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Morre Jürgen Moltmann, o teólogo da esperança

Após se converter a Cristo em um campo de prisioneiros de guerra, ele tornou-se um renomado estudioso cristão e ensinou que “Deus chora conosco para que um dia possamos rir com ele”.

Christianity Today June 6, 2024
Bernd Weissbrod/picture-alliance/dpa/AP Images / edits by Rick Szuecs

Jürgen Moltmann, teólogo que ensinava que a fé cristã é alicerçada na esperança da ressurreição do Cristo crucificado, e que o reino vindouro de Deus atua sobre a história humana a partir do futuro escatológico, morreu no dia 3 de junho, em Tübingen, Alemanha. Ele tinha 98 anos.

Moltmann é amplamente considerado um dos teólogos mais importantes desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com o teólogo Miroslav Volf, a sua obra foi “existencial e acadêmica, pastoral e política, inovadora e tradicional, fácil de ler e ao mesmo tempo exigente, contextualizada e universal”, pois ele mostrou como os temas centrais da fé cristã falavam às “experiências humanas fundamentais” de sofrimento.

O Conselho Mundial de Igrejas relata que Moltmann é “o teólogo cristão mais lido” dos últimos 80 anos. Martin Marty, um estudioso da religião, disse que seus escritos “inspiram uma Igreja incerta” e “livram as pessoas das mãos sem vida de um passado morto”.

Moltmann era luterano, mas muitos adeptos do evangelicalismo se engajaram profundamente em sua obra. O popular autor cristão Philip Yancey chamou Moltmann de um de seus heróis, e disse, em 2005, que ele havia “trabalhado duro” [para ler] quase uma dúzia dos livros dele.

Os editores da Christianity Today criticaram a teologia de Moltmann, quando a abordaram pela primeira vez, na década de 1960, mas ainda assim elogiaram o seu trabalho.

“Como resultado do livro de Moltmann, ficamos sem palavras”, escreveu G. C. Berkouwer [em um artigo da CT de 1968], “e somos lembrados de pensar e de pregar sobre o futuro numa perspectiva bíblica. Se isso acontecer, todas as interações teológicas deram bons frutos”.

Hoje, os evangélicos que são fundamentalmente críticos das opiniões de Moltmann — e discordam com veemência de um ou outro aspecto —; ainda assim, encontram muita coisa a ser valorizada e com frequência encorajam outros a lê-lo.

“Moltmann foi um ponto de referência constante para mim”, escreveu Fred Sanders, teólogo sistemático da Universidade Biola, na plataforma social X. “No ano passado, ensinei um pouco sobre seu livro O Deus crucificado, e fiquei impressionado com o quanto sua voz ainda é poderosa para os estudantes. […] E mesmo para mim, que estou aqui do outro lado de divergências que permanecem, reler Moltmann significa encontrar, linha após linha, maneiras cativantes de colocar as coisas.”

Wesley Hill, professor de Novo Testamento, disse que discordava de Moltmann “no que parecem ser todas as principais doutrinas cristãs”. No entanto, “poucos teólogos me comoveram, me provocaram e me inspiraram como ele. Sua obra toda gira em torno do Jesus crucificado e ressurreto”.

Moltmann nasceu em uma família não religiosa, em 8 de abril de 1926. Seus pais, segundo ele escreveu em sua autobiografia, eram adeptos de um movimento em prol da “vida simples”, comprometido em levar “uma vida simples e cultivar pensamentos elevados”. Eles moravam em um assentamento de pessoas com ideias semelhantes, numa área rural, nos arredores de Hamburgo. Em vez de ir à igreja, os Moltmann trabalhavam no jardim, nas manhãs de domingo.

Mesmo assim, a família colocou o filho nas aulas de crisma, na igreja estatal local, quando ele atingiu a idade exigida. Isso era visto como um rito de passagem. Moltmann lembra-se de ter aprendido muito pouco sobre Jesus, ou sobre a Bíblia ou a vida cristã. O pastor concentrou suas aulas na tentativa de provar que Jesus não era judeu, mas era, na verdade, fenício e, portanto, ariano, ensinando às crianças a teologia antissemita promovida pelos nazistas.

“Era um total absurdo”, disse Moltmann.

Mais ou menos na mesma época, em outro rito de passagem, Moltmann foi enviado para a Juventude Hitlerista. Embora os uniformes e os hinos o fizessem sentir-se muito patriótico, como lembrou mais tarde, ele era péssimo para marchar e odiava os exercícios militares. Em um acampamento, ele se viu amontoado em uma barraca com dez meninos. A experiência deixou-o com a forte sensação de que gostava de estar sozinho.

Apesar do antissemitismo desenfreado da época, o herói da infância de Moltmann foi Albert Einstein, que era judeu. Moltmann queria ir para a universidade e estudar matemática. Esse sonho foi interrompido pela Segunda Guerra Mundial.

