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A quem pertence a alma do acarajé?

Por décadas tido como oferenda das religiões de matriz africana, o prato tornou-se alvo de debate quando evangélicos começaram a produzi-lo e a vendê-lo.

Uma mulher preparando acarajé na feira de Ipanema, Rio de Janeiro.

Uma mulher prepará o acarajé.

Christianity Today January 10, 2025
Silvia Izquierdo, AP Images / Edits by CT

É verão, e muitos turistas chegam ao Nordeste ansiosos para passear pelas ruas de paralelepípedos de Salvador, capital famosa por sua cultura afro-brasileira. Muitos deles experimentarão comidas típicas em uma das muitas barracas coloridas que vendem especialidades culinárias locais, como o acarajé.

Ou talvez, se você preferir, o “bolinho de Jesus”.

O bolinho de feijão-fradinho temperado com cebola e frito em azeite de dendê se tornou uma fonte de tensão entre duas comunidades que crescem e se posicionam cada vez mais: cristãos evangélicos e praticantes de religiões de matriz africana, e seus respectivos defensores. Há muito tempo fonte de orgulho para uma comunidade marginalizada, a preparação e a venda dessa iguaria são regulamentadas pelo Estado. O desconforto dos evangélicos sobre seu uso em práticas espirituais tradicionais das religiões de matriz africana entrou em choque com aqueles que veem essas preocupações como desrespeitosas e racistas.

“Não é só uma iguaria”, disse Luiz Nascimento, diretor acadêmico do Seminário Teológico Batista do Nordeste, em Feira de Santana. “O acarajé tem uma história relacionada a práticas religiosas que lhe dão outra dimensão.”

O acarajé chegou ao Brasil por meio do tráfico de escravos, que começou em 1540 e durou mais de três séculos. O Brasil só aboliu a escravidão em 1888, sendo o último país nas Américas a fazê-lo, e por anos essa atividade foi um pilar da economia do país.

Africanos escravizados trouxeram na bagagem um prato do outro lado do Atlântico chamado acara ou “bola de fogo de comer” em iorubá, provavelmente uma referência à cor avermelhada do bolinho. Muitos deles continuaram a adorar as divindades de seu local de origem, os orixás, que mais tarde passaram por um processo de sincretismo com santos católicos e se desdobraram em comunidades religiosas em partes de países como Brasil, Cuba e Haiti.

Praticantes do candomblé, que é o maior desses grupos, frequentemente usam certos pratos para se conectar com os orixás, disse Patrício Carneiro Araújo, antropólogo da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, e certos alimentos são ligados a entidades específicas e oferecidos a elas. O acarajé é associado primordialmente a Yansã, uma orixá guerreira e padroeira dos ventos e do fogo, que é casada com Xangô, o orixá da justiça.

Embora o acarajé tivesse um significado sagrado, os escravos também o vendiam durante as poucas horas do dia em que podiam trabalhar para si mesmos, e o lucro dessas vendas frequentemente financiava a liberdade de indivíduos escravizados ou de seus familiares. Mais tarde, os terreiros, locais de culto das religiões de matriz africana, começaram a financiar sua prática religiosa com a venda de acarajé.

Hoje, pelo menos 3.500 pessoas trabalham na indústria do acarajé em Salvador, amassando feijão-fradinho e fritando a massa de acordo com receitas passadas de geração em geração. Os fabricantes de aracajé entregam seus bolinhos para as baianas de acarajé, vendedoras que devem seguir determinações estaduais que regulam o tipo de comida que podem vender com o acarajé e o traje que podem usar. Seu uniforme inclui colares conhecidos como guias, cujas contas são feitas de sementes ou de cristais e têm uma cor relacionada ao orixá que a baiana adora.

A relação direta entre o acarajé e as religiões de matriz africana mudou à medida que o cenário religioso e demográfico no Brasil foi se transformando, nos últimos 50 anos, apesar de o Nordeste ter consistentemente a menor população evangélica das cinco regiões do Brasil.

A woman prepares acaraje
Acarajé sendo frito.

Em 1970, os evangélicos representavam 3% da população dessa região. Em 2000, eles representavam 10% e, em 2010, 16%. (O censo mais recente, realizado em 2022, publicará novas apurações ainda este ano.)

Muitos evangélicos brasileiros são negros e integram uma comunidade que continua sofrendo preconceito e racismo, mais de um século após a abolição da escravidão. Mais pobres do que a média dos brasileiros, muitos deles abraçaram ensinamentos pentecostais, na segunda metade do século 20, nos quais encontraram consolo e esperança em meio a circunstâncias desafiadoras. De acordo com o censo de 2010, há 14 milhões de evangélicos negros no país, em comparação com os 300.000 brasileiros negros que seguem religiões de matriz africana.

