Nossa nostalgia é espiritualmente perigosa

Por que não devemos adorar o bezerro de ouro do tempo ‘pré-COVID’.

Christianity Today July 28, 2020
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Dragana991 / Getty / Elizeu Dias / Bundo Kim / Unsplash / Agung Pandit / Pexels

Lembra-se da noite de ano-novo, quando pensamos que 2020 seria o nosso ano? Discussões e memes semelhantes iluminavam as mídias sociais, mas o mundo parou nos meses seguintes. Nosso anseio pelo passado agora permeia os detalhes mais comuns da vida, desde fazer uma parada de rotina na padaria e assistir ao noticiário esportivo antes de ir para a cama até ver prateleiras cheias de pilhas de papel higiênico no supermercado. Nós até sentimos falta dos aborrecimentos diários: correr para entrar no metrô na hora do rush, ficar parado no congestionamento ou ouvir a música alta do vizinho.

Também não podemos deixar de notar a devastação do nosso novo normal: indivíduos que vivem sozinhos, passando por longos períodos sem contato humano ou pessoas perdendo entes queridos sem poder realizar um enterro adequado. Sem o calor de um contato humano direto, sentimo-nos incapazes de participar de momentos de triunfo ou luta na vida das pessoas próximas a nós. Talvez seja exatamente por isso que estejamos nostálgicos — pela capacidade de nos alegrarmos com aqueles que se alegram e de chorar com aqueles que choram de uma maneira totalmente presente e encarnada.

Desde os tons vibrantes de nossos filtros do Instagram, passando pela moda retrô das vitrines das lojas até os slogans políticos que capturam a imaginação coletiva (“Torne a America grande novamente”), o desejo nostálgico percorre toda a gama de experiências humanas. Em suas formas comuns, a nostalgia pode fornecer um tipo agradável de encerramento de ciclos — pense na apresentação de slides de fotos em uma formatura ou casamento. Mas esse mesmo anseio pode trazer prejuízos não resolvidos de maneiras que nos tentem a recriar uma versão melhorada e distorcida do passado. O desejo melancólico por um tempo mais simples ocorre facilmente durante este presente disfuncional. Mas, sem controle, essa nostalgia pode nos desviar de maneira alarmante.

Depois de milagrosamente libertada da escravidão no Egito, a casa de Israel fez um juramento solene diante de Deus de obedecer aos Dez Mandamentos, que proibiam a adoração de outros deuses ou imagens esculpidas. Várias semanas depois, o povo encurralou Arão, o sumo sacerdote, e exigiu que ele fabricasse novos deuses para que eles venerassem (Êx 32.1). Como eles sucumbiram tão rapidamente à idolatria?

Eles pararam de crer no Senhor? Isso parece improvável. Os israelitas haviam testemunhado um sinal maravilhoso após o outro: as dez pragas, o mar Vermelho se abrindo diante deles, colunas de nuvens e fogo guiando seu caminho. Eles viram o poder de Deus. Eles agiram por medo? Fazia 40 dias desde que Moisés subira ao monte Sinai. Ninguém sabia quando — ou se — ele voltaria. Talvez a perspectiva de enfrentar o deserto sem seu líder os tenha levado ao limite. No entanto, quando Moisés apresentou os Dez Mandamentos, o povo sentiu tanto terror na presença de Deus que temeu por sua vida (Êx 20.20). Eles tinham todos os motivos para temer a Deus mais do que o deserto.

Há uma explicação mais simples para essa traição desconcertante: o povo de Israel se consumiu de nostalgia. Quando a euforia de atravessar o Mar Vermelho diminuiu e a realidade da vida no deserto se estabeleceu, o povo ansiou pelo pão e pelas panelas de carne do Egito. Então Deus lhes deu o maná (Êx 16.3). Enquanto comiam maná, dia após dia, seu desejo se tornou mais forte e mais específico: peixe, pepino, alho poró, cebola, alho (Nm 11.4-5). Então Deus lhes deu codornizes (Êx 16.12-13; Nm 11.31-32). Mas seu desejo culinário havia despertado algo mais profundo. Eles ansiavam pelos ritmos estáveis e previsíveis da vida que conheciam havia 400 anos. Esse anseio os consumiu a tal ponto que eles perderam de vista o porquê de precisarem de libertação em primeiro lugar.

Então Moisés desapareceu no monte Sinai. Sua ausência apresentou uma oportunidade de recriar a vida anterior da melhor maneira possível — a festa, a celebração, os costumes religiosos. Arão, o sumo sacerdote, coletou peças de ouro do povo que eles associavam ao Egito e as transformou em um ídolo. No dia seguinte, o povo se aproximou tão ruidosamente diante do bezerro de ouro que Josué, companheiro de Moisés, confundiu o barulho com o som da guerra (Êx 32.17).

O desastre do bezerro de ouro foi a consequência de uma lembrança intencional. A casa de Israel compreensivelmente sentia falta da familiaridade, da rotina e dos outros aspectos positivos da vida que eles haviam construído no Egito. Seu velho mundo havia partido, e seu novo mundo era um deserto de incertezas. Mas a nostalgia os consumia tanto que eles ignoraram 400 anos de escravidão e quebraram o primeiro e o segundo mandamentos para evocar um passado idealizado e distorcido. Eles perderam sua orientação moral tão completamente que Deus considerou exterminá-los antes de Moisés intervir (Êx 32.11-14).

E tudo começou com o desejo por uma boa refeição.

Como pode algo aparentemente inofensivo como a nostalgia ser tão perigoso espiritualmente? C. S. Lewis observa em "Cartas de um diabo a seu aprendiz" que a obra do Espírito se desenvolve no presente. Responder ao Espírito requer “obedecer à voz presente da consciência, carregar a cruz presente, receber a graça presente, agradecer pelo prazer presente”. Uma das características definidoras do pecado, portanto, é que ele rompe nossa conexão com o presente. Lewis ressalta que a maioria dos pecados, como medo, ambição ou luxúria, nos tenta a ficar obcecados com o futuro. A nostalgia, por outro lado, é orientada para o passado. Como ela nos leva à direção oposta da maioria dos outros pecados, tendemos a vê-la, comparativamente, como inofensiva. Porém, espiritualmente falando, a perda do contato com o presente importa mais do que a maneira como isso acontece. Quanto mais um pecado nos impede de enfrentar os desafios e apreciar as bênçãos de nosso presente, mais espiritualmente corrosivo ele se torna. E justamente por parecer agradável e inofensiva, a nostalgia pode ser devastadoramente eficaz em nos deixar fora de sintonia com a obra do Espírito por longos períodos de tempo.

Em pequenas doses, a nostalgia pode nos reabastecer: quem já não se sentiu revigorado depois de relembrar velhos amigos? Mas a nostalgia desenfreada nos leva a nos apegar ao bezerro de ouro que nos lembra o passado, em vez de reconhecer as colunas de nuvens e de fogo que nos guiam através de nosso presente incerto. Como o salmista nos adverte sobre os ídolos: “Têm boca, mas não podem falar; olhos, mas não podem ver. Têm ouvidos, mas não podem escutar, nem há respiração em sua boca". A passagem termina com um aviso: “Tornem-se como eles aqueles que os fazem e todos os que neles confiam” (Sl 135.15-18). A mulher de Ló foi transformada em uma coluna de sal porque olhou para Sodoma (Gn 19.26). Ela tornou-se tão inerte e fixada no tempo quanto o passado imaginado que desejava. Espiritualmente falando, arriscamos o mesmo destino quando idolatramos um passado distorcido.

Como impedimos que a nostalgia nos paralise espiritualmente? Começamos sendo honestos conosco. Tudo o que dissermos a nós mesmos que era “vida normal” antes de 2020 não existe mais. Terminou quando a epidemia se tornou pandêmica; Ahmaud Arbery, Breonna Taylor e George Floyd deram o último suspiro. Nenhum milagre econômico ou ordem executiva pode trazer de volta vidas humanas, nosso senso de segurança ou nossos ritmos e rotinas.

Enfrentar essa realidade pode causar tristeza. Deveríamos dar espaço para processar nossa perda coletiva. O Espírito pode transformar esse sofrimento em “tristeza divina”, que traz arrependimento e salvação. Mas devemos estar abertos à obra do Espírito, para que não sucumbamos à “tristeza segundo o mundo” que traz a morte (2Co 7.10).

Como Lewis enfatiza, essa abertura ao Espírito é um processo ativo. Como podemos pôr em prática “obedecer a presente voz da consciência, carregar a cruz presente, receber a graça presente, agradecer pelo presente prazer”?

Em nosso ambiente atual, as cruzes são óbvias. Os prazeres podem ser mais difíceis de discernir, mas, espiritualmente falando, é vital que sejam reconhecidos e apreciados. Descobri que eles se manifestam em velhas amizades reavivadas por meio de telas de laptop. Eles aparecem nas caminhadas diárias que minha esposa e eu fazemos para evitar a febre do confinamento em nossa pequena cidade de Nova Jersey. Enquanto andamos pelas ruas próximas, paramos e conversamos com os vizinhos com muito mais frequência do que antes. Estou vendo os trabalhadores do setor de serviços sob uma nova ótica — balconistas de supermercado, transportadores de correio, motoristas de caminhão, coletores de lixo — e apreciando as maneiras que tornam possível a vida moderna. Estou aprendendo a gostar de tarefas diárias, como cozinhar e trabalhar no quintal. Esses “prazeres presentes” variam de pessoa para pessoa. Mas eles podem muito bem ser o maná que nos sustenta.

Em tempos como esses, as comunidades de fé podem oferecer algo muito mais edificante do que a nostalgia: a esperança. A esperança, no sentido bíblico pleno, surge das dificuldades: “a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança” Essa esperança permanece justamente porque é obra do Espírito: “a esperança não nos decepciona, porque Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu” (Rm 5.3-5). A esperança cria raízes quando o povo de Deus segue a inspiração do Espírito para enfrentar a presente provação. A nostalgia, por outro lado, pode tentar-nos a alimentar fantasmas de um passado utópico, em vez de enfrentar as dificuldades atuais. Entregar-se às fantasias do passado tira do povo de Deus a oportunidade de cultivar uma esperança que vence o desespero.

Nossa vida americana confortável e tranquila deu lugar a um tempo de deserto. Os momentos de incerteza nos desestabilizam ao extremo, confrontando-nos com a imprevisibilidade de nossa vida. O maná que Deus fornece em tais momentos não tem o gosto a que estamos acostumados. Mas ele nos nutre de maneiras que a rica dieta de nossa vida anterior estabelecida não poderia. À medida que nossas crises atuais continuarem, seremos tentados a recriar um passado idealizado e seletivamente lembrado, em vez de atender às necessidades e preocupações do presente. Mas o povo de Deus deve se disciplinar para se concentrar no aqui e agora. Pois é no presente que a obra do Espírito se desenvolve, tornando novas todas as coisas.

Jeremy Sabella é professor de religião no Dartmouth College. Ele é o autor de An American Conscience: The Reinhold Niebuhr Story (Eerdmans, 2017).

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Quer amar o próximo? Comece combatendo o próprio pecado.

Quando “nos esforçamos para sermos santos”, isso promove o bem comum.

Christianity Today July 18, 2020
Prixel Creative / Lightstock

Quais são algumas maneiras eficazes de amar nosso próximo? A maioria de nós diria coisas como fazer uma refeição para alguém que está doente ou ajudar a consertar uma torneira quebrada. Além disso, podemos apontar ações menos tangíveis, como orar pelas pessoas, pedir desculpas rapidamente por uma ofensa ou oferecer uma palavra de encorajamento.

Em cada caso, pensamos em um comportamento positivo direcionado a outra pessoa. Essas são as ações “uns aos outros”, em conformidade com as muitas instruções do Novo Testamento sobre como tratar as pessoas que Deus põe em nosso caminho.

Cada “um ao outro” é uma expressão do Grande Mandamento de amar o próximo como a nós mesmos. Superem um ao outro em mostrar honra, perdoem um ao outro como Cristo perdoou, suportem um ao outro, submetam-se um ao outro em amor. Essas expressões expansivas dos princípios da Lei do Antigo Testamento apontam como podemos viver em comunidade e oferecem instruções indispensáveis para promover o bem comum. Encontrar maneiras significativas de amar um ao outro não é simplesmente “uma boa ideia” ou “uma boa sugestão”; é o trabalho árduo necessário para o bem-estar do grupo.

Mas, para amarmos verdadeiramente uns aos outros, devemos direcionar nossos esforços para a piedade, não apenas para com os outros, mas para dentro. O chamado para amar o próximo tem a ver com o modo como nos amamos. Ele liga explicitamente a saúde espiritual do indivíduo à saúde da comunidade.

No entanto, instintivamente dividimos nossos pecados em duas categorias: aqueles que afetam nosso próximo e aqueles que afetam apenas nós. O antigo deus do individualismo sussurra que alguns pecados dizem respeito apenas a Deus e eu. Se houver consequências, elas terão impacto apenas em mim. E isso simplesmente não é verdade. A mensagem consistente da Bíblia é a seguinte: o pecado pessoal produz sofrimento comunitário, sempre.

Considere Acã, que acreditava que poderia pegar os despojos da guerra e escondê-los em sua tenda (Josué 7). O castigo de Deus não apenas a Acã, mas a toda a sua família, nos ensina a lição de que pecado pessoal é pecado contra o próximo. O bem-estar comunitário é prejudicado pela rebelião individual.

Nós não somos tão diferentes de Acã. Contamos a nós mesmos uma mentira semelhante ao nos curvarmos ao deus do individualismo: “Enquanto meu egoísmo ficar oculto, desde que eu não atue abertamente no meu impulso de menosprezar, desde que ninguém saiba que sou escravo desse comportamento ou viciado nessa substância ou na minha própria amargura, ninguém além de mim vai se machucar.” Mas o pecado pessoal produz sofrimento comunitário.

Por quê? Porque o que fazemos no lugar secreto é a representação mais precisa de quem realmente somos. E revela os motivos de nosso coração, cujo transbordamento invariavelmente atinge o próximo. O pecado pessoal produz sofrimento comunitário. Mas aqui estão as boas notícias: a santidade pessoal produz bênçãos comunitárias.

Assim como o pecado cometido em segredo será arrastado para a luz, também a boa obra da justiça feita em segredo será recompensada pelo Senhor (Mt 6.1–18). Quando amor, alegria, paz e paciência estão presentes em nossa meditação diária; quando benignidade, bondade e fidelidade fazem parte da nossa mentalidade; quando a gentileza e o domínio próprio são a base, essas virtudes transbordam em nosso coração e se tornam uma fonte de bênção para o próximo.

Não conseguimos deixar de interagir uns com os outros de forma significativa quando essas coisas são o conteúdo de nosso caráter. A santidade pessoal incomum, muito procurada, serve ao bem comum.

Assim, talvez, a maneira mais básica de “amar ao próximo como a si mesmo” seja “se esforçar […] para ser santo” (Hb 12.14). E se um jejum pessoal das mídias sociais o deixasse mais ansioso pela amizade cara a cara? E se uma decisão silenciosa de adiar uma compra o tornasse mais generoso? E se descansar do trabalho o deixasse mais gentil com sua família? Uma abordagem incomum, no mínimo — uma estrada menos percorrida, um caminho estreito — o mesmo caminho do nosso supremo sumo sacerdote, que foi tentado como somos hoje, mas sem pecado. Uma santidade pessoal incomum, muito procurada, transbordando para o bem comum.

Levar uma refeição para alguém certamente caracteriza amor ao próximo. Mas o arrependimento e o abandono dos pecados “pessoais” também. Ao optar por andar pelo caminho estreito do nosso Salvador seremos capazes de amar o próximo a partir do transbordamento do coração.

Jen Wilkin é esposa, mãe e professora de Bíblia. Ela é a autora de Women of the Word e None Like Him. Ela está no Twitter @jenniferwilkin.

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Books

J. I. Packer, autor de ‘O conhecimento de Deus’, morre aos 93 anos

O influente teólogo evangélico deixa uma última lição para a igreja: glorifique a Cristo de todos os modos.

J. I. Packer

J. I. Packer

Christianity Today July 17, 2020
Courtesy of Crossway

[Read in: English | Spanish | French | Chinese: Simplified or Traditional | Korean | Indonesian ]

James Innell Packer, mais conhecido por muitos como J. I. Packer, foi um dos líderes evangélicos mais famosos e influentes de nossa época. Ele morreu na sexta-feira, 17 de julho, aos 93 anos.

