possível, mesmo nos ambientes mais adversos. Deus, e somente Deus, faz com que seja assim.

Nunca houve um só inverno em que aquela encosta não tenha ressuscitado em beleza. Aqueles narcisos parecem um milagre, um prenúncio da ressurreição maior que está por vir. E mesmo a mais frágil das esperanças, com o cuidado de Deus, pode florescer em alegria eterna.

Para refletir:



Como nos perturba o fato de nossa vida ser comparada a de uma flor? E como isso pode ser reconfortante para nós?

Como a nossa ilusão de controle é ampliada pelos privilégios que temos? Como abandonar essa ilusão de controle pode nos levar ao descanso?

Amanda é autora, palestrante e compositora de músicas. Ela escreve sobre fé, dor e criatividade, e tem dois livros publicados.

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A Páscoa no cotidiano

Prepare o seu coração para a Páscoa com a Christianity Today.

Christianity Today February 14, 2024
Zatelepina / Getty

Junte-se a nós para preparar seu coração, durante esta época que antecede a Páscoa e depois dela. Esses eventos de mais de 2.000 anos atrás ainda têm repercussões em nossas vidas hoje. A realidade mais poderosa e transformadora da história são a morte e a ressurreição de Jesus, e essa verdade ainda hoje alcança a nossa vida cotidiana. Cabe a nós lembrar, refletir e viver as consequências cotidianas e gloriosas do amor de Cristo por nós, reveladas por meio de sua humildade e de seu poder, de crise e superação, de desespero e alegria transbordante. Ele morreu e ressuscitou de fato, e isso muda tudo — até mesmo as pequenas partes de nossa vida diária. Enquanto preparamos nosso coração, este devocional nos convida para uma jornada da Quaresma e à Páscoa, passando pelos diferentes estágios dessa jornada emocional e da verdade teológica que encontramos na morte, na vida e em tudo o que existe entre ambas.

A Páscoa no cotidiano é um devocional dividido em três partes, cada uma delas representando uma realidade emocional diferente ao longo da jornada da Páscoa. A primeira parte nos conduz pelo período do calendário da igreja chamado Quaresma, no qual confrontaremos a humildade de nossa humanidade, examinaremos as limitações de nosso estado carnal e abraçaremos o chamado à vida sacrificial, ao jejum e à autonegação. A segunda parte nos conduzirá pela Semana Santa e nos preparará para a Páscoa, baseando-se na antecipação da esperança. Por fim, mergulharemos na turbulência e na intensidade da traição, da crucificação e da ressurreição de Jesus, bem como no reencontro com ele. Ao longo dessa jornada, o amor e a admiração venceram o aguilhão da tristeza e da morte no grande palco da eternidade, e também em nossas vidas, pequenas e singelas, mas que um dia serão arrebatadas pela glória.

Quaresma

Semana Santa

Páscoa

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Books

Cancelar a participação de Douglas Wilson na Consciência Cristã foi uma decisão política ou bíblica?

O debate em torno do polêmico pastor reflete um senso maior da polarização no Brasil.

O encontro anual para a Consciência Cristã começa na quinta-feira, 8 de fevereiro, em Campina Grande, Brasil.

O encontro anual para a Consciência Cristã começa na quinta-feira, 8 de fevereiro, em Campina Grande, Brasil.

Christianity Today February 8, 2024
YouTube screenshot / Consciência Cristã

A decisão de cortar o pastor Douglas Wilson da programação de uma conferência evangélica no Nordeste propiciou um momento incomum de unidade entre progressistas e alguns conservadores — e também estimulou um debate sobre se o cancelamento é uma resposta política ou bíblica, no caso de cristãos.

A conferência Consciência Cristã cancelou a participação de Wilson de seu próximo evento, depois que o teólogo e ativista antirracismo Ronilso Pacheco caracterizou o pastor americano como um defensor da escravidão, em um texto publicado pelo Intercept Brasil.

O encontro, que acontecerá de 8 a 13 de fevereiro, é organizado pela Visão Nacional para a Consciência Cristã (VINACC), uma instituição conservadora liderada por várias igrejas evangélicas. Realizado durante os dias de Carnaval, em Campina Grande, na Paraíba, a Consciência Cristã apresenta proeminentes teólogos reformados brasileiros e atrai milhares de participantes.

No mês passado, os organizadores do evento justificaram o cancelamento da participação do teólogo sob a alegação de preocupações com a segurança de Wilson. Em sua resposta, Wilson escreveu um post no blog intitulado “Uma Palavra ao Bom Povo do Brasil”, dizendo que não apoia a escravidão, mas apenas se opõe às guerras travadas para tentar acabar com ela: “Meu argumento nunca foi que a escravidão era necessária, mas sim que a carnificina não era necessária.”

“Penso que o nome de Wilson sequer deveria ter sido cogitado”, disse Norma Braga, teóloga evangélica conservadora que mora no Rio de Janeiro. “O convite prejudicou a reputação da Consciência Cristã não apenas entre os não cristãos, mas também entre muitos cristãos que entenderam o problema de sua presença aqui.”

A pressão para cortar Wilson do evento veio de alguns conservadores como Norma Braga, bem como de evangélicos progressistas, sendo que os dois grupos contestaram a decisão de lhe dar um palco. (As opiniões de Wilson sobre a escravidão não são o único ponto de controvérsia; em seu canal no YouTube, o pastor batista Yago Martins falou sobre alegações “muito obscuras e dolorosas” de abuso sexual que teriam sido acobertadas na igreja de Wilson.)

Wilson, que vive em Moscou, cidade do estado de Idaho, destaca-se nos círculos reformados brasileiros; mais de duas dúzias de livros dele já foram lançados em português. Ao lado da esposa, Nancy, ele é uma figura de expressão em temas como família e criação de filhos.

“Essa combinação única faz com que seus livros sejam muito bem recebidos em vários círculos cristãos”, disse Felipe Sabino, fundador e diretor editorial da Editora Monergismo, que publica os livros de Wilson.

Assim, muitos dos seus seguidores brasileiros não só ficaram desapontados por perder a oportunidade de ouvi-lo na conferência, mas ficaram também frustrados com o que consideraram uma influência do instinto progressista ligado ao politicamente correto entre os evangélicos, e não um senso bíblico de graça e justiça.

“Isso às vezes leva à difamação injusta de irmãos crentes, negando-lhes a oportunidade de fornecer uma refutação”, disseram Sabino e Thiago McHertt, este último um pastor da Igreja Reformada em Joinville.

https://www.instagram.com/p/C2Pb0-Uu-rV/

Ambos preferem ver os cristãos manterem um padrão mais elevado, tendo a Bíblia como referência e uma presunção de inocência estendida aos ministros do evangelho.

“Muitos crentes e líderes cristãos condenaram-no precipitadamente, embora com certeza eles próprios não gostariam de ser julgados de forma semelhante”, disseram Sabino e McHertt numa declaração à CT. “É importante notar que eles não estão apenas desconsiderando julgamentos de tribunais civis e eclesiásticos, retratações e esclarecimentos de questões passadas, mas também ignorando um ministério frutífero de mais de 40 anos de um homem cujos filhos e netos permanecem firmes no Senhor.”

Sabino disse que os seguidores de Wilson no Brasil apreciam sua forma viva e alegre de abordar a fé (“calvinismo chestertoniano”), sua visão otimista do futuro da igreja e seu compromisso com a construção de uma cultura distintamente cristã.

Os críticos de Wilson, porém, veem sua popularidade como algo decorrente da política reacionária no Brasil. Norma Braga preocupa-se com o fato de os evangélicos estarem minimizando posicionamentos que poderiam ser considerados equivocados do ponto de vista cristão, contanto que os líderes critiquem questões como o feminismo militante, a legalização do aborto e a sexualização de crianças.

