Como os cristãos podem se libertar de uma visão de mundo guiada por maldições

Um pastor nigeriano se recusa a viver dessa forma — e quer ajudar a igreja africana a fazer o mesmo.

Christianity Today June 19, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty

Godwin Adeboye percebeu algo intrigante no local onde moradores de Ibadan, uma cidade no sudoeste da Nigéria, estavam despejando seu lixo.

No local onde as pessoas deixavam o lixo, o governo havia colocado uma placa que dizia: “Não jogue seu lixo aqui. Se fizer isso, o governo multará você.”

Em outro local, alguém havia escrito uma mensagem diferente: “Se você despejar seu lixo aqui, eu o amaldiçoo em nome do meu deus ancestral.”

“Se alguém disser: ‘Se jogar lixo aqui, você morrerá jovem, perderá sua fortuna ou perderá todos os seus filhos em um só dia’, ninguém vai jogar lixo lá, porque as pessoas têm medo de maldições”, disse Adeboye, pastor e diretor de pesquisa do Seminário Teológico Evangelical Church Winning All [ECWA] em Igbaja, Nigéria.

O peso das maldições não era algo que Adeboye via de longe apenas. Quando vários membros da sua família morreram, aparentemente de causas misteriosas, muitos sugeriram que as maldições poderiam ser as responsáveis [pelas mortes]. Esses argumentos levaram Adeboye a estudar esse fenômeno de uma perspectiva bíblica e a escrever a obra Can a Christian Be Cursed? [Um cristão pode ser amaldiçoado?, Langham, 2023].

“Escrevi este livro a partir da minha própria experiência e do que vejo meus irmãos e irmãs africanos vivenciando”, disse ele. “Muitos africanos, até mesmo cristãos, às vezes acreditam que seus problemas financeiros, morais ou conjugais acontecem porque alguma maldição ‘espiritual’ específica os atormenta, em vez de assumirem a responsabilidade pessoal que deveriam.”

Além disso, Adeboye se sentiu compelido a abordar uma questão significativa no cristianismo africano a partir de uma perspectiva cristã africana.

“Li vários livros escritos sobre o cristianismo africano, e muitos autores não são empáticos com a experiência africana”, disse ele. “Para tornar o evangelho cristão concreto para os africanos, devemos dialogar com a experiência africana.”

Confira a seguir a conversa de Adeboye com Geethanjali Tupps, editora global de livros da CT.

Conte-nos um pouco sobre o lugar de onde você veio na Nigéria.

Eu venho do estado de Kwara, que fica no centro-norte da Nigéria e é o berço de centenas de grupos etnoculturais, de várias tradições religiosas e de fortes tensões inter-religiosas. O povo iorubá é um grande grupo étnico na Nigéria. Existem redes de igrejas africanas carismáticas e pentecostais profundamente religiosas que foram fundadas e lideradas por muitos integrantes do povo iorubá. A maioria dos cristãos de origem iorubá, como eu, tem profundas raízes religiosas baseadas nas tradições africanas.

Kwara não é apenas um estado iorubá, mas um estado com uma mescla religiosa e cultural composta pelos grupos étnicos hausa, fulani, nupe e iorubá, bem como por muçulmanos, cristãos, tradicionalistas e outros grupos religiosos.

Na minha comunidade, as pessoas têm explicações metafísicas para experiências da vida. Como tive o privilégio de aceitar o Senhor em uma idade muito tenra, tenho uma resposta diferente para as questões da vida. Quando enfrento situações desafiadoras, não sigo a interpretação tradicional que atribui os desafios da vida a maldições ou ao diabo.

O que é uma maldição? Como ela se manifesta na vida cotidiana africana?

Muitos africanos interpretam diferentes circunstâncias da vida como expressões de maldições. Quando um casal não consegue ter filhos, por exemplo, eles acham que sua família ou seu casamento está amaldiçoado. Alguém que luta contra o alcoolismo pode acreditar que seus pais são amaldiçoados.

