A violência doméstica é alarmante no Brasil. Como os pastores devem reagir a ela?

As estatísticas revelam que três em cada dez mulheres no país já sofreram abusos em algum momento da vida. Teólogos e líderes ponderam sobre como transformar as igrejas em lugares seguros para as vítimas.

Uma manifestação no Brasil contra o abuso sexual de mulheres em frente a fotos que mostram as vítimas de abuso.

Uma manifestação no Brasil contra o abuso sexual de mulheres em frente a fotos que mostram as vítimas de abuso.

Christianity Today April 6, 2024
NurPhoto / Getty / Edits by CT

Para muitas mulheres brasileiras que sofreram abusos nas mãos de seu cônjuge, a resposta de líderes da igreja para o seu sofrimento foi Efésios 5.22: “Esposas, cada uma de vocês deve se sujeitar ao seu marido”.

“É a frase mais cruel da Bíblia”, disse uma mulher à jornalista Marília de Camargo César, como lemos em seu livro O grito de Eva. “[Os líderes da igreja] ensinam isso de forma distorcida, sem levar em conta o contexto histórico, as tradições, a cultura”, explica essa mulher, que é identificada no livro apenas como professora Regina.

Três em cada dez mulheres brasileiras sofreram violência doméstica em algum momento da vida. O país registra altos índices de violência contra as mulheres, ocupando o quinto lugar no ranking mundial. No ano passado, uma linha direta de alcance nacional recebeu ligações de uma média de 245 mulheres por dia, que denunciavam algum tipo de violência. Tudo isso em uma nação em que as mulheres representam mais da metade (58%) dos evangélicos.

Acusações recentes de abuso em igrejas norte-americanas geraram discussões na igreja brasileira em torno da questão, mas as igrejas e as denominações têm procedimentos padronizados ou adotaram as melhores práticas para lidar com a violência doméstica. No entanto, em um ambiente no qual muitas vítimas não denunciam a violência por vergonha e medo de retaliação, as igrejas evangélicas têm a oportunidade de ser locais de abrigo e orientação para mulheres feridas.

Tendo em vista essa realidade, a CT convidou seis líderes evangélicos especialistas no assunto para responderem à seguinte pergunta: “O que os líderes devem fazer, quando uma mulher, que é membro de sua igreja, diz que foi vítima de abuso ou violência?”

As respostas foram editadas para fins estilísticos e de maior clareza.

Marília César, jornalista e autora do livro O grito de Eva, São Paulo

A liderança da igreja deve incentivar a pessoa a denunciar e, se possível, acompanhá-la até uma Delegacia da Mulher para fazer o boletim de ocorrência.

Em seguida, deve providenciar pessoas, de preferência mulheres da igreja com experiência nesse tipo de violência, para caminhar junto com a vítima do abuso, dando-lhe apoio emocional e, se necessário, encaminhamento aos profissionais de saúde ou saúde mental adequados.

O criminoso, caso seja membro da comunidade, deve ser exortado pelos pastores e chamado a responder pelos fatos. Há igrejas com trabalhos terapêuticos que reúnem homens para uma espécie de terapia em grupo, para tratar de comportamentos abusivos e relacionamentos tóxicos. Infelizmente ainda são poucas essas iniciativas.

As igrejas precisam promover esse debate mais abertamente e com maior frequência, até que se torne inaceitável para pastores e membros ter de conviver com situações de abuso sexual em suas congregações.

Alex Stahlhoefer, doutor em teologia e professor da Faculdade Luterana de Teologia, São Bento do Sul

A primeira atitude deve ser sempre de acolhimento da vítima. Jesus nos instrui a chorar com os que choram e a sermos consoladores e confortadores. Por isso, antes de lhes perguntar sobre detalhes do ocorrido, devemos oferecer suporte emocional para que ela consiga expressar sua dor, sua aflição e seus medos.

Após o acolhimento, é importante ocupar-se com a rede de apoio. Quem irá oferecer abrigo e segurança para essa mulher? Ela tem condições de voltar para sua casa? Quem irá acompanhar a vítima à delegacia para prestar queixa? É preciso tomar cuidado com o sigilo das informações, pois a vítima já se encontra fragilizada e podemos poupá-la de julgamentos desnecessários de pessoas que não precisam saber do que aconteceu.

Se o abusador for membro da congregação ou líder, a igreja também deve tomar o cuidado para que o acusado de abuso não utilize sua posição de liderança para coagir pessoas a testemunharem a seu favor ou para espalhar boatos sobre a imagem da vítima, a fim de diminuir sua responsabilidade.

Uma igreja séria deve ter um procedimento por escrito, aprovado pela liderança e divulgado entre todos os membros, sobre como a igreja deve proceder em casos de abuso e violência. Criar uma cultura onde a violência não é tolerada e onde as denúncias são levadas à sério ajuda a criar um ambiente saudável e seguro para as mulheres.

Jennifer Carvalho, coordenadora da Missão Imago Dei e do primeiro grupo de estudo de cosmovisão e sexualidade, Natal

Inicialmente, é preciso tomar cuidado para não revitimizar a pessoa fazendo perguntas inadequadas, questionando detalhes excessivos ou sugerindo que ela contribuiu para o abuso. É importante também identificar se o abusador é alguém próximo da vítima, para deixá-la a salvo dele — se possível, a mulher deve ser acolhida na casa de alguém confiável. Em caso de estupro, fazendo menos de 72h do crime, a vítima deve ser encaminhada para avaliação médica em hospital Por lei, se a vítima tiver menos de 18 anos, a condução hospitalar-policial é obrigatória.

