Culture

Por que o caráter não importa mais?

O “jovial puritanismo” de Ned Flanders [personagem de Os Simpsons] deu lugar à vulgaridade, à misoginia e ao partidarismo. O que isso significa para o nosso testemunho?

Christianity Today April 1, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: WikiMedia Commons / Getty

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Acho que hoje Ned Flanders frequentaria casas noturnas de striptease.

Há muito tempo eu não pensava no caricato vizinho convertido ao cristianismo de Os Simpsons; esta semana, porém, lembrei-me dele. A repórter de religião do New York Times, Ruth Graham, mencionou Ned e e seu “jovial puritanismo” — bem como Billy Graham e George W. Bush — como exemplos dos que já foram as figuras cristãs evangélicas mais conhecidas do país. De fato, uma matéria de capa da Christianity Today de 2001 apelidou o personagem de “Saint Flanders” [Santo Flanders]. Os cristãos evangélicos sabiam que as palavras “Deus tá vendo!”, colocadas na boca de Ned, eram uma reação moral com a intenção de nos ridicularizar e que seus “valores da família tradicional” estavam fora de sintonia com uma cultura americana do lado de cá da revolução sexual.

Mas Ned não era um Elmer Gantry [personagem do filme Entre Deus e o Pecado]. Ele de fato aspirava ao tipo de devoção pessoal que os evangélicos supostamente desejam, voltada para a oração, a leitura da Bíblia, a castidade moral e ao amor ao próximo, ainda que o fizesse ao estilo piegas e ultrassuburbano da classe média norte-americana. Como Graham ressalta, se fosse nos dias de hoje, Flanders seria ridicularizado por seus escrúpulos morais — mas isso provavelmente se daria mais por parte de seus correligionários evangélicos brancos do que por seus vizinhos seculares bebedores de cerveja dos Simpsons.

Como diz Graham, um “ethos grosseiro e vulgar, como aquele que só fala de ‘cerveja e mulher’, abriu caminho até a classe de poder conservadora, acelerado pela ascensão de Donald J. Trump, pelo declínio da influência das instituições religiosas tradicionais e por um cenário de mídia que está em mutação, cada vez mais dominado por padrões mais licenciosos da cultura on-line”. (Este artigo que você está lendo agora representa parte dessa mudança, pois passei mais de 15 minutos pensando em como citar o artigo de Graham sem usar a expressão “cerveja e mulher”)

A análise de Graham é importante para os cristãos americanos justamente porque a mudança de paradigma que ela descreve não é algo que esteja acontecendo “lá fora” na cultura, pelo contrário, é impulsionada especificamente pela mesmíssima subcultura evangélica branca que no passado insistia que o caráter pessoal — ou a virtude, para usar uma palavra que hoje soa como algo distante, mas que os pais fundadores conheciam bem — importa.

Sim, parte da vulgarização da direita se deve à secularização da base, trazida por Barstool Sports [blog de esportes e cultura pop] e Joe Rogan [conhecido apresentador do UFC], na qual Kid Rock [músico, cantor e compositor] é um símbolo mais icônico do que Lee Greenwood [artista country] ou Michael W. Smith [cantor cristão]. Porém, o que é muito mais alarmante é que o embrutecimento e a degradação do caráter estão acontecendo entre cristãos professos politizados. A congressista que brincou, em um café da manhã de oração, sobre ter se recusado a fazer sexo com seu noivo para comparecer ao evento, fora convidada para falar ali sobre sua fé e a importância que ela e os valores religiosos têm para os Estados Unidos. Outro membro do Congresso que disse a um repórter para “se f—” é alguém que se autodenomina um “nacionalista cristão”. Vimos a frase “Let's Go Brandon” [Vamos lá, Brandon] — um eufemismo usado no lugar do insulto “fo—-se Joe Biden”, e que antigamente resultaria em disciplina na igreja — ser entoada nas igrejas.

Douglas Wilson, pastor e aspirante a teocrata, usou publicamente um insulto contra as mulheres que não só eu não repetirei aqui, mas que quase nenhum meio de comunicação secular citaria — isso sem falar do romance assustadoramente grosseiro que ele escreveu sobre um robô sexual.