“Há toda uma configuração de pecados que são deixados de fora, se a maioria dos líderes denunciar apenas questões relacionadas com o progressismo”, disse ela, “e proteger as instituições religiosas, em vez de defender e apoiar as vítimas de abusos, que são predominantemente mulheres”.

A profunda polarização política no Brasil reflete-se nas igrejas evangélicas — e nas respostas à saga em torno de Wilson.

Nos últimos anos, a discordância sobre o apoio dado ao ex-presidente Jair Bolsonaro tumultuou as igrejas evangélicas. Muitos fiéis mudaram de igreja por causa de conflitos políticos. E continuam preocupados com o que consideram ser uma devoção da igreja ao poder político e com as divisões persistentes alimentadas pela política agressiva e violenta.

Pedro Lucas Dulci, pastor presbiteriano na cidade de Goiânia, diz que muitas discussões que acontecem dentro das igrejas estão sendo moldadas por preferências ideológicas, culturais, econômicas e políticas, e não por considerações teológicas.

Ele gostaria de ver a igreja oferecer uma resposta aos desafios contemporâneos, mas sem submeter a mensagem do evangelho a preferências político-partidárias.

Na perspectiva de Dulci, a decisão de cancelar a vinda de Wilson à Consciência Cristã, longe de sugerir a unidade entre as várias correntes teológicas, faz precisamente o oposto, ao estabelecer uma cultura em que as controvérsias são silenciadas. Sem a presença do pastor, nem a sua visão nem a daqueles que se opõem a ele podem ser ouvidas. Por esta razão, Dulci defende que o cancelamento nunca deve ser uma opção, quando o objetivo é abordar diferenças teológicas e intelectuais.

“Mudanças de opinião surgem através de discussões, diálogo, oração, compreensão e até mesmo arrependimento”, disse ele, “mas nunca através do cancelamento”.

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Por que as tempestades são necessárias para sobreviver

A Quaresma nos ajuda a ver as provações da vida de um jeito diferente.

Christianity Today February 6, 2024
The Storm, Joel Sheesley, 40 x 50 &quot

Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. Tiago 1.2-3

“Você quase morreu, cara.”

Eu mal tinha registrado suas palavras, antes que meu irmão mais velho sentasse em uma cadeira, ao lado da minha cama de hospital. Eu havia ficado dias sem dormir, depois que uma cirurgia relativamente rotineira se transformou em uma angustiante infecção pós-operatória, e se alastrou por todo o meu corpo. Meu irmão, que era cirurgião geral, não era de medir as palavras. Sua postura cansada era prova suficiente de que ele não estava exagerando.

Meu irmão havia se debruçado sobre meus prontuários médicos por dias, pedindo uma infinidade de exames, em uma tentativa desesperada de diagnosticar a bactéria que estava tentando me matar. Embora seu humor estivesse decididamente picante, foi ele quem salvou minha vida por meio de uma última cirurgia corretiva. “Você vai ficar bem, meu irmão. Você vai ficar bem.”

Naquela noite, enquanto eu estava lá, deitado na minha cama de hospital, uma tempestade se abateu sobre a cidade. O som ritmado da chuva me atraiu para fora da cama, pela primeira vez em dias, e eu me arrastei como um velho homem até uma cadeira que estava ao lado da janela, e fiquei ouvindo as gotas de chuva caírem e depois escorrerem em cascatas irregulares até o parapeito da janela. Fechando os olhos, refleti sobre o mistério das provações, enquanto um versículo bíblico ecoava em minha mente:

“Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem lhes faltar coisa alguma.” (Tiago 1.2-4).

Para mim, essa passagem muitas vezes soava como um desejo sádico por dor. Como alguém que viveu grande parte da vida determinado a superar o desconforto, a noção de sentir alegria nas dificuldades era um anátema. Ser um crente não era um convite à bênção? Como é possível que a dor e o sofrimento das provações pudessem ser considerados motivo de grande alegria?

Na década de 1980, um centro de pesquisa chamado Biosfera 2 construiu um ecossistema fechado, para testar o que seria necessário para colonizar o espaço. Tudo foi cuidadosamente selecionado e providenciado, e as árvores plantadas lá dentro brotaram e pareciam prosperar. Depois, começaram a cair.

Imagino que os botânicos devem ter olhado para tudo aquilo com desânimo, sem encontrar nenhuma evidência de doenças, ácaro ou pragas. Não havia nada que pudesse causar a queda das árvores; as condições eram perfeitas. E, então, eles perceberam o que estava faltando — algo tão simples, mas que estava ausente dentro dos limites da estrutura: o vento.

O ar ficava muito parado, muito sereno lá dentro — e essa calmaria fazia com que as árvores ficassem condenadas. São a pressão e a variação dos ventos na natureza que fazem com que as árvores se fortaleçam e suas raízes cresçam. Embora as árvores da Biosfera 2 tivessem todo o sol, o solo e a água de que precisavam, na ausência de ventos variáveis, elas não desenvolviam resistência, e acabavam caindo sob o peso de sua própria opulência.

Será que nossas dificuldades, mais do que nossos prazeres, são o que nos aproxima de Deus? Elas nos lembram de nosso desespero e nos levam de volta à única fonte de vida abundante. Romanos 5.3-5 nos encoraja:

“…também nos gloriamos nas tribulações, porque sabemos que a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança. E a esperança não nos decepciona, porque Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu”.

Passei a maior parte da noite naquela janela, enquanto a chuva continuava a cair. Caí no sono e despertei de novo várias vezes, enquanto meu corpo continuava a se recuperar, e senti a paz de Deus como um abraço caloroso, lembrando-me de que ele esteve comigo em cada passo da minha jornada de quase morte, guiando as mãos do meu irmão, enquanto ele lutava para salvar a minha vida, e enchendo aquele quarto de hospital com seu Espírito.

Ao atravessarmos a Quaresma, esse período repleto de lutas, podemos começar a ver as tribulações e as tempestades de uma nova maneira. Embora ainda tenhamos uma forte aversão à dor, podemos ver a mão de Deus, quando os ventos das tribulações nos açoitarem, e podemos nos consolar com o fato de que nossas raízes estão se aprofundando.

Para refletir: Muitas vezes, é difícil perceber as provações sob uma luz positiva, enquanto as enfrentamos. Ao refletir sobre sua vida, como as experiências difíceis que enfrentou mudaram você para melhor? O que você aprendeu? Em seus momentos mais sombrios, o que Deus lhe ensinou a respeito dele mesmo? Como ele consolou e ajudou você? Há alguém em sua vida, seja um amigo, seja um familiar, que você poderia encorajar hoje, ao compartilhar sua história?

Robert é escritor e cineasta, reside em Waco, Texas, com sua esposa e três filhos adolescentes. Ele é o autor de um romance de ficção científica para crianças de 8 a 13 anos.

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Ele investiga denúncias de perseguição a cristãos

Veja o impacto surpreendente que esse trabalho tem em sua fé.

Christianity Today February 2, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Pexels

Há quase 20 anos, Fikiru se juntou a um grupo de oração e estudo bíblico de sua cidade natal, na região da África Oriental, uma experiência que o levou a aceitar Cristo como seu Salvador. Mas Fikiru logo descobriu que outros cristãos da região se opunham veementemente à conversão dele e do restante da comunidade. Durante alguns meses, esses cristãos acusaram os outros de blasfêmia, forçaram seus cônjuges a se divorciarem deles e suas famílias a cortarem relações com eles e, em alguns casos, os espancaram e mataram.

Certo domingo, após essa perseguição, passaram por lá vários membros da equipe da Portas Abertas, missão que ajuda cristãos que sofrem perseguição.

