Devemos manter a transmissão ao vivo do culto presencial?

Os crentes que optam pelo culto online percebem o que estão perdendo?

Christianity Today April 19, 2023
Source Images: Ismael Paramo / Nathan Mullet / Unsplash

Quando as igrejas estavam fechadas, durante a fase inicial da pandemia, muitos pastores recorreram à transmissão online ao vivo como um substituto temporário para os cultos presenciais. As igrejas começaram a realizar reuniões virtuais nas casas dos fiéis. Parecia uma boa ideia na época. Certamente era melhor do que nada.

Mas aqui está o problema: o que a maioria de nós presumia que seriam algumas semanas, acabou se transformando em meses, e depois passou para muito além de um ano. O que começou como uma alternativa provisória tornou-se um hábito confortável.

A transmissão ao vivo certamente tem seus benefícios: é conveniente, de longo alcance e acessível. Assim, mesmo depois que a reunião presencial tornou-se viável novamente, muitos pastores mantiveram a opção do culto online. Mas a igreja transmitida ao vivo tem uma deficiência que supera em muito seus benefícios: é uma pseudo-comunhão. Tem a aparência de relacionamento sem ter a profundidade genuína que vem da proximidade. E encoraja a noção de que a proximidade não é algo essencial.

Eu de fato acredito que a transmissão ao vivo tem valor em alguns contextos, como ministrar a congregantes que não podem sair de casa ou àqueles que podem ser imunocomprometidos. Hoje, porém, há muitos cristãos que não têm essas preocupações, mas se acostumaram tanto com a transmissão ao vivo do culto que a veem como uma alternativa viável a uma ida semanal até o santuário.

À medida que meus colegas de ministério e eu discutíamos diferentes pontos de vista sobre a transmissão ao vivo dos cultos de domingo, reduzimos nosso foco a uma única pergunta: por que a igreja local precisa se reunir presencialmente? Acredito que Lucas fornece uma resposta quádrupla em sua descrição da igreja do primeiro século: “Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações” (Atos 2.42). Essas quatro práticas sofrem, quando a transmissão ao vivo substitui permanentemente a comunhão próxima dos santos. Será que os crentes que optam pelo culto online percebem o que estão perdendo?

O ensino dos apóstolos

Tratar o estudo da Palavra de Deus como um exercício acadêmico — como se fosse assistir a uma palestra online ou a um TED Talk — é um desserviço à revelação divina. Os crentes são participantes da proclamação das Escrituras, durante um culto de domingo. Este ato é comunitário; não ocorre em isolamento. E embora apenas uma pessoa esteja falando, os sermões devem ser conversas; em termos ideais, eles provocam diálogo e reflexão dentro do corpo de Cristo. Receber o “ensino dos apóstolos” não se resume apenas a assistir a um bom orador online; significa abrir nosso coração para a autorrevelação de Deus. Assistir a sermões online em isolamento deve ser apenas uma solução temporária. Precisamos encorajar diretamente os membros de nossa igreja a não negligenciar o contexto de corpo no qual a Palavra de Deus floresce. Como povo de Deus, somos discípulos em comunidade, que ouvem e apreciam juntos o que Deus disse.

Comunhão

O intelectual Marshall McLuhan cunhou o ditado “O meio é a mensagem”. A internet redefiniu os relacionamentos; nós nos acostumamos a chamar estranhos de “amigos” e a negligenciar o valor sem igual da comunidade próxima. Para a igreja primitiva, o significado de comunhão era claro: a reunião de uma comunidade encorajadora, na qual alguém poderia ser verdadeiramente conhecido (Hebreus 10.25). Todas as semanas, na igreja, dou as boas-vindas a cada congregante. Conversamos um com o outro, observo suas expressões faciais e sua linguagem corporal. Essas mensagens não verbais são praticamente invisíveis em um ambiente online. Mas quando os cristãos se reúnem presencialmente, vemos aquilo que não é dito em palavras. Fica mais difícil esconder a mágoa ou reprimir a alegria. A proximidade presencial permite que outros crentes vejam você e participem de seus momentos de dor ou de alegria (Romanos 12.15). Essa necessidade é mais bem atendida em uma comunidade em que tenhamos proximidade.

O partir do pão

A passagem do tempo não foi gentil com “o partir do pão”. Ceias do Senhor eficientes padronizaram o uso de bolachas [salgadas] e copinhos de plástico com suco de uva. No primeiro século, entretanto, a ceia ocorria como parte de uma refeição. Comer juntos era algo apreciado e íntimo. Embora nossas igrejas certamente valorizem os símbolos do corpo partido e do sangue derramado de Cristo, a importância de nossa participação nessa lembrança costuma ficar obscurecida. Quando os membros da igreja reduzem a Ceia do Senhor a uma mera formalidade, não é surpresa para ninguém que as reuniões presenciais percam para as transmissões simultâneas online. Mas reconhecer a Ceia como um ato de graça que reiteradamente encarna o ataque ao corpo de Cristo, que ele suportou por nós, ajuda nossos fiéis a entenderem o significado de se reunir para que a recebam juntos. Estamos nos reunindo não para seguir uma formalidade legalista; estamos nos reunindo para exemplificar o sacrifício de Jesus.

Orações

No dia da minha conversão, perguntaram-me: “Você aceita Jesus como seu Senhor e Salvador pessoal ?” Eu aprecio esse sentimento, mas individualizar a salvação dessa maneira pode diminuir nosso senso de identidade comunitária. As Escrituras repetidamente enfatizam a oração em comunidade, como os apelos e o arrependimento coletivos (2Crônicas 7.14). A igreja primitiva reconheceu a necessidade da participação conjunta nesse ato sagrado. Quando os crentes se reúnem, a oração nos capacita de uma maneira única. Por meio da oração comunitária, a igreja local pode buscar a direção de Deus, render-se à sua soberania e apoiar-se conjuntamente no poder do Espírito Santo. Certamente, há um importante componente pessoal na oração, o qual, porém, nunca deve acontecer às custas da reunião dominical que une os crentes que oram.

A sensação de que estamos perdendo alguma coisa

Não estou sugerindo que as igrejas devam abandonar por completo os cultos online; mas os pastores devem pensar estrategicamente sobre como oferecer esse ministério, porém, sem promovê-lo como um substituto para a frequência à igreja. Uma estratégia que usamos é postar o vídeo do culto durante a semana, em vez de transmiti-lo ao vivo. Outra abordagem é passar o culto da semana anterior durante o horário de domingo; quem assiste continua tendo a opção de assistir ao culto dominical, mas também percebe que está perdendo a oportunidade de participar da assembleia. Sentir que que estamos perdendo algo pode alimentar um ciúme virtuoso.

Embora a transmissão ao vivo tenha sido uma dádiva de Deus no início da pandemia, essa medida paliativa não pode substituir totalmente a igreja local reunida. Como pastores, sabemos disso, mas muitos na igreja precisam nos ouvir dizê-lo. Estaremos ministrando aos que nos assistem online se os encorajarmos a comparecerem presencialmente.

Reunimo-nos para o ensino dos apóstolos, o partir do pão, a comunhão e a oração; essas são as características bíblicas da adoração comunitária. Em vez de encorajar os crentes a “irem à igreja” por meio de telas, que possamos convidá-los direta e repetidamente para reuniões onde eles possam encarnar a igreja.

Brandon Washington é pastor de pregação e visão na The Embassy Church, em Denver. Ele é o autor de A Burning House (Zondervan, 2023).

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Jesus Cristo não é um superstar

Representações populares do Deus-Homem podem atrair multidões de admiradores, mas não podem criar discípulos imitadores.

Foto de uma produção do espetáculo Jesus Cristo Superstar.

Foto de uma produção do espetáculo Jesus Cristo Superstar.

Christianity Today April 18, 2023
Edits by Christianity Today / Source Image: WikiMedia Commons

Nas últimas semanas, as pessoas voltaram a falar sobre o espetáculo Jesus Cristo Superstar.

Não somente um episódio recente de Ted Lasso apresentou uma das canções do musical dos anos 1970, como também o filme original está sendo exibido na BBC — e gerando inúmeras reações, inclusive muitas de espectadores de primeira viagem. O musical também está comemorando seu aniversário de 50 anos com uma turnê por Reino Unido e Estados Unidos.

Ocorrendo durante a Semana Santa e terminando pouco antes da ressurreição, na Páscoa, a produção “lança uma luz cética e, às vezes, extravagantemente irreverente sobre a história de Jesus”. Reflete o fascínio da sociedade com o Movimento de Jesus, nos anos 70, assim como Jesus Revolution e The Chosen revelam um crescente ressurgimento do interesse na pessoa de Jesus.

Como crentes, é gratificante ver Cristo ser trazido à tona na consciência do público. E, como explica o autor Luke Burgis, essas representações populares de Jesus podem nos fazer desejar conformar nossos desejos aos dele. Mas rememorar qualquer versão de Jesus que atraia um público de massa, seja na igreja seja na cultura, também traz consigo o risco de fazermos justamente o oposto, e moldarmos um Cristo segundo os nossos próprios desejos.

Ou seja, corremos o risco de apresentar Cristo como um tipo qualquer de superstar ou super-herói que esteja em alta em um dado período — uma tentação enfrentada até mesmo pelos primeiros seguidores de Jesus, no primeiro século.

O roteiro de Jesus Cristo Superstar é contado do ponto de vista de Judas, “que tem Jesus em alta conta como figura política revolucionária, mas fica perturbado com a ideia da divindade de Jesus”. No musical, o personagem de Judas canta a famosa letra: “Jesus Cristo, Superstar, você pensa que é o que dizem que você é?” — em uma referência à passagem das Escrituras em que Jesus pergunta a seus discípulos: “Quem os homens dizem que o Filho do Homem é?” (Mateus 16.13).

Judas e os zelotes esperavam que Jesus fosse um messias terreno, que libertaria o povo judeu do domínio romano. Havia outros, porém, que pensavam que Jesus era João Batista, Elias, Jeremias ou um dos reverenciados profetas reencarnados (Mateus 16.14).

Depois de ver Jesus alimentar os 5 mil, a multidão achava que ele era o grande líder mosaico predito no Antigo Testamento: “Sem dúvida este é o Profeta que devia vir ao mundo” (João 6.14). Alguns ficaram tão apaixonados pela façanha sobrenatural de Jesus que pretendiam “proclamá-lo rei à força” (v. 15), mas ele escapou de suas garras.

Quando alguns integrantes dessa mesma multidão encontram Jesus mais tarde, naquele dia, Jesus os repreende por que o procuravam apenas pelo que ele poderia fazer por eles — e, ainda assim, eles pedem que ele realize mais sinais (v. 26, 30-31).