J. I. Packer nasceu em uma vila nos arredores de Gloucester, Inglaterra, em 2 de julho de 1926.

De origem humilde, nasceu em uma família que ele considerava ser de classe média baixa. O ambiente religioso em casa e na igreja era o do anglicanismo nominal, em vez da crença evangélica em Cristo como Salvador (algo que não ensinaram a Packer em sua igreja local). A experiência de mudança de vida de Packer ocorreu aos sete anos de idade, quando ele foi expulso do pátio da escola por um valentão e empurrado até a movimentada London Road, em Gloucester. Packer foi atingido por uma van de venda de pão e sofreu um grave ferimento na cabeça. Ele carregou uma depressão visível no lado da cabeça pelo resto da vida. No entanto, Packer não se queixava e aceitou o que a providência trouxe à sua vida a partir da infância.

Muito mais importante que o acidente de Packer foi sua conversão a Cristo, que ocorreu duas semanas após sua matrícula na graduação da Universidade de Oxford. Packer entregou sua vida a Cristo em 22 de outubro de 1944, enquanto participava de um culto evangelístico patrocinado pelo grupo da InterVarsity no campus. Embora Packer fosse um estudante sério, que buscava se formar em um curso tradicional, seu coração, em Oxford, dirigiu-se para as coisas espirituais. Foi em Oxford que Packer ouviu pela primeira vez palestras da C. S. Lewis e, apesar de nunca terem se conhecido pessoalmente, o escritor exerceria uma poderosa influência na vida e no trabalho de Packer. Quando Packer deixou Oxford com seu doutorado sobre Richard Baxter, em 1952, ele não iniciou imediatamente uma carreira acadêmica, mas passou três anos como ministro de uma igreja local nos subúrbios de Birmingham.

Packer teve uma vida profissional diversificada. Ele passou a primeira metade de sua carreira na Inglaterra antes de se mudar para o Canadá, onde passou a segunda metade. Na Inglaterra, Packer ocupou vários cargos de professor em faculdades teológicas em Bristol e passou uma década como diretor da Latimer House, em Oxford, uma câmara de compensação para interesses evangélicos da Igreja da Inglaterra. Nesse período, Packer era um dos três líderes evangélicos mais influentes da Inglaterra (junto com John Stott e Martyn Lloyd-Jones). A mudança de Packer para o Regent College, em Vancouver, em 1979, chocou o mundo evangélico, mas aumentou a influência de Packer pelo resto de sua vida.

Embora Packer tenha sido um homem humilde e que repudiou a ética do sucesso, sua vida parece uma história de sucesso. Seu primeiro livro, "Fundamentalism and the Word of God" (publicado em 1958) vendeu 20.000 cópias em seu primeiro ano e tem sido publicado desde então. Em 2005, a revista "Time" nomeou Packer um dos 25 evangélicos mais influentes. Quando a Christianity Today realizou uma pesquisa para determinar os 50 principais livros que moldaram os evangélicos, o livro de Packer "O conhecimento de Deus" ficou em quinto lugar. Sua fama e influência não foram resultado de uma busca pessoal ativa. Ele se recusou firmemente a cultivar seguidores. Em vez disso, o que deixou sua marca foi sua máquina de escrever (que ele usou para escrever artigos e livros ao longo da vida).

J. I. Packer desempenhou tantos papéis que podemos pensar nele como alguém que teve várias carreiras. Ele se sustentou ensinando e era conhecido por seus alunos como professor. Mas o mundo em geral conhece Packer como autor e palestrante.

A fama de Packer como palestrante rivalizava com sua estatura como autor. Nas duas esferas, sua generosidade era insuperável. Nenhum público ou local era pequeno demais para que ele não desse o melhor de si. Sua carreira editorial foi um estudo de caso, uma vez que ele aceitou praticamente todos os pedidos que lhe foram feitos. Seu livro mais conhecido, "O conhecimento de Deus", (que vendeu um milhão e meio de cópias) começou como uma série de artigos bimestrais solicitados pelo editor de uma pequena revista evangélica. Seu primeiro livro, "Fundamentalism and the Word of God", começou como uma conversa com um grupo de estudantes (a editora solicitou um panfleto, mas Packer escreveu um livro). Talvez ninguém na história tenha escrito mais endossos e prefácios para livros de terceiros do que Packer.

Tanto nas publicações quanto nas palestras, Packer era famoso como um estudioso puritano, mas também era um clérigo dedicado, que dizia que seu ensino era voltado principalmente para a educação de futuros ministros, e passava inúmeras horas servindo em comitês da igreja. Por um quarto de século, o envolvimento de Packer com a Christianity Today lhe deu uma plataforma como ensaísta que frequentemente se voltava para tópicos de crítica cultural. Packer teve uma carreira como polemista (por necessidade e não por escolha, ele me confidenciou). Apesar desse alcance, Packer sempre se identificou como teólogo, o que podemos, portanto, considerar ter sido sua vocação principal.

Quando falamos do legado deixado por uma pessoa falecida, pensamos enganosamente em termos de um legado póstumo especulativo, impossível de prever. O principal legado de J. I. Packer é a influência que exerceu sobre os eventos da cristandade e sobre a vida das pessoas ao longo da sua vida. Esse é o seu legado indiscutível, e destacarei quais creio terem sido as maneiras mais importantes pelas quais Packer afetou os rumos do cristianismo durante sua vida.

O primeiro livro de Packer foi uma defesa da autoridade da Bíblia, e isso se tornou uma paixão ao longo da vida e uma das contribuições mais significativas de Packer para a igreja evangélica. Packer tinha um compromisso extraordinariamente forte com o entendimento de que as palavras da Bíblia são exatamente as palavras de Deus. Ele defendeu a doutrina fora de moda da inerrância das Escrituras. Ele publicou livros sobre a confiabilidade da Bíblia. Ele atuou como editor geral da English Standard Version da Bíblia, e disse que esse projeto foi a maior realização de sua vida. J. I. Packer deu aos evangélicos meios de se posicionar em relação à autoridade da Bíblia. Pessoalmente, nenhum legado de Packer foi mais importante para mim do que esse, a partir do momento em que tirei uma cópia de "Fundamentalism and the Word of God" de uma estante de livros de uma livraria cristã de minha cidade natal, quando era universitário.

A maneira pela qual Packer se tornou porta-voz de evangélicos conservadores diante de tendências e ataques liberais é outra contribuição importante de sua vida. Quando Packer relembrava a década durante a qual liderou o International Council on Biblical Inerrancy, ele se referia, com satisfação, ao fato de ter contribuído para “manter a linha” da inerrância. Essa metáfora se aplica a múltiplas causas às quais Packer dedicou seus melhores esforços. Packer ajudou a manter a linha evangélica conservadora em numerosas questões teológicas, como a natureza das Escrituras e sua interpretação, o papel das mulheres na igreja e a posição da igreja em relação à homossexualidade. Ele era um tradicionalista que procurava a verdade no passado. Em "O conhecimento de Deus", ele cita Jeremias 6.16, com sua imagem de “caminhos antigos […] onde está o bom caminho”, alegando que seu livro era um chamado para seguir esses caminhos antigos.

Outro tema unificador na vida de Packer foi sua valorização da pessoa comum, e isso também faz parte de seu legado. Packer nunca perdeu o toque comum que ele absorveu em sua educação, e o mesmo espírito foi fomentado por sua identidade como um puritano dos últimos dias. Embora Packer pudesse escrever literatura acadêmica com os melhores, seu chamado era para escrever literatura intermediária, para o leigo. Ele era totalmente desprovido de carreirismo. O título de uma antologia publicada em sua homenagem acertou em cheio: "Doing Theology for the People of God" [Fazendo Teologia para o Povo de Deus"]. Quando Alister McGrath rotulou Packer de teologizador e não de teólogo, Packer considerou isso “uma grande descoberta”, que o levou a concluir que era “um catequista adulto”, dedicado ao ensino sistemático da doutrina para o cristão comum. Packer não se sentiu tão mal quanto outros estudiosos por nunca ter concluído ou publicado sua teologia sistemática, porque considerava seu chamado redigir escritos teológicos informais para o leigo.

Outra parte do legado de Packer durante sua vida foi seu exemplar caráter cristão, que serviu de modelo e inspiração para quem o conhecia. Sua piedade era aparente a todo momento e sua presença era uma bênção para as pessoas que passavam tempo com ele. Suas palavras eram cheias de sabedoria. Ele era trabalhador, mas, ao mesmo tempo, generoso com seu tempo. Como os puritanos que ele amava, Packer acreditava que a fé cristã se baseia em um pensamento claro, ao mesmo tempo em que envolve o coração. J. I. Packer falava com precisão, no melhor estilo britânico, mas também exalava calor espiritual. Para aqueles que tiveram a sorte de conhecê-lo, imediatamente experimentamos Packer como um espírito afim na fé e um companheiro de viagem do Caminho. A autêntica nota espiritual era aparente.

Os escritos de Packer mostram o que mais importava para ele e o que ele também achava que a igreja deveria valorizar mais. Parte do legado de Packer era ajudar os cristãos a definir a agenda certa e a se preocupar com as coisas certas. A lista de prioridades de Packer incluía a Bíblia, a igreja, a teologia correta, a santidade na vida e a vocação. A razão pela qual Packer escreveu sobre uma variedade tão ampla de assuntos não é apenas que ele tinha uma mente ativa e capacitada, mas, também, que estava preocupado que os cristãos pensassem corretamente sobre todos os assuntos relacionados à vida. J. I. Packer tinha uma paixão pela verdade em todas as esferas.

J. I. Packer também era um homem de paradoxos. Ele foi um anglicano dedicado ao longo da vida, mas se moveu com igual facilidade entre a ala não conformista do evangelicalismo e talvez tenha sido mais influente nos círculos reformados. Ele era essencialmente britânico, mas viveu metade de sua vida adulta no Canadá e, em uma reviravolta adicional, a esfera de sua maior influência foram os Estados Unidos. Packer se tornou um dos evangélicos mais famosos de sua época, mas nunca ocupou um cargo de prestígio em uma grande universidade e nunca ocupou permanentemente um púlpito de alta visibilidade. Ele era um homem moderado, de disposição pacífica, mas sempre se encontrava no centro da controvérsia e era frequentemente criticado.

Se perguntarmos como uma pessoa quieta, que cuidava da própria vida, se tornou tão famosa e influente, a resposta é que os escritos de Packer foram o meio pelo qual suas ideias foram disseminadas. Sua vida, portanto, é uma homenagem ao poder da palavra escrita e publicada. Com base em seus escritos, Packer também se tornou um palestrante amplamente conhecido. Tanto na escrita quanto na fala, seu conteúdo era sempre atencioso, logicamente empacotado, claro e substancial, e ele superestimava rotineiramente a quantidade de tempo disponível para apresentar a extensa quantidade de material que preparara.

O próprio Packer atribuiu a fama e o sucesso que alcançou à providência divina, e é óbvio que esse é o caso. Ele não pretendia ser famoso. Ele simplesmente desempenhou cada tarefa que lhe foi requisitada e deixou o resultado para Deus. Falar com adolescentes em uma sala de estar era uma tarefa tão provável para ele quanto dirigir-se a um auditório lotado. J. I. Packer foi, acima de tudo, útil para o reino e seu rei.

Quando perguntado, no final da vida, quais seriam suas palavras finais para a igreja, Packer respondeu: “Acho que posso resumir em quatro palavras: "Glorify Christ every way" ["glorificar a Cristo de todas as maneiras”]. Isso pode servir como um epitáfio do que Packer fez em sua vida e do que está fazendo agora.

Leland Ryken é professor emérito de Inglês no Wheaton College, onde lecionou por meio século. Ele escreveu uma biografia de J. I. Packer, intitulada J. I. Packer: An Evangelical Life.

Traduzido por Maurício Zágari

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A redenção do diálogo inter-religioso

Três evangélicos lutam para manter o testemunho fiel em conversas com muçulmanos.

Christianity Today July 17, 2020
Ozgurdonmaz / Getty / Ben White / Lightstock

A delegação egípcia de xeques muçulmanos se preparava para a sessão de abertura da conferência inter-religiosa. Seus conceituados anfitriões protestantes os recebiam nos reverenciados corredores de um seminário histórico de Nova York com agrados e conversas triviais sobre a humanidade compartilhada e valores comuns.

Foi quando o moderador assustou os acadêmicos da Universidade Al-Azhar, o principal centro de aprendizado do mundo muçulmano sunita, com o que parecia um ultimato: “Quem acredita que sua religião é o único caminho não é bem-vindo aqui”.

Silenciosamente, os muçulmanos se levantaram para sair. Seu tradutor improvisado, Joseph Cumming, um delegado do Fuller Theological Seminary, rapidamente interveio. “Não, não, não se ofendam”, disse ele. “Ele não está se referindo a vocês, ele está falando sobre nós.”

Cumming é um evangélico americano que milita no mundo islâmico desde 1982. Muitos evangélicos, explicou aos convidados muçulmanos, têm sido extremamente críticos ao diálogo inter-religioso. Eles argumentam que ele faz muitas concessões, reduz a religião ao menor denominador comum e mina todo compromisso com a verdade absoluta. A paz se torna a prioridade mais alta, com grande foco no acordo, evitando as diferenças cruciais sobre a salvação.

No entanto, Cumming estava presente de qualquer maneira. Apesar do que o moderador disse, ele acreditava que era possível — e até importante — que os evangélicos participassem do diálogo inter-religioso sem abrir mão de seu compromisso apaixonado com a verdade da Bíblia.

Os estudiosos muçulmanos, tranquilizados, sentaram-se novamente. E a conversa continuou. E continua até hoje. Essa conferência aconteceu há quase duas décadas e Cumming permanece engajado no diálogo inter-religioso. Ele tem dedicado a segunda metade de seu ministério cristão a manter um diálogo respeitoso com os muçulmanos e superar estereótipos entre ambos, mantendo-se tão apaixonado como antes por testemunhar sua fé em Cristo.

Cumming nem sempre pensou assim. Ele teve de se render à possibilidade de diálogo inter-religioso. A princípio, ele pensou que era apenas um cristianismo liberal e não queria nada com isso. Ele teve uma experiência ruim quando adolescente, com uma forma de cristianismo que aceitava tudo e todos. Salvo na cidade de Nova York aos 13 anos, enquanto lia o Novo Testamento sozinho, ele entrou para uma igreja que citava Buda tanto quanto Jesus. Ele conheceu muitas pessoas incomuns, que o levaram a uma vida de “exploração espiritual” que incluía sexo e drogas.

Aos 18 anos, Cumming experimentou uma segunda conversão e redescobriu sua fé original. Ele se comprometeu com a exclusividade do evangelho e prometeu que nunca abriria mão dessa crença. “Rejeitando completamente” esse interlúdio sincrético, Cumming tornou-se um oponente firme do diálogo entre as religiões e decidiu, em vez disso, ser uma testemunha eficaz de Cristo aos não cristãos. Mas sua fé redescoberta também fez nascer nele uma preocupação em ajudar as pessoas que sofrem em outras nações.

Em 1982, Cumming foi para a Mauritânia, país da África Ocidental que não conhecia cristãos protestantes. A Mauritânia era o quarto pior país no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, a escravidão ainda era uma prática comum e as taxas de desnutrição entre as crianças chegavam a 75%. Cumming fundou o grupo humanitário da Comunidade Doulos e viveu entre os pobres, impactando a vida de milhares.

“Queríamos ajudar com a saúde pública”, disse ele, “e sermos fiéis, bons exemplos do amor de Cristo”.

Eventualmente, isso significava conversar com pessoas de uma fé diferente. Cumming conheceu o presidente da associação nacional de imãs, que o convidou para sua casa, presumivelmente para as três tradicionais rodadas de chá. Mas, ao chegar, ele descobriu uma sala cheia de discípulos do imã e foi convidado a “dialogar” sobre o cristianismo.

Cumming relutou muito em ouvir “essa palavra”, disse ele. Mas testemunhou sobre sua fé, esperando uma reação negativa. Em vez disso, o imã agradeceu, dizendo que era a melhor explicação que ele já ouvira.

“Já participei de eventos inter-religiosos em todo o mundo", o imã disse, “e a maioria dos cristãos não acredita em sua própria fé. Você está disposto a ter mais diálogos como este?”

Cumming ficou surpreso ao ouvir sua própria resposta — sim. Então, ele começou — intermitentemente — na sua jornada em direção a uma nova abordagem evangélica do diálogo inter-religioso.

“O que eu descobri”, disse ele, “é que, se você é humilde, generoso e educado, se deixa as pessoas verem seu amor e respeito e deixa que o Espírito Santo lhe dê oportunidades, as pessoas agradecerão seu testemunho.”

