“Faz morada em mim, Jesus”, canta Ana Castela em “Agradeço”, single que a cantora pop lançou em dezembro. A letra lembra palavras que as congregações evangélicas cantam em seus cultos por todo o país: Eu entrego, eu confio, eu aceito e agradeço.
“A Boiadeira”, seu primeiro hit, traz palavras como “Largou o vinho pra tomar cerveja, a patricinha virou boiadeira”. A maior parte de suas músicas fala de relacionamentos, traições e bebida, temas comuns da música sertaneja.
Embora venha de uma família católica e ocasionalmente tenha cantado em cultos evangélicos para jovens na adolescência, Castela entrou na indústria como cantora pop secular. “Agradeço” é seu primeiro single cristão como artista solo. (E marcou também a estreia do Agropraise, um braço cristianizado do selo sertanejo Agromusic.)
Ana Castela faz parte de um número crescente de artistas que estão entrando no mercado cristão e lançando músicas gospel e de adoração na última década. Em 2022, Simone, da antiga dupla sertaneja Simone e Simaria, cantou “Sobre as Águas” com Davi Sacer, cantor de música cristã contemporânea. Em 2021, o cantor de forró Wesley Safadão cantou “Deus tem um plano” com a banda Casa Worship. Em 2018, o cantor pop Luan Santana e a dupla Marcos & Belutti gravaram versões de músicas gospel conhecidas.
Desde 2015, a popularidade da música gospel brasileira cresceu substancialmente. De acordo com o Spotify, a audiência do gênero cresceu em média 44% por ano, entre 2015 e 2020. E embora artistas estrangeiros, como a banda de adoração Hillsong United, sejam populares entre os cristãos brasileiros, os artistas gospel nacionais estão conquistando seu próprio nicho e criando algumas das músicas cristãs mais ouvidas em todo o mundo. Este ano, somente de janeiro a março, o número de ouvintes de música gospel no Spotify cresceu mais 46%.
Atualmente, a música gospel representa 20% da receita da indústria musical brasileira, algo que as principais gravadoras internacionais perceberam. Em 2010, o Sony Music Group fez do Brasil a primeira região fora dos EUA a ter uma filial dedicada exclusivamente à música gospel, e passou a contratar profissionais de gravadoras cristãs. O Universal Music Group seguiu o mesmo caminho em 2013.
Historicamente, no Brasil, assim como nos EUA, a música cristã contemporânea — tanto gospel quanto de adoração — existe como uma subcultura própria, fora do mainstream, com suas próprias estrelas, gravadoras e premiações. Ao longo dos anos, alguns artistas americanos de música cristã encontraram sucesso no mainstream, fora do tradicional segmento da música cristã contemporânea, mas nos EUA e no Brasil, essas histórias de sucesso têm sido raras. Hoje, no cenário musical brasileiro, artistas que se identificam como evangélicos estão subindo nas paradas de sucesso seculares, e a música gospel tem uma participação de mercado muito maior do que a música cristã contemporânea jamais teve nos EUA, por exemplo. Essa expansão e o sucesso de artistas de outros segmentos, como Ana Castela, quase certamente estão relacionados com o crescimento explosivo da igreja evangélica no país.
“No passado, os evangélicos eram uma minoria recatada”, disse Joêzer Mendonça, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e autor de Música e Religião na Era do Pop. “O evangélico contemporâneo já não se esconde. Ao contrário, ele gosta de ostentar sua condição, e isso se reflete no consumo musical.”
As gravadoras e os profissionais de marketing da área musical enxergam oportunidades nesse cenário religioso em constante mudança. “Empresários, agentes, gravadoras, todos eles devem estar dizendo ‘nós temos que gravar isso!’”, disse Mendonça.
Cansados das letras sexualmente explícitas e dos palavrões na música secular, muitos cristãos apoiam a proliferação da música gospel e o seu impacto potencial sobre cantores seculares. Mas, conscientes dos incentivos econômicos que os artistas podem ter para lançar faixas gospel, alguns pastores e teólogos estão pedindo à igreja que mostre discernimento.
“O cara cantar uma música não significa que ele se converteu”, disse Carlinhos Veiga, pastor presbiteriano que é cantor e compositor. “Mas também não dá para dizer que é só interesse.”
O medo de restringir o público
Embora os artistas seculares apresentem frequentemente imagens públicas que não se alinham com o perfil esperado de um “artista cristão”, muitos cresceram em lares cristãos e até frequentaram igrejas, onde aprenderam a cantar ou a tocar um instrumento musical.
Algumas denominações, como a Assembleia de Deus, a Congregação Cristã no Brasil e os Adventistas do Sétimo Dia, têm a reputação de disponibilizar o ensino de instrumentos musicais para todos os congregantes. Enquanto as aulas particulares de música são acessíveis apenas aos ricos, as igrejas podem oferecer aulas nas quais todos podem aprender gratuitamente a tocar trompete, trombone ou trompa. Muitas também oferecem aulas de canto, e a maioria das igrejas pequenas tem seus próprios corais.
