John Stott gostaria que parássemos, estudássemos e lutássemos

Como seu assistente acadêmico, vi como sua labuta incansável pela reflexão diligente resultava em um cristianismo bíblico equilibrado.

John Stott no Hookses, em Wales, em meados de 1999.

John Stott no Hookses, em Wales, em meados de 1999.

Christianity Today August 9, 2021
John W. Yates III

Era uma tarde extremamente fria de janeiro e a chuva batia nas janelas, quando John Stott deixou o escritório. Era hora do chá e uma grande chaleira estava sendo preparada no pequeno balcão da cozinha do The Hermitage, os aposentos aconchegantes do tio John, que ficavam em um dos velhos prédios da fazenda, em Hookses, seu refúgio rural no País de Gales.

“Oh, JY”, John disse para mim, cansado, esfregando as têmporas, “Eu tenho um caso terrível de DM”. Essa sigla significa dor mental. Era sua maneira de descrever como se sentia, quando tinha de lutar com um projeto difícil de colocar no papel ou com um problema aparentemente insolúvel, e era uma frase que eu conhecia bem, depois de 18 meses trabalhando como assistente acadêmico dele.

Entre 1977 e 2007, 14 jovens — a maioria deles americanos — serviram ao tio John (como o chamávamos) nessa posição. Nosso trabalho era algo tão abrangente quanto a própria vida de John, que era encantadoramente multifacetada.

Durante meus anos como seu assistente acadêmico, concluí pesquisas para vários livros; cuidei de tarefas dos mais variados tipos; e servi como guarda-costas, motorista e companheiro de viagem, além de cozinhar, limpar e servir à mesa. Como trabalhávamos em parceria com Frances Whitehead, sua incomparável secretária, John se referia a nós como “o feliz triunvirato”.

Frances estava em Londres, naquela tarde fria de janeiro, enquanto John e eu estávamos em Hookses. John passou o dia trabalhando na revisão de uma nova edição de sua conhecida obra, Issues facing Christians today . Exceto por uma pequena pausa para o almoço e sua habitual soneca da tarde, ele estava em sua escrivaninha desde as 5h30 daquela manhã. Após uma pausa de 15 minutos para o chá, ele voltaria para escrivaninha, onde ficaria até as 19 horas. Não admira que ele estivesse cansado.

Durante o chá, discutimos o progresso que ele havia feito naquele dia e a situação da minha pesquisa sobre o capítulo no qual ele trabalharia no dia seguinte. Também gostávamos de biscoitos amanteigados (conhecidos por serem um tratamento eficaz para DM). Ao se levantar para voltar ao trabalho, ele alisou os tufos de cabelo branco nas têmporas, que havia esfregado, e disse:

“JY, há certas tarefas que não podem ser feitas sem uma terrível dor mental. Elas raramente são divertidas, mas sempre valem a pena”.

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Na comemoração do centenário do nascimento de John Sttot, eu me vi refletindo sobre a dor mental. John foi um comunicador indiscutivelmente brilhante, conhecido pela clareza e concisão de pensamento. Mas mesmo seus dons naturais não o livraram da labuta exigida pelo estudo diligente nem do esforço exigido para entender a Palavra de Deus e aplicá-la no mundo moderno.

Outra sigla favorita de John era BBC. Ele gostava de explicar que ela não significava British Broadcasting Corporation, mas sim balanced biblical Christianity [cristianismo bíblico equilibrado]. John não tinha medo de assumir uma postura impopular, se as Escrituras assim o exigissem. Mas nunca se apressava em dar sua opinião. Na busca por um cristianismo bíblico equilibrado, ele trabalhava incansavelmente para compreender todas as perspectivas sobre determinado assunto, antes de chegar a um julgamento cuidadosamente ponderado com base nas Escrituras.

Em uma época de frases de efeito e feeds no Twitter, muitos líderes cristãos andam tão ocupados tentando se manter atualizados, que poucos de nós paramos, estudamos e lutamos para ensinar o povo de Deus. Com muita frequência, tomamos partido e nos apegamos a esse lado, sem termos a disciplina de ouvir ou questionar nossas intuições. E, como resultado, a fina camada de verniz do nosso discipulado já está mostrando sinais de rachadura.

Neste mundo complexo e em constante mudança, não precisamos de mais comentários. Precisamos de mais dor mental. John estava disposto a suportar essa dor, não apenas no silêncio de seu escritório, mas também na companhia de outras pessoas. Ele compreendeu que o ministério da pregação e do ensino requer a labuta incansável da reflexão diligente.

***

A sala de estar da pequena casa nos arredores de Nairóbi, no Quênia, estava lotada com um grupo eclético de pessoas. Um arcebispo, um ornitólogo, um professor de seminário, jovens estudantes e alguns velhos amigos se reuniram para o café da manhã e uma conversa com o tio John.

Durante a maior parte da manhã, John foi bombardeado de perguntas sobre tópicos que iam desde observação de pássaros até interpretação bíblica. Durante o vai e vem da conversa, no entanto, John envolveu cada pessoa individualmente, ajudando-as a se abrirem e conhecendo aquelas que estava encontrando pela primeira vez. O trabalho do assistente acadêmico, durante essas reuniões, era ouvir, aprender os nomes de todos e anotar tudo cuidadosamente.