Ele responde com um sermão: “Eu sou o pão da vida” e “Se vocês não comerem a carne do Filho do homem e não beberem o seu sangue, não terão vida em si mesmos” (v. 35,53). Esta “dura […] palavra” ofendeu sua audiência e gerou muita reclamação, mesmo entre seus seguidores mais próximos: pois, “Daquela hora em diante, muitos dos seus discípulos voltaram atrás e deixaram de segui-lo” (v. 66).

Quando Jesus perguntou aos discípulos se eles também queriam ir embora, Pedro disse: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras de vida eterna.”

Aqui vemos uma divergência entre os seguidores de Cristo. Muitos ficaram ofendidos com suas palavras, e alguns foram embora, enquanto outros permaneceram. Jesus sabia que muitos na multidão não criam e que alguns até o trairiam — seus discípulos mais devotos, porém, o apoiaram.

Resta claro que Jesus parecia mais interessado em discipular uns poucos fiéis do que em reunir grandes multidões. E, conquanto ele nunca tenha rejeitado aqueles que eram atraídos a ele, Jesus também não se esquivava de testar sua lealdade.

Seu sermão claramente parecia separar o joio do trigo, mas o que separava esses dois grupos? A resposta está na passagem mencionada no início deste artigo.

Depois de ouvir como os outros o viam, Jesus pergunta a seus discípulos: “Quem vocês dizem que eu sou?” (Mateus 16.15). Quando Pedro responde: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, Jesus diz a ele que somente Deus Pai poderia ter revelado essa verdade a ele. E, então, declara que essa afirmação é o alicerce eterno e inabalável de sua igreja. Aqueles que se apegam a quem Jesus diz que ele é — e não ao que a multidão diz — pertencem a ele, e aqueles que não o fazem cairão.

Nos anos 1800, o filósofo cristão Søren Kierkegaard falou sobre a diferença entre os admiradores e os imitadores de Jesus: “Um imitador é ou se esforça para ser aquilo que ele admira, e um admirador mantém-se pessoalmente distante, e de forma consciente ou inconsciente não descobre que aquilo que é admirado lhe faz uma reinvidicação.”

Ele aponta que Judas era um admirador desse tipo, e é por isso que, mais tarde, ele se tornou um traidor — pois “o admirador é apenas alguém seduzido pela grandeza, de maneira covarde ou egoística; se houver qualquer inconveniência ou perigo, ele recua”.

O problema de Kierkegaard com a cristandade estava no fato de que esta gerava admiradores, mas falhava em criar imitadores de Jesus. Imitar Cristo fielmente ainda é uma luta nos dias de hoje, especialmente em contextos culturais cristãos — porque, como diz Kierkegaard, “quando tudo está a favor do cristianismo, fica muito fácil confundir um admirador com um seguidor”.

Assim como aqueles que queriam coroar Jesus como um rei profético, no primeiro século, ainda somos tentados a forçar Jesus a se encaixar em nossos moldes culturais, políticos ou religiosos. Alguns veneram um Cristo conquistador, como um John Wayne de arma em punho, enquanto outros honram um Jesus gentil, como um bondoso e inofensivo Mister Rogers.

E quer seja o musical Jesus Cristo Superstar, quer seja a campanha publicitária do Super Bowl “He Gets Us”, os esforços para tornar Jesus mais acessível à nossa geração têm seu valor, com certeza. Mas correm o risco de lançar Cristo como uma caricatura barata que pode atrair uma multidão de admiradores, mas não consegue gerar discípulos imitadores.

A. W. Tozer descreve um Jesus que é “maravilhosamente adaptável a qualquer sociedade em que se encontre”. Tal figura é “apadrinhada por celebridades temporárias e recomendada por psiquiatras”. Ele pode ser “usado como meio para quase qualquer fim carnal, mas nunca é reconhecido como Senhor”.

O problema desse Jesus da moda está em seus seguidores, não em sua fama.

Jesus ficou famoso desde o momento em que nasceu. Quando um grupo de respeitáveis sábios contou a Herodes sobre a existência de Jesus, Herodes o considerou um rival e inimigo do Estado. E ficou com tanto medo que cometeu genocídio para tentar erradicá-lo.

Mas o que acho fascinante é que os Magos seguiram literalmente uma superestrela para encontrar Jesus. Esses viajantes cultos esperavam encontrar o próximo rei da Judeia já na fila para o trono, mas se depararam com um bebê, quem sabe talvez ainda deitado em um cocho para gado, nascido em uma família sem importância.

Naquele momento, eles poderiam ter dado meia volta, por acharem que cometeram um grave erro de cálculo astrológico. Mas, em vez disso, eles se ajoelharam para adorar esse rei inesperado de glória não convencional — honrando-o com seus presentes e voltando para casa a fim de compartilhar as Boas Novas de seu reino.

Em outras palavras, os Magos vieram em busca de um superstar da realeza, mas não voltaram as costas para o humilde Salvador.

Assim como a supernova que pairou sobre Belém, na véspera de Natal, a mídia e a literatura podem apontar o brilhante exemplo de Jesus Cristo para um mundo incrédulo. Elas podem inspirar em nós respeito e admiração, e até mesmo aguçar nossa sede de buscá-lo.

As superestrelas podem nos guiar à manjedoura, mas somente o Espírito pode nos levar a comer do Pão da Vida e a beber da Água Viva.

Stefani McDade é editora associada da Christianity Today.

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Books

Morre George Verwer, que perguntava aos cristãos: “Vocês estão prontos para ir?”

O fundador da Operação Mobilização levou inúmeras pessoas a proclamar o amor de Deus ao redor do mundo.

George Verwer, Operação Mobilização (OM)

George Verwer, Operação Mobilização (OM)

Christianity Today April 18, 2023
Courtesy of Operation Mobilisation / edits by Rick Szuecs

George Verwer tinha uma pergunta.

Quando o jovem de 18 anos e seu amigo terminaram de orar, em um dormitório de estudantes em Maryville, no Tennessee, Verwer olhou para seu colega de faculdade e perguntou: “E aí? Você está pronto para ir?"

Dale Rhoton ficou surpreso. Ele tinha acabado de ouvir sobre uma ideia que Verwer tivera, de que eles deveriam vender o que possuíam e usar o dinheiro para comprar um caminhão, naquele verão, enchê-lo com edições em espanhol do Evangelho de João e dirigir até o México, onde 70% das pessoas não tinham acesso às Escrituras. Eles tinham acabado de orar a esse respeito.

“George”, disse ele, “é preciso mais tempo do que isso.”

Verwer não via por que deveria precisar de mais tempo. O futuro fundador da Operação Mobilização (OM) vira uma necessidade espiritual. Eles poderiam atender essa necessidade. Para ele, o resto não importava.

“Sua única paixão, a que consumia tudo o mais em sua vida, era ser um canal por meio do qual as pessoas se tornassem amigas para sempre de Jesus”, Rhoton escreveu tempos mais tarde. “Sua zona de conforto é sair de sua zona de conforto. Ele só se sente realmente seguro quando está arriscando tudo.”

Esse “fervor de Verwer” por missões, durante toda a sua vida, levou inúmeros cristãos a cruzar fronteiras, culturas e continentes para proclamar as boas novas do amor de Deus. A OM tornou-se uma das maiores organizações missionárias do século 20, enviando milhares de cristãos, todos os anos, em viagens missionárias de curta e de longa duração. Atualmente, a OM tem 3.300 obreiros adultos, de 134 nacionalidades diferentes, trabalhando em 147 países. Estima-se que 300 outras agências missionárias também foram iniciadas como fruto do contato com a OM ou por antigos integrantes da OM.

Verwer morreu dia 14 de abril deste ano, aos 84 anos.

Lindsay Brown, que liderou a International Fellowship of Evangelical Students [Associação Internacional de Estudantes Evangélicos] por 40 anos, lembra-se dele como um notável líder missionário.

“No que diz respeito à ampla gama de atividades e a agências e líderes que gerou, acho que a OM é incomparável”, disse ele. “E acho que George é o mais destacado líder missionário norte-americano dos últimos 60 anos. Ele teve um ministério notável”.

Verwer nasceu em 3 de julho de 1938, filho do casal Eleanor Caddell Verwer e George Verwer Sr., um imigrante holandês que trabalhava como eletricista. Ele foi criado em Wyckoff, Nova Jersey, nos arredores da cidade de Nova York. A família pertencia a uma congregação da Igreja Reformada na América, que o George Verwer pai, porém, raramente frequentava, e que, para o jovem Verwer, mais parecia um clube social.

O jovem Verwer era atleta e escoteiro, mas passava grande parte de seu tempo atrás de garotas e se metendo em encrencas. A maior parte dessas encrencas era considerada meras “travessuras” pelos padrões da época; Verwer, contudo, também começou um incêndio em alguns bosques no condado de Bergen e, quando adolescente, invadiu a casa de alguém e foi pego pela polícia.

A notícia desse incidente levou Dorothea Clapp, cristã que vivia no local, a começar a orar por Verwer, para que ele viesse a crer em Jesus. Como ele mesmo descreveu mais tarde, ela o colocou em sua “lista de alvos do Espírito Santo”.

Dorothea Clapp também enviou a Verwer um Evangelho de João. O livro não causou impacto imediato; três anos depois, porém, ele se sentiu compelido a participar de uma cruzada de Billy Graham, no Madison Square Garden. Ele e alguns amigos fizeram uma viagem de ônibus, de cerca de 50 quilômetros, para ouvir Billy Graham pregar em 5 de março de 1955. Na hora do apelo para entregar sua vida a Cristo, Verwer foi à frente. Ele ficou comovido, disse ele, com a mensagem de que Deus o amava e poderia usá-lo.

“Descobri que ele poderia me usar, mas não esmagando meu temperamento ou me mostrando o miserável que eu era”, Verwer escreveu tempos depois, “e sim me oferecendo amor e trabalhando por meio do Espírito Santo”.

De volta a Nova Jersey, ele imediatamente começou a falar aos outros sobre Jesus. Ele distribuiu 1 mil exemplares do Evangelho de João em sua escola, e organizou uma cruzada evangelística. Mais de 100 pessoas se dispuseram a entregar suas vidas a Cristo, de acordo com reportagens de jornais locais da época, entre elas uma com quem Verwer se importava muito: seu próprio pai.

O jovem Verwer não reconhecia isso na época, mas era evidente que ele tinha o dom de organizar — mobilizar — os cristãos. Ele conseguiu que 5 alunos do ensino médio compartilhassem seus testemunhos e pregassem em seu evento evangelístico. Ele também conseguiu que mais de 30 adolescentes, em sua igreja holandesa reformada, participassem de uma maratona de leitura da Bíblia, apesar do ceticismo do pastor, que disse a um repórter que, no começo, estava preocupado que os jovens não fossem ler com o devido decoro.