“Muitos têm uma família evangélica, gostam de estar na igreja, mas têm uma relação complicada com a fé, uma vez que não têm frequência constante nos cultos”, disse Renato Marinoni, pastor e fundador do Instituto de Adoração, Cultura e Arte, uma escola de treinamento ministerial focado em adoração e artes. “E não são pouco os que se deslumbram quando alcançam algum sucesso. Começam a achar que a igreja é pequena demais para o talento deles”.
Alguns cantores podem começar na indústria da música gospel, mas se afastarem da música religiosa para construir uma carreira de sucesso no mainstream. A sabedoria popular há muito diz que fazer música gospel restringe o público do músico.
“Durante muito tempo, essa interação [entre a música gospel e a música secular] não era bem-vista, o mercado achava que isso restringia o público”, disse Marcell Steuernagel, diretor do programa de mestrado em música sacra da Southern Methodist University, em Dallas, que cresceu liderando o louvor na igreja luterana brasileira, antes de se mudar para os EUA.
Hoje, ao que parece, os artistas não são mais forçados a decidir entre fazer música para a igreja ou alcançar sucesso comercial.
“Alguns desses artistas vão cantar música de adoração por saudosismo”, disse Veiga. “E alguns são realmente cristãos e sabem que, agora, vão ter público, caso venham a cantar louvor em uma casa de espetáculos ou em um teatro”.
Esse fenômeno não é necessariamente exclusivo do Brasil, diz Steuerngel. No Brasil e nos EUA, a música de igreja tem fornecido um repertório conhecido, do qual os artistas podem fazer uso por diversas razões, seja por interesse pessoal ou pelos interesses que percebem em seu público. Músicos americanos populares como Elvis Presley ou Aretha Franklin gravaram hinos ou canções gospel. Carrie Underwood regularmente canta “How Great Thou Art” [Quão grande és tu”] em shows, durante suas temporadas em Las Vegas. E Justin Bieber posta vídeos nas redes sociais dele mesmo participando de cultos de adoração ou cantando uma canção de louvor em casa.
A demanda por música gospel sugere ainda uma mudança na relação do público com a espiritualidade. A música cristã parece ter apelo por seus potenciais efeitos terapêuticos, mesmo para ouvintes que não se consideram cristãos praticantes.
“Tem gente que não frequenta cultos evangélicos, não tem uma vida ligada aos valores cristãos, mas ouve esse estilo musical”, disse Marinoni. “Dizem que traz paz.”
O problema da aprovação
Embora não tenham sido incorporadas ao culto das igrejas, as canções de adoração de muitos artistas seculares são tocadas nas rádios cristãs e aparecem em playlists de streaming de músicas de adoração. Embora a maioria dessas canções tenham compositores seculares, artistas cristãos já participaram de uma série de parcerias, o que às vezes gerou forte resistência.
Em 2022, o cantor e compositor cristão Kleber Lucas lançou um dueto com Caetano Veloso, famoso cantor pop e ativista ateu. Depois que a interpretação deles ganhou um prêmio, um deputado evangélico zombou do anúncio [do prêmio], enquanto um influenciador cristão o chamou de “cristianismo aceito pelo mundo”.
Em 2023, Priscilla Alcântara, cantora popular da música gospel, juntou-se no Carnaval com cantores seculares num trio elétrico. Os evangélicos atacaram a cantora por aparentemente comprometer os seus valores cristãos.
Fernandinho, outro cantor gospel, criticou as parcerias entre artistas cristãos e seculares e acusou os cantores gospel de menosprezarem o evangelho com essas interações. Em 2021, ele postou um vídeo no qual usou o texto de 2Coríntios 6.14-15 para dizer que “não pode haver comunhão” entre esses dois grupos.
“Como eu posso caminhar e até mesmo cantar com inimigos de Deus?” ele disse. “Jesus não passa a mão na cabeça nem omite os valores do reino.”
Para a maioria destes artistas seculares, as incursões na música cristã são apenas parte de suas apresentações e das faixas que gravam.
“O artista não tem compromisso com o que a igreja canta, ele está interessado em se expressar”, disse Marinoni. “A responsabilidade da igreja é estar perto do artista e discipulá-lo, se ele estiver disposto a isso”.
Para Ana Castela, gravar “Agradeço” foi uma forma de “agradecer a Deus por todas as coisas que ele já fez por nós, todos nós”.
“Eu adoro cantar gospel, só acho que a minha área não é no gospel. Minha área é aqui, no sertanejo, e eu gosto muito do pop também”, disse ela ao Correio Braziliense. “Se um dia Deus me permitir entrar no gospel, estou aqui de braços abertos e coração quentinho para ele!”
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