“Não os conhecíamos”, disse Fikiru. “Nunca tínhamos ouvido falar deles.”

Mas a Portas Abertas tinha ouvido falar da igreja de Fikiru e de como eles estavam sofrendo. E tinha uma mensagem simples para ele: Você não está sozinho.

Dentro de alguns anos, Fikiru (a CT está usando um pseudônimo, por razões de segurança) começou a trabalhar na Missão Portas Abertas.

“Estou tentando retribuir o amor e a preocupação que demonstraram por mim, quando eu era um crente perseguido”, disse o analista de pesquisa para a região da África Oriental, uma área que vai da Eritreia a Moçambique. “Eu desempenho esse papel com paixão e dedicação”.

Fikiru conversou recentemente com Morgan Lee, editora-chefe global da CT, sobre como ele investiga as denúncias de perseguição, o impacto surpreendente que esse trabalho teve em sua fé e como ele cuida dos membros da equipe que ficam esgotados com a tarefa.

Como você ajuda as pessoas da equipe que ficam esgotadas ou indiretamente traumatizadas, ao ouvirem tantas histórias de devastação, destruição e violência?

Com oração. Um de nossos valores fundamentais destaca o fato de que somos pessoas de oração. Sabemos que estamos servindo ao Senhor, e que essas pessoas estão sofrendo por sua fé. Elas não estão caminhando sozinhas, e nosso Senhor sempre estará com elas. Saber essa verdade sempre nos encorajará a continuar caminhando. Entregamos todos os nossos fardos e desafios às intervenções do Senhor.

Também oferecemos sessões em que os funcionários podem falar de suas experiências no campo, e os ajudamos a implementar planos de autocuidado. Nossa equipe da linha de frente, que interage diretamente com os crentes perseguidos, é incentivada diariamente a encontrar [apoio em] uma comunidade no ministério e em nossos escritórios. É importante ter pessoas ao seu redor que entendam e compartilhem os fardos que carregamos em favor da igreja perseguida, pois não há muitas pessoas que entendam ou que compartilhem esses fardos.

Devocionais regulares nos escritórios e nos departamentos, bem como orações regulares também servem de apoio para funcionários que podem estar enfrentando um evento ou um incidente de perseguição. É impossível fazer esse trabalho e não ter algumas perguntas difíceis para Deus; felizmente, porém, o Senhor é paciente e gracioso para conosco e, à medida que revela como está fazendo com que todas as coisas cooperem para o bem, a nossa fé e o nosso relacionamento com Deus se fortalecem.

Algo em seu trabalho já abalou a sua fé?

Como ouvimos as histórias do sofrimento interminável de nossos irmãos e irmãs, pode haver momentos em que ficamos emocionalmente abalados (os casos de violência sexual contra mulheres jovens e de maus-tratos a idosos vulneráveis estão entre os piores). Mas não se trata de nós. Trata-se da igreja sofredora. Às vezes, podemos achar que o tratamento injusto que outros cristãos recebem é algo duro demais. Mas sabemos que eles são fortes e fiéis. Sua demonstração de resiliência nos incentiva a continuar caminhando com eles.

Como seu trabalho contribui para a Lista Mundial da Perseguição, da missão Portas Abertas?

Anualmente, reunimos dados sobre a perseguição em todos os países da nossa região e os analisamos, cruzando esses relatórios com as perspectivas de diferentes líderes e especialistas de todo o país. Atribuímos uma pontuação a cada país, em uma série de categorias e, em seguida, enviamos esses dados para o centro global, onde eles usarão nossa análise para atribuir a cada país uma pontuação final. [Nota do editor: você pode ler mais sobre a metodologia usada pela Portas Abertas aqui].

Quando estamos coletando dados, tentamos obter informações diversificadas. Queremos que nossos colaboradores nos forneçam perspectivas de contextos específicos do país inteiro, no que diz respeito à perseguição, e não apenas confiem em um ou dois indivíduos. É claro que o número de colaboradores varia de acordo com o tamanho do país. Por exemplo, a Etiópia tem 120 milhões de pessoas, Djibuti tem 976 mil e Comores, 888 mil. Muitos são líderes de igrejas, profissionais, bem como pessoas com experiência em uma ampla gama de questões no país.

Depois de coletarmos os dados e reunirmos as informações, nós não desaparecemos. Vamos até as pessoas afetadas pela perseguição e dizemos: “É isso o que a Bíblia nos diz, e é assim que vamos reagir a isso. Vocês não estão sozinhos”. Não queremos que o inimigo os desencoraje e os leve a renunciar à sua fé.

Como vocês verificam os dados?

Duas coisas são importantes para nós, que trabalhamos na Portas Abertas: Primeiro, queremos mostrar nosso amor, nosso compromisso e nossa preocupação para com os crentes que estão sofrendo. Segundo, queremos ter certeza de que nossas informações são precisas e oportunas.

Quando se trata de incidentes específicos, temos de determinar se eles foram realmente provocados com o objetivo de atacar ou de negar direitos que os cristãos têm de viver em pé de igualdade com seus concidadãos.

Portanto, como eu disse anteriormente, tentaremos cruzar e diversificar nossas fontes. Analisamos as pesquisas existentes sobre um país, incluindo fontes primárias e secundárias. Recorremos aos nossos colaboradores. Às vezes, eles podem nos apresentar novas informações ou novos contextos de um determinado país. Não temos pressa. Tentamos realmente entender o que aconteceu e por quê.

Isso é desafiador, porque os governos e outros perpetradores da perseguição tentam lançar dúvidas sobre as informações, alegando que não conhecemos o contexto. É claro que a maioria dos perseguidores não dirá que está perseguindo cristãos por causa de sua fé. É por isso que analisamos uma situação de vários ângulos. Queremos ser precisos e queremos ter certeza de que aquilo é algo que aconteceu por causa da fé em Cristo. Não podemos dizer que um país está tratando seus cidadãos cristãos desta ou daquela maneira, se não tivermos feito uma avaliação completa.

Embora enfatizemos a precisão e a qualidade, também tentamos ministrar a essas pessoas que estão realmente sofrendo com a perseguição, e mostrar-lhes amor.

Qual é a parte mais difícil do seu trabalho, quando se trata de coletar e verificar pesquisas?

A segurança e a proteção de nossas fontes é um desafio. Queremos ter o máximo de informações possível, e queremos que elas sejam corroboradas por diversas fontes. Mas esses objetivos também trazem o risco de expor as pessoas.

Em última análise, a maioria dos dados se presta a ajudar a analisar a situação em um país, mas tornar públicos os detalhes de um incidente é muito perigoso. Em alguns contextos, você pode ver que nos calamos e não entramos em maiores detalhes, porque nos preocupamos com as nossas fontes.

Queremos contar os testemunhos de crentes que nos contaram uma história em lágrimas, e que estão compartilhando algo que levará outros a contarem aquilo para o resto do mundo. Mas, ao fazermos isso, podemos lhes causar ainda mais dor.

O que eu quero que os leitores entendam, quando lerem esses relatórios, é que todos esses números são pessoas que são cristãs — são mães, irmãos, pais e filhos que enfrentam a vida cotidiana com incerteza. Os números e as cifras nos falam das lágrimas de um irmão ou de uma irmã de alguma parte do mundo, de alguém que não tem permissão para simplesmente exercer a própria fé. Eu gostaria de incentivar as pessoas a pensarem neles, a falarem deles, e a orarem por eles.

Que tipo de impacto seu trabalho teve em sua fé?

Encorajamento. Muitas vezes as pessoas fazem essa pergunta a mim e a meus colegas, porque analisamos e ouvimos histórias tristes de irmãos e irmãs nossos.