Alguns anos depois, na faculdade, Verwer não só vendeu suas coisas e financiou uma viagem missionária ao México. Ele também convenceu dois amigos, Rhoton e Walter Borchard, a fazerem o mesmo.

Verwer, é claro, não sabia realmente o que estava fazendo, distribuindo folhetos e textos da Escrituras e tentando montar uma escola bíblica por correspondência em Monterrey. Como o próprio Verwer recordou mais tarde, ele cometeu alguns “erros bastante graves”. Ele decidiu que precisava estudar mais e se transferiu para o Moody Bible Institute, em Chicago. Lá, quando estava pensando em desistir por completo de missões, ouviu o ministro evangélico Oswald J. Smith pregar na capela. Smith enfatizou a importância de estar onde Deus quer que você esteja e de se dedicar totalmente a Cristo.

Verwer estava sentenciado. Ele correu pelo corredor — “[como] um sujeito único, um tipo meio maluco” — e se arrependeu de sua falta de amor.

“Deus partiu meu coração”, disse ele. “Vi que havia coisas em meu coração que não estavam certas, e soube que tinha de responder. (…) Devo estar disposto a correr riscos pelo reino”.

Mais tarde, quando exortava jovens a passarem o verão ou alguns anos no exterior, ele enfatizava sua relutância e a persistência de Deus, e fazia sua audiência rir.

“Deus me viu”, ele dizia. “Um holandês teimoso, cabeça dura. E me deu um pontapé missionário. Estou em órbita desde então.

Verwer organizou uma segunda viagem misssionária ao México, em 1958; quando conheceu e se casou com sua esposa, Drena Knecht, em 1960, sua “lua de mel” também foi uma viagem missionária para o México. Os recém-casados estavam tão comprometidos com sua aventura evangelística que Verwer tentou economizar dinheiro para o campo missionário trocando o bolo do casamento por tanques de gasolina, na viagem para o sul. O primeiro frentista que os atendeu recusou e lhes deu o combustível de graça. O segundo concordou com a troca.

Os Verwers passaram seis meses no México e depois se mudaram para a Espanha, que era então governada pelo ditador fascista Francisco Franco, que havia expulsado pastores protestantes, banido todas as atividades e anúncios de cultos públicos e apreendido Bíblias protestantes. Mas foi quando fez uma viagem para outro regime totalitário, dirigindo rumo à União Soviética com um carro cheio de Bíblias para distribuir, que Verwer teve problemas. Ele foi parado pelas autoridades e expulso do país.

Quando Verwer foi deportado para a Áustria, e orava sobre o que deveria fazer em seguida, foi atingido pelo pensamento de que não era um missionário muito bom, mas era bom em mobilizar outras pessoas. Ele viu um ônibus de turistas europeus que embarcavam para a URSS e teve a ideia de que era isso que ele deveria fazer: enviar outros.

No ano seguinte, o ministério, então chamado Send the Light, organizou cerca de 2 mil viagens missionárias de curta duração a países controlados pelos comunistas. Eles expandiram [suas atividades] para países muçulmanos em 1963, e, então, começaram a mobilizar missionários para a Índia.

Peter Dance, um dos jovens da Inglaterra que dirigiu um caminhão cheio de literatura evangelística para a Europa Oriental e a Índia, lembrou que era assustador e emocionante.

“Eu tinha a sensação de que não há mais ninguém lá para me ajudar, exceto Jesus”, disse ele. “Antes de cruzar aquela fronteira, eu tinha tudo de que precisava; até minha mãe estaria lá, se eu precisasse dela. Fui à Índia muitas vezes e, em meio a colapsos e dificuldades, o Senhor sempre aparecia.”

A Christianity Today descreveu esses primeiros recrutas como “jovens contraculturais abertos à aventura” — “peregrinos do evangelho” que eram “inclusivos, evangelísticos e itinerantes”.

Vinte e cinco deles redigiram um manifesto que Verwer publicou e distribuiu para igrejas, grupos de jovens e livrarias cristãs nos Estados Unidos e na Europa.

“O Senhor Jesus Cristo foi um revolucionário!” dizia o texto do manifesto. “E nós somos revolucionários! (…) Dentro da esfera da obediência absoluta e literal às suas ordenanças encontra-se o poder que evangelizará o mundo”.

Verwer combinou o chamado para um compromisso total e radical com Cristo à ideia de missão de curta duração, diminuindo as expectativas de serviço e tornando mais fácil para as pessoas se engajarem. Ele acreditava que Deus usaria aqueles que estivessem dispostos — mesmo que não estivessem prontos para assumir compromissos que durassem anos, não tivessem frequentado uma escola bíblica ou tivessem se metido em confusões na vida. Afinal, Deus redimia confusões. Deus opera não só a despeito dos erros humanos, mas também nesses erros e por meio deles.

Sempre crítico dos “especialistas” em missões com suas teorias e métodos bem desenvolvidos, Verwer acabaria chamando sua abordagem de “messiologia”. Os cristãos devem sempre tentar evitar se meter em confusão, e alguns erros podem ser espiritualmente devastadores. Entretanto, dizia ele, aqueles que colocam sua fé em Jesus não devem se esquecer de que Deus salva pecadores.

“Conheço pessoas para quem, humanamente falando, a vida não caminhou bem”, escreveu ele. “Eles não estão no Plano A ou no Plano B; estão mais em algo como um Plano M. Quando converso com eles, sempre os lembro de que o alfabeto é grande e os incentivo a abraçar a graça radical e a seguir em frente.”

Ele também argumentava que não havia um único jeito certo de proclamar o evangelho. Os cristãos voltados para missões precisavam experimentar, contextualizar e reavaliar continuamente o que funcionava bem.

“Não temos 2 mil anos que provam que Deus trabalha de maneiras variadas?”, escreveu ele. “Não podemos aceitar que Deus trabalha de maneiras diferentes entre diferentes grupos de pessoas? A obra de Deus é maior do que qualquer associação ou organização.”

Algumas vezes, Verwer era forçado a fazer experiências e a mudar o modelo da OM rapidamente. Em 1968, quando foi forçada a deixar a Índia, a OM decidiu entregar a liderança aos indianos e fundar a Operação Mobilização Índia como uma organização distinta, que continuou a plantar milhares de igrejas.

Outras vezes, Verwer deu saltos de fé que não pareciam de forma alguma necessários. Em 1970, a organização missionária comprou um navio. A história oficial da OM destaca que a ideia de comprar um navio era “bizarra” e ninguém na organização tinha a menor noção de como fazer essa compra — e muito menos de como conduzir um navio de porto em porto ao redor do mundo, onde eles poderiam distribuir livros cristãos e falar de Jesus para as pessoas.

“Alguns pensaram que eu tinha perdido o juízo!” Verwer lembrou, tempos mais tarde.

Mas a OM comprou um navio holandês chamado Umanak, rebatizou-o com o nome de Logos, e finalmente navegou 230 mil milhas náuticas, para 250 portos diferentes, ministrando a 6,5 milhões de pessoas. O ministério comprou um segundo navio, em 1977.

Essa abordagem ministerial “de improviso” nem sempre deu certo. O Logos naufragou em 1988, com 125 mil dólares em livros cristãos. E o mais perturbador para Verwer era o fato de que vários missionários da OM ficavam feridos ou morriam em acidentes de carro em todo o mundo. Às vezes, eles tinham problemas com as autoridades locais. E algumas das ideias de Verwer foram ruins.

“Tenho muitas ideias — minha criatividade está [sempre] transbordando”, disse ele a um grupo de alunos do Moody Bible Institute. “Nossa visão no ministério cristão acaba se misturando com o ego. (…) Confesso a vocês que me envolvi em algumas situações embaraçosas”.

Verwer também lutou contra o pecado e a dúvida. Ele se autodenominava um sujeito “que se desviava por natureza”. Mas, no final, seu amor por Jesus e sua paixão por falar a pessoas ao redor do mundo inteiro sobre o amor de Deus por elas superaram todo o resto. Um de seus assistentes, que se tornou pastor em Chicago, disse que Verwer personificava o tipo de amor divino descrito em João 3.16.

George VerwerOperation Mobilisation
George Verwer

“Não sei se existe alguém que ame o mundo inteiro tanto quanto George — no que diz respeito a seres humanos — e que deseja que eles tenham um relacionamento com Jesus”, disse Mark Soderquist.

Verwer, por sua vez, achava que a parte mais importante da vida cristã era o amor.

“Não há ensino bíblico maior do que o amor, e, sem o amor, não há ensino bíblico”, escreveu ele. “Você não é ortodoxo se não for humilde. Você não é ‘alguém que crê na Bíblia’ se não ama.”

Verwer deixou o cargo de diretor internacional da OM em 2003, passando a liderança para Peter Maiden. Ele continuou, no entanto, a falar para grupos de jovens cristãos em todo o mundo. Trazia consigo um globo inflável gigante, vestia sua jaqueta com uma logomarca de um globo e fazia a esses jovens, repetidas vezes, uma versão da pergunta que fez a seu amigo de faculdade, quando tinha apenas 18 anos.

“E aí? Vocês estão prontos para ir?”

“Se você passar dois anos no exterior”, dizia Verwer, “há uma grande chance de que nunca mais será o mesmo, quando voltar. Você terá visto como Deus responde à oração, como o Espírito Santo transforma vidas, e terá captado um vislumbre do que Deus está fazendo no mundo todo.”

Verwer deixa a esposa, Drena, e três filhos, Ben, Daniel e Christa.

https://vimeo.com/816046359

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Vinde a mim, todos os que estão cansados de tomar decisões

O jugo suave de Deus para os exauridos pelo excesso de responsabilidades.

Christianity Today April 12, 2023
Illustration by Rick Szuecs / Source Image:Stockcam / Getty

Muitas vezes começo a escrever uma música nova — ou mesmo algo tão comum quanto uma carta para um amigo — por ter visto uma centelha ou tido um vislumbre da renovação de Deus no mundo. De vez em quando, porém, tenho de enfrentar alguns falsos começos. Algumas sementes que plantamos parecem brotar da noite para o dia, enquanto outras levam tempo.

Grande parte da vida é assim. Recentemente, tínhamos planos de levar a família a um show da região. Eu esperava que aqueles ingressos representariam uma oportunidade de unir a família ou até mesmo [de criar] uma nova tradição. Mas eu tinha acabado de voltar de viagem e minhas suposições idealizadas de um feliz passeio anual foram por água abaixo, quando fomos todos puxados em direções diferentes: um membro da família precisava jantar; o outro não estava se sentindo bem; o terceiro tinha um acúmulo de tarefas da escola para fazer; o último tinha um evento escolar de última hora.

