Pastores também precisam colocar limites

Conheça estratégias que trazem ritmos saudáveis para uma cultura eclesiástica disfuncional.

Christianity Today May 8, 2022
Illustration by Anson Chan

Se eu fizer essas mudanças, posso perder meu emprego”, certo pastor me disse.

Sendo bem honesto, respondi: “Sim, isso pode acontecer”.

Já tive muitas versões dessa mesma conversa com pastores que aconselho. Muitos se sentem frustrados, exaustos e prontos para desistir. Alguns não têm férias de verdade há anos. Outros estão enfrentando ataques de pânico ou outros sintomas de estresse extremo. Seus casamentos, filhos, saúde física e hobbies pessoais foram todos negligenciados. E eles se viram trabalhando 60, 70 ou até 80 horas por semana.

Nos últimos 20 anos, eu me especializei em aconselhar pastores — nos últimos 10 anos, exerço essa atividade em um centro de retiro para pastores e líderes de ministério. Muitos desses pastores perceberam que não podem mais conduzir o ministério do jeito que têm feito até agora. Mas também estão cientes de uma realidade dolorosa: colocar limites saudáveis pode não ser algo que sua igreja realmente apoie. Na verdade, isso pode levar até à sua demissão.

Antes de ir embora

É muito bom que os pastores trabalhem para colocar limites saudáveis, mas isso é apenas metade do problema. Há duas partes envolvidas nesse relacionamento: o pastor e a congregação. E se uma congregação não respeitar os limites saudáveis do pastor? E se os membros continuarem esperando que o pastor esteja disponível a qualquer hora, todos os dias da semana? Para realizar todos os casamentos e todos os funerais? Para liderar todos os programas da igreja? Nesse caso, o que deve ser feito?

Quando minha esposa, Kari, e eu tínhamos um consultório particular para aconselhamentos, ocasionalmente fornecíamos apoio a jovens adultos que ainda não moravam sozinhos, mas viviam em contextos familiares disfuncionais, como no caso de pais que lutavam contra algum vício. Os jovens adultos desejavam ser saudáveis. Avaliei que eles poderiam tomar quatro caminhos em potencial:

1. Tentar permanecer saudável em um sistema imutável e disfuncional.

2. Mudar o sistema, para que todos sejam mais saudáveis.

3. Ir embora para ficar saudável.

4. Ceder e assimilar a disfunção.

Pastores podem estar em situações muito semelhantes e, na minha experiência, muitos adotam a saída 3 ou 4. Eles podem primeiro tentar a saída 1. Mas tentar repetidamente manter limites saudáveis em meio à pressão persistente para não mantê-los pode, com o passar do tempo, ser mais exaustivo do que simplesmente sucumbir a expectativas irreais. Então, muitos pastores vão embora, crendo que nada vai mudar em suas igrejas. Ou desistem das mudanças que esperavam fazer, aceitando que é dessa forma que o ministério funciona e, portanto, é melhor eles se acostumarem logo com isso.

Os pastores devem ir embora ou desistir? Não. Em muitos casos, antes de ir embora se tornar necessário — ou antes de serem dispensados — eles podem tentar a saída 2: ficarem saudáveis e levarem suas igrejas com eles por este caminho. Um pastor pode crescer no sentido de adotar bons limites e, estrategicamente, ajudar a igreja neste processo também.

Quem se oferece?

Muitas vezes os pastores chegam ao nosso centro de retiro depois de terem ficado acordados até tarde, na noite anterior, para colocar as últimas peças no lugar, a fim de que suas responsabilidades fossem cobertas durante sua ausência. Este último esforço revela uma realidade comum da igreja: ninguém encontra-se treinado para assumir os vários aspectos do papel pastoral; por isso, agora, ele ou ela está lutando para encontrar pessoas que possam fazê-lo. A boa notícia é que os pastores geralmente encontram pessoas que se colocam à disposição e assumem a tarefa.

Søren Kierkegaard escreveu: “Quanto mais uma pessoa se limita, mais versátil ela se torna”. Muitos pastores se tornaram adeptos de fazer muitas coisas. Uma mudança na cultura da igreja pode começar quando um pastor considera com sinceridade estas perguntas: E se eu não puder vir na próxima semana? O que aconteceria? Quem faria o quê? O que só eu posso fazer — e no que preciso me concentrar? Nas palavras de Kierkegaard: Como posso me concentrar em intensidade, e não em extensão?

Encontrar e treinar outros que estejam dispostos a desempenhar várias das responsabilidades do pastor é um passo fundamental para manter limites saudáveis. Por exemplo, oriente um ancião que tenha jeito para a pregação. Leve um membro da igreja que tenha um coração pastoral em visitas ao hospital. Treine alguém para dirigir as reuniões na ausência do pastor. Isso não apenas ajuda a manter as coisas funcionando, quando o pastor estiver ausente ou focado em outras tarefas, mas também pode levar a expressões regulares de um ministério leigo.