Quando você conhece esses corajosos homens e mulheres de Deus, que são perseguidos unicamente por causa da fé, e apenas porque se identificaram com outra forma de fé diferente da fé do grupo predominante; quando eles compartilham com você história após história; e quando eles terminam e dizem a você, apesar de tudo isso, “Estamos felizes por conhecer a Cristo e continuaremos a adorá-lo, mesmo que nossos direitos nos sejam negados, que sejamos atacados fisicamente ou mortos, que nossas propriedades sejam confiscadas ou destruídas; tudo isso nos tornará mais fortes. Não negaremos nossa fé”, ganhamos coragem e motivação para nossa vida pessoal e nosso ministério.

Às vezes, achamos que vivemos em um lugar melhor, mas as pessoas desses contextos são muito fortes. Temos muito a aprender com elas.

Para quais casos de perseguição, na sua região da África Oriental, você gostaria de chamar a nossa atenção?

Deixe-me começar por Moçambique, onde os cristãos estão enfrentando ameaças diárias por parte do extremismo islâmico. O grupo queria estabelecer o Estado Islâmico na parte norte do país e tem como alvo o governo, os soldados e os próprios muçulmanos moderados.

Os cristãos são alvos, pois, quando ataca, o Estado Islâmico primeiro verifica qual é a sua fé. Quando eles sabem que alguém é cristão, essa pessoa é duramente atacada. Essa situação tornou difícil para os cristãos levarem uma vida normal, e muitos deles tiveram de deixar a região. Como sabiam que os insurgenetes os atacariam, houve um êxodo em massa. Milhares e milhares de cristãos e de muçulmanos moderados fugiram.

Na Eritreia, há mais de 20 anos os cristãos vêm enfrentando severa perseguição. Os cristãos eritreus não podem se reunir e orar; não podem confessar abertamente sua decisão de seguir a Cristo. Se forem presos, não conseguirão ter um julgamento adequado. A prisão pode significar viver em um contêiner ou em uma pequena cela por muitos anos e sem acesso à justiça.

Há apenas alguns dias, o governo da Eritreia prendeu cristãos novamente. Sempre que os encontram orando juntos, simplesmente pegam todos e os mandam para a cadeia. Mas ninguém diz para as famílias dos presos o que aconteceu e o porquê.

Por fim, tem também o Sudão. No ano passado, em abril, começou uma guerra lá. Antes dessa guerra, havia entusiasmo e esperança, por parte de observadores e de alguns cidadãos, de que o país um dia viria a se tornar um lugar melhor para se exercer a liberdade religiosa e a liberdade de direitos.

Desde o início da guerra, muitas igrejas foram atacadas, bombardeadas e queimadas. No dia 12 de janeiro, uma igreja na grande cidade de Wad Madani foi bombardeada. O grupo armado suspeito (de ter praticado o ataque] confiscou tudo o que havia no prédio, e depois simplesmente o incendiou.

É claro que a luta entre as duas forças não é abertamente religiosa. Os dois lados são compostos por militantes islâmicos. De um lado estão os militares e, do outro, as Forças de Apoio Rápido, as pessoas que trabalharam sob o regime anterior de Bashir.

Os cristãos, que já estão sofrendo por causa de sua fé, estão em desvantagem maior ainda, pois seus familiares que não são cristãos podem tê-los condenado ao ostracismo, e é difícil encontrar alimento e proteção em um país em guerra. Muitas pessoas foram deslocadas, e os pastores deslocados não conseguem mais cuidar de suas congregações, e estão lutando para preservar a própria vida e segurança.

Por acaso se lembra de alguma conversa que teve com algum cristão perseguido e que inspirou você?

Conversei com um dos pastores sudaneses que sobreviveu por pouco ao bombardeio de sua igreja em Cartum, capital do país. Ele está no ministério há muitos anos e pagou um alto preço por sua decisão de declarar publicamente sua fé e, depois, seu ministério. Mas, quando esse ataque ocorreu, ele ficou muito triste. Sentiu-se desamparado; não foi capaz de ajudar sua congregação ou de proteger sua família, nem a própria vida.

Eu o conheço há muitos anos e mantemos contato regular para orar. Ele me disse: “Fikiru, só posso lhe pedir que ore por mim e pelas pessoas a quem sirvo. Não sei dizer por quanto tempo continuarei vivo ou em segurança. A situação está piorando”. O que me comoveu foi que, em todos os anos em que me comuniquei com ele, esse pastor quase não pediu oração para si mesmo; sempre orava pelas pessoas a quem servia. Isso me mostra quanta pressão está sobre os ombros de pastores e líderes.

Outra história é da Tanzânia, onde a influência islâmica está crescendo em certas partes do país. Atualmente, toda vez que uma pessoa de origem islâmica decide se tornar crente, seus pais e familiares a perseguem. Uma senhora me contou que era um dos membros preferidos da família, que seu pai realmente a amava e que ela era apoiada pela mãe e pelos parentes — até o momento em que decidiu seguir a Cristo.

No momento em que souberam de sua decisão, começaram a espancá-la e a atacá-la. Quando a visitei, ela tinha ferimentos nos braços causados por golpes de facão. A intenção deles era matá-la.

Ela me disse: “ Fikiru, eles fizeram isso para me deter. Mas, mesmo que eu perca o apoio deles e perca a vida, ainda assim adorarei e servirei ao Senhor.”

Essa foi uma história que me comoveu profundamente —, pois, embora haja muitas histórias tristes sobre crentes e cristãos perseguidos em nossa região, há também um lado encorajador, o fato de essas pessoas terem decidido que pagarão o preço.

Nós, como cristãos, devemos orar por essas pessoas, dizer-lhes que não estão sozinhas e, em seguida, falar em defesa delas, em qualquer lugar que possa influenciar os perseguidores, sejam eles o governo ou atores não estatais, e pedir-lhes que as deixem em paz e que as deixem levar uma vida decente.

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Como as megaigrejas brasileiras se tornaram plantadoras globais de igrejas

Congregações satélites estão surgindo onde quer que se encontre uma massa crítica, da Flórida a Portugal e ao Cazaquistão.

Christianity Today February 1, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty

O bairro conhecido como Florida Center é o lugar certo para ir em Orlando, se você for um imigrante brasileiro com saudades de casa. Do guaraná ao brigadeiro, mercadorias de todo tipo, vindas do país sul-americano, podem ser encontradas em lojas e restaurantes locais. Hoje também se pode encontrar lá a Alcance Orlando, igreja satélite de uma congregação de Curitiba, cidade do sul do Brasil com quase 2 milhões de habitantes.

O pastor titular, Paulo Subirá, mudou-se para a Flórida em 2017, com a esposa e três filhos em idade escolar.

“Quando vim para Orlando, nós nos reuníamos em pequenos grupos formados por familiares e alguns amigos, como o que tínhamos anteriormente no Brasil”, conta ele. Depois de um tempo, o grupo cresceu e passou a incluir amigos de amigos.

O grupo ficou grande demais para se reunir em uma casa, e depois continuou crescendo, a ponto de já não conseguir mais se reunir em um hotel. “Então, entendemos que deveríamos começar uma igreja a partir daquele grupo”, disse Subirá.

A igreja Alcance Orlando agora tem dois cultos dominicais, realizados em um auditório com capacidade para 300 lugares. Durante a semana, os membros se reúnem em 31 pequenos grupos espalhados pela área metropolitana de Orlando. Subirá, cujo irmão Luciano lidera a Comunidade Alcance em Curitiba, atualmente prepara um jovem pastor para começar uma nova comunidade na Carolina do Sul, com algumas famílias brasileiras que se mudaram da Flórida.