Sem saber, Cumming estava seguindo os passos de David Shenk, um evangélico comprometido que ministrava em contextos muçulmanos, e também abrindo caminho para outro, Rick Love. Shenk nasceu em 1937, filho de missionários menonitas na Tanzânia, e tornou-se um missionário. Ele trabalhou entre muçulmanos na Somália e ajudou, com muitos outros, a trazer um sistema educacional moderno para o país. Logo, porém, o governo obrigou as escolas apoiadas pelos cristãos a ensinar o Islã. Grupos cristãos no país pararam para considerar se poderiam continuar a cooperar com essas escolas de forma sincera. Houve oração, jejum e muita discussão com menonitas nos EUA e crentes somalis locais sobre a melhor decisão a tomar. Finalmente, os menonitas decidiram que poderiam aceitar as limitações da situação, mantendo-se fiéis às próprias convicções sobre a exclusividade do evangelho.

Com o tempo, um compromisso de pacificação começou a caracterizar a missão. Enquanto os senhores da guerra da Somália se confrontavam, os menonitas ganharam o rótulo de “clã da paz”. Eles sempre tentaram ser francos sobre o motivo de seu compromisso com a paz.

“Sempre fui claro sobre minha identidade e que sirvo sob a autoridade da igreja”, disse Shenk. “Mas essa confissão nunca fechou portas. Pelo contrário, as abriu”.

Rick Love aderiu ao diálogo inter-religioso quando se convenceu da importância de ser aberto sobre suas crenças e sua identidade cristã.

Love, que morreu de câncer em dezembro de 2019, tornou-se cristão como parte do movimento Jesus People, na década de 1970, e depois foi ministrar entre muçulmanos na Indonésia, em 1984, com a organização missionária Frontiers. Depois de 15 anos lá, ele cresceu dentro da organização e começou a trabalhar na administração. Uma coisa que fez foi ajudar os missionários a desenvolver plataformas seculares para alcançar os muçulmanos e compartilhar sua fé no mundo islâmico.

Lentamente, porém, ele ficou preocupado com essas plataformas. O primeiro sentimento de descontentamento de Love ocorreu ao visitar uma equipe no Bahrein. Ele foi apresentado a um coronel do exército do país. Eles conversaram amigavelmente.

Mas, pouco depois, começou a suar frio. Frontiers havia acabado de lançar um novo site, e sua foto foi exibida de forma destacada. Certamente, seus anfitriões no Bahrein o procurariam on-line e descobririam que ele não estava sendo totalmente honesto sobre quem ele era e o que estava fazendo.

“Ele descobrirá que eu lhe digo uma coisa aqui, mas ele lerá outra coisa lá”, pensou Love. “Ele saberá que sou um missionário profissional.”

Ele percebeu que sua abordagem ao trabalho missionário era realmente enganosa, contrariando o profundo amor que ele tinha pelos muçulmanos e uma barreira à amizade genuína. Ele respeitava o coronel e sua identidade oculta parecia uma traição.

Rapidamente, ele entrou em contato com sua equipe e disse-lhes para retirar a foto. Eles fizeram isso a tempo, mas o episódio ficou na mente de Love e acabou se transformando em profunda convicção.

“Isso roubou minha alegria e ousadia”, disse Love à CT antes de sua morte. “Eu estava me mobilizando para os muçulmanos e queria compartilhar Jesus. Mas não podia mencionar meu trabalho”.

À medida que a carreira de Cumming no diálogo inter-religioso progredia, ele orava sobre quanto poderia ser ousado. Seis meses após o 11 de setembro, ele foi convidado a falar no Egito, em Al-Azhar, sobre um tópico querido de todo cristão evangélico: Jesus morreu na cruz?

A abordagem foi acadêmica. Os muçulmanos negam a crucificação, mas certos versículos do Alcorão criam uma ambiguidade. Cumming mergulhou nos comentários islâmicos para apresentar uma visão diferenciada da variedade de interpretações muçulmanas desses versículos.

Mas, antes de subir ao pódio, ele orou: “Deus, se o Senhor também quer que eu diga que acredito que sua cruz possibilita o perdão, me dê uma clara oportunidade”.

A atmosfera no salão lotado era elétrica. Após os ataques terroristas a Nova York e Washington e a subsequente invasão do Afeganistão e o início da “guerra ao terror”, o público egípcio achava que os cristãos americanos odiavam os muçulmanos.

“Eles dizem que o Islã é uma religião intolerante”, começou o moderador, “mas aqui provamos o contrário. Vamos ouvir o que ele tem a dizer”.

Todos os olhos estavam fixos em Cumming quando ele se lançou em sua apresentação. Assim que terminou, dezenas de mãos se levantaram com perguntas.

Então, aconteceu. Uma mulher se levantou e educadamente fez uma pergunta que criou uma clara oportunidade para compartilhar sobre o perdão dos pecados por meio da cruz de Cristo.

“Senhor, aprendemos muito sobre o que os muçulmanos acreditam sobre a cruz e um pouco sobre o que os cristãos acreditam sobre a cruz. Mas não ouvimos o que você acredita sobre a cruz. Você poderia nos dizer o que isso significa para você?

O Espírito Santo cutucou-o, sugerindo: “Esta é a resposta para sua oração.” Cumming divulgou os detalhes de seu testemunho pessoal e suas próprias convicções profundas sobre a importância da cruz. Ele foi aplaudido de pé. Alguns estudantes até choraram.

“Este foi um momento decisivo na minha compreensão do diálogo inter-religioso”, disse Cumming. “Eu pensei que isso significava que eu não poderia testemunhar minha fé sobre o que Jesus significava para mim.”

Cumming finalmente adotou o diálogo em tempo integral, trabalhando como diretor do programa de reconciliação da Universidade Yale. Entre suas primeiras tarefas: organizar uma conferência inter-religiosa em torno de A Common Word, uma iniciativa muçulmana que promove a ideia de que o amor é o conceito central do Islã e do Cristianismo. Uma das pessoas que ele recrutou para a resposta cristã era um ex-missionário tentando repensar o diálogo inter-religioso, um novo estudante de doutorado chamado Rick Love.

Embora muitos cristãos questionassem se A Common Word estava certa sobre o âmago do Islã, Love e Cumming concordaram que receberam a ordem, como cristãos, de amar o próximo. Eles também pensaram que isso poderia ser a base do diálogo inter-religioso.

“Acreditamos que o Grande Mandamento balisa a Grande Comissão”, disse Love. “Portanto, precisamos amar o próximo sem amarras, quer eles queiram ouvir o evangelho ou não.”

Cumming disse que muitos cristãos acreditam que os muçulmanos são falsos quando descrevem sua fé como uma religião de paz. Eles contestam a verdadeira natureza da fé muçulmana e a mensagem de A Common Word, apontando os ataques de 11 de setembro como um exemplo de como a teologia islâmica tem sido usada para justificar a violência. Cumming discordou dessa resposta.

“Não é nosso dever dizer aos muçulmanos como interpretar sua fé, assim como eles não podem interpretar a nossa”, disse ele. “Mas se os líderes muçulmanos estão dizendo ao público muçulmano que é seu dever amar os cristãos, por que contradizemos isso?”

A resposta dos EUA ao 11 de setembro também apresentou um desafio — uma escolha — para os cristãos americanos. Eles tiveram de repensar o que significava ser cristão.

“A fé cristã é uma herança civilizacional e cultural, ou é um discipulado para Jesus Cristo, o crucificado e ressuscitado?” Cumming perguntou. “Em muitas situações, podemos dizer as duas coisas. Mas, no mundo pós-11 de setembro, em relação aos muçulmanos, nossa resposta nos levará a direções opostas, e somos forçados a escolher.”

Em 2010, Love fundou o Peace Catalyst International para se engajar em tempo integral no diálogo muçulmano-cristão. Ele escreveu sobre sua jornada com conversas inter-religiosas em um livro de 2014, Peace Catalysts, e o seguiu com um título de 2017, Glocal, pedindo aos cristãos que mantenham sua mensagem principal.

Tanto muçulmanos quanto cristãos desejam converter um ao outro. Love disse que as conversas com os imãs poderiam começar com isso e depois passar para discussões sobre o bem comum. Muitos missionários sofrem com uma dupla identidade, ele acreditava, escondendo sua esperança evangelística por trás de um trabalho profissional ou humanitário. Isso não é bom para eles e não é bom para o evangelho.

Segundo Shenk, às vezes, o diálogo inter-religioso ocorre naturalmente como resultado de relacionamentos entre vizinhos. Ele e seus companheiros missionários menonitas há muito rejeitam a dupla identidade com a qual Love lutava. Eles sentem que precisam deixar claro que são embaixadores do reino de Deus.

“A linguagem da plataforma me diz: fazemos o bem para termos um motivo para estar aqui”, disse Shenk. “A linguagem do Reino diz que estamos aqui para representar Jesus, por meio de palavras e ações, com um compromisso de paz no centro.”

O diálogo é o resultado natural e leva, para Shenk, a oportunidades de testemunhar.

Ele se lembra de quando seu grupo decidiu não debater com os muçulmanos locais, mas buscar seus conselhos — em um estudo bíblico desenvolvido para muçulmanos somalis.

“Isso os desqualifica?” ele perguntou aos sheiks locais. “E apresenta o evangelho como boas-novas?”

Alguns muçulmanos começaram a seguir Jesus e Shenk foi chamado pelas autoridades para interrogatório. Ele respondeu com sinceridade, testificando que estava conversando com os vizinhos quando lhes contou a alegria contagiosa que recebeu por conhecer Jesus.

“Não posso responder quando eles me perguntam?” ele perguntou. “E Deus não pode conceder fé verdadeira?”

As autoridades o liberaram.

Obviamente, não há garantias no trabalho missionário. Shenk foi forçado a sair, em 1978 — não por muçulmanos, mas por marxistas. Ele se mudou para o Quênia, a fim de trabalhar com refugiados somalis. Lá, ele se tornou professor na Universidade Kenyatta e fez amizade com outro professor, Badru Kateregga. Os dois conversaram sobre suas diferenças religiosas e, finalmente, transformaram suas conversas em um livro, "Um diálogo entre um muçulmano e um cristão". Publicado pela primeira vez em 1980, é um exemplo marcante da abordagem evangélica ao diálogo inter-religioso e foi traduzido para doze idiomas.

Em 2013, Shenk ajudou a fundar a Equipe de Relações Cristãs-Muçulmanas para sua denominação. Agora, com 82 anos, ele orienta a equipe com o típico compromisso menonita com a não violência, pois, em suas palavras, “falam com ousadia e treinam persistentemente para construir pontes de conexão amorosa e respeitosa entre cristãos e muçulmanos, enquanto professam fielmente a fé em Cristo”.

O diálogo inter-religioso nem sempre corresponde às expectativas das pessoas. Um líder palestino disse certa vez a Cumming que não falaria contra a concepção popular de homens-bomba como mártires — mesmo acreditando que a percepção popular estava errada. O homem se desculpou, mas explicou que tinha de escolher suas batalhas.

Em outra ocasião, Love tentou convencer os líderes muçulmanos a permitir que os muçulmanos se convertessem ao cristianismo, mas não conseguiu colocar o assunto na pauta de uma conferência inter-religiosa. “Isso perturbaria demais a paz”, disseram-lhe.

Os evangélicos frequentemente também permanecem céticos. “Às vezes, tememos que isso leve a uma religião mundial”, disse Cumming, agora pastor da Igreja Internacional de Yale. “De fato, é exatamente para isso que minha igreja original estava trabalhando. Mas, se os muçulmanos vão conversar com os cristãos, por que abdicaríamos e deixaríamos os liberais falarem em nosso nome?”

O cenário inter-religioso pode ser frustrante para os evangélicos, ele observou. Há muita conversa e tempo para conhecer as pessoas. Não é um lugar para debate, e construir relacionamentos com crentes comprometidos de outras religiões geralmente não é um campo fértil para o evangelismo.

Embora um diálogo possa parecer decepcionante, Cumming está convencido de que ele pode comunicar duas coisas importantes: uma imagem precisa do cristianismo por meio da pessoa de Jesus e questões de liberdade religiosa.

“A maioria dos evangélicos concorda que estas coisas são prioritárias”, disse Cumming.

Ele também já viu a conversa desenvolver e mudar de maneiras encorajadoras. Nas décadas desde que ele teve de apaziguar a delegação egípcia, a discussão das regras básicas diminuiu, mas muitos evangélicos ainda são cautelosos.

“Agora há um reconhecimento abundante de que pessoas com alegações da verdade suprema ainda podem ter um diálogo construtivo”, afirmou ele. “E, se você os excluir, exclui a maioria dos crentes religiosos do mundo — as mesmas pessoas que mais precisam de conversas construtivas.”

O número dessas conversas parece estar aumentando. A Equipe de Relações Cristãs-Muçulmanas de Shenk atingiu uma média de 4.500 pessoas por ano, em 12 países, nos últimos cinco anos. Eles foram convidados a distribuir mais de 2.000 cópias do Diálogo de Shenk na convenção nacional da Sociedade Islâmica da América do Norte — a única agência cristã oficialmente representada.

O Peace Catalyst International, grupo que Love fundou, agora tem 30 funcionários em 18 cidades e três países, incluindo Bósnia e Indonésia. Quase 10.000 pessoas de todas as religiões participaram de eventos de promoção da paz no ano passado, 33% a mais do que há três anos.

Cumming sustenta que os evangélicos estavam certos ao suspeitar de uma agenda liberal no diálogo inter-religioso tradicional. Muito disso foi hostil à insistência evangélica nas reivindicações únicas de Jesus Cristo. Mas isso mudou, em parte por causa do trabalho que Cumming, Love e Shenk fizeram e da maneira como se deixaram mudar com o chamado para amar ao próximo e compartilhar as boas-novas.

“Sou um convertido ao diálogo inter-religioso”, disse Cumming. “Eu virei 180 graus.”

Jayson Casper é o correspondente no Oriente Médio para a Christianity Today.

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O Antigo Testamento diz tudo

As Escrituras hebraicas exibem explicitamente lutas pessoais — e nos ensinam muito sobre as práticas espirituais.

Christianity Today July 16, 2020
Illustration by Matt Chinworth

Este é o quinto de uma série de ensaios de seis partes de uma seção de estudiosos renomados revisitando o lugar do “Primeiro Testamento” na fé cristã contemporânea. — Os editores

Não sou uma teóloga do Antigo Testamento, mas o amo há muito tempo.

Eu praticava momentos devocionais antes de saber que eles eram um requisito para a vida cristã e, durante esses momentos, me via natural e inexplicavelmente atraída pelo Antigo Testamento. Eu pegava minha Bíblia e um diário — e, às vezes, um guia de estudo da Bíblia ou um livro de poesias — e mergulhava em tudo isso.

Os salmos, em particular, foram incríveis para mim. Eles estavam cheios do mesmo turbilhão de emoções que eu estava experimentando na adolescência: raiva e tristeza, solidão e perguntas, desejo e paixão, adoração e reverência. Quando eu estava imersa nos salmos, me sentia compreendida e consolada — como se alguém realmente me entendesse. Quando lia as confissões de pecado de Davi ou suas imprecações ferventes contra seus inimigos, eu sabia que não havia nada que eu não pudesse mencionar na presença de Deus. Nada estava fora dos limites. Para uma jovem apaixonada e melancólica e uma filha de pastor em um ambiente religioso conservador, isso não era algo irrelevante! Os salmos me deram um lugar para estar e respirar: aprendi a amar a Deus por causa do que experimentei com ele neles.

Agora percebo que estava aprendendo a orar não tanto por meio dos ensinamentos do Novo Testamento (por mais valiosos que sejam), mas por fazer minhas as grandes orações do Antigo Testamento. Para mim, não era nada antigo; mas tenro e novo. Os escritores dos salmos me deram palavras quando eu não tinha nenhuma, iniciando minhas próprias orações. Essa foi minha primeira experiência de ser moldada espiritualmente pelo Antigo Testamento.

O que é espiritualidade cristã?

O que queremos dizer quando falamos sobre ser “moldado espiritualmente”? O termo espiritualidade é bastante ambíguo e onipresente na cultura atual. Se escutarmos com atenção, podemos ouvir que ele é usado para descrever tudo, desde meditação à escalada de montanhas, da injeção de adrenalina que um atleta sente na quadra de basquete ao estado inconsciente do artista envolvido em sua arte, passando por um retiro silencioso à adoração em uma catedral, de praticar yoga a simplesmente prestar atenção à respiração. A linguagem da espiritualidade pode parecer um tipo de coisa mal definida, amorfa e delicada, significando um sentimentalismo sobrenatural com uma inclinação para o místico que, muitas vezes, tem pouco a ver com qualquer divindade ou afiliação religiosa.

