A maneira como trata seus membros mais vulneráveis revela o caráter de uma igreja. Os pobres, os exilados, as viúvas e os órfãos constituem, segundo o filósofo americano Nicholas Wolterstorff, o “quarteto da vulnerabilidade”. A meu ver, não seria exagero incluir, entre as viúvas, as brasileiras vítimas de violência doméstica, mulheres invisíveis que têm clamado por socorro, mas cujo grito ainda encontra pouca ressonância.
O panorama da violência doméstica no Brasil
O Brasil é um lugar perigoso para as mulheres. Em 2018, a cada duas horas, uma mulher foi assassinada, segundo dados do Atlas da violência. A cada dois minutos, houve um espancamento, e todos os dias, uma média de 180 estupros. Esses indicadores colocam o país entre os campeões globais de agressão contra mulheres, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O pior é que os números são subnotificados, uma vez que,de acordo com o Anuário, apenas 40% das vítimas registram a ocorrência.
O Atlas da Violência 2020 mostra ainda que, enquanto os indicadores gerais de violência no Brasil melhoraram ao longo da última década, as mortes violentas de mulheres aumentaram 4,2%, entre 2008 e 2018. Outra pesquisa — realizada pelo Datafolha entre os dias 05 e 06 de dezembro de 2019 — mostra que as igrejas evangélicas brasileiras são compostas em sua maioria (59%) por mulheres negras e pobres. Esse grupo, que representa justamente o público majoritário nos bancos das igrejas evangélicas brasileiras, foi o mais atingido: a taxa de homicídio entre as mulheres negras aumentou 12,4% no período, enquanto caía 11,7% entre as não negras, segundo dados do Atlas da violência. Enquanto no Brasil 54% da população é negra, um levantamento feito pelo IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — divulgado no fim de 2021, também mostra que a média de ganhos de pretos e pardos equivale a menos de dois terços da renda dos brancos, evidenciando a desigualdade e maior vulnerabilidade dessa população.
A violência doméstica nos lares
As mulheres evangélicas aparecem em destaque nesse quadro dramático. A pesquisadora Valéria Vilhena entrevistou muitas dessas vítimas de agressão para sua tese de mestrado, que mais tarde virou livro: Uma igreja sem voz: análise de gênero da violência doméstica entre mulheres evangélicas. Sua pesquisa revelou que 40% dessas mulheres entrevistadas eram evangélicas. Ela analisou os relatos de mulheres acolhidas pela Casa Sofia, um centro de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica, na zona sul de São Paulo, a maior cidade brasileira. Seu estudo viralizou, tornando-se referência nesse tema.
Sua pesquisa revela que as igrejas e suas lideranças, inadvertidamente, têm colaborado para perpetuar esse trágico cenário. Ao buscarem o pastor de sua comunidade local para aconselhamento e apoio, na esperança de escapar de uma realidade de agressões físicas e psicológicas, muitas mulheres são recebidas, invariavelmente, com o mesmo discurso: “Irmã, você deve orar mais, jejuar, clamar a Deus pela conversão de seu esposo”. Eles citam 1Pedro 3.1-2: “Se ele não obedece à palavra, seja ganho sem palavras, pelo procedimento de sua mulher, observando a conduta honesta e respeitosa de vocês”.
Esse tipo de atitude, que trata uma questão penal com ferramentas espirituais, coloca lenha na fogueira da violência contra a mulher evangélica brasileira. Desta maneira, muitos pastores, ainda que sem perceber, têm contribuído para a perpetuação da violência doméstica nos lares cristãos, que resulta, em alguns casos extremos, no assassinato das mulheres envolvidas. Poucos deles entendem o impacto negativo e as consequências que sua teologia tem para as sobreviventes.
Essas nossas irmãs de fé são vitimizadas duplamente: pela violência em casa e por uma leitura legalista das Escrituras, que as mantém aprisionadas, pedindo socorro e esperando somente em Deus por livramento, enquanto essa ajuda poderia vir de seus próprios pastores.
Em minha pesquisa realizada para escrever o livro O grito de Eva, lançado pela Thomas Nelson Brasil em 2021, entrevistei algumas dessas mulheres sofredoras, entrando em contato pela primeira vez com um universo repleto de dor e ressentimento. Muitas tiveram a juventude destruída pelo convívio com homens impiedosos, alguns inclusive empoderados pelas lideranças da igreja.