Naquela noite, antes de dormir, John e eu nos encontramos em seu quarto para repassar o dia e orar. Repassamos minhas anotações daquela manhã, fazendo uma lista cuidadosa dos livros que ele havia prometido enviar, uma carta de referência que concordou em escrever, uma pergunta de um amigo sobre a qual precisava pensar e um alicate especial (usado em anilhas de pássaros) que ele se ofereceu para procurar na Inglaterra e enviar para o Quênia. Durante aquela viagem de três semanas à África Oriental, houve inúmeras reuniões como esta, muitas das quais resultaram em compromissos pessoais de John.

Após um retorno noturno a Londres, uma semana depois, John acordou cedo na manhã seguinte já ditando cartas e instruções. Quando Frances chegou ao escritório, ela já tinha 15 cartas para digitar e eu, uma longa lista de livros para empacotar e itens especiais para comprar. Aquele alicate usado em anilha de pássaros me fez andar por toda Londres.

John era um inglês tímido e reservado, mas extremamente generoso com as amizades. Ele tinha uma preocupação especial com os que não tinham recursos e privilégios, e uma afeição permanente por jovens cristãos. Ele se corresponderia por meses com um jovem estudante de Burundi com a mesma facilidade com que o faria com o arcebispo do Quênia.

E ele iria persistir nessas amizades ao longo dos anos, deliciando-se quando elas alcançavam a próxima geração. Essa era a história de meu relacionamento com John, que conheci pela primeira vez quando ainda era menino e ele, um pregador visitante frequente na igreja de meu pai.

A capacidade de liderança de John era extraordinária. O impacto de seu trabalho é sentido em todo o mundo hoje e continuará a ser sentido por muitas décadas. Sua influência, no entanto, vai muito além das instituições que fundou e dos movimentos que moldou. Sua influência é ainda mais forte nos relacionamentos que ele fomentou.

Durante essa longa temporada de isolamento e separação causados pela pandemia, sempre pensei na capacidade do tio John para relacionamentos pessoais e seu compromisso irrestrito com todos os tipos de pessoas, independentemente das barreiras sociais, culturais ou raciais. Em virtude da generosidade e da dedicação às amizades, ele criou uma densa comunidade ao seu redor de pessoas surpreendentemente diferentes, enraizadas na graça de Cristo. É uma imagem maravilhosa do que a igreja pode ser para um mundo atormentado por divisão e indiferença.

***

A conferência da International Fellowship of Evangelical Students em Marburg, Alemanha, atraiu estudantes de todos os cantos da Europa e da ex-União Soviética. John foi o principal professor que ensinou a Bíblia, durante a reunião de quatro dias, falando todas as manhãs por quase uma hora, com tradução simultânea oferecida em mais de uma dúzia de idiomas diferentes, por meio de fones de ouvido.

Os tradutores eram todos voluntários, estudantes com pouca experiência que corajosamente se apresentaram para ajudar. Reconhecendo o desafio que seria para eles traduzir com rapidez, John se ofereceu para se encontrar com esses estudantes todas as tardes, a fim de repassar sua palestra para o dia seguinte.

Essas sessões da tarde se tornaram o ponto alto da semana para alunos e professores. Os ávidos tradutores pediam definições e esclarecimentos, muitas vezes rindo do inglês idiomático de John e, ocasionalmente, do seu indecifrável sotaque de classe alta. John ficou maravilhado com a energia e a dedicação deles e, com a maior alegria, esforçou-se para ter certeza de que estivessem tão preparados quanto ele. Quando falava pelas manhãs, ele diminuía o ritmo e fazia pausas após frases difíceis, a fim de dar tempo que seus novos discípulos o alcançassem.

Todas as noites, o outro orador principal, um famoso evangelista, inspirava a grande multidão de estudantes com histórias fascinantes e uma energia incrível. As pessoas da plateia que entendiam inglês ficavam maravilhadas. Os tradutores, no entanto, eram deixados para trás e a seco, e os ouvintes que não entendiam inglês ficavam confusos, tentando acompanhar a palestra. Essas palestras foram um “tour de force” (algo que exige muito esforço), compreendidas por menos da metade dos presentes.

Embora muitos líderes sejam conhecidos por seus egos, John é corretamente lembrado por sua humildade. Uma das marcas dessa humildade era sua profunda sensibilidade às necessidades dos outros e seu compromisso incansável em cuidar dessas necessidades. Sem se deixar distrair por preocupações consigo mesmo, ele tinha energia mental e emocional para cuidar das pessoas ao seu redor.

Enquanto alguns líderes buscam ver vislumbres de si mesmos nos olhos dos outros, John olhava nos olhos dos outros como janelas, e não como espelhos, procurando captar seus corações e mentes.

Na manhã final daquela conferência de Páscoa, John insistiu que os jovens tradutores saíssem de suas cabines à prova de som e se juntassem a ele no palco, para receberem o agradecimento de seus colegas. Foi o ponto alto da semana, durante o qual John se retirou silenciosamente dos holofotes.

Neste centenário do seu nascimento, oro para que Deus dê à igreja mais líderes como John Stott: líderes que entendam o valor da dor mental, que sejam generosos na amizade com as pessoas e humildes a ponto de não apenas compartilhar os holofotes, mas de sair inteiramente debaixo de seu brilho caloroso, a fim de transmitir o legado da liderança piedosa para a próxima geração.

John Yates é reitor da Igreja Anglicana da Santíssima Trindade em Raleigh, Carolina do Norte. Ele atuou como assistente acadêmico de John Stott de 1996 a 1999.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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