Nossa nostalgia é espiritualmente perigosa

Por que não devemos adorar o bezerro de ouro do tempo ‘pré-COVID’.

Christianity Today July 28, 2020
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Dragana991 / Getty / Elizeu Dias / Bundo Kim / Unsplash / Agung Pandit / Pexels

Lembra-se da noite de ano-novo, quando pensamos que 2020 seria o nosso ano? Discussões e memes semelhantes iluminavam as mídias sociais, mas o mundo parou nos meses seguintes. Nosso anseio pelo passado agora permeia os detalhes mais comuns da vida, desde fazer uma parada de rotina na padaria e assistir ao noticiário esportivo antes de ir para a cama até ver prateleiras cheias de pilhas de papel higiênico no supermercado. Nós até sentimos falta dos aborrecimentos diários: correr para entrar no metrô na hora do rush, ficar parado no congestionamento ou ouvir a música alta do vizinho.

Também não podemos deixar de notar a devastação do nosso novo normal: indivíduos que vivem sozinhos, passando por longos períodos sem contato humano ou pessoas perdendo entes queridos sem poder realizar um enterro adequado. Sem o calor de um contato humano direto, sentimo-nos incapazes de participar de momentos de triunfo ou luta na vida das pessoas próximas a nós. Talvez seja exatamente por isso que estejamos nostálgicos — pela capacidade de nos alegrarmos com aqueles que se alegram e de chorar com aqueles que choram de uma maneira totalmente presente e encarnada.

Desde os tons vibrantes de nossos filtros do Instagram, passando pela moda retrô das vitrines das lojas até os slogans políticos que capturam a imaginação coletiva (“Torne a America grande novamente”), o desejo nostálgico percorre toda a gama de experiências humanas. Em suas formas comuns, a nostalgia pode fornecer um tipo agradável de encerramento de ciclos — pense na apresentação de slides de fotos em uma formatura ou casamento. Mas esse mesmo anseio pode trazer prejuízos não resolvidos de maneiras que nos tentem a recriar uma versão melhorada e distorcida do passado. O desejo melancólico por um tempo mais simples ocorre facilmente durante este presente disfuncional. Mas, sem controle, essa nostalgia pode nos desviar de maneira alarmante.

Depois de milagrosamente libertada da escravidão no Egito, a casa de Israel fez um juramento solene diante de Deus de obedecer aos Dez Mandamentos, que proibiam a adoração de outros deuses ou imagens esculpidas. Várias semanas depois, o povo encurralou Arão, o sumo sacerdote, e exigiu que ele fabricasse novos deuses para que eles venerassem (Êx 32.1). Como eles sucumbiram tão rapidamente à idolatria?

Eles pararam de crer no Senhor? Isso parece improvável. Os israelitas haviam testemunhado um sinal maravilhoso após o outro: as dez pragas, o mar Vermelho se abrindo diante deles, colunas de nuvens e fogo guiando seu caminho. Eles viram o poder de Deus. Eles agiram por medo? Fazia 40 dias desde que Moisés subira ao monte Sinai. Ninguém sabia quando — ou se — ele voltaria. Talvez a perspectiva de enfrentar o deserto sem seu líder os tenha levado ao limite. No entanto, quando Moisés apresentou os Dez Mandamentos, o povo sentiu tanto terror na presença de Deus que temeu por sua vida (Êx 20.20). Eles tinham todos os motivos para temer a Deus mais do que o deserto.

Há uma explicação mais simples para essa traição desconcertante: o povo de Israel se consumiu de nostalgia. Quando a euforia de atravessar o Mar Vermelho diminuiu e a realidade da vida no deserto se estabeleceu, o povo ansiou pelo pão e pelas panelas de carne do Egito. Então Deus lhes deu o maná (Êx 16.3). Enquanto comiam maná, dia após dia, seu desejo se tornou mais forte e mais específico: peixe, pepino, alho poró, cebola, alho (Nm 11.4-5). Então Deus lhes deu codornizes (Êx 16.12-13; Nm 11.31-32). Mas seu desejo culinário havia despertado algo mais profundo. Eles ansiavam pelos ritmos estáveis e previsíveis da vida que conheciam havia 400 anos. Esse anseio os consumiu a tal ponto que eles perderam de vista o porquê de precisarem de libertação em primeiro lugar.

Então Moisés desapareceu no monte Sinai. Sua ausência apresentou uma oportunidade de recriar a vida anterior da melhor maneira possível — a festa, a celebração, os costumes religiosos. Arão, o sumo sacerdote, coletou peças de ouro do povo que eles associavam ao Egito e as transformou em um ídolo. No dia seguinte, o povo se aproximou tão ruidosamente diante do bezerro de ouro que Josué, companheiro de Moisés, confundiu o barulho com o som da guerra (Êx 32.17).

O desastre do bezerro de ouro foi a consequência de uma lembrança intencional. A casa de Israel compreensivelmente sentia falta da familiaridade, da rotina e dos outros aspectos positivos da vida que eles haviam construído no Egito. Seu velho mundo havia partido, e seu novo mundo era um deserto de incertezas. Mas a nostalgia os consumia tanto que eles ignoraram 400 anos de escravidão e quebraram o primeiro e o segundo mandamentos para evocar um passado idealizado e distorcido. Eles perderam sua orientação moral tão completamente que Deus considerou exterminá-los antes de Moisés intervir (Êx 32.11-14).

E tudo começou com o desejo por uma boa refeição.