Aos 16 anos, Moltmann foi convocado para servir na Força Aérea e designado para defender Hamburgo com um canhão antiaéreo de 88 mm. Ele e um colega de escola chamado Gerhard Schopper ficavam estacionados em uma plataforma, que fora montada sobre palafitas em um lago. À noite, olhavam para as estrelas e aprendiam sobre as constelações.

Então, os britânicos atacaram. Eles enviaram 1.000 aviões, em julho de 1943, para lançar explosivos e bombas incendiárias sobre a cidade, iniciando uma tempestade de fogo que derreteu metal, asfalto e vidro. Qualquer coisa orgânica — madeira, tecido, carne — foi consumida por aquele mar de fogo. As temperaturas acima de 760 graus Celsius sugavam o ar das ruas, de modo que a cidade soava, segundo um sobrevivente, “como um velho órgão de igreja, quando alguém toca todas as notas ao mesmo tempo”.

A operação — que não tinha como alvo instalações militares nem fábricas de munições, mas sim “o ânimo da população civil inimiga” — recebeu o codinome “Gomorra”, em homenagem à cidade bíblica destruída por Deus em Gênesis 19. Cerca de 40 mil pessoas foram mortas.

Quando o ataque terminou, Moltmann se viu flutuando no lago, agarrado a um pedaço de madeira que partiu-se da sua plataforma de canhão, a qual fora explodida. Seu amigo Schopper estava morto.

Tempos mais tarde, ele descreveria isso como sua primeira experiência religiosa.

“Enquanto milhares de pessoas morriam na tempestade de fogo ao meu redor”, disse Moltmann, “clamei a Deus pela primeira vez: Onde está você?

Ele não obteve resposta naquele dia. Mas, dois anos depois, ele foi capturado na linha de frente e enviado para um campo de prisioneiros de guerra, na Escócia. Um capelão deu-lhe um Novo Testamento que também tinha o livro de Salmos, e ele começou a ler o Salmo 39 todas as noites:

Ouve a minha oração, Senhor;
escuta o meu grito de socorro;
não sejas indiferente ao meu lamento. (v. 12)

Ele leu o Evangelho de Marcos e sentiu-se profundamente atraído por Jesus. A crucificação o deixou sem chão.

“Eu não encontrei Cristo. Ele é que me encontrou”, disse Moltmann mais tarde. “Lá, naquele campo de prisioneiros de guerra escocês, no fosso escuro da minha alma, Jesus me procurou e me encontrou. ‘Ele veio buscar e salvar o que estava perdido’ (Lucas 19.10), e foi assim que Jesus veio até mim.”

Aos 22 anos, quando regressou à Alemanha —– um país em ruínas —– foi para a escola estudar teologia. Os nazistas foram expulsos das universidades, durante a reconstrução liderada pelos americanos, e entre os expulsos estava o teólogo da Universidade de Göttingen, Emmanuel Hirsch, que cantarolava o hino nacional nazista entre as aulas, e certa vez afirmou que Adolf Hitler foi o maior estadista cristão da história do mundo.

Em Göttingen, Moltmann estudou com pessoas alinhadas à Igreja Confessante e que ensinavam a teologia de Karl Barth. Ele escreveu uma dissertação sobre um calvinista francês do século 17, concentrando-se na doutrina da perseverança dos santos.

Enquanto estava na escola, Moltmann se apaixonou por outra estudante de teologia, Elisabeth Wendel. Eles concluíram o doutorado juntos e se casaram em uma cerimônia civil, na Suíça, em 1952.

Depois de se formar, Moltmann foi enviado para pastorear uma igreja em um vilarejo remoto na Renânia do Norte-Vestefália. Ele deu aulas para uma turma de confirmação [crisma] de “50 meninos selvagens” e, no inverno, fazia visitas domiciliares sobre esquis. As pessoas pediam que ele trouxesse arenque, margarina e outros alimentos da loja, quando ele viesse.

“A primeira pergunta que me faziam em todos os lugares era se eu acreditava no Diabo”, lembrava Moltmann, anos mais tarde. Ele ensinava às pessoas que elas poderiam afastar o Diabo recitando o Credo Niceno. Mas não estava convencido de que elas lhe davam ouvidos.

A segunda igreja para onde enviaram Moltmann também foi um desafio. Ele foi mandado para uma pequena aldeia no norte do país, perto de Bremen. Havia ratos no porão da casa paroquial, camundongos na cozinha, e morcegos e corujas no sótão. Cerca de 100 pessoas frequentavam a igreja — mas não vinham todas juntas, nem regularmente. Nas manhãs de domingo, o jovem ministro ficava esperando na janela, perguntando-se se alguém viria à igreja.

No entanto, ele conquistou algum respeito entre os agricultores, por sua habilidade num jogo de cartas chamado Skat, e aprendeu a pregar sermões que se conectavam com as pessoas. Moltmann aprendeu que, se os agricultores mais velhos revirassem os olhos enquanto ele pregava, era porque a sua teologia tinha se distanciado muito das preocupações da vida real.

