Culture

A arte não precisa ser cristã para ser “boa”

Os cristãos tendem a julgar a cultura pop e como ela afeta a nossa fé, mas o que realmente importa é nossa própria conformidade com Cristo.

An old TV with a fuzzy screen and an antenna made from a fork and knife.
Christianity Today October 17, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Getty

Dos programas de televisão indicados ao Emmy deste ano, meu marido e eu assistimos a todos os episódios de The Crown, um pouco de Abbott Elementary e alguns episódios de Only Murders in the Building. Quando tínhamos uma assinatura do Hulu — plataforma de streaming —, assistimos à primeira temporada de The Bear e várias temporadas de What We Do in the Shadows. (Desde então, cancelamos nossa assinatura, então, infelizmente, não assistimos à Reservation Dogs).

Pergunte-me o que gostei ou não gostei em qualquer uma dessas séries, e eu posso lhe dizer: os diálogos, os cenários, os figurinos, o ritmo. Mas você pode não concordar com meus vereditos. Acho extraordinariamente engraçado What We Do in the Shadows, uma série sobre vampiros que vivem em Staten Island — uma região de Nova York. E engraçado a ponto de rir alto. Mas e Ted Lasso, que é uma série sobre um time de futebol? Três anos atrás, a série conquistou o Emmy. Tenho amigos que adoram essa série. Mas eu assisti, e me desculpe … Ted Lasso simplesmente não é para mim.

É uma questão de gosto. Como diz o ditado, gosto não se discute — mas os cristãos certamente estão inclinados a tentar discutir. Somos instruídos a voltar nossos pensamentos para “tudo o que for verdadeiro, tudo o que for digno de respeito, tudo o que for justo, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, em tudo o que houver alguma virtude ou algo de louvor” (Filipenses 4.8). Sendo assim, quais pinturas, obras literárias, séries, novelas e filmes se enquadram [nesses critérios]?

Acho que essa é a pergunta errada a se fazer. Como editora de cultura da CT, frequentemente encontro escritores tentando discutir seus álbuns pop favoritos ou filmes de sucesso a partir dessa perspectiva. “Não se preocupe”, eles argumentam, “isso é conteúdo cristão!Ou ao menos contém temas cristãos. O filme menciona jardins, água e vinho. A música fala de amor e esperança de maneiras que repercutem com as Escrituras. Os cristãos podem gostar desse programa de TV e assisti-lo, porque ele não apenas é de boa qualidade, mas também é verdadeiro, digno de respeito, justo, puro, amável e de boa fama.

Esse tipo de análise geralmente não leva a nada. Tende a parecer algo forçado — tolo, na melhor das hipóteses, ou desonesto, na pior delas. E, no entanto, entendo seu apelo. Não queremos que as obras de arte que admiramos sejam contrárias às reivindicações da nossa fé. Queremos seguir a prescrição de Paulo de “pensar nas coisas do alto”, de modo que procuramos encontrar esse caráter “elevado” em seriados e músicas pop (Colossenses 3.2). Temos medo de voltar a um fundamentalismo reflexivo que vê a música, a literatura ou o cinema “mundanos” como algo inerentemente perigoso.

Mas a verdade é que o melhor da música, o melhor da literatura e o melhor do cinema fazem referência à nossa fé, de certa forma. Essas obras contam histórias, e o cristianismo conta a grande história que está por trás de todas elas. Na medida em que as obras de arte contam a verdade sobre a natureza humana e o mundo em que vivemos, seremos capazes de encontrar os fios que tecem a trama dessa conexão — ainda que essa conexão nos diga algo extremamente simples como, por exemplo, “o pecado é real”.

O evangelho de Jesus dá sentido ao sacrifício e tipifica o amor, e distingue a vida da morte. Agora, assim como no princípio, temos o Verbo, a Palavra, sustentando a comédia e a tragédia, o absurdo e a futilidade, o sofrimento e a alegria. Nesse sentido, toda obra de arte é aquele altar ateniense de Atos 17, dedicado a um Deus com bastante frequência desconhecido.

Contudo, a possibilidade de um programa de televisão nos fazer pensar sobre o que é nobre e puro muitas vezes tem menos a ver com o programa em si e mais a ver conosco como espectadores. Para Paulo, o altar ao Deus desconhecido foi a base para um sermão que apontava para o Deus que ele, Paulo, conheceu em Cristo Jesus. No entanto, para milhares de atenienses que diariamente viam aquela obra, essa conexão era impensável.