Uma questão complexa e desafiadora
“Por que essas mulheres ficam e se submetem a isso?”, eu me perguntei muitas vezes após as entrevistas. Atrás de uma resposta, procurei psicólogos com experiência em atender cristãos evangélicos, como a analista Dora Eli Martin Freitas, de corrente junguiana. Segundo Dora, essas mulheres muitas vezes reproduzem padrões familiares e já vêm de um contexto de violência:
Em alguns casos, é a mãe dominadora e cruel; em outros, o pai autoritário ou alcoólatra e opressor. O filho ou aprende a ferir com as mesmas armas com que foi ferido, tornando-se mau e até perverso, ou se transforma numa pessoa passiva, amedrontada. Os homens que espancam suas mulheres também trazem esse histórico.
O comportamento subalterno da mãe em relação ao pai, ou o contrário, pode resultar em traumas nos filhos, que se tornam ou muito agressivos ou excessivamente passivos. Ainda segundo Dora Eli, essas mulheres mais passivas, que não conseguem externar seus desejos, são propensas a somatizações, desde uma enxaqueca que nunca se cura até um câncer. É a forma que elas encontram de suportar. Elas não conseguem levar uma vida autêntica, nem transgredir, então acabam cometendo uma traição a si mesmas.Transgredir, neste sentido junguiano, conforme explica Dora, é a pessoa deixar de cumprir a expectativa dos outros sobre si mesma. É quando a pessoa enxerga o padrão a que foi submetida e tem a coragem de dizer: “Eu não sou e não serei esta pessoa”. É ter a ousadia de romper com essa expectativa.
Além dessas questões de fundo psicológico, a dependência financeira do agressor é outro motivo importante para que essas mulheres permaneçam caladas. O medo de seus parceiros é a maior razão pela qual as mulheres não os denunciam, de acordo com uma pesquisa nacional do Instituto DataSenado, realizada com 2.400 mulheres. A segunda razão é a falta de autonomia financeira.
Submissão
Como cristãos, todos somos chamados a manifestar uma disposição de servir e de nos sujeitar ao próximo, por temor a Cristo (Efésios 5.21). Essa convocação geral também se aplica especificamente às relações conjugais. O desafio é evitar que a obediência a esse princípio nos transforme em vítimas numa relação desequilibrada, em que predomina o exercício do domínio de um cônjuge sobre o outro.
Após esse princípio geral, o texto de Efésios 5 prossegue, descrevendo em detalhes o que espera da dinâmica específica para o relacionamento conjugal. “Mulheres, sujeitem-se a seus maridos, como ao Senhor” (Efésios 5.22). E acrescenta, logo em seguida: “Maridos, amem suas mulheres, assim como Cristo amou a igreja e entregou-se a si mesmo por ela” (Efésios 5.25). Portanto, o texto mostra que à submissão da mulher deve corresponder o amor sacrificial do marido por ela. Assim, segundo o conceito bíblico de submissão, a mulher não deve se submeter à violência do marido, mas, sim, ao seu amor.
A psicologia também nos ajuda a entender melhor o conceito bíblico de submissão.“Eu entendo”, afirma Dora, “que servir o outro não é se sujeitar ao poder do outro. Trata-se de demonstrar a disponibilidade de ajudar o outro, independentemente de quem seja este outro. Mas não é sujeitar-se ao papel que ele representa”.“Muitas vezes esposo e esposa são apenas papéis pré-estabelecidos, cheios de estereótipos, e para cumprir esses papéis, as pessoas precisam virar ‘personas’, ou seja, atores, distanciando-se do seu eu mais profundo. Transgredir, neste caso, é dizer — não aceito viver como um ator.”
Muitos pastores apenas reforçam os estereótipos femininos, limitando as mulheres às caixinhas da religião ou mesmo da cultura, na visão de Dora Eli. É como aquele ditado alemão, que reserva às mulheres os três “k”: kinder,küche und kirche, ou seja, filhos, cozinha e igreja.
