Jejum em terra de fartura

Abster-se de comer confronta as mentiras que a cultura nos conta sobre o nosso corpo.

Christianity Today April 25, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Unsplash / Getty / WikiMedia Commons

Eu estava paralisada bem no meio do corredor dos cereais. De cada lado, havia milhares sacos e caixas de grãos consumidos no café da manhã, espalhados fileira após fileira, em dezenas de variedades: enriquecidos com vitaminas! Com marshmallow extra! Composto de canela com gérmen de trigo orgânico para fornecer duas vezes mais fibras diárias!

Nos últimos quatro anos e meio, eu havia morado em outro país, onde eu só tinha uma rua com lojinhas de alimentos locais, perto de casa. Eu subia e descia aquela rua, passando por enguias que se contorciam em baldes grandes, bolinhos que fumegavam em um carrinho de metal e maços de bok choy [uma variedade de repolho chinês] amontoados sobre uma mesa. E comprava apenas o que coubesse nas sacolas que eu tinha levado e o que conseguisse carregar a pé para casa. Agora que eu tinha acabado de voltar para a América, estava paralisada pelos excessos ao meu redor, naquele supermercado local.

Uma terra de fartura é um lugar estranho para jejuar. E não só porque muitos de nós nunca aprendemos o que é jejuar por necessidade, mas também por causa dos nossos pressupostos culturais subjacentes.

Por um lado, abraçamos a indulgência do hedonismo — o que o corpo quer, ele deve ter. Entronizamos o desejo como bem máximo, cedemos a todo e qualquer desejo que tivermos e por ele nos deixamos escravizar. E, via de regra, nossos prazeres são concebidos ​​para o excesso. Assim como as empresas de streaming incentivam a compulsão e [o uso de] smartphones visando ao vício, muito do que comemos é cientificamente projetado para nos viciar. Fica difícil controlar de forma apropriada os nossos apetites, quando estes são manipulados por conglomerados globais da indústria alimentícia que lucram com esses excessos.

Por outro lado, abraçamos uma reiteração moderna do gnosticismo. Sob a forte influência de filosofias platônicas e dualistas, nós separamos o físico do espiritual, em uma falsa dicotomia. Elevamos o domínio do sobrenatural à condição de mais puro e verdadeiro do que o domínio do corpóreo — e muitas vezes consideramos este último algo sujo ou até mesmo pecaminoso. Fazemos dieta em excesso — seguindo o exemplo de influenciadores sociais. Para muitos, a perspectiva de jejuar traz consigo uma bagagem de vergonha e de arrogância religiosa, que pode funcionar como um gatilho para aqueles que lutam contra transtornos alimentares.

Uma coisa seria se essas mentiras fossem promovidas apenas pela nossa cultura; infelizmente, porém, elas também podem aparecer em nossas igrejas.

Na igreja, uma cultura materialista ou hedonista pode parecer, por exemplo, uma busca incansável para aumentar a frequência e um orçamento maior para poder comprar um templo melhor. Lembro-me de um amigo missionário entrando no auditório da minha megaigreja e ficando furioso. Ao ver as telas brilhantes, os bancos estofados e os exuberantes arranjos florais, ele disse: “A igreja que plantamos teve de arrecadar dinheiro para comprar cadeiras dobráveis. Nós nos reunimos em um porão já há 20 anos. O que tudo isso [que vocês têm] comunica sobre a cruz de Cristo às pessoas?”

Há também uma infinidade de outras maneiras pelas quais a igreja insinua, às vezes de forma acidental, que a nossa carne é um problema e que o verdadeiro negócio é o nosso espírito. Isso pode ter implicações, como julgar membros que tomam antidepressivos por sua falta de fé — ou como um conselho de presbíteros que não financiará uma missão para cavar poços em algum país estrangeiro, a menos que tenham certeza de que o evangelho será apresentado ao mesmo tempo. O gnosticismo eclesiástico transforma o corpo em algo problemático ou, no mínimo, em algo inferior à alma, qualquer que seja a compreensão que tenhamos dela.

Estas duas mentiras contrárias — que nos levam a exaltar ou a negligenciar o nosso corpo — influenciam profundamente nossos hábitos alimentares. No entanto, para cristãos, a disciplina espiritual do jejum oferece uma terceira via poderosa, e diz a verdade que contraria as mentiras favoritas em que acreditamos sobre o nosso corpo.