Mas que tal recuperar esse termo e usá-lo bem? Simplificando, espiritualidade são todas as maneiras pelas quais os seres humanos buscam por Deus, pela verdade, pelo significado pessoal e pelo significado último. Todos os seres humanos têm corpo, alma e espírito, e o espírito é o que nos dá a vida. Quando o conceito de espiritualidade é associado à palavra “cristã”, surge uma perspectiva ainda mais clara. Bradley Holt, em seu livro Thirsty for God, esclarece que, na tradição cristã, o termo “refere-se em primeiro lugar à experiência vivida”. “Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito”, escreve Paulo em Gálatas 5.25. “O ponto de partida é o Espírito de Cristo vivendo na pessoa”, diz Holt.

Dentro de uma estrutura cristã, então, as palavras espiritual e espiritualidade significam ser “do Espírito Santo” — a terceira pessoa da Trindade, aquele que foi enviado por Deus, a pedido de Jesus, para ser nosso advogado e conselheiro e nos guiar à verdade que somos capazes de suportar. Como Philip Sheldrake argumenta em Uma Breve História da Espiritualidade, uma “pessoa espiritual” (1Co 2.14–15) nas cartas de Paulo era simplesmente alguém em quem o Espírito de Deus habitava e que vivia sob a influência desse Espírito.

Ao definir a espiritualidade dessa maneira, enfatizamos o significado da palavra raiz "espírito" — um conceito ricamente bíblico que se refere ao espírito humano e ao Espírito divino. O Espírito divino se refere ao Espírito de Deus, que era ativo nos assuntos humanos no Antigo Testamento e é o Espírito Santo que habita, agora, em nós. Assim, a espiritualidade que é distintamente cristã é a espiritualidade iniciada, vivificada e guiada pelo Espírito Santo. Isso imbui uma certa gravidade que pode estar faltando nos usos mais comuns e imprecisos do termo.

Orando com o Antigo Testamento

Por definição, então, todos nós temos uma espiritualidade — uma maneira de responder (ou não) ao Espírito que foi dado. E enquanto o ponto de partida é o Espírito de Cristo vivendo dentro de cada cristão, cada um de nós tem um estilo particular de discipulado cristão — ou, como Dallas Willard colocou, uma maneira particular de estar “com ele para aprender com ele a ser como ele”.

Diferentes tradições, denominações e ordens religiosas incorporam e codificam muitas dessas distinções em estilo. “Por exemplo, jesuítas, luteranos e feministas têm uma combinação particular de temas e práticas que os tornam distintos”, escreve Holt. “É de vital importância para a espiritualidade cristã, hoje, que tenhamos uma visão ampla dessa tradição e da família global de cristãos, não simplesmente consagrando o pequeno fio de tradição que pode ser familiar em nosso lar, congregação ou grupo étnico. Ao observarmos essa tradição, nossos olhos se abrirão para amplos recursos de espiritualidade e teremos orientação para as próprias escolhas”.

Se pudermos aprender com o melhor de um conjunto diversificado de recursos secundários, certamente poderemos redescobrir como o Antigo Testamento — a maior parte das Escrituras — pode moldar a espiritualidade cristã em nossos dias.

Considere, por exemplo, que a oração é uma expressão primária de nossa espiritualidade. O Dicionário de Espiritualidade Cristã de Westminster afirma corajosamente que “a oração é mais do que suplicar ou pedir: é toda a nossa relação com Deus”. Minha definição é que a oração são todas as maneiras pelas quais nos comunicamos e comungamos com Deus. Somos formados em oração, orando de verdade. Relembrando minhas primeiras experiências com os salmos, percebo que é exatamente o que estava acontecendo. Eu estava sendo formada espiritualmente, orando com o livro de orações judaico — o mesmo que Jesus e seus discípulos usavam como judeus praticantes. Que percepção incrível!

Levando-se em conta somente a abrangência dos gêneros de oração, os salmos são incomparáveis. Ali encontramos orações pessoais e comunitárias, orações de lamento e de ação de graças, orações penitenciais expressando profunda humildade e orações imprecatórias, chamando ousadamente a ira e o julgamento de Deus sobre os pecadores, orações espontâneas e liturgias do templo, doxologias que expressam grande certeza e orações íntimas que expressam perguntas e dúvidas profundas. Não é de admirar que a prática judaico-cristã histórica inclua a leitura e a oração com os salmos todos os dias. Se essa fosse a única contribuição do Antigo Testamento para nossa espiritualidade, já seria suficiente; mas, é claro, há muito mais.

Um convite à solitude e ao silêncio

Aqueles primeiros encontros com Deus nos salmos foram, talvez, minhas primeiras experiências de ter minha espiritualidade — não apenas minha teologia — moldada pelo Antigo Testamento. Mas isso não é tudo. Quando eu tinha trinta e poucos anos, chegou um dia em que as palavras não estavam mais funcionando para mim e as teologias sistemáticas não estavam atendendo ao meu desejo de realmente conhecer Deus. Além disso, eu estava procurando uma mudança real na minha vida e as categorias do Novo Testamento simplesmente não estavam ressoando como costumavam; de fato, o ativismo desenfreado que caracterizou minha educação evangélica me deixou cansada e completamente desgastada. Então, desisti, pois nem tinha certeza de que queria ser uma cristã.

A única coisa que eu sabia era que queria Deus mais do que queria ser cristã (se isso faz algum sentido) e foi quando minha história se cruzou com a de Elias em 1Reis 19. Ali, encontrei uma pessoa com quem eu podia me identificar — um líder espiritual que havia chegado ao fim de si mesmo e sua capacidade de sustentar o que a vida em liderança requeria. Após um grande sucesso (1Reis 18), vemos Elias fugindo por sua vida, deixando tudo e todos para trás, debaixo de um pé de giesta, pedindo a Deus para tirar sua vida. Esse é o tipo mais profundo de solitude, ou interioridade, e a solitude começou a fazer seu bom trabalho, mesmo que Elias não soubesse muito a respeito disso.

Quando encontrei Elias, eu me encontrava em uma situação internamente semelhante, embora os detalhes fossem diferentes. Na época, ninguém no evangelicalismo estava falando sobre solitude e silêncio. Então, quando um mentor meu começou a me guiar para essas práticas, eu precisava de um lugar nas Escrituras para me basear. Eu precisava saber que aquilo que estava fazendo encontrava-se dentro dos limites do cristianismo ortodoxo, e o Antigo Testamento me mostrou que sim.

A história de Elias (não sua pontificação) me deu a coragem para me libertar e fazer minha própria jornada em solitude e silêncio. Comecei a cultivar a solitude como um lugar de descanso em Deus, assim como Elias havia experimentado. Com o tempo, tornou-se um local de encontro com Deus, onde ouvi as perguntas de Deus para mim, um local de paz onde o caos interior começou a se organizar, e, finalmente, um local de atenção, onde eu poderia receber a orientação e a sabedoria de Deus para os meus próximos passos. Nada disso teria acontecido sem a história de Elias. Embora eu estivesse plenamente consciente do tempo de Jesus no deserto e de seu significado, algo sobre a humanidade crua da experiência de Elias me atraiu de uma maneira nova.

Por fim, voltei à minha vida na companhia de outros e, como Deus assim quis, fui atraída de volta ao ministério ativo. À medida que as demandas e os desafios da liderança se intensificavam, clamei a Deus por alguém nas Escrituras com quem caminhar — alguém que pudesse me ajudar a entender o que acontece aos líderes, por que às vezes é tão difícil e como ser sustentado por alguém a longo prazo. E Deus, que é fiel, me deu Moisés. Na história de Moisés, encontrei uma perspectiva detalhada e profundamente espiritual sobre liderança que era inigualável, exceto pelo próprio Jesus. De alguma forma, a história de Moisés parecia incluir mais elementos humanos da luta para permanecer fiel e eu me identificava profundamente com seus altos e baixos e tudo mais.

Eu me perguntava: como ele fez isso? Como ele se sustentou durante o longo período de ministério em meio a tanta dificuldade e grandes desafios? Notei que Moisés não parecia ter nenhuma grande estratégia de liderança. Em vez disso, observei um ritmo sagrado, pelo qual comecei a me sentir atraída. Era o ritmo sagrado de encontrar Deus na solitude e depois emergir daquele encontro e fazer exatamente o que Deus instruía. Para Moisés liderar era simples, então pensei: esta é uma abordagem de liderança que eu posso adotar.

Há muito mais que eu poderia dizer sobre a companhia de Moisés na minha vida como líder. Mas basta dizer que Deus usou a narrativa do Antigo Testamento da vida de Moisés para transformar minha experiência de liderança de dentro para fora, para que eu pudesse ver como era e o que realmente estava envolvido em ser fortalecida no nível da alma de maneira contínua.

Mostrar, não contar

Na minha experiência, as narrativas do Antigo Testamento externalizam aquilo que é profundamente interno, extremamente pessoal e, até, um tanto misterioso sobre a vida espiritual. Elas mostram, em vez de dizer, como é encontrar o Deus vivo no meio de nossas vidas comuns e o que acontece quando respondemos. Elas ilustram como é cultivar um relacionamento real com Deus que pode até envolver discutir com ele até que ele se irrite com você.

Os louvores crescentes de Davi e sua intensa luta com Deus (capturados em canções, poemas e orações escritas) mostram mais do que dizem como é ser honesto com Deus e indicam que ele não se incomoda com isso. O encontro de Elias com Deus, que sustentou sua vida, ilumina os poderosos resultados da solitude que simplesmente não obtemos de nenhuma outra maneira.

A narrativa prática do Antigo Testamento sobre o papel de Débora como profetisa e juíza em Israel, em um momento crucial da história da nação, mostrou-me que Deus pode — e quer! — usar qualquer pessoa que ele queira para fazer o que precisa ser feito (Juízes 4). Quando jovem, chamada ao ministério, eu precisava desesperadamente saber disso. Eu também precisava ter certeza de que haveria homens como Baraque, que viam o valor na parceria com mulheres líderes, e que estavam dispostos a compartilhar plenamente os riscos e as recompensas de caminhar juntos em territórios perigosos e serem encontrados lá por Deus.

Outro exemplo é a ajuda de Eli a Samuel enquanto ele desenvolvia sua capacidade de ouvir e responder a Deus (1Sm 4). Isso demonstra o valor inestimável do direcionamento espiritual na vida de um líder espiritual emergente — um retrato bíblico crucial para o meu próprio senso de chamado. A constatação de Eli de que a voz da noite poderia ser Deus chamando o menino, e a maneira como ele orientou Samuel a responder se isso acontecesse novamente, parecia uma das atitudes mais valiosas que um ser humano poderia tomar em favor de outro. E você não precisava ser perfeito para fazer isso. Mais tarde, quando percebi que isso é exatamente o que os líderes espirituais fazem, fiquei com muita vontade de me sentar com as pessoas exatamente da mesma maneira.

Todas essas histórias transformam as experiências profundamente pessoais das pessoas com Deus de dentro para fora, para que possamos ver aquilo que, de outra forma, estaria oculto aos nossos olhos. Elas iluminam essas experiências por dentro — convidando-nos a ser abertos, receptivos e, talvez, até a ter a expectativa de que essas mesmas coisas podem nos acontecer. Então, quando nos deparamos com essas experiências imprevisíveis e além do nosso conhecimento, as narrativas do Antigo Testamento nos ajudam a encontrar coragem para nos apoiar e dizer: “Deve ser assim. Conte comigo!”

Ruth Haley Barton é presidente fundadora do Transforming Center, mentora experiente e autora de Strengthening the Soul of Your Leadership: Seeking God in the Crucible of Ministry (IVP Books).

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Caminhando nos passos dos apóstolos

Há espaço para a graça sublime em nosso chamado à fidelidade intransigente?

Christianity Today July 16, 2020
Portrait by Joel Kimmel

[Read in English]

Alguns me perguntam que caminho a igreja deveria seguir hoje. Eu respondo: inquestionavelmente, o caminho dos apóstolos. Ou seja, siga os passos dos apóstolos, imitando sua posição corajosa e firme, sem medo de nenhuma ameaça, sem ter a vida como preciosa, sendo fiel até a morte, sem agradar aos homens. Mesmo ao encontrar resistência, ainda devemos pregar o evangelho e ensinar as palavras de Deus às pessoas. Quem conseguir fazer isso será abençoado por Deus e usado por ele. Também poderá realmente experimentar o que os apóstolos experimentaram na perseguição, mas também realizará o que os apóstolos realizaram. Sem dúvida, a glória e o grande poder de Deus se manifestarão por seu intermédio, assim como foi manifestado naquele dia pelos apóstolos. — Wang Ming-Dao, de A Call to the Church from Wang Ming-Dao

A perseguição costuma ter um efeito oposto ao planejado pelos perseguidores. O pai da igreja Tertuliano escreveu que o martírio de cristãos fiéis realmente estimulou o crescimento da igreja primitiva: “Quanto mais frequentemente somos abatidos por vocês, mais aumentamos em número; o sangue dos cristãos é semente” (The Apology). Histórias de mártires podem ser um grande encorajamento nos momentos mais sombrios do ministério, quando os pastores se veem atacados por todos os lados.

Mas alguns relatos de martírio da história cristã dão aos leitores a sensação de que aqueles que sofreram fielmente por Cristo experimentaram muito pouca luta com o medo ou a tentação. De acordo com Irineu, por exemplo, quando os guardas se preparavam para pregar Policarpo na estaca, ele disse: “Deixa-me como estou, pois quem me dá forças para suportar o fogo também me dará forças para permanecer na estaca, imóvel, sem ser preso por pregos”. Embora histórias como a de Policarpo possam ser encorajadoras, elas também podem causar nos pastores uma pitada de culpa quando algo tão simples como uma reunião tensa de orçamento os deixa questionando seu chamado.

Quando sou tentado a acreditar que a verdadeira fidelidade exige nada menos que uma resolução perfeita, me ajuda lembrar a vida do pastor chinês Wang Ming-Dao. Embora sua fé tenha passado por intensas dificuldades, ele também experimentou momentos de medo que resultaram em comprometimento. A vida e os ensinamentos de Wang me lembram que a proclamação de Cristo de “arrepender-se e crer no evangelho” (Marcos 1.15) é para todas as pessoas, pastores e leigos.

Fidelidade, transigência e restauração

Wang foi criado frequentando uma igreja e uma escola cristãs em Pequim, mas não se tornou cristão até os 14 anos. Durante uma doença grave, ele prometeu a Deus que, se sobrevivesse, abandonaria a carreira pretendida na política para ingressar no ministério em tempo integral.

Wang mudou seu nome de Tie-Zi (“Filho de Ferro”) para Ming-Dao (“Entendendo a Palavra”) e começou a lecionar em uma academia presbiteriana antes dos 20 anos. Em 1923, ele iniciou um estudo bíblico em sua casa, que se tornou o Tabernáculo Cristão de Pequim, em 1937.

Sua fidelidade a Cristo foi desafiada por forças políticas durante a ocupação japonesa de Pequim (a partir de 1937) e o estabelecimento da República Popular da China, em 1949. Nesses dois momentos, o governo procurou usar as igrejas locais para a promoção de objetivos políticos e, sob os dois governos, Wang testemunhou cristãos cederem à pressão política.

Durante a ocupação japonesa, Wang se recusou a permitir que sua publicação cristã, Alimento Espiritual Quadrimestral, fosse usada como ferramenta de propaganda pelo governo japonês. Wang também se recusou a associar sua igreja ao Comitê de Promoção da Federação Cristã do Norte da China — estabelecido em 1942 — por preocupação de que o governo japonês o estivesse usando para influenciar as igrejas chinesas. Ele recebeu tantas ameaças das autoridades japonesas que comprou um caixão e o manteve em sua casa.

A ascensão do comunismo na China foi acompanhada pelo Movimento Patriótico das Três Autonomias, um organismo protestante interdenominacional sancionado pelo Estado que procurava vincular os cristãos chineses ao nacionalismo chinês. À medida que a pressão para se juntar ao Movimento aumentou para líderes e igrejas cristãs, Wang se recusou a ceder. Seu raciocínio não era tanto político quanto doutrinário. Muitos que ingressaram no Movimento negaram doutrinas fundamentais, como a inspiração das Escrituras, o nascimento virginal, a expiação e a ressurreição corporal de Cristo e Wang não acreditava que fossem verdadeiros cristãos. Como ele poderia, em boa consciência, associar-se a eles como se fossem?

Os líderes do Movimento das Três Autonomias ficaram furiosos e os pedidos para a adesão de Wang se transformaram em ameaças e perseguição. Os oponentes de Wang trabalharam para isolá-lo, prendendo os mais próximos a ele.