Depois disso, é preciso orientá-la sobre a necessidade de denúncia na delegacia da mulher, acompanhamento psicológico e aconselhamento pastoral.

Se o abusador fizer parte da congregação, a liderança deve dar início ao processo disciplinar e de afastamento, e também deve haver um direcionamento para que ele entregue-se à polícia e inicie o tratamento psicológico. Somente após alguns anos, com acompanhamento psicológico e de liderança capacitada, poderá ser avaliado se houve arrependimento genuíno. Provavelmente, a reintrodução do abusador na igreja não será possível, e a liderança precisará, com muito discernimento e estudo, criar outra alternativa.

Se a pessoa que cometeu o abuso for um líder da igreja, aplica-se a orientação anterior concomitantemente a um realinhamento da igreja quanto ao ocorrido. Além disso, é preciso que haja extensa capacitação sobre o abuso e suas consequências, a publicação de sincero pedido de desculpa, o cuidado da vítima e uma investigação para descobrir se houve outros casos — para que outras possíveis vítimas sejam cuidadas.

As pessoas serão encorajadas a denunciar, se a igreja for um lugar acolhedor e consciente de que abusos existem, e se esse pecado for combatido do púlpito ao gabinete.

Yago Martins, pastor da Igreja Batista Maanaim, autor e YouTuber, Fortaleza

Infelizmente, muitos colegas pastores acreditam que só podem tomar alguma atitude depois de averiguar muito bem a história, entrevistar o marido, bater todas as narrativas em busca de qualquer contradição, em um esforço de descobrir se a denúncia da mulher é verdadeira ou não.

Por mais que o testemunho da esposa, sozinho, não sirva como uma prova de que o abuso realmente aconteceu, o simples testemunho já é o suficiente para a atitude de proteger a esposa de seu marido. Você protege primeiro e investiga depois. Eu pessoalmente já lidei com falsas denúncias de abuso em meu ministério pastoral, mas não me arrependo nem por um minuto de ter acolhido e protegido alguém que trouxe uma denúncia que com o tempo se revelou falsa. É melhor oferecer uma proteção que depois se mostra desnecessária do que correr o risco de descartar uma denúncia tão séria e deixar alguém à mercê de um agressor.

No processo de apuração também é importante comunicar o fato às autoridades civis, depor o líder (caso o abusador seja alguém que ocupe esta posição), aplicar a disciplina eclesiástica e cuidar da vítima.

Douglas Baptista, pastor da Assembleia de Deus de Missão e presidente do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB)

No ato criativo, a imagem divina foi distribuída sem distinção entre homens e mulheres (Gênesis 1.27). A Bíblia ensina a igualdade de importância de ambos (1Coríntios 11.11,12). O modelo de casamento cristão requer que o marido lidere o seu lar do mesmo modo como Cristo lidera a igreja, isto é, com vital interesse no bem-estar da sua esposa (Efésios 5.28-29). O marido deve amar a sua mulher assim como Cristo ama a igreja. Isso implica na prática de algum tipo de sacrifício (Efésios 5.25). A esposa deve ser tratada com amor e não com violência, ameaças ou autoritarismo. O marido deve cuidar de sua mulher do mesmo modo que se preocupa consigo mesmo (Efésios 5.28). Isso significa proteger a esposa e prover-lhe uma vida digna. Esse cuidado não se limita às provisões materiais, nele estão incluídos afeto, consideração e honra, dentre outras coisas. Tais ações devem ser sinceras e permanentes, tanto em público como no privado (Colossenses 3.19).

De acordo com o modelo bíblico, nenhuma mulher deve submeter-se a um relacionamento tóxico. Esse tipo de abuso acontece de diversas formas: verbal, física, emocional e até em tom de “brincadeira”. Por isso, a esposa deve estar atenta à agressividade de seu marido, e se ele fica mais agressivo quando é contrariado. Quando isso ocorrer, o primeiro passo consiste em imediatamente buscar ajuda , e denunciar quaisquer indícios de violência para seus líderes e para as autoridades civis.

Se o abusador for membro ou líder da Igreja, o caso deve ser tratado com firmeza, a fim de cessar o comportamento abusivo. Igualmente deve-se notar que, às vezes, as mulheres não enxergam ou negam a situação de abuso, ou ainda procuram justificar as ações violentas de seus maridos. Portanto, é imprescindível oferecer um sistema de apoio, deixando as mulheres confortáveis para se aproximarem e receberem ajuda.

Norma Braga, teóloga e consultora de imagem, São Paulo

Os cristãos devem perceber que o abusador é mestre na arte do engano e que o abusador pode ser um marido, um pai, um pastor, um líder de jovens. Líderes saudáveis agirão como protetores de mulheres e crianças, que são justamente os grupos mais visados por abusadores.

A melhor prevenção contra o abuso é o fomento de uma cultura centrada em Cristo na igreja. Não basta que a teologia seja boa. Em muitos casos de abuso sexual, até mesmo infantil, o criminoso deixa de ser reportado à polícia porque “irmão não entra na justiça contra irmão” — claramente uma distorção da Palavra. Em caso de crime, a igreja precisa recuar para que o Estado se ocupe do caso; é esfera do Estado, não da igreja.

O abuso entre nós cristãos é ainda pior, pois geralmente é justificado com leituras abomináveis da Bíblia, o que deixa marcas profundas na alma. Precisamos voltar às origens, para a liderança verdadeiramente humilde do Senhor Jesus, que não usou as ovelhas para seu proveito, mas se sacrificou por elas.

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