 “Se você for a Salvador hoje, e quiser comer um acarajé”, disse Araújo, “há grande chance de ele ter sido preparado por uma senhora ou um senhor evangélicos”.

O Ofício das Baianas de Acarajé, que comercializam a tradicional iguaria na orla de Salvador, é um bem imaterial registrado como Patrimônio Cultural do Brasil e protegido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Quando algumas dessas baianas de acarajé (quase todas elas negras) se converteram a uma religião evangélica, muitas se sentiram desconfortáveis ​​em vender um produto vinculado à adoração de orixás. No início da década de 2010, algumas vendedoras até tentaram rebatizar o prato como “bolinho de Jesus”. Alguns pastores pregaram contra o acarajé nas redes sociais, chamando-o de pecaminoso.

Estudiosos das religiões de matriz africana têm uma visão diferente da situação.

Negar o caráter religioso do prato ou tentar “convertê-lo” é uma estratégia do racismo, disse o antropólogo e babalorixá (sacerdote do candomblé) Pai Rodney de Oxóssi. “A escravidão acabou, mas as coisas não mudaram para os negros no Brasil por muito tempo”, disse Araújo. “O racismo sobrevive nas atitudes cotidianas, e até mesmo na religião e na comida.”

Nascimento notou uma disparidade em quem está sendo criticado.

“Se você for a um restaurante chinês ou japonês, dificilmente vai se preocupar com a religião do proprietário ou com o que ele faz na cozinha”, disse ele. “Por que existe essa preocupação com o alimento de origem africana?”

 “Existe uma intolerância religiosa com as comidas de terreiro”, escreveu Aline Chermoula, uma estudiosa da culinária ancestral africana.

Em resposta às atitudes de alguns cristãos em relação ao acarajé, legisladores locais de algumas cidades da Bahia criaram regras rígidas sobre como cozinhar e vender os produtos tradicionais, efetivamente proibindo que o acarajé fosse rebatizado com outro nome. Hoje, o estado da Bahia reconhece oficialmente o legado cultural dessa iguaria, e o país dedica a mesma honra ao traje das baianas, em nível nacional, uma estipulação que impede as pessoas de fazerem mudanças nos trajes.

Quando adolescente, Luiz Henrique Caracas, pastor de uma igreja da Assembleia de Deus em Ilhéus, ouviu um pastor usar 1Coríntios 10.21 como justificativa para evitar o acarajé: “Vocês não podem beber do cálice do Senhor e do cálice dos demônios”. Segundo Caracas, o pastor estava procurando um lugar para comer, ao voltar de uma viagem, e o único lugar que encontrou foi uma barraca de acarajé. O pastor, então, orou em voz alta, na frente da vendedora, repreendendo os demônios e consagrando a comida a Jesus antes de comê-la.

A história surpreendeu Caracas, que cresceu comendo acarajé preparado por seu pai. Para seus muitos clientes, José Luiz dos Santos Silva era conhecido como Irmão Luiz do Abará (o abará é feito com os mesmos ingredientes do acarajé, mas cozido no vapor, em vez de frito).

O irmão Luiz do Abará cresceu em uma família católica simpatizante das tradições afro-brasileiras, antes de abraçar o cristianismo evangélico, no final dos anos 1980. Hoje com a saúde frágil, ele raramente vende seus produtos. Mas, durante anos, sua igreja pedia a ele para preparar acarajé e abará em seus eventos.

O prato era algo tão familiar para Caracas, seu filho, que este jamais imaginaria que alguns irmãos e irmãs de fé tivessem restrições a ele. “Para mim, comer acarajé sempre foi tão natural quanto comer qualquer outro prato”, disse Caracas, que dirige a Escola de Teologia Pentecostal Eclésia, em Ilhéus, e tem entre seus alunos uma vendedora de acarajé.

Nos últimos anos ocorreram poucos confrontos que tenham gerado notícias na mídia, embora os praticantes do candomblé continuem a ser incomodados por evangélicos na indústria do acarajé, muitos dos quais expressam com orgulho sua identidade, ao nomearem suas barracas de “El Shaddai” ou “Acarajé Gospel”.

Para Nascimento, todos os dilemas que ele enfrenta hoje em dia sobre comer acarajé ou apoiar um vendedor específico dessa iguaria se resumem a uma questão de saúde. Seus níveis de colesterol levaram a restrições alimentares que proíbem alimentos fritos, como é o acarajé.

Quando podia comer, Nascimento consumia acarajé com frequência, e dava graças a Deus por isso todas as vezes. Ele citou 1Coríntios 10.30: “Se participo da refeição com ação de graças, por que sou condenado por algo pelo qual dou graças a Deus?”

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