Em 7 de agosto de 1955, Wang proferiu um sermão sobre Mateus 26.45, intitulado “O Filho do Homem é entregue nas mãos dos pecadores”. Ele pregou: “Faremos o sacrifício que for necessário para sermos fiéis a Deus. Independentemente de como os outros possam distorcer a verdade e nos caluniar, nós, por causa de nossa fé, permaneceremos firmes”. Naquele mesmo dia, ele foi preso por ser “contrarrevolucionário”, junto com sua esposa e 18 membros da igreja. Eles foram amarrados com cordas e levados à prisão, onde, por meses, colegas de cela — instigados pelas autoridades — compartilharam histórias de horror de torturas que Wang suportaria se ele se recusasse a cooperar.

Essa estratégia teve o efeito pretendido. Anos de pressão e perseguição afetaram Wang e ele admitiu acusações falsas. Wang foi libertado em 29 de setembro de 1956 e, no dia seguinte, leu uma confissão de seus “erros” em uma reunião do Movimento das Três Autonomias. A queda de Wang não foi pequena nem privada.

Mas a libertação de Wang da prisão não acabou com sua tortura; apenas a mudou de externa para interna. Ele percebeu o que havia sacrificado por sua aparente liberdade e, de acordo com David Aikman, muitas pessoas relataram ter visto Wang vagando pelas ruas de Pequim repetindo: “Eu sou Pedro, eu sou Pedro”.

Após sua libertação, Wang deveria entrar para a igreja das Três Autonomias e pregar mensagens sancionadas pelo governo, mas não conseguiu fazê-lo. Por fim, com o incentivo de sua esposa, ele retirou sua confissão assinada. Wang foi à prisão mais uma vez, onde permaneceu por 22 anos. Devido à crescente pressão internacional, ele foi libertado, em 1979. Ele havia perdido todos os dentes e a maior parte da audição e da visão, mas sua fé permaneceu intacta. Ele e sua esposa ensinaram grupos de cristãos em seu apartamento até a morte de Wang, em 1991.

‘Eu sou Pedro’

Em 1983, apenas quatro anos após sua libertação da prisão, Wang escreveu:

Alguns me perguntaram que caminho a igreja deveria seguir hoje. Eu respondo: inquestionavelmente, o caminho dos apóstolos. Ou seja, siga os passos dos apóstolos, imitando sua posição corajosa e firme, não sem medo de nenhuma ameaça, sem ter a vida por preciosa, sendo fiel até a morte, sem agradar aos homens.

Depois de experimentar um momento tão notável de contemporização, Wang chamou outros a uma fidelidade inflexível. Como ele poderia pedir aos outros que perseverassem no sofrimento quando ele não o fez? Uma lição pode ser aprendida com sua afirmação: “Eu sou Pedro, eu sou Pedro”.

Wang chamou os seguidores de Cristo à fidelidade “nos passos dos apóstolos”. Seus longos anos de perseverança fiel assemelhavam-se à proclamação corajosa dos apóstolos da mensagem de Cristo em Atos, e sua contemporização para evitar a perseguição refletia o abandono de Cristo pelos discípulos antes de sua crucificação. Qualquer chamado para trilhar o caminho dos apóstolos deve abrir espaço para a realidade da fraqueza humana. A necessidade de buscar perdão e experimentar a redenção faz parte do chamado à fé intransigente.

Mesmo antes de sua prisão, Wang mostrou sensibilidade aos crentes que poderiam se render à tentação. Ele pregou:

Existem muitos santos como Pedro. Num momento de fraqueza, tropeçam e caem; eles são culpados de ofender seu Senhor. … Nesse momento, a maior necessidade deles é estar cientes do perdão e da aceitação do Senhor e tornar-se conscientes da compaixão e do amor do Senhor.

Wang provavelmente não percebeu que essas palavras acabariam se aplicando a ele, mas seu exemplo, ao buscar perdão e ao retornar à prisão, revela todas as implicações de seus ensinamentos anteriores.

Ironicamente para Wang, sua transigência o colocou em uma posição de potencial destaque na sociedade, enquanto seu arrependimento subsequente o levou à prisão. Por outro lado, quando vemos ministros cristãos pegos em algum pecado público sério, hoje, não é raro testemunhar que esses mesmos pastores tentam recuperar suas plataformas públicas depois de um curto período de tempo afastados do ministério.

O exemplo de Wang mostra-nos que um chamado ao longo da vida para o ministério não é o mesmo que um chamado ao longo da vida para o púlpito. Ele foi restaurado pelo perdão de Deus, não à liberdade ou à fama, mas a mais 22 anos de cativeiro e tortura. Embora preso — e talvez por causa disso — ele ainda conseguiu revelar “a glória e o grande poder de Deus”.

A vida do apóstolo Pedro serve de modelo para a restauração verdadeira. Embora ele tenha negado Cristo três vezes antes da crucificação, seu Senhor mais tarde o restabeleceu no ministério. Cristo perguntou a ele três vezes:

“Simão, filho de João, você me ama?”

Pedro ficou magoado porque Jesus perguntou pela terceira vez: “Você me ama?” Ele disse: “Senhor, você sabe todas as coisas; Você sabe que eu te amo.”

Jesus disse: “Pastoreie as minhas ovelhas. Digo-lhe a verdade: Quando você era mais jovem, vestia-se e ia para onde queria; mas quando for velho, estenderá as mãos e outra pessoa o vestirá e o levará para onde você não deseja ir. Jesus disse isso para indicar o tipo de morte com a qual Pedro iria glorficar a Deus." Então ele disse: “Siga-me!” (João 21.17–19)

Pedro passou a fazer grandes coisas na igreja primitiva, mas o fez sob ameaças regulares e, como Jesus previu, seu ministério fiel resultou em martírio. A verdadeira restauração de um líder cristão não é medida pela recuperação da fama ou pelo cargo pastoral, mas pela recuperação de uma vida marcada por arrependimento e fé.

O ministério como um ser humano imperfeito

Pastorear uma igreja me levou a enfrentar minhas próprias limitações de maneira que nenhuma outra responsabilidade o fez. Pecados pessoais, deficiências e inabilidades podem flutuar na superfície. Se alguma vez senti a necessidade de humildade pessoal e da graça de Deus, isso foi no ministério pastoral.

Nenhum cristão, nem mesmo um pastor, é um estranho ao pecado. Reconhecer, confessar e afastar-se regularmente do pecado, em arrependimento, é uma parte necessária do trabalho pastoral fiel. Por mais desencorajador que seja o fracasso público de um pastor, Jesus Cristo não é menos um pastor para o pastor do que para o leigo. Ele é o pastor principal e todos os verdadeiros crentes são parte de seu rebanho. Acho útil lembrar-me regularmente de que, embora Deus tenha me chamado para ser pastor, eu também nunca deixarei de ser ovelha.

Navegar no ministério pastoral como pessoa imperfeita, em meio à tentação e ao sofrimento, é um empreendimento desafiador. Acho que a história de Wang é especialmente clara ao transmitir tanto a necessidade de fidelidade radical a Cristo diante das dificuldades quanto a realidade de nossa fragilidade humana. Como pastor chamado a uma fé intransigente, nunca superarei minha necessidade da graça do Senhor.

John Gill é professor associado de Estudos Cristãos na California Baptist University e pastor de discipulado na Redeemer Baptist Church, em Riverside, Califórnia.

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Realmente amamos a lei de Deus?

O Antigo Testamento não contradiz a ética do Novo Testamento. Ele a esclarece.

Christianity Today July 15, 2020
Matt Chinworth

Este é o quarto texto de uma série de ensaios de seis partes de uma seção de estudiosos renomados revisitando o lugar do “Primeiro Testamento” na fé cristã contemporânea. — Os editores

Os cristãos têm um problema. Sabemos que devemos basear nossa ética na Bíblia, mas, às vezes, ela é vaga em questões éticas que achamos que deveriam ser diretas.

O Novo Testamento não levanta questões sobre a escravidão, por exemplo. Paulo instrui os escravos a obedecerem “a seus senhores terrenos com respeito e temor. Sirvam com sinceridade, como serviriam a Cristo” (Ef 6.5). Textos como esse têm sido usados ao longo da história cristã para justificar atos horríveis de desumanização por cristãos que acreditavam que a Bíblia estava “do lado deles”.

Mas o Antigo Testamento quase não fala em escravidão. Ele diz que os servos devem ser libertados após seis anos. Por que o Novo Testamento não se refere a esta regra? Por um lado, é ser realista, levando em consideração a dureza humana dos corações, que era maior no contexto do Império Romano do que em Israel. Por outro lado, o Antigo Testamento impõe limites à servidão tão restritivos que descartam a escravidão real para os israelitas (é enganoso que traduções recentes usem a palavra “escravo” no Antigo Testamento). O Antigo Testamento assume que o trabalho em geral pertence ao contexto das relações comunitárias e coloca limites claros à servidão. Os israelitas nunca são “possuídos” pelo outro, todos os seus serviços são temporários e compensados de alguma forma, e existem regulamentos estritos para garantir que os servos estrangeiros (que tinham donos) sejam tratados com respeito e compaixão.

Embora eu suspeite que a maioria de nós acredite que o Antigo Testamento é a palavra inspirada de Deus, muitas vezes não agimos assim. Isso pode ser, em parte, porque trechos do Antigo Testamento parecem desagradáveis ou até assustadores para nós. Porém, mais frequentemente, não consideramos recorrer a eles em busca de orientação. De acordo com 2Timóteo 3.16, as Escrituras são proveitosas para ensinar, reprovar, corrigir e treinar para ums vida correta e, assim, desempenham seu papel em nos equipar para boas práticas. “As Escrituras” a que esta passagem se refere são o que hoje chamamos de Antigo Testamento — as pessoas ainda estavam redigindo o Novo Testamento quando Paulo escreveu a Timóteo. Visto que acreditamos que as Escrituras do Antigo Testamento são inspiradas e achamos que esse fato é importante, por que, então, não nos voltamos a elas em busca de respostas a questões éticas — o propósito a que o texto diz que elas seriam proveitosas? O que aconteceria se o fizéssemos?

O Antigo Testamento fala por si

Paulo disse à igreja em Roma que o requisito adequado da Torá (o termo hebraico traduzido como “lei” em nossas Bíblias modernas) se cumpre em nós quando vivemos de acordo com o Espírito (Rm 8.4). Ponha isso junto com o texto de 2Timóteo a que nos referimos anteriormente: se quisermos andar de acordo com o Espírito, precisamos saber o que as Escrituras do Antigo Testamento dizem. Precisamos entender e nos familiarizar com o Antigo Testamento, incluindo os preceitos que muitos de nós evitamos em nossa leitura. Sem eles, sentimos falta dos ideais e das expectativas de Deus em relação ao comportamento humano, a base vital para entender as respostas bíblicas completas a algumas de nossas maiores questões éticas.

Quando pensamos no Antigo Testamento e na ética que ele transmite, tendemos a abordá-los de uma entre duas maneiras. Uma é procurando como o Antigo Testamento pode nos informar e nos apoiar em questões que são importantes para nós — como justiça, conservação do meio ambiente, casamento entre pessoas do mesmo sexo ou cuidados com os migrantes. A outra é se preocupando com os problemas que o Antigo Testamento parece suscitar para nós — como a poligamia ou a aniquilação dos cananeus. No primeiro caso, definimos a agenda e procuramos deixar o Antigo Testamento dizer algo sobre o que é importante para nós. (“Está vendo? O Antigo Testamento é relevante!”) No segundo, pensamos que sabemos o que é certo e procuramos deixar o Antigo Testamento de fora quando não se encaixa em nosso entendimento. (“Realmente não é tão ruim quanto parece.”)

Mas e se prestássemos atenção à maneira do Antigo Testamento de encarar a ética para ver como ele suscita preocupações às quais devemos responder? Em vez de fazer o Antigo Testamento atender nossas necessidades, e se permitíssemos que moldasse nosso entendimento? Fazer isso será um desafio, mas é valioso e necessário para viver a ética cristã de forma fiel.

Cumprindo a Torá

Uma razão pela qual é difícil discernir as implicações das Escrituras do Antigo Testamento como um todo é que elas não foram escritas de uma só vez. Elas são fruto do trabalho de muitas pessoas diferentes, ao longo de mais de mil anos. Elas vêm de culturas diferentes das nossas vidas ocidentais; assim, elas podem parecer distantes. E elas podem parecer aceitar coisas que não esperamos que Deus aceite. As Escrituras estavam abordando situações muito diferentes das nossas e Deus usava cada contexto para falar de modo distinto.

Ao nos orientar sobre o que é certo, o Antigo Testamento não é sistemático nem organizado por tópicos. Parte do desafio e da riqueza do Antigo Testamento é sua diversidade. No entanto, no devido tempo, esses escritos se tornaram um livro. Então, como pode ser um recurso para nós? Jesus nos dá algumas dicas para responder a essa pergunta.

Uma das primeiras coisas que Jesus diz no Sermão do Monte é que ele não veio para anular a Torá e os Profetas, mas para cumpri-los (Mt 5.17). “Cumprir” soa como um termo técnico, mas Mateus está usando a palavra comum que significa “preencher”. Jesus veio para enchê-los, para preenchê-los. Como ele fez isso? Quando ele continua dizendo: “Vocês ouviram o que foi dito … Eu, porém, lhes digo”, Jesus fornece vários exemplos desse preenchimento. Por exemplo, é possível seguir o mandamento que proíbe o assassinato e ignorar as advertências do Antigo Testamento sobre a raiva. Jesus não está dizendo algo novo, como se o Antigo Testamento não percebesse que a raiva deveria ser evitada. Provérbios deixa esse ponto claro. Em vez disso, Jesus cumpre a Torá e os Profetas, apontando as questões que o Antigo Testamento diz, o que elas implicam e o que as pessoas podem estar inclinadas a evitar. Ele traz à luz todas as implicações das Escrituras.

Em outro exemplo, a Torá diz: “Ame seu próximo” (Lv 19.18). O contexto deixa claro que Levítico tem em mente o próximo com quem você não se dá bem, o próximo que é seu inimigo. Talvez Jesus conhecesse pessoas que pensavam que, desde que você ame o próximo que é bom, pode odiar o próximo que é seu inimigo. Mas o Antigo Testamento nunca diz que você pode odiar alguém, nem outros escritos judaicos. O próprio Levítico implica que você deve amar seu inimigo, mas é possível que você perca essa inferência. Então, em um exemplo desse “preenchimento”, Jesus conta a parábola do Bom Samaritano, cumprindo a Torá ao trazer à luz suas implicações: seu próximo pode não ser alguém de quem você goste, mas ainda assim você precisa amá-lo.

Justiça e retidão?

Um amigo meu me sugeriu que a ética cristã se tornou, principalmente, a respeito de princípios, sentimentos arrebatadores, em estar com Jesus ao lado do amor, da justiça e da libertação. Assumimos que o conceito do que são amor, justiça e libertação é óbvio. Mas o risco é que o cumprimento desses princípios ocorra principalmente na aceitação e no incentivo aos compromissos de outras pessoas progressistas ou conservadoras. E o perigo é que nosso pensamento e vida sejam, portanto, substancialmente moldados por nossa cultura, por nosso contexto social. É tentador supor que nosso modo de pensar deve estar amplamente correto — afinal, somos cristãos e estamos comprometidos com as Escrituras, não é mesmo? Mas podemos precisar ter nosso entendimento confrontado ou, pelo menos, ajustado.

Tomemos, por exemplo, o modo como pensamos sobre justiça. É fácil supor que todos concordam, em um sentido geral, sobre o que é justiça. No entanto, as definições de “justiça” variam entre culturas. Há uma expressão do Antigo Testamento que é traduzida como “justiça e retidão”. Ela foi corretamente descrita como a expressão do Antigo Testamento para “justiça social”. Mas isso não significa justiça social no mesmo sentido que convencionalmente atribuímos a essa expressão. Individualmente, as duas palavras hebraicas não se traduzem em “justiça” ou “retidão”, que é o significado que atribuímos a essas palavras em nosso idioma. A palavra traduzida como justiça (mishpat) denota algo como o exercício adequado de autoridade e poder. E a palavra traduzida como retidão (sedaqah) significa algo como fidelidade, referindo-se a fazer a coisa certa nos relacionamentos com pessoas da comunidade — enquanto a palavra em nosso idioma retidão significa viver uma vida individual honrada.