Além disso, muitos acreditam que nomes podem ser amaldiçoados. Eles acreditam que as maldições podem ser passadas de geração em geração [de uma família], e por isso, às vezes as pessoas mudam de nome. As sociedades africanas têm uma rica tradição ligada a essa questão de dar nomes. Um nome reflete certas coisas sobre a pessoa que o carrega. Portanto, muitos africanos acreditam que seu nome é uma entidade espiritual que deve ser purificada e abençoada. Quando algumas pessoas se tornam cristãs, por exemplo, elas mudam o nome que lhes foi dado por seus “pais não cristãos”. Muitos cristãos temem que maldições sejam transferidas por meio de nomes de família.

Na cultura autóctone africana, muitas coisas podem ser amaldiçoadas: a família, o casamento, as terras de alguém, um prédio, o local de trabalho, até mesmo uma igreja.

Os cristãos africanos ficam confusos, pois a Bíblia ensina que eles são nova criatura, mas, quando passam por situações difíceis, eles se perguntam se o que aconteceu com seus pais, antes de se tornarem cristãos, está impactando negativamente suas vidas.

Como a Bíblia aborda a questão das maldições?

Para os cristãos, a resposta às maldições deve ser cristológica. A cruz de Cristo pagou todas as nossas dívidas. No entanto, a Bíblia nos mostra claramente que tanto a graça humana quanto o livre-arbítrio individual são vitais para o propósito humano; isto é, a maneira como as coisas acontecerão para os seres humanos [é] determinada pela graça de Deus e pela resposta humana. Quando um ser humano aceita Cristo, é purificado das maldições ou dívidas geracionais.

O primeiro passo para a libertação das maldições geracionais/ancestrais é viver uma vida transformada, que tome como modelo a Palavra de Deus. Mas o fenômeno das maldições pode ser complexo, e meu livro descreve como lidar com essas questões complexas relacionadas a maldições.

Qual é a relação entre maldição e família?

Maldições geracionais, ou maldições herdadas, são uma crença de que coisas negativas que aconteceram aos antepassados ​​de alguém também podem acontecer a pessoas da mesma família (como morte súbita, pobreza, acidentes, falta de emprego, instabilidade financeira, desintegração familiar).

Entrevistei colegas do Zimbábue, Quênia, Malawi, Moçambique, Gana, República do Benim, Nigéria e Congo, e descobri que pessoas de toda a África temem maldições, e que muitos cristãos acreditam que são afetados por maldições herdadas.

A família não é apenas uma instituição social na África; ela também é uma instituição espiritual. O casamento também é uma instituição espiritual. Há uma conexão espiritual entre pai e filho, entre mãe e filho, e eles acreditam que algo que aconteça ao pai também pode acontecer ao filho, pois ambos estão conectados espiritualmente.

Hoje existem maldições geracionais, mas somente para aqueles que não aceitaram o Senhor Jesus. Se uma pessoa se encontra em Cristo, ela é nova criatura. Essa liberdade em Cristo não nega a responsabilidade moral cristã, porém. Quando um filho de Deus, que é genuíno de fato e nascido de novo, passa por desafios na vida, isso não se deve a maldições, mas é para a glória do Senhor e o crescimento espiritual desse crente.

O que são bruxas?

Em geral, para que as maldições sejam eficazes, a maioria dos africanos acredita que a pessoa “amaldiçoada” deve ter ofendido a pessoa que a “amaldiçoa”. No entanto, as bruxas são indivíduos cujas maldições podem atuar sem que haja nenhuma ofensa prévia. Naturalmente, as pessoas as temem.

O medo de maldições rogadas por bruxas não se dá apenas por elas serem bruxas; há muitos africanos que também temem as palavras negativas de qualquer líder religioso. Os cristãos africanos temem que seus pastores os amaldiçoem em orações. Além disso, nas orações feitas em muitas igrejas na África, maldições invocadas sobre os inimigos têm prioridade. Em meu livro, chamo isso de “usar maldições para curar maldições”.

No Antigo Testamento, frequentemente vemos Deus proclamar bênçãos ou maldições sobre as gerações futuras. Como você concilia essas crenças de seus conterrâneos africanos com as palavras de Deus no Antigo Testamento?