Plantações de igrejas formadas por imigrantes brasileiros, na Europa e na América do Norte, — geralmente iniciadas por ministérios locais bem conhecidos, cuja existência se dá à parte de órgãos denominacionais ou de agências missionárias — são novidade para o cristianismo brasileiro. Estas plantações de igreja resultam da confluência de dois fenômenos: o crescimento da população evangélica e a emigração.

A ascensão da fé evangélica no Brasil é fartamente documentada. No censo de 1980, 6,6% dos brasileiros se identificaram como evangélicos, e esse número saltou para 22,2% em 2010. Os dados da pesquisa de 2022 ainda não foram divulgados, mas um estudo de 2020 do instituto de pesquisas Datafolha indicou que 31% dos brasileiros se identificavam como evangélicos. O demógrafo José Eustáquio Diniz Alves estima que os evangélicos poderão ultrapassar o número de católicos brasileiros (64,4% da população em 2010) até 2032. A população do Brasil é hoje de 203 milhões de pessoas.

A migração para outros países, por sua vez, sofreu altos e baixos ao longo dos anos, com números atuais que atingem um pico. Um relatório do Ministério das Relações Exteriores do Brasil (o Itamaraty) revelou que, em 2022, havia 4,6 milhões de brasileiros vivendo no exterior, o maior número de uma série histórica iniciada em 2009.

As maiores comunidades de brasileiros ficavam nos EUA (1,9 milhão) — só a Grande Orlando abriga cerca de 100 mil brasileiros — e em Portugal (360 mil), onde um em cada três imigrantes estrangeiros é do Brasil.

Os migrantes vindos do Sul Global também se tornaram um motor de crescimento para o cristianismo na Europa.

“Os migrantes latino-americanos plantaram milhares de igrejas em países como Espanha, Portugal e outros, nos últimos trinta anos. É difícil encontrar uma grande cidade europeia que não tenha uma grande congregação de língua espanhola e/ou brasileira”, escreve Jim Memory num relatório recente para a Missão Cristã Europeia.

Contudo, historicamente, no caso do Brasil, muitas dessas igrejas faziam parte das chamadas denominações neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e ficaram conhecidas por seus rituais de exorcismo e sua inclinação para pregar o evangelho da prosperidade. A partir da década de 1990, a IURD expandiu-se para a Europa, Américas do Norte e do Sul, e África. Mais recentemente, a denominação perdeu muitos membros para outras denominações e teve de fechar igrejas, muitas delas no estrangeiro, em grande parte devido a escândalos.

Em 2017, cerca de 2 mil missionários brasileiros viviam no exterior. Um relatório da Associação de Missões Transculturais Brasileiras indica que o número de missionários transculturais, tanto no país quanto no exterior, tem crescido a uma taxa de 6,7 por cento ao ano desde 1989, um número superior à taxa de crescimento da população evangélica, que é de 5,8 por cento ao ano.

Muitos líderes de igrejas locais viram neste ambiente uma oportunidade de testar seu modelo de organização e de crescimento noutras partes do mundo, à medida que seus membros se mudavam para outros países.

Um exemplo é a Igreja Batista Atitude (IBA), cuja sede fica no Rio de Janeiro. Hoje ela tem 15 mil membros na sede principal e outros 14 mil espalhados por 60 locais que ficam em seis países.

Conhecida nacionalmente como o local de culto da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, a igreja Atitude (que faz parte da Convenção Batista Brasileira) hoje tem igrejas em Orlando e em Deerfield, na Flórida, em Vancouver (Canadá), em Lisboa e no Porto (Portugal), em Milton Keynes (Reino Unido) e em Lamego (Moçambique).

Josué Valandro, pastor titular da IBA, diz que sua estratégia abrange dois tipos de plantação de igrejas. Ele chama o primeiro tipo de “intencional”, como no caso de Moçambique. São locais tradicionais do trabalho missionário brasileiro: comunidades ribeirinhas da bacia amazônica; os sertanejos ou os campos no Nordeste do Brasil; e a África Subsaariana. A IBA já está treinando 17 homens e mulheres para serem enviados a esses locais.

O outro tipo de plantação de igrejas é “orgânico”, movido pelas relações e viagens dos seus membros, como no caso daqueles que imigram para outros países.

Há dois anos, André Oliveira ajudou a abrir uma igreja Atitude em Lisboa, no Príncipe Real, um bairro de classe média com vocação artística. Desde então, Oliveira batizou 43 pessoas, um número excepcional para os padrões portugueses. De acordo com a Aliança Evangélica Portuguesa (AEP), apenas 3 por cento de todas as igrejas do país batizaram 50 ou mais pessoas no período de 2021 a 2022. O único problema: apenas quatro dos que foram batizados são portugueses. (Os dados da AEP mostram que 29,3 por cento das igrejas evangélicas no país têm sua audiência composta por 75 por cento ou mais de estrangeiros.)

Alcançar o coração da população local também é um problema para a Igreja Onda Dura. A igreja mãe foi fundada em 2007, em Joinville, no sul do Brasil, por Filipe “Lipão” Duque Estrada, trineto de Joaquim Osório Duque Estrada, poeta do século 19 que criou a letra do Hino Nacional Brasileiro.

Lipão, que tem os braços tatuados e alargadores nos lóbulos das orelhas, não herdou os dotes poéticos de seu ancestral. Em vez disso, seu dom é alcançar jovens através de linguagem e adoração contemporâneas. O nome da igreja já é, por si só, uma espécie de declaração e repercute o carinho de Lipão pelo surf. Onda Dura tenta refletir a ideia de que “a onda de Deus dura para sempre”.

A Onda Dura tem 2.700 membros na sede principal. “Expandir é algo que estava em nosso coração desde o início”, disse ele. Depois de anos plantando igrejas em todo o Brasil, a Onda Dura abriu igrejas satélites oficiais em outros países, quando imigrantes brasileiros que moravam no exterior pleitearam mais do que apenas poder acessar conteúdo via streaming.

“As pessoas vêm até nós para serem discipuladas e pastoreadas, pois não conseguem encontrar uma igreja saudável para fazer parte”, disse ele. A Onda Dura Online agora conta com um pastor e uma equipe de voluntários dedicados a alcançar os que estão em busca, onde quer que estejam. Eles realizam cursos semanais de discipulado focados em treinamento bíblico e evangelismo.

Esses líderes, então, incentivam os fiéis online a formarem pequenos grupos para assistirem juntos ao culto e se reunirem durante a semana. Depois de um tempo, a Onda Dura envia um plantador de igrejas ou um pastor regional para liderar aquela comunidade e transformá-la em uma igreja em sua plenitude.

“A ideia da Onda Dura Online não é criar consumidores para o nosso conteúdo, mas sim usar o ambiente digital para fazer nascer uma igreja física”, disse Lipão.

Foi este o roteiro que a Onda Dura seguiu para se estabelecer em Charlotte, na Carolina do Norte (onde hoje reúne cerca de 100 pessoas todos os domingos), em Chicago (60 pessoas) e no Porto, em Portugal (150). Em Sines, no sul de Portugal, e em Suzuka, no Japão, o lançamento de novas igrejas está previsto para o primeiro semestre de 2024. Atualmente, pequenos grupos estão se formando na Itália, no Reino Unido, na Irlanda, na Bélgica, nos Países Baixos, na Argentina e no Cazaquistão.

“Praticamente todos os nossos membros deixaram toda a família para migrar”, disse Subirá, da igreja Alcance em Orlando. “A igreja se torna relevante porque é a única família que eles têm”. Subirá ouviu histórias de membros da igreja que ajudam uns aos outros a tirar carteira de motorista ou a encontrar empregos e moradia por um curto período.

Uma população que está crescendo na Alcance de Orlando são os filhos e as filhas americanos de pais que são imigrantes brasileiros; eles são fluentes em inglês e querem falar na igreja a mesma língua que falam na escola. “A igreja deve acompanhá-los”, diz ele.