Para nós, estar preocupado com a justiça pode significar principalmente defender o que é certo. No Antigo Testamento, “justiça e retidão” se referia tanto ao que você fazia quanto ao que defendia. Era algo prático e com pés no chão, pessoal e custoso. Era sobre fazer o que você tinha o poder de fazer em nome das pessoas que moravam nas proximidades. Para os chefes de família, significava assegurar que os recursos da família fossem compartilhados com pessoas carentes de fora do seu círculo e que a família não explorasse as pessoas a quem oferecia trabalho. Para nós, não se trata apenas de dizer o que a cidade deve fazer em relação aos sem-teto. É sobre vermos o que nós podemos fazer para prover ao sem-teto de nossa rua o abrigo e a assistência necessários. Não se trata apenas de pressionar o governo ou uma empresa a fazer algo em favor do meio ambiente. É sobre eu pegar menos voos longos e poluentes através do Atlântico.

A coisa mais importante

Embora a leitura ampla do Antigo Testamento seja necessária para a ética cristã, se tivéssemos de resumi-la em apenas um aspecto, qual seria o mandamento mais importante da Torá? A resposta de Jesus a essa pergunta essencial fornece orientação vital para o entendimento da ética bíblica (Mt 22.36–40). Os teólogos judeus gostavam de debater qual mandamento era o mais importante, embora houvesse realmente pouca dúvida sobre a resposta: amar a Deus com coração, alma, mente e força (Dt 6.5). Como outros mestres judeus fizeram, Jesus aumenta esse mandamento com outro da Torá, o mandamento de amar o próximo, e ele ensina que o preceito merece ser posto ao lado de amar a Deus.

A observação instigante que Jesus acrescenta é que a totalidade da Torá e dos Profetas depende desses dois mandamentos. Essa é uma afirmação surpreendente e fundamental para entender a ética do Antigo Testamento. Quando você se pergunta sobre o objetivo de uma regra individual na Torá ou quando pensa que um mandamento específico parece algo estranho para Deus, sempre vale a pena perguntar: “Como esse mandamento é um desdobramento do amor por Deus ou pelo próximo (ou ambos)?”

Considere um exemplo: o Antigo Testamento ensina que as pessoas se tornavam impuras quando tinham de enterrar um membro falecido da família e que um homem se tornava impuro após a ejaculação. Como essas regras das Escrituras sobre pureza expressam amor por Deus? É fácil pensar que se trata de pecado, mas isso é apenas parte do que está acontecendo. Regras sobre pureza não diziam respeito a pecado — até que você as ignorasse. Não havia nada moralmente errado no enterro ou no sexo com a pessoa certa. O que há de errado é esquecer que o Criador e suas criaturas são muito diferentes.

Um foco das regras sobre pureza era essa importante distinção entre seres humanos e Deus, que é parcialmente o que a Bíblia quer dizer quando fala sobre santidade. As regras reconheciam que o ser de Deus nada tinha a ver com morte ou sexo. Muitos de nós vivemos em culturas que evitam pensar na morte e são obcecadas por sexo. As regras em Levítico nos lembram que a morte é uma parte regular da experiência humana e também que não é natural, mas um resultado da Queda. Da mesma forma, elas nos lembram que o sexo é apenas algo humano e, embora seja bom, não é algo divino. Isso tudo serve para ilustrar que a ética não é uma categoria distinta no Antigo Testamento. Quem somos e quem Deus é são questões indissociáveis do que devemos fazer.

Abençoando nossos corações endurecidos

O Antigo Testamento reconhece a diferença entre o ideal e a realidade e aborda as questões de acordo com essa realidade. Vemos isso claramente em uma discussão que Jesus tem com alguns fariseus sobre o divórcio (Mc 10.1–12). Quando perguntado o que pensa sobre isso, Jesus inverte a pergunta: “O que a Torá diz?” Eles observam que a Torá permite o divórcio. Mas Jesus ressalta que ela permite o divórcio porque os israelitas foram duros de coração. Se você olhar para trás e observar como eram as coisas na criação, quando Deus formou o primeiro casal, fica difícil imaginar que o divórcio foi elaborado como parte de seu plano. Mas, ao introduzir as regras em Deuteronômio, Deus reconhece que alguns homens expulsam suas esposas, então ele fornece uma regra que regula a maneira como esse evento sombrio acontece, e oferece à esposa alguma proteção. Assim como a questão da escravidão, aqui a Torá expõe o ideal e a visão de Deus na criação e leva em conta o fato de que não vivemos conforme sua vontade. Esse padrão de forma alguma diminui a justiça de Deus; ao contrário, acentua sua misericórdia conosco.

Então, como aplicamos, hoje, as Escrituras do Antigo Testamento e a ética que elas descrevem? Como um cristão pode obedecer às Escrituras que os apóstolos e os primeiros cristãos valorizaram como “úteis para ensinar, repreender, corrigir e treinar na justiça”? Podemos fazer três perguntas ao estudar diligentemente o Antigo Testamento e procurar viver de acordo com a revelação de Deus: como as implicações dos ensinamentos do Antigo Testamento precisam “ser cumpridas”? Como o ensino do Antigo Testamento expressa amor por Deus e amor ao próximo? E, finalmente, até que ponto o Antigo Testamento estabelece os ideais da criação e leva em consideração nossa dureza de coração?

Certamente, há um desafio significativo na busca do ideal de criação. Mas a ética do Antigo Testamento é a base para os ensinamentos de Jesus e ele nos deu as ferramentas necessárias para implementá-los. Se o Antigo Testamento era tão central para Jesus, a verdadeira questão não é “Como podemos, como cristãos, aplicar a ética do Antigo Testamento em nossa vida?”, mas “Como não podemos?”. Jesus já tornou possível para nós fazê-lo e, por meio da morte e da ressurreição, ele supriu o necessário para quando não o fizermos.

John Goldingay é professor de Antigo Testamento no Fuller Theological Seminary. Este artigo foi adaptado de seu livro Old Testament Ethics: A Guided Tour (IVP Academic).

Traduzido por Mariana Albuquerque

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O evangelho ocupa o centro do palco em ‘Hamilton’

O musical da Broadway faz sua estréia nas telas em um momento de agitação social, o que faz seus temas de esperança e redenção ressoarem ainda mais alto.

Christianity Today July 10, 2020
Illustration by Rick Szuecs / Source image: Envato

Se não fosse o surto de COVID-19, o bem-sucedido musical da Broadway "Hamilton" embarcaria em sua quarta temporada neste outono. Em vez disso – para o deleite dos fãs e espectadores ansiosos – uma versão do musical em filme, com os membros originais do elenco, começará a ser transmitida esta semana no Disney+, mais de um ano antes da data original de lançamento nos cinemas. O que antes estava disponível apenas a quem tinha acesso ao teatro e dispunha de um dinheiro extra agora está chegando a uma tela perto de você.

A estréia de "Hamilton" nas telas também é digna de ser notada porque chega em um momento de elevada agitação social nos Estados Unidos. Muitas pessoas estão ansiosas ou com raiva da injustiça racial, da brutalidade policial e da política hiperpolarizada. Para o pastor e plantador de igrejas Kevin Cloud, o show – com sua visão moral e suas inovações artísticas – oferece um ponto de vista inestimável tanto sobre o momento atual quanto sobre nossas responsabilidades cristãs neste período. Cloud, autor de "God and Hamilton: Spiritual Themes from the Life of Alexander Hamilton and the Broadway Musical He Inspired", dirige oficinas sobre fé e criatividade em todo o país com base em seu livro. A escritora Sarah Arthur conversou com Cloud sobre o uso de "Hamilton" para explorar a interseção entre fé, artes e mudanças sociais.

Por que essa história sobre uma figura histórica distante ganhou tanto sentido?

Eu não acho que alguém poderia imaginar como esse musical catapultaria Alexander Hamilton de um esquecido pai fundador dos Estados Unidos para um ícone cultural. Diversas dinâmicas diferentes trabalharam juntas, criando uma profunda ressonância em nossa cultura.

Antes de tudo, "Hamilton" é uma extraordinária obra de arte. Ganhou 11 prêmios Tony, em 2016, incluindo o de melhor musical, e um Prêmio Pulitzer de teatro. Eu concordo com Michelle Obama, que a chamou de “a melhor obra de arte que eu já vi na minha vida”. Como uma recontagem multirracial da história, é verdadeiramente uma obra genial.

"Hamilton" também ressoa porque a história se cruza com uma série de questões sociais críticas de nossos tempos, incluindo imigração, raça, igualdade de gênero e diversidade. O próprio Hamilton era um imigrante do Caribe e um tema importante em todo o musical é a batalha de Hamilton por dignidade e igualdade. Vemos exatamente essa mesma batalha ser travada nos protestos que ocorrem em nosso país atualmente.

De forma mais ampla, a história se concentra em temas fundamentais da experiência humana: graça, perdão, fracasso, morte e redenção. Observar esses temas no palco nos dá esperança, nos desafia e mostra possibilidades de como nossas vidas poderiam ser. Enquanto viajava pelo país falando sobre meu livro, ouvi inúmeras histórias de pessoas que disseram que assistir a "Hamilton" mudou sua vida.

O jogador de basquete da NBA Josh Hart disse que assistir a "Hamilton" na Broadway o desafiou e lhe deu uma nova perspectiva: “Às vezes, quando você está tão envolvido com o seu mundo, não vê outras coisas. Portanto, é ótimo ver outras pessoas no mundo delas, pegar os temas […] de ‘Hamilton’ e aplicá-las ao seu mundo.”

Existem muitos temas espirituais na narrativa de Lin-Manuel Miranda – por exemplo, na música de despedida de George Washington, “One Last Time”, em que ele cita Miqueias 4.4. Como as igrejas podem interagir com a versão em filme para desencadear conversas sobre a fé?

Depois de assistir ao musical, li tudo o que pude sobre Hamilton, incluindo a biografia de Ron Chernow, que inspirou o musical. Aprendi que os grandes temas do evangelho realmente estavam no centro da vida de Hamilton. Hamilton praticou uma fé sincera e autêntica ao longo de grande parte de sua vida. Ela floresceu quando ele era jovem, no Caribe. Ele escreveu hinos poderosos em sua juventude, que articulam um conhecimento íntimo da vida com Deus. Um hino, “The Soul Ascending into Bliss”, diz:

Ouça! Ouça! Uma voz de além do céu; acho que ouço meu Salvador chorar; venha gentil espírito, venha para o seu Senhor sem demora.

Quando Hamilton chegou à cidade de Nova York, na adolescência, estudou no King’s College e participou dos seus movimentos de devoção religiosa. Ele frequentava, diariamente, a capela, pela manhã, as orações, à noite, e os cultos da igreja duas vezes, no domingo. Seu colega de quarto certa vez registrou em seu diário sobre o fervor das orações de Hamilton.

No entanto, Hamilton também passou por épocas de afastamento da devoção religiosa. Sua esposa, Eliza, provavelmente era mais dedicada, enquanto Hamilton parece ter experimentado alterâncias entre fé autêntica e dúvida genuína. Vemos essa luta na poderosa música “It’s Quiet Uptown”, que mostra Eliza e Alexander enfrentando a morte de seu filho mais velho, Philip, que foi baleado e morto em um duelo que Philip iniciou para defender a honra de seu pai. Alexander canta: “Eu levo as crianças para a igreja no domingo / Um sinal da cruz na porta / E eu oro / Isso nunca acontecia antes.” A luta entre fé e dúvida pode nos encorajar, à medida que enfrentamos, nós mesmos, épocas de altos e baixos em nossa vida.

"Hamilton" também conta a história de um homem que empreende uma iniciativa notável. Na letra mais famosa do musical, Hamilton declara: “Não estou jogando fora minha oportunidade”. Essa fala poderia ter sido o mantra de sua vida. Ele chegou aos Estados Unidos no início da revolução, como um estudante universitário pobre e imigrante. Menos de vinte anos depois, ele se tornou o segundo homem mais poderoso dos recém-formados Estados Unidos. A notável trajetória de Hamilton poderia ser explicada com mais precisão por sua intensa tendência a tomar iniciativa. Quando os cristãos se comportam como se não pudéssemos superar grandes desafios, como os sistemas existentes, a história de Hamilton nos desafia a ver nossas circunstâncias de maneira diferente.

Em um workshop de "Deus e Hamilton" que conduzi com estudantes do ensino médio, uma garota me contou sua história. Ela decidiu concorrer ao conselho estudantil. Porém, quase desistiu no último minuto, porque tinha pavor de discursar para seus colegas e temia o potencial embaraço de não ganhar a eleição. Mas, então, ela pensou em Hamilton e decidiu que não iria jogar fora sua oportunidade.

A notável esposa de Alexander, Eliza, lutou para perdoar o marido por seu caso extraconjugal com uma mulher chamada Maria Reynolds, que se tornou de conhecimento público e se transformou no primeiro escândalo sexual do país. Eliza acabou perdoando Alexander em um dos momentos mais poderosos do musical. O coro canta: “Perdão. Você pode imaginar?” Nesse momento, você pode sentir a atmosfera no teatro mudar. Cada um de nós deve decidir se o exemplo de Eliza nos inspirará a perdoar aqueles que nos machucaram.

O criador de "Hamilton", Lin-Manuel Miranda, diz que esses momentos, que ele chama de “momentos de ação”, são um de seus aspectos favoritos do teatro ao vivo. Assim como as parábolas de Jesus, essas cenas nos confrontam e exigem uma resposta. "Hamilton" está cheio desses momentos de ação.

Em uma igreja em que palestrei, uma mulher se aproximou de mim depois do meu sermão e me disse que "Hamilton" salvou sua vida. Certa noite, em particular, ela ouviu a trilha sonora de Hamilton enquanto pensava seriamente em suicídio. Quando ela ouviu George Washington cantar: “Morrer é fácil, jovem / Viver é mais difícil”, algo mudou dentro dela. Ela percebeu que tirar a vida seria a saída mais fácil – que o caminho mais difícil era escolher viver. Deus usou a história para literalmente salvar a vida dessa mulher.

Como pastor e músico, você vê o envolvimento com as artes e a criatividade como um ato de adoração. Você pode elaborar sobre isso?

As Escrituras nos dizem que somos feitos à imagem de um Deus criativo. Vemos essa verdade desde o primeiro capítulo de Gênesis, onde a primeira coisa que aprendemos sobre Deus é que ele cria. Mais adiante, no mesmo capítulo, o texto nos diz três vezes que somos feitos à imagem de Deus, enfatizando nosso chamado para criar. Gênesis 2 reforça esse chamado, pois Deus convida a humanidade a fazer parceria com ele no processo criativo, nomeando os animais. Acredito que Deus convida continuamente cada um de nós para essa parceria criativa, hoje. Toda vez que empreendemos um ato criativo ou realizamos uma reflexão ponderada sobre o trabalho criativo, cumprimos nosso chamado para viver de forma criativa. Atender a esse chamado nos torna mais vivos e, no processo, traz glória a Deus.

Toda vez que criamos, fazemos algo que possui um potencial quase inimaginável para o bem. Quando apresento minha oficina sobre criatividade e fé, os participantes compartilham histórias sobre como os atos criativos transformaram sua vida e a vida daqueles que experimentaram seu trabalho. Um estudante universitário disse a seus colegas de classe que ver um filme sobre Jackie Robinson o ajudou a encontrar perspectiva em uma estação sombria da vida, quando ele sofreu bullying intenso. Uma mulher compartilhou em lágrimas que aceitar um cargo como líder de louvor em uma igreja lhe trouxe o maior senso de realização e propósito que jamais experimentara. Uma mãe que fica em casa, sobrecarregada com a criação de seus filhos, ganhou vida novamente quando começou a fotografar. Cada uma dessas pessoas experimentou a verdade de que a criatividade nos ajuda a nos tornarmos mais plenamente vivos.

"Hamilton" lança mão de diversos gêneros artísticos, incluindo hip-hop, rap e poesia recitada em um palco da Broadway, e também inclui pessoas negras nos papéis de pais fundadores dos Estados Unidos. Qual é o objetivo das comunidades religiosas ao se engajar nas artes?

A igreja ganha muito ao se engajar nas artes. Especificamente, as artes podem nos conduzir no ato crítico de imaginar respostas criativas em tempos de agitação nacional.

Trazer o hip-hop para a Broadway foi uma jogada arriscada e sem precedentes, mas forneceu o gênero perfeito para um musical sobre a Revolução Americana: um movimento de e para pessoas do lado de baixo do poder. A escolha de atores negros como os pais fundadores foi outra decisão imaginativa que inverte as expectativas e desafia o público a se abrir para novas possibilidades. Christopher Jackson, que interpretou George Washington no elenco original da Broadway, disse: “Ter um elenco multicultural, nos dá, como atores negros, a chance de fornecer um contexto adicional apenas pela nossa presença no palco interpretando esses personagens”.