À primeira vista, a noção africana sobre maldições é semelhante aos exemplos do Antigo Testamento (AT) em que Deus coloca maldições sobre as pessoas. Mas um olhar mais atento revela diferenças críticas. As maldições de Yahweh no AT são em grande parte maldições condicionais e relacionadas à santidade de Deus. Na África, porém, a maioria das maldições é incondicional. Em meu livro, argumento que Deus não amaldiçoa seus filhos, nem mesmo no AT. As famosas maldições de Gênesis 3, por exemplo, não são maldições, mas sim punições. Deus não amaldiçoou Adão ou Eva. Ele amaldiçoou a terra, o trabalho humano e o parto. No próprio pronunciamento da punição também está a promessa da bênção mais significativa de todas: a promessa da vinda de Cristo.

Meu livro argumenta que as maldições e as bênçãos de Yahweh no AT não são automáticas nem incondicionais; elas invocam responsabilidade moral, justiça e santidade divina. As maldições de Yahweh no AT não devem nos fazer ver Deus como um Ser terrível, mas sim como um Deus justo. Elas mostram que as ações humanas determinam suas consequências. A sociedade africana precisa libertar a mente sobre essa questão, pois muitos acreditam que, mesmo quando a pessoa se torna cristã, as maldições familiares ainda atuam.

Você acredita que as bênçãos geracionais existam hoje?

Eu vi montes de oração, centros de oração e casas de oração por todo o continente, e todos receberam nomes baseados em maldições. Na Nigéria, a igreja é chamada centro de libertação de maldições. Já testemunhei atividades da igreja nas quais, em vez de pregar a Palavra de Deus, o pregador pedia aos membros que lavassem a cabeça com água, para que pudessem ser libertos de maldições.

Os cristãos africanos oram de forma negativa, e não positiva. Não é como no Ocidente, onde as pessoas dizem: “Que Deus te abençoe. Que Deus possa prover tuas necessidades.” Em vez disso, os africanos fazem orações amaldiçoando o inimigo, algo como “Deus, que meus inimigos morram. Deus, que meus inimigos durmam e nunca mais acordem.”

Por isso, levantei uma questão no meu livro: É bom fazer uso de maldições para resolver maldições? E minha resposta é não; preferimos usar a Palavra de Deus para explicar e conhecer Deus e sua Palavra.

O que você acha das orações imprecatórias da Bíblia?

Em muitos aspectos, os cristãos africanos estão particularmente interessados ​​em usar salmos imprecatórios para refletir sobre os desafios da vida e responder a eles. Esses salmos frequentemente reaparecem na liturgia, nos sermões e nos livros de oração de muitas denominações, especialmente nas igrejas autóctones africanas. Esses salmos fornecem para muitos cristãos africanos um recurso bíblico para refletir sobre a experiência existencial e os desafios da vida.

No entanto, muitos desses salmos são frequentemente lidos, aplicados e interpretados sem levar em conta seu contexto histórico e teológico. Eles não são meros “pronunciamentos de teor negativo”, mas sim reflexões pessoais sobre a justiça divina feitas pelos salmistas sobre aqueles que [estes] consideravam inimigos de Deus.

Muitos africanos, porém, usam esses salmos como recurso para a vingança pessoal, como invocar o nome dos que consideram seus inimigos humanos, enquanto recitam um salmo imprecatório específico (por exemplo, Salmos 35) por um certo número de vezes que é prescrito. Em muitos casos, se um africano tem um conflito com um colega, ele ou ela pode escolher alguns salmos imprecatórios para amaldiçoar seu oponente.

Chamo isso de “usar maldições para curar maldições”. Na tentativa de lidar com o medo de maldições, eles amaldiçoam seus amaldiçoadores. Os livros de oração de muitas igrejas autóctones africanas têm pontos de oração relacionados a amaldiçoar os inimigos, em vez de orações por bênçãos de Deus.

Teólogos cristãos africanos conceituaram a relevância dos salmos imprecatórios para refletir sobre a experiência no contexto africano, mas guias práticos sobre como usar adequadamente esses salmos [são] escassos. Meu livro preenche as lacunas que existem na teologia cristã africana, fornecendo orientação teológica e prática, e tem uma seção com passos práticos e exemplos sobre como interpretar e aplicar os salmos imprecatórios corretamente.