“A menos que a teologia acadêmica se volte continuamente para esta teologia do povo, ela torna-se abstrata e irrelevante”, escreveu ele mais tarde. “Eu não estava totalmente preparado para ser pastor, mas estava feliz por ter experimentado a vida humana em toda a sua plenitude e profundidade: crianças e idosos, homens e mulheres, saudáveis ​​e enfermos, nascimento e morte, etc. Eu me daria por feliz se tivesse continuado a ser um teólogo/pastor.”

Em 1957, Moltmann deixou o ministério pastoral para ensinar teologia. Ele deu aulas sobre vários tópicos, mas ficou especialmente interessado na história da esperança cristã pelo reino de Deus.

Ao mesmo tempo, começou a se envolver com a obra de um filósofo marxista chamado Ernst Bloch. Moltmann escreveu diversas resenhas críticas dos livros de Bloch, mas achava suas ideias instigantes. Bloch argumentava que a vida caminhava dialeticamente em direção a uma utopia final. Na sua obra-prima de três volumes, Das Prinzip Hoffnung [O princípio da esperança], ele defendia a esperança revolucionária, alegando que o marxismo era guiado por um impulso místico e antecipatório de um cumprimento final.

Embora fosse ateu, Bloch citava frequentemente as Escrituras. Ele dizia que estava tentando articular a “consciência escatológica que veio ao mundo através da Bíblia”.

Moltmann observou que, embora muitos teólogos tivessem escrito sobre fé e amor, havia pouca coisa escrita na tradição protestante sobre esperança. A teologia “abandonou seu próprio tema”, dizia ele, e Moltmann, então, decidiu assumir a tarefa.

Ele começou a lecionar sobre o tema primeiramente na Universidade de Bonn, e, depois, na Universidade de Tübingen, onde passaria o resto de sua carreira.

Moltmann publicou Theologie der Hoffnung [Teologia da esperança] em 1964. A obra foi recebida com intenso interesse. O livro teve seis edições em dois anos e foi traduzido para vários idiomas estrangeiros. Em 1967, foi lançado em inglês pela primeira vez, e ganhou tanta atenção dos teólogos que atraiu o interesse do The New York Times.

Numa matéria de primeira página, publicada em março de 1968, o jornal noticiou que os debates voltados para a teologia da moda, que falava sobre a “morte de Deus”, tinham sido substituídos por uma discussão sobre a ideia de Moltmann, teólogo alemão de 41 anos, de que Deus “atua sobre a história humana a partir do futuro escatológico”. Citaram isto como palavras ditas por Moltmann: “o cristianismo é escatologia do início ao fim, e não apenas no epílogo”.

O jornal maravilhou-se com o fato de esta “teologia da esperança” ter como fundamento a crença na ressurreição, “algo que muitos outros teólogos consideram hoje um mito”.

Alguns críticos da época, no entanto, temiam que esta ênfase na escatologia ofuscasse a obra de Cristo na cruz. Eles disseram que o foco de Moltmann nas coisas últimas ignorava ou até mesmo minimizava a importância da crucificação.

Moltmann chegou a pensar que havia algo naquela crítica, durante um simpósio sobre a Teologia da Esperança, na Universidade Duke, em abril de 1968. Durante uma das sessões, o teólogo Harvey Cox entrou correndo na sala e gritou: “Martin Luther King foi baleado”.

A conferência rapidamente se desfez, enquanto os teólogos lutavam para voltar para casa, em meio a relatos de tumultos em todo o país. Mas os alunos da Duke — que pareciam não se importar nem um pouco com a teologia da esperança — reuniram-se para uma vigília espontânea no pátio da escola. Eles choraram a morte de Martin Luther King por seis dias. No último dia, estudantes negros de outras escolas juntaram-se aos estudantes brancos, e, juntos, cantaram o hino dos direitos civis “We Shall Overcome” [Nós vamos vencer].

Moltmann, comovido pelo poder transformador do sofrimento, começou a trabalhar em seu segundo livro, Der gekreuzigte Gott [O Deus crucificado]. Foi publicado em 1972, e lançado em inglês dois anos depois.

“A identidade cristã só pode ser entendida como um ato de identificação com o Cristo crucificado”, escreveu Moltmann. “A ‘religião da cruz’[…] não eleva e edifica no sentido habitual, mas escandaliza; e, acima de tudo, escandaliza os “correligionários” do seu próprio círculo. Mas, por meio deste escândalo, traz libertação para um mundo que não é livre.”

Moltmann uniu as duas ideias — o sofrimento de Cristo e a esperança dos cristãos — e isso se tornou o cerne da sua teologia. Ele ensinava que as pessoas deveriam “acreditar na ressurreição do Cristo crucificado e viver à luz de sua realidade e futuro”.

Ou dito de forma mais simples: “Deus chora conosco para que um dia possamos rir com ele”.

Moltmann aposentou-se em 1994, mas continuou a trabalhar com estudantes de pós-graduação por muitos anos. Quando sua esposa morreu, em 2016, ele escreveu seu último livro sobre morte e ressurreição.

Moltmann deixa quatro filhas.

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