Desde o tempo em que eu entrava e saía do anglicanismo, uns anos atrás, abri mão de algumas coisas criativas pela Quaresma: navegar no Instagram, ir a programações da igreja, usar o celular depois das 17h ou mesmo por um ano, acrescentar comentários desnecessários às conversas. Como somos sempre individualistas, gostamos de inventar formas personalizadas de abstenção. E, muito embora não haja dúvida de que essas formas possam servir a propósitos úteis em nossa vida com Deus, eu me pego voltando ao jejum de alimentos no contexto da comunidade, devido à forma como ele se volta para as mentiras da nossa cultura.

O jejum alimentar tem sido considerado um hábito cristão tradicional ao longo dos tempos, em todo o mundo. No podcastapresentado por John Mark Comer, uma convidada etíope descreveu o quanto ela cresceu, ao jejuar com sua comunidade cristã do nascer ao pôr do sol, durante 50 dias. Outro convidado descreveu com alegria a profunda consciência do Espírito que ele normalmente alcança no 14º dia de jejum.

Parece tudo muito legal, mas eu ainda não cheguei lá. Quando se trata de jejum alimentar, ainda sou uma mera principiante — ainda estou descobrindo como pular três refeições em espírito de oração e com algum tipo de regularidade. E, ao tentar colocar isso em prática, também procuro aprender com outras pessoas sobre o propósito espiritual desse hábito.

Hudson Taylor, missionário do século 19, aprendeu muito sobre o jejum com os crentes chineses Shansi. “Uma vez que faz com que a pessoa se sinta fraca e desanimada”, dizia Taylor, o jejum “é realmente um meio de graça divinamente designado. Talvez o maior obstáculo ao nosso trabalho seja a própria força que imaginamos ter. Ao jejuar, aprendemos como somos criaturas miseráveis e fracas, que dependem de uma porção de carne para obter a pouca força com que tão prontamente contamos.” Parece que Deus se compraz em satisfazer a fraqueza que o jejum revela em nós.

Também estou descobrindo que renunciar à alimentação pode fortalecer nossos músculos para a batalha celestial. Como diz Robert Moll, o “hábito da negação fortalece a nossa capacidade de tomar a cruz, à medida que até mesmo nosso próprio corpo é moldado à semelhança de Cristo”. Já percebi que, quando estou jejuando, sou capaz de resistir às minhas tentações preferidas com mais robustez. Isso me lembra de quando estava na faculdade, e me exercitava com peso nas pernas, na academia, para poder correr mais rápido e chutar com mais força no jogo de futebol.

Até Jesus fez uso da abstinência física como forma de obter força espiritual. Depois que o Espírito o levou a jejuar por 40 dias, e de estar imerso na afirmação de seu Pai, Jesus estava pronto para enfrentar o Diabo no deserto.

O jejum alimentar também pode nos conscientizar sobre nossos maus hábitos alimentares como sociedade. Muitos de nós jantamos sozinhos na frente da televisão ou comemos fast food entre as atividades das nossas agendas lotadas. Cometemos exageros e jogamos fora muita coisa. Lamento sinceramente por tudo o que já comi e o que já deixei de comer.

Afinal, de que adianta eu renunciar aos excessos e deixar um irmão ou irmã de mãos vazias? Que tal seria eu jejuar não só para exercer o devido controle sobre meu corpo e meu espírito diante de Deus, mas também por práticas justas no bairro em que moro?

Nossa gula e nossas formas prejudiciais de autoprivação ocorrem em uma época de fome real. Um em cada oito americanos sofre de insegurança alimentar — em outras palavras, não tem dinheiro suficiente para comer tanto quanto necessita. O número de seres humanos famintos que vivem em volta de lojas abarrotadas de alimentos me entristece. No país mais rico do mundo, algumas pessoas ainda passam fome.

Muitos crentes já usaram a Quaresma ou outras formas de jejum para se aliar aos famintos — para aumentar a consciencialização ou para levantar dinheiro para os pobres, e para se lembrar de orar pelos necessitados. Certa vez, uns amigos meus passaram a Quaresma inteira comendo apenas arroz e feijão, em solidariedade a quem não tem outra opção de comida. Cada vez que sentimos o estômago roncar, nossa fome pode servir como um post-it, para que nos lembremos de orar pelos necessitados.