Como pode algo aparentemente inofensivo como a nostalgia ser tão perigoso espiritualmente? C. S. Lewis observa em "Cartas de um diabo a seu aprendiz" que a obra do Espírito se desenvolve no presente. Responder ao Espírito requer “obedecer à voz presente da consciência, carregar a cruz presente, receber a graça presente, agradecer pelo prazer presente”. Uma das características definidoras do pecado, portanto, é que ele rompe nossa conexão com o presente. Lewis ressalta que a maioria dos pecados, como medo, ambição ou luxúria, nos tenta a ficar obcecados com o futuro. A nostalgia, por outro lado, é orientada para o passado. Como ela nos leva à direção oposta da maioria dos outros pecados, tendemos a vê-la, comparativamente, como inofensiva. Porém, espiritualmente falando, a perda do contato com o presente importa mais do que a maneira como isso acontece. Quanto mais um pecado nos impede de enfrentar os desafios e apreciar as bênçãos de nosso presente, mais espiritualmente corrosivo ele se torna. E justamente por parecer agradável e inofensiva, a nostalgia pode ser devastadoramente eficaz em nos deixar fora de sintonia com a obra do Espírito por longos períodos de tempo.

Em pequenas doses, a nostalgia pode nos reabastecer: quem já não se sentiu revigorado depois de relembrar velhos amigos? Mas a nostalgia desenfreada nos leva a nos apegar ao bezerro de ouro que nos lembra o passado, em vez de reconhecer as colunas de nuvens e de fogo que nos guiam através de nosso presente incerto. Como o salmista nos adverte sobre os ídolos: “Têm boca, mas não podem falar; olhos, mas não podem ver. Têm ouvidos, mas não podem escutar, nem há respiração em sua boca". A passagem termina com um aviso: “Tornem-se como eles aqueles que os fazem e todos os que neles confiam” (Sl 135.15-18). A mulher de Ló foi transformada em uma coluna de sal porque olhou para Sodoma (Gn 19.26). Ela tornou-se tão inerte e fixada no tempo quanto o passado imaginado que desejava. Espiritualmente falando, arriscamos o mesmo destino quando idolatramos um passado distorcido.

Como impedimos que a nostalgia nos paralise espiritualmente? Começamos sendo honestos conosco. Tudo o que dissermos a nós mesmos que era “vida normal” antes de 2020 não existe mais. Terminou quando a epidemia se tornou pandêmica; Ahmaud Arbery, Breonna Taylor e George Floyd deram o último suspiro. Nenhum milagre econômico ou ordem executiva pode trazer de volta vidas humanas, nosso senso de segurança ou nossos ritmos e rotinas.

Enfrentar essa realidade pode causar tristeza. Deveríamos dar espaço para processar nossa perda coletiva. O Espírito pode transformar esse sofrimento em “tristeza divina”, que traz arrependimento e salvação. Mas devemos estar abertos à obra do Espírito, para que não sucumbamos à “tristeza segundo o mundo” que traz a morte (2Co 7.10).

Como Lewis enfatiza, essa abertura ao Espírito é um processo ativo. Como podemos pôr em prática “obedecer a presente voz da consciência, carregar a cruz presente, receber a graça presente, agradecer pelo presente prazer”?

Em nosso ambiente atual, as cruzes são óbvias. Os prazeres podem ser mais difíceis de discernir, mas, espiritualmente falando, é vital que sejam reconhecidos e apreciados. Descobri que eles se manifestam em velhas amizades reavivadas por meio de telas de laptop. Eles aparecem nas caminhadas diárias que minha esposa e eu fazemos para evitar a febre do confinamento em nossa pequena cidade de Nova Jersey. Enquanto andamos pelas ruas próximas, paramos e conversamos com os vizinhos com muito mais frequência do que antes. Estou vendo os trabalhadores do setor de serviços sob uma nova ótica — balconistas de supermercado, transportadores de correio, motoristas de caminhão, coletores de lixo — e apreciando as maneiras que tornam possível a vida moderna. Estou aprendendo a gostar de tarefas diárias, como cozinhar e trabalhar no quintal. Esses “prazeres presentes” variam de pessoa para pessoa. Mas eles podem muito bem ser o maná que nos sustenta.

Em tempos como esses, as comunidades de fé podem oferecer algo muito mais edificante do que a nostalgia: a esperança. A esperança, no sentido bíblico pleno, surge das dificuldades: “a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança” Essa esperança permanece justamente porque é obra do Espírito: “a esperança não nos decepciona, porque Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu” (Rm 5.3-5). A esperança cria raízes quando o povo de Deus segue a inspiração do Espírito para enfrentar a presente provação. A nostalgia, por outro lado, pode tentar-nos a alimentar fantasmas de um passado utópico, em vez de enfrentar as dificuldades atuais. Entregar-se às fantasias do passado tira do povo de Deus a oportunidade de cultivar uma esperança que vence o desespero.

Nossa vida americana confortável e tranquila deu lugar a um tempo de deserto. Os momentos de incerteza nos desestabilizam ao extremo, confrontando-nos com a imprevisibilidade de nossa vida. O maná que Deus fornece em tais momentos não tem o gosto a que estamos acostumados. Mas ele nos nutre de maneiras que a rica dieta de nossa vida anterior estabelecida não poderia. À medida que nossas crises atuais continuarem, seremos tentados a recriar um passado idealizado e seletivamente lembrado, em vez de atender às necessidades e preocupações do presente. Mas o povo de Deus deve se disciplinar para se concentrar no aqui e agora. Pois é no presente que a obra do Espírito se desenvolve, tornando novas todas as coisas.

Jeremy Sabella é professor de religião no Dartmouth College. Ele é o autor de An American Conscience: The Reinhold Niebuhr Story (Eerdmans, 2017).

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