Estávamos na metade do caminho para o local, dirigindo debaixo de chuva, quando desistimos do show. Senti uma mistura de alívio e desapontamento, quando pegamos o caminho de volta para casa. Quando tornados logísticos como este entram em espiral, minha determinação enfraquece e meu compromisso vacila. Devemos seguir adiante e manter o plano? Ou devemos recuar para acudir as necessidades do momento?

Quando nossos planos se tornam um peso e nossos dias ficam excessivamente cheios, é fácil ficarmos atolados. Ficamos sobrecarregados e nos enredamos na indecisão, como se fosse areia movediça. Quanto mais tentamos sair dela, mais afundamos. Tentamos discernir quais planos fazer ou quais prioridades manter, reduzindo-os a algo parecido com uma equação matemática. Repartimos recursos entre nossos desejos conflitantes.

É uma abordagem lógica. Então, por que às vezes é tão difícil descobrir o que realmente importa?

Talvez seja porque — como costuma acontecer em momentos assim — nenhuma das opções dentre as quais estamos escolhendo seja a que realmente importa. “Uma coisa pedi ao Senhor, é o que procuro: que eu possa viver na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a bondade do Senhor e buscar sua orientação no seu templo.” (Sl 27.4, NVI).

O Salmo 27 sopra sabedoria nos momentos ínfimos e sobrecarregados do nosso cotidiano. Surgem muitas coisas em um dia: um vazamento de água para consertar, uma conta médica que escapa do nosso controle, um cartão de aniversário para enviar. Mas nossas ansiedades podem nos manter reféns de ideias vagas, quando poderíamos estar dando passos ativos e criativos para realizar o belo plano que Deus tem para nós e para o seu mundo.

“Buscar sua orientação no seu templo” soa como uma grande ideia. Como faremos isso? Podemos começar por algo pequeno, talvez simplesmente com o ato de pararmos um momento para contemplar a beleza de Deus. Quando paro para refletir sobre o que Deus pode estar pensando hoje, neste momento, em tempo real, meus próprios pensamentos são reordenados. Minhas prioridades mudam.

O que Deus pensa sobre os planos que estamos fazendo para o jantar? O que ele pensa sobre a eleição local que se aproxima? O que ele percebeu na reunião de trabalho e sussurrou para mim, em meu espírito? Quem ele vê em meu círculo social hoje que pode ter passado despercebido aos meus olhos?

A intenção de perguntas desse tipo não é nos colocar em um estado de paralisia superespiritualizada. O propósito dessas perguntas é nos libertar de outras perguntas que nos fazem, e assim nos ajudar a desacelerar e a nos aquietar o suficiente para prestarmos atenção à presença de Deus.

Queremos gerar significado em nossas vidas, mas, às vezes, perdemos de vista a ideia central. Mesmo depois de anos praticando isso, às vezes ainda não reconheço qual é a melhor decisão, até chegar na metade do caminho para o lugar que estava indo e, então, fazer uma lacrimejante meia-volta.

Isso não significa simplesmente praticar atenção plena. Significa ser transformado pela beleza. Quando meu objetivo é o deleite, não me deixo levar tão facilmente pela distração. Se nos deleitarmos com os planos de Deus, e não com os nossos próprios planos, encontraremos resultados alternativos. Quando nos deleitamos com a beleza e a glória de Deus, podemos descansar quando precisarmos. Tomamos sua liberdade como se fosse nossa. Não precisamos ser escravos das exigências de nossos desejos ou de nossos relacionamentos. Ficamos com o espírito mais leve. A visão da glória de Deus transforma nossos próprios planos e ideias em um reflexo mais genuíno dos dele. Somos livres para ser mais do que “alguém ansioso por agradar os outros” ou que simplesmente apaga incêndios das urgências dos nossos dias.

Quanto mais contemplamos a Deus, mais nossas vidas são iluminadas pelo brilho de sua glória. É como purpurina em uma sala de jardim da infância: sua glória está em toda parte. Ela fica, gruda e brilha, quando passamos tempo perto dele.

Sandra McCracken é cantora, compositora e autora em Nashville. Ela também é a apresentadora do podcast The Slow Work, produzido pela CT.

Tradução por Mariana Albuquerque

Edição por Marisa Lopes

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José perdoou os irmãos que o traíram. Você conseguiria fazer o mesmo?

A reação de José a seus irmãos traiçoeiros nos convida a reavaliar relacionamentos semelhantes em nossa vida.

Christianity Today April 12, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / Unsplash / Pexels

Você está lendo a tradução do texto vencedor do segundo concurso anual de artigos da Christianity Today, que foi originalmente escrito em chinês. Saiba mais sobre o concurso e o trabalho multilíngue da CT, e leia os textos vencedores, escritos originalmente em português, francês, indonésio e espanhol.

“Cheguem mais perto”, disse José a seus irmãos. Quando eles se aproximaram, disse-lhes: “Eu sou José, seu irmão, aquele que vocês venderam ao Egito!” (Gênesis 45.4)

“Cheguem mais perto” é uma declaração simples. Mas também sinaliza um ato de restauração.

José, que fora vítima deles, fez uma observação à primeira vista comum para seus irmãos agressores. Ele havia carregado dentro de si um acúmulo de mágoas de um passado infeliz, bem como emoções conflitantes. As tristezas de sua vida perseguiam José constantemente, depois que seus irmãos o traíram. Agora que José, ocupando uma posição elevada e prestigiosa de poder, estava frente a frente com seus agressores do passado, ele poderia facilmente se vingar deles para aliviar sua dor, do ponto de vista psicológico e prático. Em vez disso, ele escolheu louvar a Deus por sua providência, revelar a própria identidade a seus irmãos e mostrar misericórdia para com eles (Gênesis 45.5).

“Cheguem mais perto” é uma frase que também pode ter figurado nos pesadelos de um José profundamente ferido. Quando jovem, depois que Deus lhe revelou uma visão, José fora ingênuo a ponto de ter se aproximado de seus irmãos e a compartilhado com eles sem reservas. No entanto, isso só fez com que sentissem ciúmes dele. Mais tarde, quando seu pai, Jacó, pediu que ele fosse até onde seus irmãos estavam, ele foi, obedientemente. No entanto, o propósito de seus irmãos, ao “se aproximarem” dele, era matá-lo, vendê-lo. Essa “aproximação” deles causou o maior dos danos a José.

A intenção homicida dos irmãos em relação a José também revelou o mal que havia em seus corações. Enquanto estavam presos no Egito, sob poder de José (pois foram acusados de serem espiões), eles arrazoavam entre si: “Certamente estamos sendo punidos pelo que fizemos a nosso irmão. Vimos como ele estava angustiado, quando nos implorava por sua vida, mas não lhe demos ouvidos; por isso nos sobreveio esta angústia”(Gênesis 42.21). Sua prisão fez com que se lembrassem do mal que haviam feito ao jovem José, levando-os a pensar que sua situação atual era uma retribuição de Deus.

Irmão contra irmão

Como a história de José na Bíblia, que trata do conflito entre irmãos, muitas vezes ouvimos notícias sobre discórdia e conflito entre irmãos, pais e cônjuges. As famílias englobam relacionamentos que supostamente nos propiciam a sensação de segurança, de consolo e de liberdade. Algumas famílias, porém, podem inspirar sentimentos de medo e desamparo.

A ruptura de relacionamentos em uma família é uma situação triste e comum. Relacionamentos próximos e íntimos podem ser gravemente prejudicados por causa de conflitos como preconceito dos pais, diferenças de geração e de personalidade e variáveis níveis de capacidade para lidar com situações.

A rivalidade entre irmãos é um problema universal. No ano passado, uma menina japonesa de 11 anos registrou 100 discussões entre seus outros três irmãos, em um período de apenas 10 dias, sobre um projeto de lição de casa de verão.

Em alguns casos, o conflito surge quando irmãos e irmãs brigam por causa de uma herança familiar. Em outros casos, a rivalidade entre irmãos pode surgir devido a valores culturais, como mostrar respeito e deferência para com os mais velhos. Veja este exemplo de dois irmãos chineses envolvidos em cuidar do pai, que sofria de demência: O irmão mais novo se ofereceu para assumir mais responsabilidades em relação ao cuidado do pai, pois sentiu que seu irmão mais velho tinha baixa autoestima e falta de capacidade para tomar decisões. Ele foi ficando cada vez mais frustrado porque o irmão mais velho não cooperava com seu planejamento para cuidar do pai.

Depois de passar por aconselhamento, o irmão mais novo percebeu que seu irmão mais velho o considerava desrespeitoso, por agir como se estivesse no comando. Quando melhoraram seus estilos de comunicação e seus esforços de colaboração, os irmãos conseguiram se entender melhor. O conflito deles se tornou uma oportunidade para conciliar diferenças de longa data.

A coragem de perdoar

Disputas entre irmãos podem ocorrer todos os dias, e as mágoas podem se tornar cada vez mais profundas. Muitas vezes é difícil para um mediador intervir e diferenciar o certo do errado, pois os papéis do agressor e da vítima podem ser dinâmicos e intercambiáveis.

A relação entre agressor e vítima é complexa, emaranhada e permanente. O agressor parece exercer uma abundância excessiva de poder para oprimir e intimidar a vítima. No entanto, as ações opressoras e danosas do agressor podem brotar de um coração cheio de medo e covardia. Alguns agressores podem querer se aproximar de suas vítimas, mas usam formas não saudáveis de se expressar e, assim, continuam a perpetuar o dano.

Atualmente, as vítimas de violência doméstica podem buscar apoio em instituições ou em igrejas, a fim de receberem aconselhamento e ajuda para o corpo, a mente e a alma. E se os agressores tiverem consciência do que são, eles também podem buscar orientação e assistência. Estas são algumas das formas e meios apropriados para solucionar relacionamentos emaranhados e avançar rumo à reconciliação dentro da unidade familiar.

No entanto, o estado do coração de cada pessoa é o cerne da questão.

Quando José olhava para trás em sua vida e percebia que o que sofreu nas mãos dos outros poderia, apesar de tudo, refletir a misericórdia e a bondade de Deus (Gênesis 50.20), acredito que as sombras em seu coração desapareciam e sua dor era aliviada. Ele era capaz de se livrar das algemas de vítima e dizer: “Por favor, cheguem mais perto” com um coração destemido, estendendo um ramo de oliveira de restauração a seus irmãos.

Quando José, a vítima desta história, fez um gesto inesperado de reconciliação para com seus irmãos, eles subitamente tomaram consciência e se convenceram de seus erros do passado.

A reconciliação é o começo da reparação de um relacionamento rompido, que abre a porta para acabar com os ciclos de abuso em seu âmbito. Esta não é a maneira do mundo, que retribui violência com violência, mas sim a maneira bíblica, que vence o mal com o bem (Romanos 12.21).