O que aconteceria se as comunidades religiosas experimentassem formas, gêneros e maneiras de dialogar incomuns a fim de criar novas músicas, comunicar-se de maneiras inesperadas ou se envolver sem medo em narrativas culturais do lado de baixo do poder?

Por exemplo, eu trabalho como diretor de vida espiritual na Culture House, um conservatório de artes religiosas em Kansas City. Temos uma companhia de dança profissional, a Störling Dance Theatre, que vem realizando um show chamado "Underground" nos últimos quinze anos. O show conta a história da Underground Railroad e destaca o papel da igreja na libertação de escravos.

A cada ano, o fato de líderes da igreja e da comunidade assistirem a essa história nos palcos alimenta sua imaginação. Essas apresentções levaram a inúmeros exemplos de construção de pontes entre pessoas de diferentes raças em nossa cidade. A história ajuda os líderes municipais a imaginar como podemos buscar melhor a reconciliação racial em nossos dias. Existe alguma questão mais importante com que os líderes religiosos precisam lidar atualmente?

Você defende que a opinião de Miranda sobre a vida de Hamilton é, em última análise, sobre perdão e esperança, apesar da tragédia implacável, cena após cena. Como podemos olhar para esta história em busca de sinais de esperança em meio à nossa própria agitação nacional?

O musical contribui para um grande drama, já que Hamilton experimentou tanto desgosto. Seu pai deixou sua família quando menino e sua mãe morreu alguns anos depois. Ele se juntou à Revolução Americana logo após chegar aos Estados Unidos e enfrentou os horrores inimagináveis da guerra. Ele ingressou em um dos mais altos cargos do país, mas, depois, se tornou um pária político. Ele perdeu o filho em um duelo de honra – e perdeu a própria vida da mesma maneira. No entanto, diante de toda essa tragédia, Hamilton finalmente conta uma história de redenção.

Grande parte da dor e do sofrimento da vida de Hamilton se originou de seu status de órfão, uma realidade que o assombrava. Hamilton, como muitos órfãos, certamente cresceu se sentindo abandonado, indesejado e não amado. Em suas cartas particulares, o vemos lutar com a solidão e a inadequação.

Eu posso imaginar conversas comoventes em que Hamilton compartilhou sua dor e seu sofrimento com a esposa, Eliza. Gosto de imaginar Eliza com um profundo sentimento de empatia pelas lutas de Hamilton, como qualquer cônjuge amoroso. Os fardos de Hamilton devem ter se tornado seus fardos também. Depois que o então vice-presidente Aaron Burr atirou e matou seu marido no campo de duelos, Eliza pegou esses fardos e deu tudo o que podia para redimi-los.

Quando Eliza se recuperou lentamente de sua dor, ela descobriu um novo chamado. Ela estabeleceu parceria com um pequeno grupo de mulheres para fundar o primeiro orfanato privado na cidade de Nova York. Ela trabalhou para aliviar o sofrimento de órfãos que enfrentavam desafios, como o marido havia enfrentado.

A cena final do musical de Miranda apresenta uma das mais poderosas representações artísticas de redenção que já testemunhei. Na música final, Eliza canta sobre o orfanato: “Ajudo a criar centenas de crianças / as vejo crescendo / nos olhos delas vejo você, Alexander / sempre vejo você.” O musical termina com um holofote branco brilhando no rosto de Eliza, enquanto ela olha para o céu e sorri, seu rosto explodindo de alegria enquanto a luz se apaga.

O orfanato que Eliza fundou existe ainda hoje, com o nome Graham Windham. Jess Dannhauser, presidente e CEO, diz que “[…] quando Eliza canta dizendo que vê Alexander nos olhos desses órfãos, imagino como se fosse ela dizendo que essas crianças têm um grande potencial dentro delas. Esse espírito anima nosso trabalho, hoje.”

Eliza pegou a maior fonte de dor de Alexander e, de alguma forma, a tornou bonita, que é exatamente o que Deus faz na vida de todos nós. Às vezes, nosso mundo se sente oprimido por escuridão, sofrimento e tragédia. Mas a promessa do evangelho é que, de alguma forma, Deus eventualmente tornará tudo bonito. Que Deus levará nossa dor e nosso sofrimento e os redimirá. Nosso papel como igreja é falar e viver essa palavra de esperança e redenção, não apenas como uma resposta à mudança social, mas como um catalisador.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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Books

Nossa militância deve refletir a beleza de Deus

Ao tentar fazer o que é certo, é fácil esquecer de fazer da maneira certa.

Christianity Today July 10, 2020
Image: Image: Illustration by Rick Szuecs / Source image: Mike Von / Unsplash

Do lado de fora do gabinete de um congressista dos EUA, cristãos segurando cartazes caseiros de protesto e clérigos vestidos com suas togas e seus colarinhos participam de uma marcha para protestar contra a separação de famílias que procuram asilo na fronteira EUA-México. Eles se juntam em brados apaixonados de “Fique com as crianças, deporte os racistas!” e “Prenda-os!” referindo-se àqueles que trabalham para a patrulha da fronteira dos EUA. Ao protestar contra a feiúra desumanizadora de crianças separadas de seus pais, elas desumanizam outras pessoas, pedindo que seus direitos sejam ignorados e que suas liberdades sejam restringidas.

Já na sede de uma organização cristã sem fins lucrativos que presta assistência legal a imigrantes, voluntários de uma igreja local ajudam jovens imigrantes com suas petições ao DACA. Esses rapazes e moças vieram para os EUA com suas famílias quando eram crianças e agora se veem sem documentos, incapazes de viver, trabalhar ou frequentar a faculdade nos EUA sem a ameaça de deportação. Os voluntários oferecem rosquinhas e café aos imigrantes ansiosos enquanto conversam e navegam na complexa papelada que lhes permitirá permanecer legalmente em suas comunidades.

Embora os cristãos em ambos os cenários possam ter opiniões muito parecidas sobre imigração, eles escolheram viver suas convicções de maneiras bastante diferentes. Mas o que nos faz reconhecê-los imediatamente como distintos um do outro? Penso que os cristãos do segundo exemplo estão refletindo a beleza de Deus na maneira como vivem suas crenças sobre imigração. Acredito que, embora Deus espere que o conteúdo de nossas crenças seja justo, ele também deseja que a forma da nossa fé seja bela. Hoje, estou usando a imigração como um exemplo de como podemos avaliar criticamente nossas crenças e questionar se elas estão exibindo a beleza de Deus no mundo, mas a estrutura que proponho poderia se aplicar a quaisquer outras convicções mantidas pelos cristãos, até crenças sobre as quais podemos discordar.

A beleza do Senhor

Antes de podermos perguntar se nossas crenças estão refletindo a beleza de Deus, precisamos entender o que é a beleza de Deus e por que nós, como cristãos, devemos ter como meta refletir isso em nossas convicções. Jonathan King, professor de teologia e autor de The Beauty of the Lord: Theology as Aesthetics, explica que “a beleza é inerente a Deus e se reflete em tudo o que ele faz”. Os salmistas escrevem canções de louvor sobre a beleza de Deus. O único pedido de Davi em Salmos 27.4 é “contemplar a beleza do Senhor”. Isaías diz que a recompensa para os justos será ver Deus em sua beleza (33.17). O pastor e autor John Piper entende a beleza de Deus como “a proporcionalidade peculiar, a interação e a harmonia de todos os atributos de Deus”. Em outras palavras, a beleza abrange a maneira perfeita na qual os atributos de Deus interagem, mesmo quando parecem paradoxais. Atributos como justiça e misericórdia de Deus, bondade e verdade, santidade e compaixão exibem uma simetria e perfeição que o diferencia de nós.

Bíblica e historicamente, a beleza de Deus também está intimamente ligada à sua glória. Centenas de vezes nas Escrituras, os autores bíblicos usam a palavra “glória” para se referir à imensa dignidade e beleza de Deus e para comunicar que ele é diferenciado de todos os outros seres do universo. O objetivo de Deus, de Gênesis a Apocalipse, é tornar sua glória e beleza únicas conhecidas em todo o mundo. Salmos 96.3 instrui aqueles que seguem a Deus a “declarar sua glória entre as nações”, e João faz a afirmação fundamental do cristianismo de que, em Jesus, Deus “se tornou carne” e revelou sua glória para nós (João 1.14). King chama a beleza de Deus de “expressão externa de sua glória” que é “expressa e percebida como uma qualidade estética de sua glória em seu trabalho de criação, redenção e consumação”. A ação salvífica de Deus no mundo não é apenas eficaz; é também linda.

Jonathan Edwards, o pregador americano do século 18, escreveu extensivamente sobre a beleza de Deus. Ele acreditava que, quando os cristãos são salvos, Deus abre nossos olhos para ver sua beleza de uma maneira que não podíamos antes e faz com que nossos corações “apreciem a beleza e a doçura da excelência suprema da natureza divina”. King constrói esse entendimento sugerindo que refletir a beleza de Deus no mundo é uma parte essencial do que significa para os cristãos imitar Jesus e seguir seu exemplo. Quando consideramos tudo isso junto, a beleza de Deus pode ser definida como o relacionamento único entre seus atributos, pelo qual ele realiza seu trabalho no mundo e revela sua glória. Mas por que é importante que nossas crenças e as ações que elas inspiram reflitam a beleza de Deus?

Bela crença na prática

Medindo nossas crenças e convicções pelo padrão da beleza de Deus, podemos garantir que nossas ações reflitam o verdadeiro caráter de Deus, em vez de apenas um aspecto dele. Enquanto os cristãos que gritam “Fique com as crianças, deporte os racistas!” podem estar querendo comunicar a tristeza e a ira de Deus pela separação das famílias imigrantes, eles estão deixando de refletir o amor dele por todas as pessoas. Mesmo que sejam bem-sucedidos em conscientizar sobre os horrores de afastar os filhos imigrantes de seus pais, eles o fazem de uma maneira que impede o mundo de ver os atributos de graça, misericórdia e compaixão de Deus.

Por outro lado, os membros da igreja que estão servindo jovens imigrantes por meio de assistência jurídica são capazes de refletir a simetria e a perfeição do caráter de Deus, pois demonstram o amor de Deus pelos imigrantes e, ao mesmo tempo, incorporam o respeito pelas leis do governo. Tendo como objetivo viver suas convicções sobre a imigração sob o brilho da beleza de Cristo, o Espírito Santo os capacita a expressar seu amor a partir do lugar de tensão que existe entre a santidade eterna de Deus e sua graça infinita.

É importante esclarecer que a deficiência do protesto de imigração não é por ser impessoal, enquanto o segundo exemplo é individualizado e particular. Na realidade, há muitas coisas bonitas que são impessoais. A natureza não pode falar conosco de maneira audível e individual e, ainda assim, a reconhecemos como uma declaração da glória de Deus e um reflexo de sua beleza.

A escolha entre nossos dois exemplos também não tem a ver com pragmatismo. Embora o segundo exemplo tenha maior chance de ter êxito que o primeiro, procurar refletir a beleza de Deus enquanto vivemos nossas crenças não se refere primariamente a utilidade. Cada um de nós é criado à imagem gloriosa e bela de Deus; portanto, é claro que as pessoas serão atraídas para aqueles que espelham a beleza de seu Criador no mundo, mas não devemos buscar crenças belas porque são pragmáticas. O que torna as crenças belas tão valiosas é o fato de que elas refletem o caráter perfeito de Deus e sua refutação de tudo que não é belo, independente de serem ou não sempre eficazes em atrair outras pessoas para segui-lo. Procurar manifestar a beleza de Deus em nossas convicções é correto, mesmo que nem sempre seja proveitoso.

Jesus como nosso exemplo

Em Jesus, encontramos um modelo perfeito para viver nossas convicções a partir do brilho da beleza de Deus. Logo após sua entrada triunfal em Jerusalém, Jesus novamente prediz sua morte iminente aos seus discípulos. Ele explica que um grão de trigo deve ser enterrado no solo e morrer para que possa se reproduzir. Então ele faz um apelo espontâneo e urgente: “Pai, glorifique o seu nome!” (João 12.28). O pastor e autor Eugene Peterson, em uma avaliação da oração de Jesus, reconhece que “as raízes da glória estão na morte e no sepultamento”.

Se queremos que nossas crenças mostrem a beleza de Deus e lhe tragam glória, a morte é necessária. Temos de morrer para nossas noções e suposições preconcebidas sobre como devemos viver nossas convicções no mundo. Temos de morrer para o nosso medo do julgamento de outros cristãos por sermos “muito brandos”. Temos de morrer para a nossa necessidade de estarmos certos e mostrar como os outros estão errados. Temos de morrer para o nosso desejo de sermos reconhecidos pelo que acreditamos (seja querer ser reconhecidos como separados do mundo e “radicais” ou por estarmos antenados aos padrões morais modernos). Para que nossas convicções revelem a incomparável beleza e glória de Deus, devemos seguir o exemplo de Jesus, que em sua vida e morte modelou perfeitamente a bela crença.

Mês após mês, voluntários da igreja local, em nosso exemplo de abertura deste texto, oferecem consistentemente seu tempo para levar jovens imigrantes sem documentos pelo labirinto da complicada papelada necessária para garantir autorizações de trabalho e carteiras de motorista legalizadas, a fim de que possam perseguir o sonho americano. Em outra cidade americana de tamanho médio, um pastor local está convencido de que ele precisa ensinar à sua congregação o que a Bíblia diz sobre imigrantes e discipulá-la para que possam amá-los. Quando o governador de seu estado anuncia que está se recusando a acolher refugiados sírios em seu território, dezenas de membros da igreja participam de um protesto com versículos da Bíblia sobre amar e acolher imigrantes escritos, à mão, em seus cartazes. Os membros da congregação também ligam para o escritório do governador a fim de explicar por que acreditam que sua fé os compele a receber o estrangeiro, e seu pastor se junta a um grupo de outros líderes religiosos para se encontrar pessoalmente com o governador. Em vez de ceder à tentação de desumanizar aqueles que se opõem a acolher refugiados, eles desenvolvem práticas de protesto e militância que refletem a beleza de Deus.

Os cristãos de ambas as comunidades se unem a Deus em sua tristeza pela marginalização dos imigrantes em seu país e pelas leis e políticas injustas que cedem ao medo, em vez de encorajar a fé. Os cristãos de ambas as cidades se alegram quando sua defesa e seu serviço podem ajudar imigrantes vulneráveis a encontrar pertencimento e segurança em suas comunidades. Às vezes, suas ações não produzem o efeito pelo qual esperam e oram, mas porque se comprometeram a espelhar fielmente a beleza de Deus ao viverem suas convicções, sabem que, independentemente dos resultados individuais, suas ações permanecerão como adoração.

Deus se preocupa com o que acreditamos e como vivemos nossas crenças no mundo. Acredito que ele deseja que nossas convicções sejam moldadas pela criatividade e que nossas crenças mais profundas sejam inteiramente belas. Uma boa maneira de começarmos a pensar em como refletir a beleza de Deus em nossas crenças é examinar nossas convicções, especialmente aquelas sobre questões controversas, e nos perguntar se a maneira como falamos e agimos sobre elas enfatiza principalmente um aspecto único do caráter de Deus. Nossa paixão pela verdade de Deus cegou-nos à sua bondade? Nosso zelo pela justiça de Deus nos fez perder de vista sua graça e misericórdia? Nosso foco na compaixão de Deus nos levou a subestimar sua santidade? Depois de identificarmos quaisquer deficiências, podemos trabalhar para reintroduzir essas características ausentes do caráter de Deus em nosso discurso e em nossas ações ao cultivar uma bela crença.

Todos temos convicções diferentes, então meu objetivo não é lhe dizer em que acreditar. Minha oração é simplesmente que, não importa quais sejam nossas visões morais, políticas ou teológicas, que nos esforcemos de todo o coração e com a ajuda de Cristo para refletir a beleza de Deus na maneira como vivemos. Você tem alguma convicção que precisa ser provada na fornalha do belo caráter de Deus? Não posso prometer que será sem dor, mas posso garantir que valerá a pena. Tornar-se mais como Jesus sempre vale.

Tabitha McDuffee é escritora e estudante e vive no sul da Califórnia. Ela bloga no TabithaMcDuffee.com e está concluindo seu mestrado em proteção de refugiados e estudos de migração forçada pela Universidade de Londres.

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Por que este é o momento do “abraço lateral” do cristão

Será que o nosso medo de germes terá vantagem sobre nós? Um psicólogo avalia os riscos e os benefícios do toque humano em uma pandemia.