Wilson, evidentemente, cultiva uma vibe cartunesca do tipo “não sou um garoto travesso?” que não representa a maioria dos cristãos evangélicos. Mas o problema é a maneira como muitos outros cristãos reagem: “Bem, eu não diria as coisas da maneira como ele diz, mas…”. Da mesma forma, esses cristãos dizem que são meros “tuítes maldosos” os que Donald Trump posta atacando a aparência de pessoas que dizem ter sido agredidas sexualmente por ele, ou atacando heróis de guerra por terem sido capturados ou pessoas deficientes por suas deficiências, ou ainda tuítes elogiando pessoas que atacam policiais e saqueiam o Capitólio e chamando-as de “reféns”.

O pior é que os cristãos evangélicos — entre os quais encontram-se alguns que ouvi criticar incessantemente a imoralidade sexual de Bill Clinton (críticas com as quais concordei na época e ainda concordo hoje) — hoje ridicularizam aqueles que se recusam a fazer exatamente o que [os cristãos] antes condenavam nas ações dos defensores de Clinton, ou seja, os cristãos hoje chamam de moralistas os que se recusam a dar mais mais importância ao acordo político do que ao caráter pessoal.

Em meio ao escândalo de Clinton, no final da década de 1990, um grupo de acadêmicos emitiu uma “Declaração sobre Religião, Ética e a Crise na Presidência de Clinton”, que dizia:

Estamos cientes de que certas qualidades morais são fundamentais para a sobrevivência do nosso sistema político, entre elas estão a veracidade, a integridade, o respeito à lei, o respeito à dignidade do outro, a adesão ao processo constitucional e a disposição de evitar o abuso de poder. Rejeitamos a premissa de que as violações desses padrões éticos devam ser desculpadas, contanto que o líder permaneça leal a uma agenda política específica e a nação seja abençoada por uma economia forte.

Atualmente, essas palavras parecem muito mais distantes de nós do que uma citação de Tocqueville.

Nossa situação hoje seria compreensível, se vivêssemos em um mundo no qual as palavras que saem da boca de uma pessoa não representassem o que está em seu coração, ou em um mundo no qual a conduta externa pudesse ser separada do caráter interno. O problema é que esse mundo imaginário é um mundo em que a Palavra de Deus não existe. Afinal de contas, Jesus nos ensinou exatamente o oposto, de forma explícita e reiterada (Mateus 15.10-20; Lucas 6.43-45).

Ironicamente, algumas das mesmas pessoas que promovem o mito de uma “América cristã”, no qual os pais fundadores são retratados como evangélicos conservadores, hoje adotam uma visão que tanto os cristãos ortodoxos quanto os unitaristas deístas da época da fundação condenariam, de pleno acordo. Desde os Artigos Federalistas até os debates em torno da Constituição e da Carta de Direitos, praticamente todos os pais fundadores — mesmo com todas as diferenças que tinham entre si sobre as especificidades do federalismo — defenderiam que os procedimentos e as políticas constitucionais por si só não eram suficientes para preservar uma república: Eram necessárias normas morais e expectativas de alguma dose de caráter pessoal.

Essas normas impedem que pessoas de mau caráter ascendam a altos cargos? De jeito nenhum. Sempre tivemos entre nós hipócritas e demagogos. No entanto, o que todas as gerações de americanos tinham reconhecido, até agora, é que há uma diferença marcante entre alguns líderes que não estão à altura do caráter que se espera deles e líderes que atuam em um espaço no qual não há expectativas de caráter pessoal. Você pode contratar um contador para cuidar de seu imposto e, mais tarde, descobrir que ele é um fraudador de impostos e um estelionatário. Isso é bem diferente de contratar um fraudador declarado porque você concluiu que só os idiotas obedecem às leis tributárias.