Joe Shing Yung Tsoi é editor, há mais de dez anos, em uma instituição cristã em Hong Kong. Já editou dezenas de livros e revistas. Tem um mestrado em língua e literatura chinesa pela Universidade Batista de Hong Kong e um mestrado em estudos cristãos pelo Seminário Bíblico da Aliança de Hong Kong.

Tradução: Mariana Albuquerque

Edição: Marisa Lopes

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Resistindo ao impulso da auto-otimização

Na Quaresma, realinhamos nossa identidade em Cristo e resgatamos o senso de sermos trazidos à existência por nosso Criador, em amor.

Christianity Today April 4, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Unsplash

Como cingapurense, cresci imerso em uma cultura nacional definida pelo estresse.

Esses instintos foram inegavelmente mais aprendidos do que qualquer outra coisa — meu pai, original da Malásia, e minha mãe, nascida na Coreia do Sul, mudaram dos Estados Unidos para Cingapura na década de 1990. Muito de como eu cresci foi moldado pela intensidade da cultura acadêmica de Cingapura, que transita entre cargas pesadas de exames, aulas de acompanhamento escolar depois do horário das aulas e pilhas de trabalhos práticos para concluir.

Diferentes fases da minha vida viriam a espelhar esse ritmo: viver dias agitados no ensino médio, entre escrever longas redações e servir na igreja, equilibrar responsabilidades durante o serviço militar, ao mesmo tempo em que liderava um pequeno grupo e tentava manter a leitura em dia, administrar o frenesi da minha vida na graduação e as subsequentes incumbências como estudante de pós-graduação e, mesmo agora, quando vivo tentando tocar adiante diferentes compromissos com ministério, redação criativa, edição, amigos e família em meio a um emprego de tempo integral.

A última vez em que me senti completamente esgotado foi há cerca de 5 anos, como estudante de graduação na Inglaterra. Entre ler e escrever os trabalhos para as diferentes matérias, manter-me ativo em comunidades cristãs, participar de produções teatrais e praticar remo ao amanhecer, percebi que gradualmente estava comprometendo minhas horas de sono. Sete horas por noite foram reduzidas a seis ou até a quatro horas e meia. Não tenho certeza do que me levou a isso naquela época. Talvez tenha sido um senso de obrigação e de responsabilidade — que eu sentia dever às pessoas a quem havia feito promessas — ou um desejo de não deixar nenhuma área da minha vida universitária escapar pelos vãos dos dedos. Por trás de tudo isso, talvez, estivesse um impulso de otimização.

A otimização pode ser descrita de duas maneiras, segundo opina a escritora Jia Tolentino. Em primeiro lugar, é um meio de obter lucro ao “satisfazer nossos desejos” com “o menor esforço” — uma formulação postulada pelo economista William Stanley Jevons. Em segundo lugar, é o processo de fazer algo, como o Merriam-Webster aponta, “tão perfeito, funcional ou eficaz quanto possível”.

Uma devoção excessiva à auto-otimização subverte nossos relacionamentos em termos de tempo e esforço, substituindo o cuidado e a consciência de nossas limitações físicas e mentais por um impulso implacável para concluir tarefas. Em outras palavras, a otimização pode fazer com que nos apeguemos demais àquilo que deveríamos confiar a Deus.

Uma preocupação nacional

Ao rastrear as raízes desse instinto de otimização, a tentação é traçar uma história da sobrevivência, da ansiedade geopolítica e da competitividade econômica de Cingapura. As maquinações da Cingapura empresarial criaram raízes após sua separação sem cerimônia da Malásia, na década de 1960. Por se tratar de uma pequena cidade-estado com recursos naturais mínimos, a qualificação de seu povo tornou-se sua maior vantagem competitiva, como muitas vezes nos disseram. A transformação da “força de trabalho” de Cingapura e o aprimoramento de seu “capital humano” ocorreram por meio de corporações multinacionais, que treinaram gerações de trabalhadores, e das políticas educacionais focadas que aumentaram nossa vantagem competitiva. A meritocracia — assim como o desempenho, a produtividade e a diligência — eram defendidos como um ideal sagrado.

Essa corrida inebriante rumo à modernização, à tecnologização e à otimização estruturou as aspirações nacionais em Cingapura por muito tempo. As pessoas viam suas vidas serem transformadas materialmente como resultado da cuidadosa gestão governamental do desenvolvimento econômico do país. O outro lado da moeda, no entanto, tem sido uma população perpetuamente estressada. A qualificação tornou-se o novo mantra do Estado, com o governo oferecendo crédito para os cidadãos treinarem e aprenderem novas habilidades. Em outras palavras, a otimização do eu continua, e parece ser central para a psique de Cingapura.

Na igreja em Cingapura, as aspirações de muitos começaram a se apegar a linhas semelhantes, sendo que a noção de bênção tornou-se correlacionada à riqueza. A vida da igreja começou a se assemelhar às mudanças do país, sendo o discipulado e a comunhão trocados por programas e eventos facilmente otimizáveis e mensuráveis: palestras, jantares e conferências, nos quais o número de pessoas alcançadas ou convertidas pudesse ser rastreado em dígitos.

A compactação do tempo, por meio da ênfase nacional na auto-otimização, bem como as crescentes demandas de tarefas de trabalho ou das tarefas escolares, impostas a cada pessoa em Cingapura, serviram apenas para fomentar a ansiedade em torno da comparação e acelerar o passar dos meses e dias.

Como argumenta um escritor e crítico cingapurense, Gwee Li Sui, “os implementos sociais e técnicos da modernidade têm melhorado nossas vidas cotidianas tão-somente para aumentar seu ritmo, dando-nos mais tempo, que é desperdiçado com a mesma rapidez. A interdependência política e econômica forja a confiança e a compreensão entre os povos, mas também aumenta a frustração e a sensação de insegurança, por meio de comparações sem fim”.

Oração centralizante

Quando fazia faculdade, assisti a uma palestra do designer gráfico Andrew Khatouli. Ao falar dos desafios que enfrentava ao trabalhar na indústria criativa e das pressões de buscar a excelência criativa, uma frase dele me impactou fortemente: “Sua ética de trabalho é tão boa quanto sua ética de descanso”. O ímpeto de desacelerar e me dar tempo para descansar tornara-se algo muito combatido. O primeiro passo exigia um compromisso renovado de guarder o sábado. Comecei pela resolução de folgar todo domingo, substituindo horas frenéticas de leitura de última hora por caminhadas, podcasts e tempo com amigos.

O espaço livre de um dia inteiro de repente parecia rico de possibilidades, uma passagem que propiciava uma interrupação temporária entre diferentes fluxos de trabalho. Levei a sério dois conceitos bíblicos: o shabbat (“sábado”, em hebraico), o conceito da cessação do trabalho, e o nuach (“descanso” , em hebraico), o conceito do estabelecimento de um espaço de oração e louvor, na igreja e em outros lugares. Embora tenhamos sido criados de forma singular à imagem de Deus, como mostra a narrativa do Gênesis, continuamos sendo criaturas feitas do pó da terra. Como o pregador Christopher Ash argumenta em Zeal without Burnout [Zelo sem burnout], abrir mão do sono, do sábado, dos amigos e da renovação interior pelo Espírito Santo é tentar criar para nós mesmos uma espécie de paridade com Deus.

Uma vida cristã de sacrifício sustentável, no entanto, é embasada no reconhecimento da limitação humana. O cultivo de uma intimidade com Deus e de uma vida interior séria requer um espaço à parte de nossas personas constantemente ativas. “Há um lugar na alma que nem o tempo, nem o espaço, nem nenhuma coisa criada pode tocar”, escreveu um místico do século 14, Meister Eckhart. A intenção da oração é visitar esse tipo de santuário que Eckhart descreve, diz o poeta e filósofo John O’Donohue.

Alinhando ao kairós

A preocupação com a eficiência e a otimização do eu pode servir para diminuir a consciência de nossa humanidade. Perdemos nosso senso de que somos trazidos à existência pelo Criador, em amor, de que somos criados à sua imagem e de que precisamos ser nutridos espiritual e emocionalmente pela comunhão divina.

Às vezes, uma irrupção kairológica pode servir para nos chocar com a tepidez de nossa agitação e tendência à otimização. A concepção neotestamentária da palavra grega kairós descreve um tempo determinado no propósito de Deus. O kairós constrói uma espécie de imediatismo e é a linguagem temporal que Jesus usa, quando proclama no Evangelho de Marcos: “O tempo é chegado […]. O Reino de Deus está próximo” (1.15).

Momentos kairós — como quando o corpo entra em colapso, ou quando acontece a morte de um ente querido ou um acidente de carro por exaustão — têm o potencial de nos tirar de um estupor frenético. São estes os momentos que nos fornecem lembretes contundentes da presença de Deus — aqueles que nos tornam extremamente conscientes não apenas de nossas limitações mortais, mas também do caráter efêmero do tempo. Eles nos fornecem um lembrete de que nossos calendários não operam de acordo com o mistério do tempo ordenado por Deus. Recebemos meros vislumbres de como Deus se move no tempo, além daquilo que podemos ver e perceber. “Tenho visto o fardo que Deus impôs aos homens. Ele fez tudo apropriado a seu tempo. Também pôs no coração do homem o anseio pela eternidade; mesmo assim este não consegue compreender inteiramente o que Deus fez”, escreve o autor de Eclesiastes (3.10-11).

O amor de Deus tem “um tipo de velocidade diferente da velocidade tecnológica a que estamos acostumados”, diz o teólogo Kosuke Koyama. “Ele continua nas profundezas de nossa vida, quer percebamos quer não, a cinco quilômetros por hora. É a essa velocidade que caminhamos e, portanto, é essa a velocidade que caminha o amor de Deus”. Quando perdemos de vista o caráter restaurador do sábado, esquecemos que “o sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2.27). Perdemos a capacidade de cultivar uma vida interior, de acessar o intocável “lugar da alma” que Eckhart descreve.

Chegando à Quaresma

Neste tempo de Quaresma, pode valer a pena considerar a melhor forma de se opor à primazia da otimização. O teólogo Rowan Williams sugere, em seu livro Being Human [Sendo humano], que aos seres humanos é dada dignidade, independentemente de “quantas caixas forem ticadas”, porque estamos “em meio a uma rede de relações” com Deus e de uns com os outros. “Uma linguagem da pessoalidade que seja teologicamente informada corrige a linguagem mecânica que nos reduz a uma lista de verificação de atributos”, escreve Christopher Benson em sua resenha do livro de Williams.