No Reino Unido, cuja igreja começou suas atividades há pouco mais de seis meses, a Atitude já iniciou um culto em inglês, além da programação em português.

Netos e bisnetos de imigrantes constituem grande parte da população brasileira. Muitas comunidades protestantes no país hoje são fruto do trabalho de plantadores de igrejas estrangeiros, diz Lipão, como os pastores alemães que imigraram junto com os agricultores luteranos e se estabeleceram no estado de Santa Catarina, no final do século 19.

“Funcionou uma vez”, disse ele. “Por que não pode funcionar de novo?”

Franco Iacomini é jornalista e editor da CT para a América Latina.

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As igrejas podem ter que voltar a pagar um tributo que estava isento. Isso pode ser visto como perseguição?

Seis líderes e profissionais cristãos respondem à nova diretriz do governo.

Christianity Today January 27, 2024
Image: Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: WikiMedia Commons / Unsplash

Este mês, a Receita Federal do Brasil suspendeu uma regra, eliminando a isenção de um tributo para líderes religiosos, gerando polêmica na comunidade evangélica. Revertendo uma interpretação emitida em 2022, a Receita Federal do Brasil (RFB) suspendeu a norma que causou, em dois anos, um prejuízo ao país de cerca de US$ 60 milhões por ano (300 milhões de reais).

Apesar de a RFB alegar que está cumprindo determinação do Tribunal de Contas da União de suspender a norma, o tribunal já esclareceu que ainda não há decisão sobre o processo que avalia a isenção de tributos sobre os salários recebidos por religiosos, e que o assunto ainda está sob análise do tribunal.

Líderes das bancadas evangélicas do Senado e da Câmara dos Deputados reagiram mal à medida, e falam em perseguição religiosa do governo Lula. Na semana passada, emitiram uma nota de repúdio ao governo federal pela suspensão dessa isenção. Em um trecho, a nota afirma:

“São ações como essa que, cada vez mais, afastam a população cristã do governo federal. Fica muito claro os ataques que continuamente vêm sendo feitos ao segmento cristão através das instituições governamentais, atacando aqueles que não apoiam suas propostas. Trata-se de um 'ataque explícito' ao segmento religioso, parcela importante da sociedade brasileira”.

O governo Lula tem defendido a medida, dizendo que havia dúvidas sobre a legalidade da isenção.

“Não queremos prejudicar quem quer que seja”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que procurou senadores e deputados evangélicos para uma reunião para discutir essa mudança.

“Não foi uma revogação, nem uma convalidação, foi uma suspensão. Vamos entender o que a lei diz e vamos cumprir a lei”, disse ele.

A CT entrevistou seis líderes e profissionais cristãos e pediu-lhes que respondessem à seguinte pergunta: A suspensão da isenção fiscal para líderes religiosos pode ser considerada perseguição religiosa?

A CT também incluiu abaixo uma resposta de um político evangélico.

Magno Malta, senador pelo Partido Liberal e pastor (esta versão da resposta foi publicada originalmente no X.)

A isenção fiscal para igrejas é um direito previsto na Constituição, que se estende também a sindicatos e partidos políticos. Isso não é um favor do governo, mas sim um direito constitucional.

Respeito o senador Carlos Vianna, presidente da Frente Parlamentar Evangélica, mas esta questão vai além da política do dia a dia. Pastores não têm a obrigação de beijar a mão de Haddad, Lula ou Rui Costa. A nossa luta é outra. Conversei com senadores da frente, como a senadora Damares, o senador Jorge Seif e o senador Marcos Rogérii. Não foram consultados e tão pouco concordam com as reuniões mencionadas na nota da frente parlamentar.

Mas todos concordaram em um ponto: toda essa situação envolvendo lideres religiosos é mais uma ação entre muitas outras que mostram que o governo Lula não dialoga e nem tem respeito pelos cristãos. Ele está cumprindo uma promessa de campanha. “Colocar os pastores em seus devidos lugares”.

Karine Carvalho, Recife, advogada especializada em direito médico, tributário e civil

A tributação das igrejas não deve ser interpretada como perseguição. Adotar tal perspectiva implica considerar que o Estado estaria perseguindo todos os indivíduos que são tributados.

É crucial notar que a recente decisão não retirou a imunidade tributária das instituições religiosas, mas sim a isenção tributária. Em termos simples, esta isenção dispensava as igrejas de pagar certos tributos e também de prestar contas, conferindo-lhes o privilégio exclusivo de não divulgar informações sobre suas atividades financeiras, incluindo entradas, saídas e a distribuição de recursos entre os líderes eclesiásticos.

A retirada desse benefício e a equiparação das instituições religiosas aos demais contribuintes reconhecem que essas entidades também devem arcar com obrigações fiscais perante a sociedade.

Além disso, a norma suspensa, que ampliava a isenção de tributo sobre salários de líderes religiosos, foi criada de maneira irregular, com a Receita Federal ultrapassando sua competência em 2022, interferindo em uma área que deveria ser deliberada pelo Congresso. Assim, a retirada da isenção fiscal não configura perseguição, mas sim uma correção que busca atender dois princípios fundamentais em nossa Constituição, a equidade tributária e a prestação de contas.

Lembrando que a tributação de pastores não constitui transgressão moral nem desafio aos princípios religiosos. Ao contrário, pois, desde o Antigo ao Novo Testamento, os preceitos bíblicos orientam todos os cristãos a obedecerem às leis e às autoridades, o que inclui a obrigação de pagar tributos ao Estado.

Vitória Tavares advogada especializada em direito de família e do consumidor

A imunidade tributária é uma limitação ao poder de tributar do Estado, garantia prevista na Constituição Federal, que tem por objetivo proteger valores fundamentais da sociedade, entre eles, a liberdade de religião. Por isso as entidades religiosas são imunes aos impostos em geral. Já a isenção tributária é uma dispensa legal do pagamento de um tributo, concedida por lei ordinária, por motivos de ordem fiscal, social ou econômica.

A retirada da isenção fiscal para líderes religiosos poderia ser considerada perseguição religiosa se fosse motivada por preconceito ou discriminação contra determinada religião ou determinado grupo religioso.

Todavia, no caso da retirada da isenção fiscal para líderes religiosos no Brasil, realizada este mês, o governo federal reiterou que a medida era necessária para corrigir uma distorção na legislação tributária, uma vez que a isenção estava sendo utilizada de forma indevida por algumas entidades religiosas, que estavam pagando salários exorbitantes a seus líderes.

Portanto, tal medida não retira a imunidade constitucional concedida às igrejas pela Constituição Federal, mas retira tão somente a isenção ao recolhimento de tributos dos líderes religiosos, anteriormente concedida pelo governo Bolsonaro.

Leonardo Girundi, São Paulo, Coordenador da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB-SP, advogado, mestrando em Direito, especialista em Direito de Família, empresarial e religioso

Nossa Constituição Federal garante às igrejas imunidade tributária, que é uma limitação constitucional aos entes públicos em criar impostos para determinadas entidades. Isso é diferente, portanto, de isenção, que é uma dispensa, dada por lei, de pagar certo tributo. Para a garantia da liberdade religiosa, as igrejas não pagam impostos, mas os pastores pagam, como qualquer cidadão.

Recentemente surgiu uma polêmica causada por uma decisão da Receita Federal do Brasil. O tema tem relação com um tributo chamado Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS). As igrejas são isentas desta Contribuição desde a lei 10.170 de 2.000, que acrescentou nova redação à lei 8212, determinando que as igrejas são isentas de recolher a parte patronal, mantendo a obrigação de o líder religioso recolher a sua parte.