Isso ocorre porque líder nenhum, de nenhuma comunidade, associação ou nação, é um conjunto abstrato de políticas. Nós escolhemos líderes para tomar decisões sobre assuntos que ainda não aconteceram ou que talvez nem estejam sendo cogitados. Ora, um dentista que grita palavrões contra seus adversários e promete uma prática baseada em “vingança e retribuição” e a derrubada de todas as normas da odontologia moderna não é alguém a quem você deva confiar uma broca para tratar de seus dentes. E isso vale ainda mais quando se trata de confiar a uma pessoa os códigos para o uso de armas nucleares.

Além disso, os conservadores em geral, e os cristãos em particular, já sabiam que aquilo que é normalizado em uma cultura se torna uma parte esperada dessa cultura. Defender um presidente que usa seu poder para fazer sexo com a estagiária, com o argumento de que “todo mundo mente sobre sexo”, não se trata apenas de usar um argumento político; isso muda a maneira como as pessoas pensam sobre o que, na plenitude do tempo, elas devem esperar em relação a si mesmas. Isso é o que Daniel Patrick Moynihan chamou de “nivelar por baixo”.

Os habitantes da Louisiana defenderem seu apoio a alguém que faz propaganda nazista e é um ex-grande mago da Ku Klux Klan, por ele ser supostamente “pró-vida” não é uma mera transação política do tipo “dos males o menor”. As palavras nazista pró-vida — assim como as palavras abusador sexual pró-vida — mudam o significado de pró-vida na mente de toda uma geração.

Independentemente dos resultados políticos de curto prazo que se “ganhe” com isso, acaba-se com uma situação em que algumas pessoas acreditam que o autoritarismo e a agressão sexual podem ser compensados por uma “plataforma política” certa, enquanto outras acreditam que a oposição ao abuso de poder ou à anarquia sexual deve exigir a oposição à posição “pró-vida”. De qualquer forma, saímos perdendo.

O que acontece a longo prazo com suas políticas em uma cultura pós-caráter é importante. O que acontece com seu país é ainda mais importante. Mas considere também o que acontece com você. “Se os indivíduos vivem apenas setenta anos, então, um Estado, uma nação ou uma civilização, que pode durar mil anos, é mais importante do que um indivíduo”, escreveu C. S. Lewis. “Mas se o cristianismo for verdadeiro, então, o indivíduo não só é mais importante, mas é incomparavelmente mais importante, pois ele tem a vida eterna e a vida de um Estado ou de uma civilização, comparada com a dele, não passa de um momento.”

A Bíblia não só nos adverte sobre o que a degradação do caráter — que vai da imoralidade à jactância, da insensibilidade à crueldade — pode fazer com a alma dos que praticam essas coisas, mas também nos adverte sobre seu efeito nocivo sobre aqueles que “aprovam as pessoas que praticam tais coisas” (Romanos 1.32).

Ned Flanders não é, nem nunca foi o ideal cristão. Piedade pessoal e uma moralidade íntegra não são suficientes. Mas devemos nos perguntar: se o roteiro dos Simpsons fosse escrito hoje e quisesse ridicularizar os cristãos evangélicos, será que a caricatura mostrada seria a de alguém excessivamente dedicado à família, à oração, à frequência à igreja, à bondade para com os vizinhos, à pureza incômoda de seu discurso? Ou será que Ned Flanders, hoje, seria um partidário aos gritos pelas ruas, um insurrecionista violento, um misógino que cobiça mulheres ou um abusador pervertido?

Será que essa mudança se deve ao fato de o mundo secular ter se tornado mais hostil para com os cristãos? Talvez. Ou seria por que, quando o mundo secular olha para a face pública do cristianismo, ele hoje não ousaria pensar em Ned Flanders como nada além do que mais um rosto com olhos cobiçosos em um clube de striptease?

Se formos odiados por tentarmos ser como Cristo, vamos considerar isso uma alegria. Mas se formos odiados por nossa crueldade, nossa hipocrisia sexual, nossa inclinação para brigas, nosso ódio e nossa vulgaridade, então, talvez devêssemos nos perguntar o que aconteceu com nosso testemunho.

O caráter importa. Não é a única coisa que importa. Mas, sem caráter, nada importa.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Projeto de Teologia Pública da revista.

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