Assim, reformulo a minha pergunta anterior da seguinte maneira: quais pinturas, obras literárias, séries, novelas e filmes se enquadram [nesses critérios de Filipenses 4.8] em relação a mim?

Quais obras de arte podem inspirar cada um de nós — com nossas respectivas sensibilidades estéticas únicas, com as preferências pessoais que Deus nos deu por determinadas piadas, com nossos pecados recorrentes — a refletir sobre o que é admirável e justo?

Colocar a questão dessa forma não desconsidera as diretrizes de Filipenses 4.8. Alguns filmes, músicas ou textos — como aqueles que contêm violência totalmente gratuita ou sexualidade pornográfica — nunca ajudarão nenhum de nós a meditar sobre as coisas do alto. A arte não é como carne sacrificada a ídolos (1Coríntios 8.4-8); não é tudo neutro para o cristão. Nem tudo deve estar disponível à mesa.

No entanto, essa abordagem abre espaço para a personalidade, a flexibilidade e, sim, para o gosto [de cada um]. Eu me deleitei com a série premiada Breaking Bad e com Better Call Saul, a pré-sequência derivada de Breaking Bad. Essas séries são violentas, mas não me levaram à tentação da fúria. Após assistir a cada episódio, passei dias meditando sobre boas intenções e motivos subjacentes e o quanto somos suscetíveis a explicações inconsistentes para o nosso próprio comportamento.

Mas Baby Reindeer [Bebê Rena] eu não tive estômago para assistir. Seu retrato da fragilidade humana se alinhava com meu entendimento da realidade corrompida pelo pecado. Mas as representações de violência sexual da série me deixaram enjoada; elas ficavam na minha cabeça muito tempo depois de eu ter desligado a TV. O programa me parecia sombrio; fazia com que eu me sentisse sombria. Decidi não terminar de assistir à série.

O contrário pode ter sido verdade em relação a outro crente: essa pessoa pode ter gostado de Baby Reindeer, mas não de Breaking Bad. Nesse sentido, a arte é como aquela carne sacrificada a ídolos: o que é uma pedra de tropeço para um de nós não será para o outro (1Coríntios 8.9-13).

Isso torna a tarefa do crítico cristão ao mesmo tempo mais difícil e mais interessante. Nosso trabalho não é justificar nosso gosto em termos de cultura, mas sim explicar o que vemos, a partir de um ponto de vista voltado para Cristo. Não devemos dizer: “esta arte tem ares cristãos”. Devemos afirmar: “aqui está o que eu percebi, como cristão, ao apreciar esta obra”.

Não precisamos tentar forçar os artefatos culturais dentro de uma forma composta por um conjunto de parâmetros que eles nunca foram feitos para atender, ajustando a classificação de modo que os nossos favoritos sejam aprovados. Em vez disso, o que devemos fazer é nos achegar a esses artefatos como pessoas transformadas, com mentes renovadas e vermos o que eles têm a nos oferecer.

Não é dessa forma que a maioria de nós pensa sobre gosto hoje em dia, sejamos nós cristãos ou não, mas isso remete a uma tradição mais antiga. Houve um tempo em que os filósofos pensavam no gosto não em termos de “qual banda você gosta, quais livros você lê, quais roupas você veste”, explicou o escritor Kyle Chayka em uma entrevista recente com o crítico Ezra Klein. Em vez disso, eles entendiam o gosto “como uma experiência humana mais fundamental, como uma capacidade moral, uma maneira de julgar o que está ao seu redor e avaliar o que é bom e… quase torná-lo parte de você”.

Desenvolver o gosto dessa forma exigirá uma confiança, nascida da santificação e informada pelo Espírito, sobre o que é bom e digno de nossa atenção. Também exigirá humildade sobre a nossa própria capacidade de enxergar o que é bom, sobre nossos discursos autolisonjeiros a respeito do que gostamos e não gostamos, e sobre o fato de que nossas mentes sempre podem mudar, talvez em razão da visão de outro crente.

É assim que eu, como crítica cultural cristã, espero que meu gosto pessoal atue: como um guia que aponta para o que é amável, virtuoso e louvável. Como algo que auxilia a minha fé. Como um meio de encontrar Deus em uma pincelada, em um diálogo que me faz rir, em uma verdade bem escrita.

Kate Lucky é editora sênior de cultura e engajamento da Christianity Today.

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