A compreensão do conceito bíblico de submissão também recebe ajuda do universo jurídico. A advogada Priscila Diacov trabalha como mediadora de conflitos familiares em São Paulo e tem contribuído para levar informação às igrejas. Em suas palestras, ela ensina sobre as diferentes formas de abuso e mostra que a atitude das mulheres evangélicas, em comparação com a das não evangélicas em geral, está relacionada ao ensinamento da submissão ao marido a qualquer preço, à obrigação de ter que perdoar o parceiro por seus atos violentos, à culpa por prejudicar sua reputação dentro da comunidade, caso venha a denunciá-lo, e ao medo de ser julgada por estar indo contra a Palavra de Deus. “Elas também se sentem culpadas por não orarem o suficiente para que o cônjuge mude de comportamento e, no caso de pedirem o divórcio, julgam-se as responsáveis por destruir a família.”
Com base nesse conceito equivocado de submissão, os pastores e líderes muitas vezes estão ajudando a formar e a disseminar modelos mentais distorcidos e difíceis de serem mudados. Mas pouco progresso pode ser feito, se não confrontarmos essas convicções e não trouxermos à luz suas distorções das Escrituras. Segundo a visão de Daniela Grelin, diretora do Instituto Avon, organização filantrópica com diversos programas de combate à violência contra a mulher: “Na essência da cultura judaico-cristã está a ideia da dignidade da pessoa humana criada, homem e mulher, à imagem e semelhança de Deus. Este é o padrão que deve ser ensinado.”
O desafio da mudança
A violência contra a mulher não é um problema só das mulheres, mas de todas as esferas sociais: de famílias, igrejas, empresas e das autoridades públicas constituídas. Todos podemos desempenhar um papel de conscientização em nossas áreas de influência. Segundo Daniela Grelin, da mesma maneira que não podemos deixar que apenas os negros lutem pelo fim do racismo, ou relegar apenas aos judeus lutarem contra o antissemitismo, assim também não é possível relegar somente à mulher a defesa desta causa. “É necessário engajar os homens nesta mudança.”
Iniciar um trabalho de acolhimento a vítimas de agressão dentro das igrejas depende de um forte engajamento da liderança. “É um trabalho complexo, de muitas mãos, e depende de capacitação de pastores e líderes eclesiais,” diz Priscila Diacov.
Infelizmente, porém, a questão do uso de violência doméstica por parte de homens cristãos não faz parte dos assuntos que figuram nas agendas dos pastores. Eles simplesmente ignoram essa realidade ou atribuem às mulheres a responsabilidade de lidar com o problema. Muitos desconhecem as diferentes formas de abuso, estão mal informados sobre questões de gênero e violência infantil, por exemplo.
Com apoio de voluntários e membros das áreas de saúde mental, direito ou assistência social, os pastores e demais lideranças da igreja local poderiam montar pequenos espaços seguros de escuta e acolhimento. “Importa que essas mulheres sejam escutadas, acolhidas e que recebam orientação adequada para preservação da vida e de sua dignidade,” acrescenta Priscila Diacov.
Mas os agressores também precisam de ajuda. Homens maduros e capacitados podem formar grupos de conversa focados em escuta e mentoria, pois muitos destes agressores trazem feridas emocionais profundas,fruto dos abusos sofridos por eles na infância.
A violência doméstica, infelizmente, é um problema social gravíssimo e generalizado,desafiador tanto para países menos desenvolvidos da América Latina como para países mais ricos do Hemisfério Norte. Num país como o Brasil, no qual a pandemia aprofundou o desemprego, a pobreza e a desigualdade, a violência contra a mulher evangélica é mais um item em uma agenda social desafiadora.
A igreja de Cristo, em sua multiforme sabedoria e discernimento, tem, sim, força moral e conteúdos capazes de reduzir esses terríveis indicadores, tornando-se parte da solução, e não mais do problema. Afinal, todos recebemos, por meio de Cristo, o ministério da reconciliação (2Coríntios 5.18). Mas, para isso, é essencial que os ensinos que tratam da submissão feminina sejam íntegros, e convoquem não somente as esposas a terem uma atitude de companheirismo amoroso e de respeito para com seus maridos, mas também os maridos a amarem suas mulheres como Cristo amou a igreja, e por ela se sacrificou.
Marília de Camargo Cesar nasceu em São Paulo, é casada e tem duas filhas. Jornalista, é editora-assistente de projetos especiais do Valor Econômico, maior jornal de economia e negócios do Brasil. É também autora de livros que provocam reflexão nas lideranças evangélicas. Suas obras mais conhecidas são Feridos em nome de Deus, Marina — a vida por uma causa e Entre a cruz e o arco-íris.