No Censo de 2010, o número de evangélicos no Brasil chegou perto de um quarto, ou seja, a 22,2% do total da população. Muitos esperam que o número do novo levantamento demográfico seja ainda maior. Pelas estimativas mais otimistas, até 2040, o número de evangélicos superará o de católicos no país (que, segundo dados de 2010, representavam 64,4% da população.)
O fenômeno do crescimento evangélico traz à tona um tema que precisa ser discutido, sobretudo, pelos próprios cristãos: quais impactos concretos o testemunho deste contingente maior deveria ter no país? E, talvez, a pergunta mais importante: Como essa crescente influência dos evangélicos mudará a vida dos que mais sofrem?
À medida que os evangélicos crescem, o impacto de seu testemunho cristão no país também deveria ser maior. Mas qual tem sido o foco do nosso testemunho: aumentar nossa participação nas esferas de poder ou anunciar o Reino e cuidar dos que sofrem?
A fome no Brasil e na Bíblia
Em julho de 2022, a imprensa noticiou com destaque a informação de que o país havia voltado para o Mapa da Fome, de acordo com a FAO, oito anos após ter saído. Pelo menos 61 milhões de brasileiros enfrentam algum tipo de insegurança alimentar. A fome crônica atinge 4,1% da população. Os dados são alarmantes, principalmente porque o Brasil é um grande produtor agrícola mundial.
A fome é um problema global, presente na história da humanidade desde sempre. A narrativa bíblica, apesar de reconhecer a impossibilidade de zerar todo o sofrimento na presente era, evidencia um ponto indiscutível: Deus sempre está presente em meio ao sofrimento com a sua provisão.
Em Gênesis 46, por exemplo, em um cenário de fome, fica evidente a ação de Deus na ida de Jacó e seus parentes para o Egito, então governado por José, que, de forma estratégica, tinha feito do país um grande celeiro para o mundo da época.
Também devemos entender a parábola do Filho Pródigo (Lucas 15.11-32) sob a ótica da presença de Deus em meio ao sofrimento. Quando Jesus cita a extrema fome que se abate sobre a região onde o filho encontra-se, depois de gastar toda a sua parte da herança, podemos perceber o olhar de misericórdia do Pai por aquele jovem que começa a sofrer os efeitos da fome, tanto físicos (a escassez de alimentos) quanto espirituais (o distanciamento de seu Pai).
Em Deuteronômio 15, capítulo em que o povo de Deus é instruído sobre a prática do ano da remissão, vemos a preocupação e o cuidado de Deus em manter todo seu povo com um padrão de vida digno, no qual ninguém sofresse por falta de suprimento para necessidades essenciais. No versículo 11, há uma ordenança bastante clara a esse respeito: “Portanto, eu lhe ordeno que abra o coração para o seu irmão israelita, tanto para o pobre como para o necessitado de sua terra”.
Fome, crises econômicas, sociais e energéticas são frutos da Queda. Mas não significam que Deus tenha perdido o controle da história ou que tenha abandonado a humanidade ao próprio sofrimento. Ora, se Deus não nos abandona na dor, então, qual deve ser o papel do cristão em face do sofrimento?
A crescente influência dos evangélicos (em decorrência de seu crescimento numérico) levou grande parte da igreja a ser seduzida por sonhos de poder e de domínio e, com isso, a esquecer-se do foco principal de seu testemunho: o amor. No entanto, a Igreja no Brasil não deve alimentar uma visão triunfalista de crescimento e domínio.
Os cristãos não foram chamados, resgatados, tratados e separados pelo Senhor para que implantassem um sistema de poder. O apóstolo Paulo deixa bem claro, em Filipenses 3.20, que “a nossa cidadania está no céu”. Nossa função é anunciar o Reino pregando a Palavra, mas também trabalhando para que essa realidade afligida pelo pecado conheça a beleza e a grandeza do Senhor.
A fome é um dos exemplos do efeito devastador do pecado. Enquanto não chegar o tempo perfeito, em que viveremos no Reino de Deus, estaremos em luta contra o pecado e o sofrimento. Assim, além de exercer nosso papel como cidadãos, precisamos entender qual é o nosso papel como servos de Deus. Para isso, precisamos entender o que Deus tem feito no mundo, por meio de seus servos, para trabalhar em sintonia com o propósito perfeito dele. Bons exemplos de testemunho cristão certamente existem.
O testemunho cristão em meio aos que sofrem
Há 10 anos, Georg Emmerich, pastor metodista de Natal (RN), iniciou o “Igreja nas Ruas”, que nasceu de um diagnóstico: a igreja estava limitada às quatro paredes, mas havia sido resgatada para fazer a diferença lá fora.
Com o aumento de pessoas em situação de rua, Emmerich e outros irmãos decidiram começar um projeto que visava levar refeições diárias e um serviço de banho móvel para aquela população. Desde então, já foram 40 mil refeições servidas e mais de 10.400 banhos.