Como corretivo às pressões de otimização, assumi vários compromissos para tentar cultivar espaço para a interioridade e o silêncio nesta Quaresma. O silêncio apóia nossa “humanidade em crescimento” e humilha nosso desejo de poder e controle, argumenta Williams: “Deus é Deus por ser Deus para nós, e nós somos humanos por sermos humanos para Deus; e toda alegria e satisfação se abrem, quando reconhecemos isso”. Meu primeiro compromisso tem sido continuar lendo as Escrituras todos os dias. O segundo compromisso tem sido manter uma programação de devoções diárias, publicada pela Sociedade Bíblica de Cingapura. O terceiro tem sido ler um poema por dia de uma antologia sobre a alegria.

Espero que aprender a espaçar minha agenda, a dizer não a certos compromissos ou convites, e a arrumar momentos para oração e leitura todos os dias ajudará a mudar as coordenadas de meu relacionamento atual com o tempo. Espero que esses hábitos ajudem a despojar as maneiras pelas quais a auto-otimização se meteu em minha vida como um ideal.

Não tenho a pretensão de acreditar que eu me livrei do estresse contínuo de todo dia ou do impulso de resolver as tarefas com rapidez e eficácia. No entanto, essas práticas ajudaram a fornecer momentos necessários de pausa e reflexão, principalmente quando eventos recentes conspiraram para propiciar os choques kairológicos de que eu precisava para me voltar de novo para Deus.

Mergulhar na lentidão do calendário litúrgico, guardar o sábado e lembrar das intervenções dos momentos kairós é facilitar um afastamento da otimização e das estruturas de tempo que a possibilitam. Uma vida de fé nos sustenta e fortalece, mas levamos uma eternidade para aprender a vivê-la.

Jonathan Chan é o autor da coletânea de poesias Going home [A caminho de casa] (Landmark, 2022). Suas poesias e seus ensaios foram publicados em Ekstasis, The Yale Logos e no Ethos Institute for Public Christianity.

Tradução: Mariana Albuquerque

Edição: Marisa Lopes

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Do túmulo vazio aos abusos de hoje: acredite nas mulheres

Eu era uma apologista do Ministério Internacional Ravi Zacharias [RZIM]. Confiar em fontes femininas é crucial para o testemunho cristão.

Christianity Today April 3, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / Velizar Ivanov / Unsplash

Os fatos centrais da fé cristã foram todos testemunhados principalmente por mulheres.

Jesus foi “concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria”, como diz o Credo Apostólico, e a Encarnação foi testemunhada antes de todos por Maria, sua mãe. Jesus “sofreu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”. A Expiação foi testemunhada, em todos os quatro Evangelhos, principalmente pelas seguidoras de Jesus. Então, ele “ressuscitou ao terceiro dia”. A ressurreição de Cristo também foi testemunhada em todos os quatro Evangelhos por mulheres.

Se não acreditarmos nas mulheres, então, teremos que dispensar os testemunhos oculares da Encarnação, da Expiação e da Ressurreição. Se não dermos ouvidos a elas, não teremos acesso às evidências para as verdades centrais da fé cristã.

“Acredite nas mulheres” tornou-se o polêmico slogan do movimento Me Too. Eu sei bem o que acontece quando não acreditamos nelas. Nos últimos meses, tenho vivido no centro de uma tempestade de traumas, consternação e profunda dor, pois novas alegações de abuso atingiram a organização dedicada à apologética, na qual servi anteriormente, o Ministério Internacional Ravi Zacharias. As revelações feitas por várias mulheres sobre abusos cometidos por Ravi Zacharias são horrendas, e as consequências catastróficas dessa sua lamentável duplicidade impactaram muitos.

Em 2017, porém, quando Lori Anne Thompson apresentou seu testemunho sobre o abuso sexual que sofreu nas mãos de Ravi, não acreditaram nela. Pude repassar em detalhes o que aconteceu internamente, na organização global, inclusive sobre como algumas mulheres na organização levantaram sérias questões sobre as explicações de Ravi e foram desacreditadas, pressionadas e persuadidas a aceitarem a narrativa oficial. Já pedi desculpas abertamente a Lori Anne e a seu marido, Brad, e o faço de novo aqui, publicamente.

Consequências devastadoras decorreram do fato de pessoas não ouvirem o testemunho de uma mulher — consequências que testemunhei e que sofri em primeira mão, mesmo quando tive de examinar e confessar minha própria cumplicidade. É nesse cenário que o slogan “acredite nas mulheres” ganhou força renovada para mim.

Como seguidora de Jesus, fico triste em saber que a igreja não parece ser melhor do que o mundo nesse aspecto. Com demasiada frequência, não acreditamos nas mulheres. Diane Langberg, renomada psicóloga e especialista em abuso, aponta que “ao longo dos estudos, as taxas de acusações falsas variam entre 3% e 9%”. No entanto, reiteradamente, as mulheres que apresentam testemunho não recebem credibilidade.

Quão profético e pungente, então, é o fato de, no coração da fé crista, estar o testemunho histórico de mulheres. O evangelho de Jesus Cristo exige que acreditemos na palavra das mulheres. A própria mensagem da Páscoa — “Cristo ressuscitou!” — é um testemunho de mulheres.

Sabemos que não era mais fácil acreditar nas mulheres nos dias de Jesus do que nos nossos. No mundo antigo, o testemunho das mulheres não tinha valor. Josefo, escritor judeu do primeiro século, escreveu: “Mas não seja admitido o testemunho das mulheres, por causa da leviandade e da ousadia de seu sexo”. Essa era a mentalidade da época. No entanto, no centro das proposições históricas da fé cristã, o testemunho das mulheres exige reconhecimento.

Isso importa. A fé em Cristo não é a realização de um desejo ou uma superstição cultural; está enraizada na história. Se é importante que essas coisas realmente tenham acontecido, também é extremamente significativo que as mulheres tenham desempenhado um papel tão relevante na observação e posterior testemunho desses eventos. Se acreditamos nos relatos do evangelho sobre Jesus de Nazaré, precisamos ouvir os testemunhos femininos dos quais esses relatos tanto dependem.

Mulheres como Maria Madalena, Joana, Suzana, entre outras, foram fundamentais para a vida e o ministério de Jesus. Elas o apoiaram com todas as suas posses (Lucas 8.2-3), estiveram perto dele em quase todos os momentos importantes de seu ministério, e invocaram detalhes de suas experiências para aqueles que quisessem ouvir.

É evidente que os quatro relatos do evangelho refletem intencionalmente as especificidades do testemunho das mulheres. O testemunho sobre o Cristo ressurreto, de fato, foi diferente porque veio de mulheres.

Primeiro, foi pessoal. Quando Maria Madalena diz: “Eu vi o Senhor!” (João 20.18), ela está declarando um fato a partir da verdade de sua própria experiência.

Em segundo lugar, o testemunho foi detalhado. As mulheres foram ao sepulcro de José de Arimateia, quando este estava sepultando Jesus, e viram “como o corpo de Jesus fora colocado nele” (Lucas 23.55).

Em terceiro lugar, seu testemunho foi autodepreciativo. Elas relataram aos escritores do evangelho que estavam “tremendo e assustadas” (Marcos 16.8).

Quarto, os testemunhos femininos sobre a ressurreição de Jesus também foram humildes e honestos. Elas disseram com toda franqueza o que não sabiam. “Tiraram o Senhor do sepulcro”, disse Maria Madalena a Pedro, “e não sabemos onde o colocaram” (João 20.2).

Quinto, seu testemunho foi firme diante do ceticismo. As mulheres que seguiam Jesus sabiam o que era contar sua história e ninguém acreditar, pois Lucas nos diz que os homens “não acreditaram nas mulheres” (Lucas 24.11).

Por fim, elas estavam genuinamente temerosas e, ao mesmo tempo, alegres. Quando testemunharam a evidência da Ressurreição, “as mulheres saíram depressa do sepulcro, amedrontadas e cheias de alegria” (Mateus 28.8).

Isso nos dá informações importantes em relação a como deveria ser o testemunho sobre o Cristo ressurreto hoje também. Talvez nosso testemunho cristão pudesse seguir mais conscientemente esse padrão demonstrado pelas seguidoras de Jesus. Não poderíamos ser também mais pessoais, detalhados, autodepreciativos e humildes em nossa apologética? Não podemos também aprender com as mulheres dos Evangelhos e prepararmos melhor, a nós mesmos e aos outros, para experiências comuns, como sermos rejeitados ou sentirmos medo, quando compartilhamos sobre Cristo neste mundo?

Parece claro que, como aprendemos nas Escrituras, “acredite nas mulheres” pode significar algo bastante profundo para um evangelismo e uma apologética humildes, pessoais e alegres nos dias de hoje.

Em seu ensaio “ The Human Not Quite Human”[O Humano-Não-Totalmente-Humano], escrito em 1938 e publicado em 1947, a escritora e poetisa Dorothy L. Sayers escreveu: “Talvez não seja de admirar que as mulheres tenham sido as primeiras na manjedoura e as últimas na Cruz. Elas nunca conheceram um homem como este Homem — nunca houve outro assim.” A atração magnética de Jesus de Nazaré é tão real hoje quanto foi no primeiro século e no século passado. Se pudermos acreditar naquelas mulheres, que foram as primeiras na manjedoura e as últimas na cruz, esse mesmo Jesus está vivo agora.

E, então, ficamos com esta pergunta: O que faremos em face da declaração e do testemunho das mulheres que nos transmitiram a história da encarnação de Deus, de sua morte expiatória e de sua ressurreição? Se Jesus morreu em uma cruz romana, como aquelas mulheres testemunharam, e se ele oferece perdão a todas as pessoas, por meio de seu sacrifício ali, nós receberemos isso? Se essas mesmas mulheres encontraram seu sepulcro vazio no terceiro dia, vale a pena considerarmos as implicações de seu triunfo sobre a morte em nossas próprias vidas e comunidades.

O que nós, homens e mulheres, faremos com o testemunho das mulheres sobre Jesus? Vamos acreditar nessas mulheres e pedir que outros também creiam?

“Acredite nas mulheres” é uma mensagem de Páscoa, sem sombra de dúvida.

Amy Orr-Ewing é presidente do The Oxford Centre for Christian Apologetics e autora de vários livros, entre eles, o mais recente, Where Is God in All the Suffering?

Tradução: Mariana Albuquerque

Edição: Marisa Lopes

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Books

O que as teorias sobre a expiação nos dizem a respeito de nossa política

Se foram desenvolvidas em seus contextos históricos, o que significam para nós, hoje?

Christianity Today April 3, 2023
Getty / arsenisspyros | Wikimedia Commons

Todos os cristãos concordam que a história da Páscoa é a história da nossa salvação. Paulo escreveu: “Por meio deste evangelho vocês são salvos, […] que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia” (1Coríntios 15.2-4). Foi por “nós e por nossa salvação”, como diz o Credo Niceno, que Jesus se fez carne, morreu e ressuscitou como “Senhor e Cristo” (Atos 2.36).