Christianity Today June 30, 2020

Imagine que você receba um copo de suco de laranja, mas pouco antes de lhe ser entregue, um pesquisador deixe cair uma barata, mexa o suco, remova a barata e lhe entregue o copo. Você beberia? Claro que não. Mas, agora, imagine que o pesquisador tome o mesmo copo de suco, passe o líquido por um filtro usado para purificar a água da torneira, ferva e esterilize o suco e o filtre novamente. Agora você beberia o suco? Se você é como a maioria das pessoas que fez parte desse experimento, não o faria. Você sabe intelectualmente que o suco é “limpo”, mas, por alguma razão visceral, não consegue beber. Essa reação instintiva é o que os psicólogos definem como nojo, e essa resposta é chamada de psicologia da contaminação. Quando se trata de nojo, nossa razão e nossa psicologia da contaminação podem estar em desacordo.

Agora, imagine que o problema não tem a ver com suco e baratas, mas com um vírus invisível e o contato com aqueles que podem ou não estar carregando o vírus. E se esse vírus for, possivelmente, mortal? Você gostaria de entrar em contato com essas pessoas, apertar sua mão ou participar de um culto com elas?

O especialista em doenças infecciosas Anthony Fauci afirmou recentemente que os americanos nunca devem apertar as mãos novamente — e ele está se referindo ao período após a pandemia de coronavírus. Fauci afirmou que doenças infecciosas, como a gripe, poderiam ser significativamente reduzidas eliminando-se os apertos de mãos. O biólogo e professor de Gordon, Craig Story, ressalta, ainda que mais gentilmente, que melhores práticas de higiene na igreja podem ajudar a impedir a propagação de doenças.

No entanto, de acordo com a psicologia da contaminação, existe a possibilidade de exagerarmos e acabarmos com um déficit de toque humano necessário à nossa saúde mental. A pergunta que devemos fazer, imediatamente, no momento em que a primeira onda de infecções está diminuindo: vale a pena se arriscar em abraços e apertos de mão na igreja? Ou o que dizer do “abraço da paz”, da imposição de mãos ou da unção com óleo? Para alguns, reunir-se, comungar, se divertir e adorar são atitudes que estão começando a ocorrer de novo; para outros, ainda não. Como, agora, temos evidências de que a participação na igreja e, até mesmo, as contribuições financeiras permaneceram constantes durante esse período da igreja virtual, pode parecer mais seguro manter os cultos on-line durante esse período.

Mas, e depois, quando tudo tiver passado, como os humanos interagirão? Preferiremos a segurança de eliminar todo toque físico e proximidade? Ainda desejaremos Skype ou Zoom em reuniões, apenas por segurança? Como navegaremos socialmente pelos altos e baixos das curvas de infecção, hospitalizações e mortes?

A lógica oculta da repulsa

Há uma grande diversidade de opiniões sobre o que compõe um comportamento seguro. O especialista em saúde pública Daniel Chin aconselhou modificações estritas no contato pessoal nas igrejas, com base em dados de saúde locais. E, como Fauci, alguns epidemiologistas argumentam que a segurança e a proteção são fundamentais e, portanto, devemos nos abster de atividades que ameacem nossa vida. Na semana passada, o The New York Times perguntou a 511 epidemiologistas quando eles preveem que poderemos abraçar, fazer um jantar ou sair de férias novamente, entre outras atividades. As respostas foram muito variadas, mas 42% esperam se abster de abraços e apertos de mão por mais de um ano, enquanto 39% calculam uma espera de 3 a 12 meses. Nessa visão, o contato próximo deve ser monitorado e é mais seguro cedermos ao novo mundo virtual.

É possível, no entanto, que algumas opiniões superestimem o perigo. De fato, outro artigo recente perguntou a uma especialista em transmissão de doenças transmitidas pelo ar sobre o nível de risco dos abraços. Usando modelos matemáticos que levaram em conta a dosagem necessária para pegar o vírus, a cientista Linsey Marr, que estuda partículas no ar, disse que o risco ao dar um abraço em um ente querido é realmente muito baixo, mas deu algumas precauções que você pode tomar para abraçar com mais segurança — incluindo usar máscara, evitar chorar, tossir ou falar e lavar as mãos depois.

Se alguns no público em geral respeitam a opinião de Fauci e outros especialistas preocupados com o contato físico, isso pode estar relacionado a uma motivação inconsciente mais profunda encontrada na “psicologia da repulsa”. Doença e morte são duas coisas que provocam repulsa. Pode ser que a pequena proteína colorida de coronavírus que vemos todos os dias na TV esteja causando repulsa em todos nós.

A repulsa desempenha funções importantes nos seres humanos. Essencialmente, ela age como um sistema de limites e ajuda os seres humanos a saber o que incorporar em seus corpos, protegendo-os da ingestão de substâncias perigosas. Mas, além disso, a dinâmica leva à abstenção, à rejeição, à expulsão e à eliminação. Em última análise, ela nos ajuda a evitar o desconforto e a morte.

Mas a repulsa também tem um aspecto “promíscuo”, no qual se vincula a uma variedade de outros estímulos, incluindo estímulos morais (por exemplo, comportamentos repugnantes), sociais (como pessoas repugnantes) e circunstâncias religiosas (por exemplo, é preciso evitar a imoralidade nojenta). A repulsa tem um tipo de lógica irracional, o que Richard Beck, da Universidade Cristã Abilene, chama de “pensamento mágico”. Beck diz que é “mágico” porque começamos a acreditar que o que é repulsivo pode nos contaminar de maneiras que não condizem com a realidade. Beck observa: “O problema surge quando a lógica do ‘contato’ começa a ser aplicada a situações em que não deveria ser aplicada”.

Enquanto a repulsa essencialmente começa com algo semelhante a um vírus, sua lógica irracional pode se espalhar rapidamente dos germes para as pessoas. Paul Rozin e colegas descreveram como esse pensamento mágico resulta na lógica da repulsa e nos quatro princípios da contaminação: Primeiro, o contato sempre levará à contaminação. Segundo, mesmo quantidades microscópicas do elemento contaminado são prejudiciais; isso é chamado de insensibilidade à dose. Terceiro, a permanência, que implica que uma vez que algo (ou alguém) se contamina, não pode ser purificado. E, por último, a dominância da negatividade, uma crença de que quando um contaminante e um objeto puro entram em contato, o contaminante é mais forte e contamina o objeto puro. Apesar do conhecimento racional de que a contaminação não é realista (o suco foi esterilizado), a lógica da contaminação cria uma sensação visceral que simplesmente não conseguimos evitar.

Um exemplo não muito distante é o início da epidemia de AIDS. Quando a AIDS surgiu pela primeira vez e o público sabia pouco sobre ela, os pacientes foram repudiados e marginalizados por pessoas que temiam contaminação. Mesmo quando surgiram informações precisas sobre a transmissão, as pessoas ainda estavam com medo. Pacientes com AIDS sentiram a repulsa nos outros.

Embora possa ser difícil imaginar que alguém rotule potenciais portadores de COVID-19 de repugnantes, basta lembrar o sentimento antiasiático, visto no início do surto. Embora essas reações sejam claramente racistas e injustificadas, todas as mensagens confusas e mal informadas sobre o vírus, combinadas com a lógica da contaminação, tornam compreensível como as pessoas podem começar a se olhar como potenciais contaminantes. A lógica da repulsa diria que é melhor ficar longe! Podemos dizer a nós mesmos que o mundo virtual é “bom o suficiente” e que, ao limitar nosso contato com os outros, estamos sendo espertos, seguros e sábios, o que, é claro, deveríamos ser, mas o pensamento mágico da lógica da repulsa sugere que podemos estar superestimando ilogicamente o perigo.

A importância do toque

Embora a repulsa possa nos afastar, a literatura psicológica está repleta de estudos que demonstram a importância do toque. Muitos estão familiarizados com a história das crianças romenas criadas em orfanatos, onde eram alimentadas, trocadas e banhadas regularmente, mas não eram embaladas, abraçadas ou tocadas com amor. Os pesquisadores que acompanharam essas crianças por um período de 14 anos descobriram que as crianças apresentavam grandes atrasos em linguagem, funcionamento cognitivo, desenvolvimento motor e funcionamento socioemocional — e alguns casos eram suficientemente graves para receber diagnósticos psiquiátricos. Ou considere Genie, um estudo de caso encontrado na maioria dos livros introdutórios de psicologia. Genie foi criada por um pai doente mental, que a amarrou a uma cadeira suja, restringiu seus movimentos e a impediu de todo tipo de estímulo, inclusive a linguagem. Quando Genie foi resgatada, aos 13 anos de idade, ela não conseguia andar ou falar e parecia autista. Os déficits de Genie não foram resultado de baixa inteligência, mas de falta de interação humana.

Os seres humanos não apenas se relacionam; relacionamentos nos tornam humanos. Estamos conectados a relacionamentos, que incluem proximidade física e toque. O cérebro infantil passa por enormes quantidades de desenvolvimento após o nascimento, com base na interação com o meio ambiente. A ligação começa com o toque pele a pele, o que libera o neurotransmissor de ligação ocitocina no bebê e nos pais. Pesquisas em interações pais-bebê demonstram que essas primeiras experiências formam estilos de apego, moldando a maneira como nos relacionamos com outras pessoas na idade adulta.

E os adultos? Certamente, quando nosso cérebro está totalmente desenvolvido, o toque deve ser menos importante, certo? Dacher Keltner, professor e diretor executivo do Greater Good Center da UC Berkeley, acredita no contrário. Keltner acredita que o toque humano é essencial para a comunicação, a saúde e o vínculo. Em um experimento, Keltner separou fisicamente dois pacientes por uma parede para que eles não pudessem se ver. O paciente um colocaria um braço através de um buraco na parede. O paciente dois recebeu uma lista de emoções para tentar se comunicar apenas tocando o antebraço do sujeito. Embora houvesse apenas 8% de chance de o paciente um adivinhar corretamente a emoção certa, os pacientes do estudo de Keltner conseguiram identificar a emoção da compaixão 60% das vezes.

O toque pode até aumentar a generosidade. Keltner menciona um estudo relacionado, onde os participantes jogam “o dilema dos prisioneiros”. Os pacientes tiveram a opção de cooperar ou competir com um parceiro por uma quantia limitada de dinheiro. Os indivíduos que receberam um tapinha nas costas logo antes de iniciar o jogo tinham maior probabilidade de compartilhar seu dinheiro com o parceiro.

O toque está relacionado à saúde. O toque de adulto para adulto, assim como pais e bebês, também libera ocitocina, o que alguns chamam de “hormônio do amor”, o que aumenta o vínculo e os sentimentos de confiança. O impacto calmante do toque tem sido associado à redução do estresse cardiovascular, enquanto os abraços demonstraram diminuir a frequência cardíaca e a pressão sanguínea, fortalecendo o sistema imunológico, de acordo com uma pesquisa.

O toque é tão central para o ser humano que Susan K. Farber escreve na Psychology Today que as pessoas estão “procurando seus próprios ‘tocadores profissionais’ e professores de artes corporais — quiropraxistas, fisioterapeutas, terapeutas da Gestalt, Rolfers, pessoas da técnica Alexander e Feldenkrais, massoterapeutas e instrutores de artes marciais e de Tai Chi Chuan. Alguns até aguardam nos consultórios médicos por um exame físico de doenças que não têm causa orgânica — eles esperam para ser tocados.”

A visão da repulsa nas Escrituras

Se a repulsa em sua essência, que é proteger-nos da morte, pode estar ligada a situações morais, sociais e espirituais, alguns dos comportamento dos fariseus nos evangelhos fazem sentido. Os fariseus não eram simplesmente arrogantes legalistas, mas eram humanos normais com medo de contaminação (isto é, impureza moral). A principal repulsa ficou ligada a certos comportamentos e pessoas por meio da lógica irracional da contaminação e, posteriormente, levou ao medo da proximidade e do toque. É possível que as pessoas pós-pandemia possam ficar tentadas a permanecer isoladas e satisfeitas com a adoração virtual como um fino disfarce da repulsa. Mas a mudança não ocorrerá apenas sabendo sobre o “pensamento mágico” da contaminação e sua natureza promíscua. Precisamos de um novo entendimento e de novos comportamentos que possamos imitar. Nas Escrituras, Jesus oferece-nos dois.

Os judeus temiam entrar em contato com os impuros, mas Jesus acolhe multidões de doentes/imundos (Mt 14.34-36; Mc 3.7-12; Lc 4.40). Embora Jesus pudesse, e ocasionalmente o tenha feito, curar indivíduos impuros apenas com palavras, parece que ele preferia tocá-los. Ele toca leprosos (Mc 1.40–44), cura os cegos e mudos com cuspe da própria boca (Mc 7.31–37; Jo 9.1–7), abaixa-se e toca os mortos (Lc 8.40–56) e a mulher com o fluxo de sangue é curada ao tocar em Jesus (Lc 8.43–48). O toque é importante para Jesus e ele o usa frequentemente com aqueles considerados intocáveis. Talvez o toque seja importante para Jesus porque não apenas cura, mas, também, reconhece a humanidade. Ao fazer isso, Jesus reconcilia essas pessoas com uma comunidade que anteriormente as olhava e as tratava com repulsa.

Nos evangelhos, Jesus literalmente enfrenta cada um dos quatro princípios de contágio descritos por Rozin. Ele quebra o medo da proximidade e da insensibilidade à dose, a ideia de que mesmo um pouquinho de contaminante arruina o todo. Jesus nega essa lógica comendo no lar dos pecadores e ao não discriminar aqueles com quem interage (Lc 19.1–10). A teoria da permanência sugere “uma vez contaminado, sempre contaminado”, mas Jesus demonstrou repetidas vezes que alguém pode ser limpo (Lc 7.36–50; Jo 8.1–11). E, finalmente, contrariando a lógica do domínio da negatividade — a ideia de que o impuro domina o limpo, tornando-o impuro — Jesus não teme entrar em contato com o impuro. Doença ou pecado podem tornar os outros impuros, mas ele mostra que supera a contaminação e permite que eles se tornem limpos.

Jesus não aceita a lógica da contaminação e da repulsa. Exemplo após exemplo, Jesus não apenas cura, por meio do toque, mas também purifica o imundo. As pessoas são perdoadas, curadas e devolvidas às suas comunidades completamente renovadas. Em vez de seguir os impulsos naturais de repulsa, ignorar, evitar ou até envergonhar, Jesus ama seu próximo por um ato de acolhimento radical. Ele se move em direção àqueles rotulados como impuros. É claro que a impureza ritual e o contágio viral não são a mesma coisa, mas ainda podemos aprender como superar a repulsa com o exemplo de Jesus. O perigo de um mal como o COVID-19 é que a repulsa não permanecerá no campo biológico, mas se tornará promiscuamente apegada às pessoas, levando-as a evitar, afastar e perder o benefício de toque, proximidade e igreja juntos.

Vale a pena o risco?

É claro que precisamos ser sábios e seguros. Obviamente, precisamos ouvir especialistas da área e seguir as práticas estabelecidas por nossos líderes. Esse não é um chamado para desafiar as regras, como alguns fizeram sob o disfarce da liberdade — uma pequena ocultação que põe os direitos individuais acima da responsabilidade comunitária. As perguntas permanecem: como devemos nos comportar quando voltarmos aos cultos da igreja ou nos reunirmos de alguma forma? Como podemos fazer modificações para participar da comunidade de forma plena novamente? Devemos correr riscos calculados? A pesquisa sobre o toque e o exemplo de Jesus gritam que sim. A repulsa é uma estratégia psicológica para nos proteger de doenças e morte. Mas ser humano é ser vulnerável — não podemos evitá-lo inteiramente.

Na igreja, somos chamados a voltar, um dia, a praticar a vulnerabilidade, apesar do medo, ao dar a paz, impor as mãos, compartilhar refeições, adorar e viver juntos. Quando compartilhamos a Eucaristia, lembramos a vulnerabilidade de Cristo, sua radical hospitalidade em relação a nós, os quebrantados, os impuros. Lembramos que, por causa de sua morte e ressurreição, não precisamos temer. “Ele (Jesus) libertou aqueles que foram mantidos em escravidão a vida inteira pelo medo da morte” (Hb 2.15).

Quando nos lembrarmos disso, poderemos agir com ousadia, tão logo o perigo iminente passe, não apenas em nossas igrejas, mas em nossas comunidades, praticando um acolhimento radical. Então, desejemos cumprimentar um ao outro com um aperto de mão ou um ósculo santo, dando abraços, impondo as mãos e ungindo com óleo. Isso definitivamente vale a pena.

Brad D. Strawn é professor de psicologia no Fuller Seminary, School of Psychology, psicólogo licenciado e presbítero ordenado na Igreja do Nazareno. Seu próximo livro, com Warren Brown, "Enhancing Christian Life: How Embodied Cognition Augments Religious Community", será publicado pela InterVarsity Press.

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