Em um ano de mortes, a Quarta-feira de cinzas oferece uma esperança inesperada

A liturgia do primeiro dia da Quaresma nos conduz do pó à Ceia do Senhor.

Christianity Today February 21, 2023
Illustration by Rick Szuecs / Source Images: Igor Ustynskyy / Getty / Envato / Evieshaffer / Lightstoc

Nota da edição em português: este artigo foi publicado originalmente em 2021, mas traz reflexões importantes para os nossos dias atuais.

A maioria de nós evita intencionalmente pensar na morte. A professora de antropologia da Universidade Brandeis, Anita Hannig, escreve que a maioria dos americanos rotula essas conversas sobre a morte como “mórbidas” e “tenta evitá-las — assim como a própria morte — o máximo possível”.

Bem lá no fundo, todos sabemos que vamos morrer, mas isso não é o tipo de coisa que alguém diga em voz alta em uma festa.

Assim, na maioria dos anos, a tarefa do pregador na Quarta-feira de cinzas parece um pouco transgressora e pesada. Oferecemos nosso lembrete anual: Não fujam de verdades incômodas. Somos mortais. Nenhuma quantidade de riqueza, de coisas para fazer ou de pensamento positivo pode mudar isso. Somos pó e ao pó voltaremos.

Mas 2021 não é como a maioria dos anos.

Durante esta pandemia global, o número de mortes é manchete em todos os jornais, enquanto contabilizamos aqueles que morreram de COVID-19 — até agora, quase meio milhão de pessoas. Usamos máscaras, ficamos em casa e evitamos aglomerações para escapar de ainda mais mortes. Nossas vidas e rotinas diárias foram moldadas pelo poder da morte de maneiras muito mais óbvias do que muitos de nós já experimentamos.

Este ano, em vez de proclamar a morte a fiéis preocupados com outros assuntos, ela parece ser continuamente lançada à nossa vista. A maioria de nós — apesar de nossas tentativas — não pode negar a verdade imponente e terrível de que a morte nos ronda e está vindo ao nosso encontro. Temos vivido uma interminável Quarta-feira de cinzas, de modo que lembrar as pessoas de que elas vão morrer parece algo extraordinariamente redundante.

Mas a mensagem verdadeiramente contracultural da Quarta-feira de cinzas não é que vamos morrer. É que, embora a morte seja o que nos aguarda, o desespero não é algo inevitável. Ao nomear o horror absoluto e intragável da morte, nós, como igreja — sem recorrer a banalidades nem a negações açucaradas — podemos proclamar a verdadeira esperança em meio a ela.

Em nosso país, há uma indignação generalizada (e justificada) com a má gestão política da crise da COVID-19. Ainda assim, a Quarta-feira de cinzas nos lembra que nenhum político e nenhum partido será capaz de resolver completamente o problema da morte. Parafraseando Flannery O'Connor, no final das contas, a morte não é um problema a ser resolvido, mas um mistério a ser enfrentado.

Em sua regra monástica, Bento de Núrsia descreve o que chama de “instrumentos para as boas obras” e instrui seus monges a “lembrarem-se todo dia de que vão morrer”. O objetivo de lembrar da morte nesse contexto não é deleitar-se com ela, muito menos fazer dela uma motivação. A questão é que, ao aceitar nossa mortalidade, em vez de negá-la, de sentimentalizá-la ou de fugir dela, colocamos um fim na insana tarefa de viver apenas para nos mantermos vivos.

Para todos nós, relembrar a inevitabilidade da morte nos faz lembrar que o dia de buscar a Deus, o dia de restaurar relacionamentos, o dia de ajudar os outros e de abençoar o mundo ao nosso redor é hoje — porque pode ser o último. Enfrentar a mortalidade nos leva a fazer perguntas imprescindíveis: quem somos nós e para que serve a vida?

Na Quarta-feira de cinzas, a igreja responde a essas perguntas por meio de nossa história. Lembramos a nós mesmos que os seres humanos foram criados para conhecer a Deus e desfrutá-lo e que, por causa de Jesus, isso é possível, mesmo depois da morte.

O que é mais transgressor e chocante na Quarta-feira de cinzas deste ano — e, talvez, de todos os anos — não é o fato de dizermos às pessoas da nossa igreja que elas vão morrer. Não é o fato de marcarmos suas frontes com cinzas [prática comum nas igrejas Anglicana e Católica] — uma prática que muitos terão que alterar este ano devido à COVID-19. É o fato de que, depois da imposição das cinzas (ao menos em um ano comum), tomamos juntos a Ceia do Senhor.

Nesta Quarta-feira de cinzas, então, lembraremos da morte como comunidade cristã, mas também nos apegaremos ao conhecimento de que a morte não tem a palavra final. Jesus é a ressurreição e a vida. A pandemia nos deixou particularmente famintos por essa esperança.

Em uma das páginas de seu diário, Henri Nouwen conta uma bela história sobre a ocasião em que viu alguns irlandeses enterrando um fazendeiro, em Donegal. Eles colocaram um caixão feito à mão no solo, cobriram-no com areia e grama, e então, um dos homens pegou dois pedaços de madeira e os amarrou — formando uma simples cruz para marcar o túmulo do amigo. Os homens, então, fizeram o sinal da cruz e saíram em silêncio. Sem palavras. Sem flores. Sem funeral.

Nouwen disse que, para ele, nunca ficou tão claro que alguém estava morto — e não que apenas estava dormindo ou “tinha falecido” ou “estava descansando”, mas estava morto mesmo. Era uma visão da morte sem adornos, imponente, real. Ele escreve: “O realismo deles tornou-se um realismo transcendente pela simples cruz de madeira sem adornos, dizendo que onde a morte se afirma, a esperança encontra suas raízes”.

A Quarta-feira de cinzas é uma prática de realismo transcendente. Em um ano em que a realidade da morte ecoa alto em nossos ouvidos, a Quarta-feira de cinzas nos sussurra que as raízes da esperança crescem cada vez mais.

Tish Harrison Warren é sacerdote da Igreja Anglicana na América do Norte e autora de Liturgia do Ordinário e Oração da noite (IVP, 2021).

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter ou Instagram.

Our Latest

News

Ira santa ou pecado? “Irai-vos, mas não pequeis”.

O conselheiro cristão Brad Hambrick fala sobre como lidarmos com nossa própria fúria em tempos acalorados.

Contra a cultura da demonização

O problema não é quando o conflito está fora, mas sim dentro do cristão.

A epidemia das apostas esportivas: um problema que os cristãos não podem ignorar

Jogos de azar online não são necessariamente pecaminosos, mas certamente não são um uso cuidadoso da riqueza que Deus nos deu.

Os evangélicos brasileiros estão divididos sobre o legado de Lausanne

Cristãos da América Latina desenvolveram a teologia da missão integral. Agora não sabem o que fazer com ela.

Apple PodcastsDown ArrowDown ArrowDown Arrowarrow_left_altLeft ArrowLeft ArrowRight ArrowRight ArrowRight Arrowarrow_up_altUp ArrowUp ArrowAvailable at Amazoncaret-downCloseCloseEmailEmailExpandExpandExternalExternalFacebookfacebook-squareGiftGiftGooglegoogleGoogle KeephamburgerInstagraminstagram-squareLinkLinklinkedin-squareListenListenListenChristianity TodayCT Creative Studio Logologo_orgMegaphoneMenuMenupausePinterestPlayPlayPocketPodcastRSSRSSSaveSaveSaveSearchSearchsearchSpotifyStitcherTelegramTable of ContentsTable of Contentstwitter-squareWhatsAppXYouTubeYouTube