Mas como nossa salvação aconteceu, exatamente? As teorias sobre a expiação de Cristo contam histórias do mecanismo interno da Páscoa. E os três modelos mais populares ao longo da história da igreja — a teoria do Christus Victor, a teoria da satisfação e a teoria da substituição penal — são também notadamente políticas. Elas foram moldadas pelos contextos de governo em que surgiram.

Passei a gostar de estudar essas teorias porque isso esclareceu e enriqueceu minha compreensão do caráter de Deus, e porque aprender sobre os contextos políticos [em que elas surgiram] tem me mostrado para onde nossa sociedade está caminhando hoje.

Meu primeiro contato com a teoria do Christus Victor foi na obra O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, embora a teoria seja predominante entre os primeiros teólogos, como Orígenes, Atanásio e Gregório de Nissa. Estes falam de Jesus nos redimindo dos poderes opressores — o pecado, a morte, o Diabo —, aos quais estamos vinculados por nossa própria infidelidade. Cristo “desarmou” esses poderes e triunfou sobre eles na cruz (Colossenses 2.13-15). Deus se encarnou, como escreveu Ireneu, para que “Ele pudesse matar o pecado, privar a morte de seu poder e vivificar o homem”.

Isso fazia sentido no antigo mundo greco-romano, onde a conquista era algo comum e um redentor era aquele que podia comprar a liberdade de alguém que fora escravizado ou feito prisioneiro de guerra. No século 11, porém, quando os normandos trouxeram o sistema feudal para a Inglaterra, Anselmo, bispo de Cantuária, contou uma nova história da expiação.

Baseando se abertamente nas regras de honra e de hierarquia de sua época, a teoria da satisfação de Anselmo inverte os papéis: em vez de Satanás, é Deus Pai que exige que a dívida da humanidade seja paga, antes que a reconciliação possa ocorrer. Aqui, o pecado da humanidade viola a honra divina e exige uma satisfação que não conseguimos oferecer, de modo que Deus se torna humano para satisfazer essa obrigação em nosso nome.

Essa mudança de papel do Pai persistiu, quando a substituição penal surgiu, 500 anos depois, junto com o sistema jurídico moderno. Figuras como João Calvino, que estudou Direito antes de se tornar um reformador, substituíram a imagem de um servo que tentava satisfazer seu senhor por um tribunal, onde Deus, como justo juiz, condena pecadores que violam sua lei. Mas “Cristo se interpôs, tomou sobre si o castigo” e “propiciou a Deus Pai”, como escreveu Calvino em suas Institutas, baseando-se em passagens como Isaías 53.5-6 e Romanos 3.25, de modo que Deus não tem mais “uma disposição hostil para conosco, [com] seu braço levantado para nossa destruição”.

Eu entendo porque a substituição penal tornou-se “uma marca distintiva” do evangelicalismo, nas palavras do falecido J. I. Packer. Essa adoção é, em parte, de ordem teológica — abundam defesas convincentes da teoria —, mas, em parte, de ordem cultural. Posso explicar facilmente a substituição penal porque sabemos como funciona um tribunal. A substituição penal é inteligível de imediato no mundo da Reforma, do Renascimento, do Iluminismo e da Revolução Industrial.

De muitas maneiras, ainda vivemos no mundo [de então], mas, de outras muitas maneiras, não. Acho que o interesse que ressurge na teoria do Christus Victor, a visão mais convincente para mim, é um indicador pouco notado dessa mudança. Um Deus que esmaga o mal que nós não conseguimos derrotar e que nos liberta desse esforço é uma boa nova em uma cultura preocupada com a corrupção institucional.

A repercussão cultural, nova ou renovada, de uma teoria sobre a expiação não prova sua veracidade, evidentemente. As teorias podem atrair fãs por razões perversas. Alguns proponentes da teoria do Christus Victor, por exemplo, mostram-se por demais ansiosos em dispensar as noções de pecado pessoal.

Contudo, a resposta da cultura a uma teoria pode nos dizer algo sobre os anseios e as necessidades do nosso tempo. Ela oferece uma visão de nossos dramas políticos e também nos lembra das diferentes histórias que explicam a obra de Cristo na cruz.

Bonnie Kristian é colunista da Christianity Today e vice-editora do periódico The Week. Ela é autora de A Flexible Faith: Rethinking What It Means to Follow Jesus Today (2018) e Untrustworthy: The Knowledge Crisis Breaking Our Brains, Polluting Our Politics, and Corrupting Christian Community (2022).

Tradução: Mariana Albuquerque

Edição: Marisa Lopes

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Por que romper uma amizade machuca tanto

Para os crentes, relacionamentos antigos e novos têm peso e valor eternos.

Christianity Today March 29, 2023
Illustration by Christianity Today / Source Images: Unsplash / Getty

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore, cujos textos são escritos em inglês. Para recebê-la, inscreva-se aqui.

Quando viajei para a Califórnia, para a posse de meu velho amigo Matthew J. Hall como reitor da Biola University, comentei com minha esposa, Maria: “Eu me pergunto qual foi a frase que mais vezes eu já disse a Matt ou já ouvi da boca dele. Chegamos à conclusão de que foi a frase: “Nossa, que loucura foi aquilo!”

Matt e eu tivemos muitas oportunidades de dizer isso um ao outro, desde que nos conhecemos — nos tempos em que ele era um rastreador de chamadas para um programa de rádio que eu às vezes apresentava, como convidado. O trabalho de Matt era separar as pessoas que queriam fazer algum comentário relevante daquelas que estavam indignadas, depois de me ouvirem dizer algo positivo sobre Willie Nelson ou Harry Potter, por exemplo. (Aqueles eram tempos mais simples, leitor.) E, nos anos seguintes, sempre que algum debate explosivo no plenário de nossa denominação saía dos trilhos, muitas vezes olhamos um para o outro e dissemos: “Nossa, que loucura foi aquilo!”

Por 20 anos, pude rir junto com o Matt sobre uma ou outra demonstração de loucura — e sempre posso contar com ele para saber o que se qualifica como “loucura”. Nos dois dias em que o visitei recentemente, eu me peguei rindo das histórias que contamos e recontamos, mescladas de muitas frases que começavam com “Você se lembra daquela vez em que…?”

No passado, posso ter considerado “nostalgia” as lembranças de momentos assim, mas hoje as vejo como graça. E acho que devemos valorizá-las.

Novas amizades com frequência são feitas a partir de histórias. Sempre que você conhece alguém novo, essa pessoa pode lhe perguntar: “Então, qual é a sua história?” Mesmo quando não é dita diretamente, essa é uma pergunta que fica subentendida. Contamos trechos de nossas histórias de vida uns para os outros, e muitas vezes ficamos felizes em descobrir que essas histórias se encontram em certos pontos. Como C. S. Lewis apontou — em uma das passagens mais citadas de Os quatro amores —, nós costumamos dizer: “Você também? Eu pensei que era o único.” Sem novas amizades como essas, nossas vidas podem ficar estagnadas e entediantes.

Ainda assim, Dolly Parton e Kenny Rogers estavam no caminho certo quando cantavam: “Não se pode fazer velhos amigos”. As velhas amizades estão enraizadas em experiências comuns, que se acumulam com o tempo.

Quando você conta algo de sua história para um novo amigo, está dizendo algo semelhante a “É assim que eu sou. E você como é?” Quando passamos tempo com velhos amigos e contamos histórias de que lembramos, estamos fazendo algo diferente. Não estamos transmitindo informações; estamos revivendo nossas experiências. Estamos dizendo coisas como “Você acredita que pudemos ver isso?”, ou “Você acredita que sobrevivemos a isso?”, ou ainda “Você não sente falta daquilo?”, ou também “Você não está feliz que isso acabou?”

É apenas outra maneira de conhecermos uns aos outros — e de sermos conhecidos.

Nos últimos anos, centenas de pessoas vieram falar comigo sobre a dor de amizades desfeitas em suas vidas. Algumas vezes, essas amizades se romperam por causa de política — talvez por causa de diferenças de visões sobre Trump, a vacina contra a COVID-19, a teoria crítica da raça ou sobre qualquer outra questão divisiva, real ou imaginária.

Alguns tiveram uma amizade rompida por algum tipo de “desconstrução” ou separação da igreja. Para outros, amizades foram pelos ares na fúria de uma discussão. Em alguns casos, a amizade simplesmente acabou. No afã de respeitar com todo cuidado as zonas desmilitarizadas de coisas “seguras” sobre as quais falar, alguns amigos simplesmente não conseguiram mais juntar histórias suficientes em comum.

Seja qual for o motivo, romper amizades machuca, dói. Para todos aqueles que algum dia se mudaram na infância, sua mãe estava certa, quando dizia: “Você fará novos amigos”. Ainda assim, o que você sabia na época — e, no fundo, ainda sabe hoje — é que não se podem substituir os velhos amigos. Romper amizades é algo que machuca porque amizade é uma coisa muito importante.

As pessoas costumam criticar os cânticos evangélicos que falam de amizade com Jesus. “Jesus não é sua namorada”, alguns deles podem dizer. “Jesus é o seu Senhor, não seu amigo.” Jesus é Senhor, mas a maneira que ele define seu senhorio é, em parte, nos chamando de amigos. E Jesus fundamenta essa amizade em uma história comum, compartilhada. Os servos podem obedecer a seus senhores, mas não sabem o que está acontecendo além de suas tarefas imediatas. Jesus, porém, disse a seus discípulos: “Já não os chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz. Em vez disso, eu os tenho chamado amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu lhes tornei conhecido” (João 15.15).

Pouco depois de fazer essa declaração, porém, Jesus viveu o rompimento de certas amizades. Quando foi preso e condenado à morte, alguns de seus amigos não quiseram mais compartilhar de sua história.

Dos relacionamentos que se romperam, um foi irreparável (no caso de Judas); Jesus, porém, procurou os outros, depois de sua ressurreição. Ele se encontrou com Pedro — que havia negado até mesmo que conhecia Jesus —, enquanto Pedro estava pescando, exatamente do mesmo jeito que Jesus o chamou pela primeira vez (João 21.1-19). Talvez a fogueira que Jesus preparou — do mesmo tipo que aquela em que Pedro se amaldiçoou por tê-lo negado — foi a maneira de Jesus dizer: “Eu sei de tudo o que aconteceu e, mesmo assim, amo você”.

Jesus, então, repetiu as mesmas palavras que havia dito a Pedro, quando o encontrou pela primeira vez: “Siga-me!” (João 21.19). Talvez, isso tenha sido em parte uma tentativa de Jesus de lembrar a Pedro que eles ainda compartilhavam uma história — talvez tenha sido uma maneira de Jesus dizer: “Você se lembra daquela vez em que…?”. Que amigo temos em Jesus!