Acontece que, mesmo sendo descrita na lei esta isenção, a Receita vinha gerando inúmeros processos administrativos para cobrar esse tributo das igrejas. Em razão da grande quantidade de processos administrativos, a RFB esclareceu sua posição no Ato Declaratório Interpretativo de 2022, simples e exclusivamente para auxiliar na interpretação da lei. Mas, recentemente, fomos surpreendidos por uma nova publicação da RFB, que suspendeu esse Ato Declaratório Interpretativo de 2022 e gerou toda essa polêmica.

Assim, o Ato de 2022 não aumentou a isenção em relação a esse tributo específico (COFINS), nem sua suspensão a retirou. Mas como era um ato que interpretava a lei, o risco de suspendê-lo é que os questionamentos sobre esse tributo ainda persistirão e os litígios aumentarão. Mesmo assim, não vejo esta mudança como uma perseguição religiosa, mas sim como uma estratégia política para aproximação do Governo Federal com as igrejas ou aumento de arrecadação.

Gutierres Fernandes, São Paulo, teólogo e escritor

É absurdo tratar o fim de um privilégio tributário como perseguição religiosa. Aos poucos, estamos buscando os mesmos privilégios que a Igreja Católica desfrutava no Brasil antigo.

Infelizmente, embora o protestantismo tenha inventado o conceito de Estado laico, os evangélicos, em média, pensam que a igualdade religiosa é ruim.

Esse pensamento contrasta com a essência do laicismo, que busca a imparcialidade do Estado em questões religiosas, garantindo assim a liberdade e a igualdade de crença para todos. Chamar revisão tributária de perseguição é um tapa na cara de quem, na história, sofreu perseguição de verdade.

Iza Vicente, vereadora de Macaé, cidade com mais de 250 mil habitantes, no estado do Rio de Janeiro

Eu, como cristã evangélica, acredito que não se trata de perseguição religiosa, pois a nossa Constituição Federal continua garantindo a imunidade tributária para templos de qualquer culto, algo que existe justamente para fortalecer a separação entre Igreja e Estado, e para proteger a liberdade de crença ou religião.

Já isentar pessoas físicas de pagar tributos por atuarem em atividade religiosa seria individualizar uma prerrogativa que é da instituição religiosa, não de seu líder. Até 2022 não existia essa isenção, esse tributo era pago e isso nunca foi considerado perseguição religiosa. Na verdade, a isenção nesse caso é privilegiar uma categoria em detrimento de milhares de brasileiros que, anualmente, cumprem suas obrigações fiscais, inclusive muitos deles são cristãos. Essa situação toda me faz pensar sobre o que Jesus disse, quando questionado sobre a licitude de pagar tributos ao Império Romano: “dai a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22.21).

Também, a forma que a isenção foi concedida contém questões formais equivocadas (como, por exemplo, o fato de a norma ter sido editada pela RFB e não por lei, como alguns acreditavam que deveria ser), além de ter sido concedida em um contexto de ano eleitoral, o que chama atenção sobre a legalidade e legitimidade do ato, pois o fato de ter acontecido dois meses antes da eleição presidencial sugere que pode ter sido uma medida de Bolsonaro para agradar aos pastores.

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A Páscoa não é um mero símbolo

O sepulcro vazio é a prova de que o amor de Deus triunfa sobre a morte. Essa verdade perdura, e não depende de nós.

Christianity Today January 25, 2024
Illustration by Rick Szuecs / Source image: Woodcut after a drawing by Julius Schnorr von Carolsfeld / ZU 09 / Getty

Nota da edição da CT em português: este artigo foi produzido originalmente em inglês, no período da pandemia da COVID-19. Acreditamos, porém, que ele traz ensinamentos válidos para a realidade atual.

Seguir o calendário litúrgico é como participar de um teatro imersivo. Por meio de jejuns, banquetes, ritos e rituais, entramos na história de Jesus. No Advento, nos dedicamos a ansiar e a esperar juntos pela vinda do Rei. No Natal, colocamos bebês em manjedouras improvisadas e vivenciamos a Encarnação. Durante a Quaresma, colocamos cinzas na testa e nos lembramos do pecado e da morte. Tudo isso leva ao grande momento: o domingo de Páscoa.

Para os cristãos, é como um campeonato mundial de futebol, o crescendo de uma sinfonia, o clímax de uma peça. É aquilo pelo qual esperamos o ano todo, sentados na pontinha da cadeira. Mas este ano, por causa da pandemia: nada. O jogo foi cancelado. As trompas [da orquestra] foram embora bem no meio do concerto. O teatro pegou fogo no terceiro ato.

Como sacerdotisa, isso me parece incrivelmente insatisfatório. Claro, transmitiremos os cultos ao vivo. A Palavra será proclamada. Mas não é a mesma coisa. Algo claramente se perde.

No entanto, permanece o fato sólido, concreto de que não foram os cristãos que criaram a Páscoa, por meio das músicas de adoração e do calendário litúrgico. Jesus ressuscitou dos mortos e, mesmo que isso nunca fosse reconhecido em massa, continuaria sendo o ponto fixo em torno do qual o próprio tempo gira. A verdade da Ressurreição é indômita e livre. Ela nos possui, muito mais do que jamais poderíamos possuí-la, e vive alegremente, sem precisar de nós, nunca se curvando às nossas opiniões sobre ela. Se as alegações do cristianismo são verdadeiras, elas são verdadeiras independentemente de mim. Em um dia qualquer, a minha crença fervorosa ou o meu profundo ceticismo não vai alterar em nada essa realidade.

Tanto crentes quanto céticos geralmente abordam a história cristã como se o principal valor dela fosse pessoal, subjetivo e autoexpressivo. Chegamos à fé principalmente pela forma como ela nos conforta, nos ajuda a lidar com uma situação ou nos dá um senso de pertencimento. Ainda que de forma sutil, reduzimos a Ressurreição a um símbolo ou a uma metáfora. A Páscoa é apenas uma tradição inspiradora, uma celebração de renascimento e vida nova, que nos chama para uma melhor versão de nós mesmos e ajuda a dar sentido à nossa vida.

Mas as realidades que enfrentamos na pandemia global — com hospitais e necrotérios sobrecarregados, a economia global em colapso e a terrível fragilidade de nossas vidas — devem acabar com qualquer sentimentalismo em relação à Ressurreição. Tomando emprestadas as palavras de Flannery O'Connor, “Se for [apenas] um símbolo, que vá para o inferno”.

Os riscos não poderiam ser maiores. À medida que um vírus mortal se espalha pelo mundo, trazendo caos, destruição e morte, fica dolorosamente claro que a Ressurreição é toda a esperança que o mundo tem — é o próprio centro da realidade — ou o cristianismo não valeria o nosso tempo.

“Não zombemos de Deus com metáforas, analogias, desvios, transcendência; ou fazendo do evento uma parábola, um sinal pintado na credulidade desbotada de eras anteriores”, escreve John Updike, em seu poema “Seven Stanzas at Easter” [Sete estrofes sobre a Páscoa]. Se a “dissolução das células de Jesus não se reverter, e as moléculas [não] se agruparem novamente, e os aminoácidos [não] se reavivarem, a Igreja cairá".

Sou cristã hoje não porque isso responda a todas as minhas perguntas sobre o mundo ou sobre nosso sofrimento atual. Isso não acontece. Também não sou cristã por achar que [o cristianismo] seja uma ordem moral boa e coerente, na qual me baseio para viver minha vida. Também não é por eu ter crescido dessa forma ou por ter um certo carinho por flanelógrafos e hinários. E não é porque ele motiva a justiça ou porque me ajuda a saber como votar. Sou cristã porque acredito na Ressurreição. Se ela não for verdade, que vá tudo para o inferno.