Como você vê a ideia de maldição existindo em um contexto ocidental?

O fenômeno das maldições não se limita ao contexto africano. Primeiro, o contexto ocidental não é mais puramente ocidental, devido à imigração e às interações interculturais. Segundo, as crenças religiosas institucionais do Ocidente podem não ter um conceito de maldições claramente definido, mas é possível discernir a noção de maldições e o medo delas nas experiências vividas por algumas pessoas no Ocidente. A hipótese do secularismo — a tese de que, à medida que as sociedades crescem rumo ao avanço tecnológico, os seres humanos se tornam menos religiosos — falhou. Ser ocidental não necessariamente equivale a ser menos religioso ou menos espiritual.

Futuramente investigarei e compararei as noções ocidentais de maldições com as do contexto africano.

Como superarmos esses tipos de maldições, especialmente de acordo com a visão que você tem delas em sua própria cultura?

Primeiro, precisamos acreditar na Palavra de Deus e nos envolver com ela. O cristianismo está crescendo na África. Alguns preveem que, nas próximas décadas, o centro do cristianismo será na África. Mas tenho minhas preocupações.

O cristianismo africano está crescendo em quantidade, mas não em qualidade. O crescimento quantitativo do cristianismo africano deve ser sustentado por um crescimento qualitativo: as pessoas precisam conhecer a Palavra de Deus.

No cristianismo africano, os principais líderes às vezes se colocam acima da Palavra de Deus. Isso confunde os membros da igreja. Devemos dar primazia à Palavra de Deus — não apenas na teoria, mas por meio de práticas em nossa liturgia, em nossos programas de aconselhamento, em outras atividades e no estudo individual.

Segundo, devemos enfatizar a doutrina da expiação. Os cristãos africanos devem ser lembrados de que a expiação de Cristo é definitiva e suprema. Eles devem ser centrados na cruz e centrados em Cristo. Além disso, Jesus disse a seus discípulos que eles deveriam carregar sua cruz e segui-lo.

O sofrimento e a pobreza podem fazer parte da nossa cruz; portanto, quando os cristãos africanos enfrentam desafios, estes podem ser uma cruz que eles devem carregar, e não uma maldição.

Terceiro, os líderes africanos devem enfatizar o contato pessoal e a experiência confessional. Se um indivíduo é verdadeiramente regenerado pelo Espírito Santo, então, a possibilidade de ele ser atormentado por maldições é algo incomum.

Por fim, os líderes da igreja cristã africana devem dar ênfase a missões, evangelismo e discipulado. Devemos ser intencionais em discipular novos cristãos. Se fizermos isso, os cristãos africanos estarão preparados para lidar com o medo das maldições.

Um cristão pode ser amaldiçoado?

Se for comprometido com a formação espiritual bíblica e a responsabilidade cristã, um cristão não pode ser amaldiçoado. A formação espiritual bíblica abrange conhecer, apreciar, aceitar e reconhecer continuamente a obra da salvação de Cristo.

A vitória cristã sobre as maldições, sejam elas herdadas, familiares ou pessoais, é baseada em Cristo porque ele é a solução para todos os nossos desafios individuais e coletivos. Ainda assim, temos papéis a desempenhar em nossa vida cristã pessoal e coletiva, para nos apropriarmos de nossa vitória em Cristo. É neste ponto que devemos entender e nos apropriar do conceito cristão de responsabilidade moral.

A teologia da responsabilidade moral não está adequadamente arraigada no cristianismo contemporâneo. A responsabilidade moral implica ter consciência de que devemos melhorar em nossa vida espiritual, enquanto seguimos a Cristo. A Bíblia é clara sobre os mecanismos de recompensa e punição para nós, cristãos. Não devemos fazer certas coisas; se as fizermos, pode haver repercussões negativas. Às vezes, as pessoas se referem a essas repercussões como maldições.

Os cristãos não podem ser amaldiçoados, pois Cristo se fez maldição por nós. Contudo, se ultrapassarmos as linhas dos preceitos de Cristo, poderemos sofrer as consequências. A vida cristã tem certas exigências, e os cristãos devem segui-las.

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