Em meados de 2020, ele e outros voluntários instalaram pias em diferentes pontos da Grande Natal, para que pessoas em situação de rua pudessem lavar as mãos e ter mais segurança na luta contra a COVID-19. Além dessas ações, foram realizados discipulados, internações de dependentes químicos e evangelizações.
Sinvaldo Queiroz, pastor na Igreja Batista da Cidade, em Vitória da Conquista (BA), foi idealizador da organização Casa da Vida, fundada por essa igreja para dar acolhida a acompanhantes de enfermos internados no hospital da cidade. Dessa experiência, nasceu o engajamento em outras ações, como a ajuda aos baianos afetados pelas fortes chuvas no final de 2021 e início de 2022. Em parceria com a Aliança Evangélica Brasileira, receberam voluntários de igrejas de todo o Brasil, que trabalharam na distribuição de alimentos e água, buscando manifestar compaixão e solidariedade. Queiroz acredita que o poder do belo testemunho de comunidades de fé centradas no Evangelho e entendedoras da integralidade da missão faz toda diferença, embora nem sempre seja mensurado.
Mas nem só de igrejas vive o testemunho cristão compassivo. No ano passado, a Junta de Missões Nacionais, ligada à Convenção Batista Brasileira, distribuiu mais de 600 itens (entre cestas básicas, litros de água mineral e leite) para famílias de baixa renda afetadas por três desastres naturais.
Outro exemplo é a Visão Mundial, que, em 2022, atuou em parceria direta com mais de 500 igrejas e mais de 1200 lideranças religiosas para melhor servir os mais necessitados. Thiago Crucciti, diretor nacional da Visão Mundial Brasil, destaca: “É necessário reforçar em nossas igrejas a mensagem de Cristo de cuidar dos necessitados. Nós, cristãos, devemos sair das igrejas e servir onde estão os vulneráveis”.
O projeto da Cristolândia, outro grande exemplo, surgiu em 2009, também desenvolvido pela Junta de Missões Nacionais (JMN), ligada à Convenção Batista Brasileira, para ajudar dependentes químicos. O projeto possui mais de 40 unidades em 9 estados, além do Distrito Federal.
Assim como a fome, a droga é outro exemplo da devastação do pecado. Iniciativas como a Cristolândia, de apoio e evangelização, deveriam ser replicadas por igrejas de todos os cantos do país. O que deve unir cristãos é justamente Cristo e o anúncio do seu evangelho e de sua presença em meio ao sofrimento. Afinal, ele é o Deus conosco, o Emanuel.
Mais evangélicos, mais amor, mais impacto
Fome, dependência química, violência, entre outras coisas, são todos sintomas do pecado, de uma sociedade adoecida e afastada de Deus. Embora todos esses males não sejam exclusivos do Brasil, com uma parcela tão grande de evangélicos, deveríamos exercer um papel mais ativo, orando, cobrando políticas públicas, fiscalizando o uso correto dos recursos públicos, mas também implementando projetos, a partir de nossas comunidades locais e organizações, que anunciem o Reino e aliviem o sofrimento.
Um bom começo é adquirirmos consciência de que devemos enxergar todas as áreas da nossa vida, e não somente nossa vida espiritual, a partir de uma cosmovisão cristã, e entendermos que não podemos ignorar os impactos do pecado que nos cercam. Nesse sentido, Gerson Pacheco, que dirigiu a Child Fund Brasil por 15 anos, ensina uma importante lição: a proclamação do Evangelho e a transformação social precisam andar juntas, mas são duas intervenções distintas.
Segundo ele, os evangélicos cumprem a ordenança de proclamar o Evangelho, mas não prestam tanta atenção a questões como a fome e a pobreza. Gerson alega que a igreja evangélica brasileira, em geral, não tem conhecimento e não trabalha com os dados da pobreza no Brasil. Por não usar esses dados, não adotar uma metodologia e não fazer um planejamento, grande parte de seus projetos limitam-se a mero assistencialismo. Por isso, não geram transformação nem impacto social.
Transformação social envolve não só o assistencialismo, mas também o cuidado e a sustentabilidade, o que exige conhecimento, tempo e dedicação. Não basta plantar, também é preciso regar, podar, adubar, se quisermos colher frutos e ter sustentabilidade em nossas iniciativas e eficácia em nosso testemunho.
O Brasil evangélico tem muito a aprender em termos de testemunho. E podemos começar atendendo às necessidades básicas das pessoas à nossa volta: “Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram” (Mateus 25.35-36).
Lucas Meloni é jornalista na Rádio Trans Mundial (RTM) brasileira, coordenador de Comunicação da Primeira Igreja Batista de São Caetano do Sul. É estudante de Teologia na Faculdade Teológica Batista de São Paulo (FTBSP) e autor do livro “Escritos de um Suburbano”.
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