Em contrapartida, se Jesus de fato voltou dos mortos em uma calma manhã de domingo, há cerca de 2.000 anos, então, tudo mudou — nossas crenças, nossa ética, nossa política, nosso tempo, nossos relacionamentos. Se é verdade, então, a ressurreição de Jesus é o fato mais determinante do universo, é o ponto central da história. A Ressurreição é, em última análise, mais verdadeira e mais duradoura do que a morte ou a destruição, do que a violência ou os vírus. É mais verdadeira também do que a nossa celebração dela, por mais bela que seja, por mais minguada que seja.

Naquela manhã da história, quando Jesus ressuscitou, não havia expectativa de uma ressurreição. Não houve fanfarras. Nenhuma igreja se reuniu com cânticos de triunfo, nenhum sino foi tocado, nada. Umas poucas mulheres saíram para cuidar do corpo morto de Jesus. Seus discípulos, uns “zés-ninguéns”, estavam abatidos, perdidos na tristeza e com medo. O restante de Jerusalém e do mundo em geral haviam seguido em frente. O sol nasceu. As pessoas foram cuidar de seus afazeres, colher grãos e buscar água no poço. Começaram a tomar o café da manhã.

Todo o cosmos fora alterado, e isso foi quase totalmente ignorado.

Este domingo de Páscoa na pandemia também será tranquilo. Quase 80% dos americanos estão sendo obrigados a ficar em casa, e continuarão assim, durante a maior parte dos 50 dias que vão da Páscoa até o dia da ascensão de Jesus. Mas, no final, o que fez a manhã de Páscoa ser importante nunca foram os santuários lotados, nunca foram os hinos ou as celebrações, os rituais ou os ritos. Assim como a quietude daquela primeira Páscoa não determinou se a pedra do sepulcro rolaria ou não, as portas trancadas de nossas igrejas locais [durante a pandemia] também não determinam isso.

O fato mais verdadeiro do universo nesta Páscoa não é o número de mortos, os santuários vazios ou os hospitais superlotados. O fato mais verdadeiro do universo é o sepulcro vazio. A Ressurreição é a única prova de que o amor triunfa sobre a morte, de que a fraqueza prevalece sobre a força e de que a beleza supera as cinzas. Se Jesus ressuscitou na história real, com toda a palpabilidade da carne, dos dedos, dos ossos e do sangue, há esperança de que nosso luto será consolado e de que a morte não terá a palavra final.

Tish Harrison Warren é sacerdotisa da Igreja Anglicana na América do Norte, membro do The Pelican Project e escritora residente na Church of the Ascension, em Pittsburgh, Pensilvânia. É autora de Liturgy of the Ordinary e colaboradora no próximo livro Uncommon Ground: Living Faithfully in a World of Difference.

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Culture

A guerra cultural não é uma guerra espiritual

Nossos oponentes ideológicos não são o inimigo.

Christianity Today January 25, 2024
Illustration by Abigail Erickson / Source Images: Getty

Certa vez, uma pessoa que cresceu em uma tradição religiosa mais liberal do que a minha me disse que os sermões em sua igreja eram sempre entediantes, especialmente no domingo de Páscoa. “Esse era o dia em que o pastor tinha que tratar da Ressurreição”, uma doutrina em relação a qual ele era, na melhor das hipóteses, melindroso e, na pior, cético. “Tínhamos de esperar para ver em qual metáfora a Ressurreição iria se transformar — em um ano, a metáfora foi o recomeço de vida, em outro, a importância da reciclagem, ou qualquer outra coisa desse tipo.” Uma explicação secularizada da Ressurreição de fato não tem a força daquilo que ela realmente é (e esse é o menor de seus problemas).

Nós, cristãos evangélicos, provavelmente não secularizaremos nossas crenças sobre a Ressurreição, mas estamos bem encaminhados no sentido de secularizar outra coisa: a guerra espiritual.

Alguns, que são de fora da igreja, têm uma visão incorreta da guerra espiritual, como se fosse uma inovação recente que remonta a C. Peter Wagner e às aulas de crescimento de igreja do Seminário Fuller, na década de 1970 (vinculando-a, portanto, à Nova Reforma Apostólica) ou à obra This Present Darkness [Este mundo tenebroso, na versão em português], de Frank Peretti, bem como a outros romances da década de 1980.

Mas o conceito de guerra espiritual foi firmemente estabelecido em todas as épocas e alas da igreja cristã, desde antes de Santo Antônio lutar com demônios no deserto, até chegar ao próprio Novo Testamento.

Hoje em dia, o que não falta é cristão falando de guerra espiritual. Mas ouça com atenção e você perceberá algo: raramente essa linguagem de guerra é direcionada a espíritos malignos. Em vez disso, ela geralmente é empregada para descrever a oposição ideológica contra outros seres humanos. “Isso é guerra espiritual!”, ouvimos, como introdução a um chamado às armas em relação a algum posicionamento político ou social. Mas essa maneira de conceber a guerra espiritual revela um desencanto significativo com o mundo da Bíblia.

Além disso, nossa fusão de guerra espiritual com guerra cultural comunica justamente o oposto da mensagem da Bíblia, tanto em termos de quem são nossos inimigos quanto de como travar a batalha. O apóstolo Paulo nos disse que “a nossa luta não é contra sangue e carne, mas contra os poderes e as autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas e contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (Efésios 6.12, ESV).

De acordo com os apóstolos — e com o próprio Jesus —, existem de fato seres espirituais malignos no universo, geralmente imperceptíveis para nós. Esses seres querem nos prejudicar. Eles não são nossos pares, ou seja, não são seres humanos portadores da imagem de Deus. Até mesmo o ser humano mais hostil ao evangelho, à igreja ou à ordem moral pode um dia ser nosso irmão ou irmã em Cristo (2Coríntios 5.11—6.2). Saber disso nos liberta para nos enfurecermos contra o velho réptil do Éden, mas nos constrange a sermos gentis com sua presa (2Timóteo 2.23-26).

A maneira de travarmos uma batalha espiritual contra o Diabo é perceber como ele opera: por meio do engano (Gênesis 3.1-5) e da acusação (Apocalipse 12.10). Não combatemos essa guerra com o som e a fúria de um conflito tribal, mas com as mesmas armas que nossos antepassados usaram: “pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do testemunho que deram” (Apocalipse 12.11). É o evangelho que desfaz a obra das forças do mal.

Não devemos ver a guerra espiritual da mesma forma que vemos a pseudoguerra de nossa era fragmentada. E não devemos disparar salvas de tiros “lá fora” contra nossos inimigos; em vez disso, devemos nos concentrar aqui. Pois só é possível enfrentar o Diabo, escreveu Paulo, vestindo “toda a armadura de Deus”. E ele definiu essa armadura não como argumentos destinados a humilhar, isolar ou exilar os oponentes, mas como um cultivo de si mesmo pelo Espírito de Deus, por meio do evangelho, da Bíblia, da oração e da igreja (Efésios 6.10-20).

Talvez os nossos próximos do mundo secular achem estranho e medieval o fato de realmente acreditarmos nas velhas histórias de um “mundo cheio de demônios”. Mas acreditamos em coisas muito mais estranhas do que essa. Acreditamos nas palavras que Martinho Lutero nos ensinou a cantar:

O príncipe das trevas é sombrio,

por ele não trememos;

Sua fúria podemos suportar,

pois eis que seu destino é certo;

uma pequena palavra o derrubará.

Que o Diabo vá para o inferno. Vamos nos lembrar da boa nova de que o pé [que esmagará] a cabeça da velha serpente tem marcas de pregos. Isso é guerra espiritual de verdade. Essa é uma batalha que vale a pena lutar — uma batalha que, na verdade, já foi vencida.

Russell Moore é editor-chefe da Christianity Today.

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