Cerca de uma vez por dia, vejo, ouço ou penso em algo que me faz lembrar de uma história que faria sentido apenas para um de meus velhos amigos — por exemplo, uma piada interna ou notícias sobre um conhecido em comum. E começo a ligar para essa pessoa, mas, então, percebo que não posso.

Às vezes não posso porque aquele velho amigo já faleceu. Às vezes é porque aquele velho amigo pensa agora que sou um “marxista cultural” ou algo do tipo. E outras vezes é porque simplesmente perdi o contato com aquele velho amigo, no turbilhão de nossas vidas atarefadas, e parece meio estranho ligar para ele depois de tanto tempo.

Talvez alguns de vocês nunca tenham vivido o fim de uma amizade, mas aposto que a maioria já teve essa experiência. E aposto que dói mais do que você quer admitir. Em muitos casos, não há nada que você possa fazer a respeito disso.

Mas há algo que você pode fazer: agradecer a Deus pelos novos amigos e continuar fazendo amizades.

E, enquanto faz isso, apegue-se com gratidão às velhas amizades, às pessoas com quem você compartilha histórias. Considere ligar para uma delas. Diga, talvez em voz alta, “eu te amo”, mesmo quando for estranho — ou, quem sabe, especialmente quando for estranho.

Reserve tempo para recontar velhas histórias ao lado daqueles amigos que saberão exatamente o que você quer dizer quando disser: “Você se lembra daquela vez em que…?” Permita que isso lhe aponte para a brevidade da vida e para além disso — para o dia em que tudo o que foi quebrado será consertado, o dia em que encontraremos tudo o que perdemos. Suponho que todos nos sentiremos como velhos amigos nesse dia.

E, enquanto aguardamos a glória da eternidade em constante expansão, quando olharmos para trás, podemos olhar nos olhos uns dos outros — apenas por um momento — e dizer: “Nossa, que loucura foi aquilo!”

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Projeto de Teologia Pública da revista.

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Júnia, a apóstola presa por causa do Evangelho

O que as Escrituras nos contam sobre a história desta “notável” judia que foi aprisionada.

Christianity Today March 28, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons

Cerca de uma década atrás, quando minha família estava de férias em Roma, na Itália, visitamos a Basílica di San Pietro in Vincoli (“São Pedro acorrentado”) — onde turistas e peregrinos cristãos vêm para ver a famosa estátua de Moisés, obra de Michelângelo, bem como um conjunto de cadeias que a tradição afirma terem sido usadas pelo apóstolo Simão Pedro, durante sua prisão (Atos 12.3-19).

Mas não foram apenas apóstolos do sexo masculino que foram privilegiados com esse presente indesejável de algemas. Paulo nos diz em Romanos 16.7 que Andrônico e Júnia, sua esposa, foram ambos presos por causa de Jesus: “Saudai a Andrônico e a Júnia, meus parentes e meus companheiros na prisão, os quais se distinguiram entre os apóstolos e que foram antes de mim em Cristo” (ARC).

Dois elementos deste versículo têm sido objeto de profundo escrutínio e vigoroso debate: Júnia era uma mulher? E ela era realmente uma “apóstola”?

Com relação à primeira pergunta, houve um intervalo de várias centenas de anos em que as traduções da Bíblia tratavam essa pessoa como um homem (usando o nome Júnias — observe o uso da letra “s”), principalmente porque era impensável que Paulo pudesse chamar uma mulher de “apóstola”. Contudo, estudiosos da Bíblia redescobriram sua identidade feminina nas últimas décadas, por várias razões, entre elas o fato de Júnia ser um nome feminino popular no período romano, enquanto não havia evidências em absoluto do nome Júnias.

E com relação à segunda pergunta, Paulo reconhece que o casal era judeu como ele e seguiu a Jesus antes dele. Como sabemos que Paulo passou a crer em Jesus não muito depois da ressurreição (digamos, por volta de 33 d.C.), Andrônico e Júnia estavam entre a “primeira geração” de líderes apostólicos cristãos.

De fato, a maioria dos pais e teólogos da igreja primitiva, no segundo, terceiro e quarto séculos, tinham como certo que (1) Júnia era mulher e que (2) Júnia era apóstola.

Como escreveu João Crisóstomo, teólogo e pregador do século quarto: “Ser apóstolo é algo grandioso. Mas ser notável entre os apóstolos, imagine que maravilhoso cântico de louvor isso é! […] De fato, quão grande deve ter sido a sabedoria dessa mulher, para que ela fosse considerada digna do título de apóstola”.

Orígenes, outro pai da igreja primitiva, perguntou-se se esse casal estava entre os 72 discípulos que foram enviados pelo próprio Jesus (Lucas 10.1; apóstolo significa “aquele que é enviado”).

Contudo, algo que muitas vezes é deixado de lado na discussão em torno de Júnia é sua prisão e o que isso nos diz sobre ela. A menção de Paulo a Júnia e a Andrônico, em Romanos, é muito mais do que uma simples saudação de alguém que está distante. Paulo estava destacando intencionalmente esse casal, a quem ele considerava cristãos que eram um modelo de fé intrépida e exemplar para a igreja em Roma.

A cultura romana promovia um ideal de mulher doméstica, quieta, obediente, charmosa e doce, que trabalhava com lã, cuidava dos filhos e do lar. E, muito embora os primeiros cristãos também acreditassem em um lar caloroso e estável, líderes como Paulo elogiaram entusiasticamente Júnia, bem como seu marido, por seu serviço e seu sacrifício na linha de frente do ministério do evangelho.

Paulo também celebra outro casal, Priscila e Áquila — líderes de igreja doméstica que arriscaram a vida pelo evangelho — bem como Febe, uma diaconisa da igreja. Ele ainda nomeia e elogia Epêneto como o primeiro convertido asiático. Paulo exalta essas e outras figuras humanas por sua fé corajosa — e, para alguns, ele aplaude sua fidelidade na prisão.

Olhando para as próprias experiências de Paulo, vemos que ele reconhece numerosos encarceramentos e menciona lado a lado a tortura, de um só fôlego (2Coríntios 6.5; 11.23). As prisões eram um dos lugares mais sombrios e horrendos da sociedade romana — então, o que uma mulher como Júnia estaria fazendo lá?

Entre os muitos milhares de textos gregos e romanos que temos da Antiguidade, quase não temos registro de mulheres em prisões romanas, que eram destinadas a manter encarcerados supostos infratores acusados de crimes graves, como assassinato e traição. No caso de pequenos crimes, o réu era multado ou espancado. No caso de uma ré, costumava ser mandada para casa e punida por sua família.

Para as pouquíssimas mulheres que eram presas, as condições eram horríveis: superlotação, espaços não arejados, escuros, pesadas e afiadas algemas de metal que muitas vezes cortavam a pele. Ainda por cima, sons de tortura ecoavam pelos corredores, e a realidade da violência sexual teria sido um medo constante para as poucas mulheres encarceradas.

Roma tratava as prisões como locais de detenção até o julgamento e a sentença, mas estas eram notoriamente brutais. Os prisioneiros não tinham direitos nem proteção como os que existem hoje. Muitos morriam antes mesmo de comparecer perante um juiz, alguns por suas próprias mãos.

Mas Paulo fala sobre o encarceramento de Júnia como uma medalha de honra, descrevendo a ela e a Andrônico como companheiros na prisão. Nesse texto, ele usa um termo específico para prisioneiro: synaichmalōtos, que significa tecnicamente “preso de guerra” ou “cativo de guerra”. E, como os cristãos não estavam em guerra política contra Roma em sentido literal, isso é uma metáfora. Paulo está dizendo que esses cristãos estão presos por causa do evangelho — por causa de seu testemunho público sobre Jesus Cristo.

Roma não era o verdadeiro inimigo nesta guerra — Paulo tende a voltar o foco para o pecado, a morte e Satanás, como os arqui-inimigos do evangelho. Ele entendia essa forma de prisão como uma forma de guerra espiritual. Mas por que exatamente Andrônico e Júnia estavam na prisão, para começo de conversa? De quais crimes eles eram acusados?

Levando em conta que Paulo elogiou os dois como heróis da fé, podemos presumir que não eram acusados de algo como assassinato ou violência. A opção mais provável é que essa dupla de apóstolos tenha sido colocada sob custódia por incitar alguma perturbação pública, enquanto pregava o evangelho em algum espaço público. Minha mente evoca o incidente de Éfeso, em Atos, no qual o ministério de Paulo provocou um tumulto. Um líder local, Alexandre, acalmou a multidão, alertando-os sobre a intervenção romana (Atos 19.21-41).

Do mesmo modo, imagino que apóstolos como Andrônico e Júnia iam de cidade em cidade pregando para pessoas, em ambientes públicos e privados, realizando milagres, libertando cativos e enfrentando as consequências de causar alvoroço por todo o mundo, como diz Atos 17.6. Junto com esse casal, Paulo também chamou Aristarco e Epafras de “companheiro[s] de prisão” (Colossenses 4.10; Filemom 23). O que todos eles têm em comum é o distintivo ilustre do cativeiro por causa do evangelho de Jesus Cristo.

Em suas famosas homilias bíblicas, João Crisóstomo defendia que as cartas que os apóstolos escreviam enquanto estavam presos são mais preciosas do que aquelas escritas quando estavam em liberdade. Ele escreve: “Ah! Essas cadeias abençoadas! Oh! Essas mãos abençoadas, adornadas por aquelas correntes!”. E continua, dizendo que nenhum milagre de cura nas Escrituras se compara à glória dessas correntes.

Por que há tanta reverência pelos grilhões de metal do cativeiro?

Primeiro, porque os crentes que são presos por sua fé são forçados a pensar de forma mais profunda e clara sobre a vida e a morte, e sobre a importância das coisas eternas. Contudo, ainda mais fundo nos leva o texto de Filipenses 3.10, em que Paulo escreve: “Quero conhecer a Cristo, ao poder da sua ressurreição e à participação em seus sofrimentos, tornando-me como ele em sua morte”.

Os primeiros líderes cristão, como Júnia, tiveram o distinto privilégio de viver essa comunhão de sofrimento em suas prisões pelo evangelho. Aqueles que sofreram tais degradações, com Jesus e por ele, provaram a força de sua fé, a verdade de sua convicção e a extensão de seu amor por Cristo, que primeiro deu a vida por eles.

Para Paulo, não havia fruto maior do que uma nova fé no evangelho e não havia marca maior de perseverança do que ser um cativo em correntes pelo evangelho. Crisóstomo estava certo: essas correntes são preciosas — não como relíquias sagradas, mas como prova de que estimaram e pagaram o custo de obedecer à comissão de dar testemunho público do evangelho.

Nijay K. Gupta é professor de Novo Testamento no Northern Seminary e autor de Tell Her Story: How Women Led, Taught, and Ministered in the Early Church .

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