O jejum comunitário e aliado à pobreza pode nos levar para além da nossa visão egocêntrica — que vê o jejum como mera prática espiritual individual — e abrir os nossos olhos para as experiências de todos aqueles que estão fora da nossa bolha. Longe de considerá-lo performativo, o profeta Isaías elogia o tipo de jejum em que pomos em liberdade os oprimidos […] partilhamos nossa comida com o faminto, abrigamos o pobre desamparado (Isaías 58.6-7).

No que diz respeito ao jejum em minha experiência pessoal, ela varia muito. Nunca sei como essa fome sagrada irá me afetar. Às vezes, meu corpo parece um vaso transparente do qual transborda o Espírito Santo. Posso sentir o amor de Deus pelo seu mundo pulsando em todas as direções; alcanço clareza e certos avanços, e minhas orações parecem “poderosas e eficazes” (Tiago 5.16, KJV). Outras vezes, quando jejuo, fico irritada — fico obcecada com a comida que estou perdendo, fico com dor de cabeça e sinto que é tudo uma estupidez.

Mas, quer eu sinta ou não seu significado espiritual, isso não muda o valor do jejum. Como Richard Foster aponta em Celebração da Disciplina, sua obra clássica, o jejum é uma daquelas disciplinas por meio das quais criamos um espaço dedicado (o corpo) e um tempo dedicado (digamos, às quartas-feiras, das 6h às 18h) para Deus, nos quais ele pode adentrar. Embora minhas motivações para jejuar sejam importantes, não preciso reunir todos os meus esforços de santificação para isso.

Meus jejuns são sem foco, desequilibrados em termos de motivação, às vezes — confesso — mais curtos do que eu pretendia, e nunca muito impressionantes. Quando ofereço meu corpo a Deus em jejum, é uma dádiva caótica, como se uma criança pegasse uma caixa de lápis de cor, rabiscasse um desenho e o entregasse nas mãos do seu pai. O jejum diz: Ei! Aqui estão meus vícios e dependências, meus prazeres e desejos, minha fraqueza e a pouca força que tenho. Você quer? Sim, Deus quer!

Por meio do nosso jejum, Deus se compromete a nos libertar da crueldade do ascetismo e da paralisia da indulgência. O jejum ataca tanto meu hedonista interior quanto meu dualista interior, o qual, com afetação esnobe, descarta o mundo material como se fosse menos importante do que o domínio espiritual. Ao oferecermos nossos corpos como sacrifícios vivos, Deus faz o que nem o hedonismo nem o gnosticismo conseguem fazer: Ele valoriza nossos corpos e o nosso domínio próprio corporal. E ele chama nosso sacrifício físico de santo.

O jejum nos renova a consciência do significado espiritual do nosso corpo e o honra como espaço sagrado, cuidadosamente criado e abundantemente suprido para o encontro com Deus.

Deus não vê nossos corpos como algo secundário ou irrelevante. A partir do momento em que Deus mescla o pó da terra com o sopro divino para formar Adão, a Bíblia apresenta os seres humanos como seres integrados e holísticos. Jesus veio como o Verbo que se fez carne. Ele alimentou estômagos famintos e pregou sermões. Ele curou enfermidades físicas e perdoou pecados. O Messias tratou cada parte dos seus semelhantes como algo importante.

Da mesma forma, Deus pretende que nossos corpos e espíritos estejam indissociavelmente entrelaçados. O jejum junta corpo e espírito, pneuma e soma. Com o jejum, colocamos Deus de volta no comando dos nossos desejos e pedimos que sejam melhores do que aquilo que desejamos. Pedimos humildemente que o seu reino governe nosso corpo.

Graciosamente, ele também revela a natureza comunal de nossas atitudes e ações em relação à alimentação, e nos convida a “praticar a justiça” (Miqueias 6.8), no que diz respeito ao alimento. Deus aprecia os corpos humanos, todos feitos à sua imagem. Eles fazem parte do plano do seu reino. Ele se preocupa com a nossa alimentação: o que comemos e o que não comemos, por que e com quem. Ele se preocupa com nossa barriga e com a nossa dor — tanto com a refeição quanto com o homem faminto na calçada. E não só isso, mas a sua promessa de redenção um dia transformará tudo.

Para uma americana recém-repatriada, atônita e perdida entre tantos cereais no corredor do supermercado, tudo isso são boas novas — é o evangelho.

Jeannie Whitlock é jornalista freelancer e poetisa. Ela vive no subúrbio de Chicago e escreve sobre o sagrado na encarnação, em todas as suas diversas ramificações.

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