Treinar intencionalmente outros para assumirem algumas responsabilidades pastorais ajuda o corpo da igreja a crescer e amadurecer. Permite ao pastor tirar algumas coisas de seu rol de responsabilidades, dá aos líderes leigos compreensão e empatia maiores pela posição do pastor e é uma intervenção direta contra essa resistência primária à colocação de limites pelo pastor. A principal razão pela qual as pessoas resistem aos limites do outro é por acreditarem que o limite lhes tira algo que querem ou de que precisam. As pessoas em uma igreja resistem, quando um pastor diz: “Não, não estou fazendo isso”, porque pensam que estão perdendo alguma coisa. Isso pode resultar de seu próprio medo, insegurança, preguiça, senso de domínio ou até de sua arrogância sobre o quanto o pastor é bom em certo papel. Quando fica claro, porém, que outra pessoa consegue fazer determinada tarefa, as pessoas aprendem que não precisam temer perder algo.

Coloque por escrito

Um componente central de uma igreja que honra limites saudáveis para seu pastor é ter uma descrição de função por escrito, que seja realista e dê clareza sobre as expectativas da igreja para esse papel. Um pastor pode se reunir com a liderança da igreja para avaliar e ajustar sua descrição de função, acrescentando especificidade quando possível — como, por exemplo, detalhar as horas de trabalho semanais esperadas, o número de domingos que o pastor deve pregar por ano ou o número máximo de casamentos que ele ou ela deve celebrar em um ano.

Um grande obstáculo que um pastor pode enfrentar é quando outros líderes da igreja (como presbíteros ou o conselho da igreja) não têm uma visão completa de tudo o que ele ou ela faz. Nessa situação, um pastor pode, durante um mês, registrar todo o tempo gasto em tarefas do ministério (incluindo coisas como mensagens de texto trocadas com membros da igreja). Este registro ajudará os outros líderes a entenderem a luta do pastor em limitar o número de horas de trabalho por semana e pode gerar discussões frutíferas sobre como priorizar as principais tarefas do pastor, como a preparação do sermão.

Quando as responsabilidades pastorais são limitadas, específicas e apoiadas, e então a congregação vê seu pastor renovado, apaixonado, focado e entusiasmado, eles percebem o benefício do pastor escolher sabiamente as atividades que devem ou não ser seu foco.

Que a Escritura nos ensine

À medida que os pastores crescem e se aprofundam em maturidade e saúde espirituais em Cristo — particularmente na área de limites — eles podem passar essas lições para suas congregações do púlpito. Isso beneficia não apenas os próprios pastores, mas também todos aqueles que o ouvem, pois cultiva em leigos e líderes da igreja um ritmo sábio e prioridades inspiradas em Cristo.

A pregação sobre os valores bíblicos subjacentes que orientam a adoção de bons limites pode assumir muitas formas. Os pastores podem pregar sobre temas bíblicos, por exemplo, como é vital proteger o coração pois dele procede a fonte da vida, ou como cada membro é chamado para ser as mãos, os pés ou os olhos no corpo de Cristo, e como os limites podem ajudar as pessoas a permanecerem em seus chamados. Os sermões podem explorar quão importante é priorizar o descanso sabático ou como nossa identidade em Cristo nos liberta para dizer sim ou não às coisas. Mensagens como estas podem promover uma cultura na igreja que estabelece expectativas saudáveis tanto para os membros da igreja quanto para a equipe pastoral.

A fim de esclarecer ainda mais para a congregação o que o pastor faz e o que não faz, um sermão sobre o papel bíblico do pastor (especialmente quando apresentado por um pregador convidado) pode ser eficaz. Também seria sábio ter um líder, que não seja o pastor, compartilhando os principais componentes da descrição da função do pastor com a congregação, durante uma reunião da igreja.

Um risco que vale a pena

Quando um pastor tem medo de que a congregação não respeite seus limites, acredito que seja melhor que ele comunique à liderança da igreja que o arranjo atual não está funcionando e tente ajudar a mudar as coisas, em vez de simplesmente sair em silêncio ou esperar ser demitido. Estabelecer limites, pedir o apoio da liderança e da congregação e delegar funções são os passos certos a serem tomados, mesmo que falhem.

Embora eu tenha visto pastores fazerem pedidos de socorro de última hora para estabelecer limites que fossem aceitos pela liderança da igreja e pela congregação, infelizmente, também já vi os alvos de tais pedidos não serem receptivos. Esta é apenas uma realidade dolorosa que alguns pastores enfrentam. Embora o sucesso não seja garantido, trabalhar de forma paciente e estratégica para tentar mudar a cultura da igreja, de modo que limites saudáveis sejam valorizados (incluindo os do pastor) é bom para todos. É um risco que vale a pena. O pastor, sendo o pastor que ele ou ela é chamado(a) a ser e engajando cada um no rebanho segundo são chamados a se envolver, criará uma bela expressão do corpo de Cristo que todos nós somos chamados a ser.

Michael MacKenzie é conselheiro licenciado e pastor ordenado. Ele aconselhou pastores e outros líderes cristãos nos últimos 20 anos e atualmente é diretor executivo do Marble Retreat. Ele é o autor de Don’t Blow Up Your Ministry.

Este artigo é parte da edição de primavera da CT para pastores, que trata da saúde da igreja. Você pode encontrar a edição completa em inglês aqui.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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Desconectai-vos e sabei que eu sou Deus

Mesmo com tudo o que dizemos on-line sobre a fé, corremos o risco de perder de vista o próprio Senhor.

Christianity Today April 26, 2022
Anastasiia Shavshyna / Getty / Edits Rick Szuecs

Se uma forma de vida alienígena visitasse a Terra para conhecer a igreja e simplesmente lesse o dito Twitter cristão, não tenho certeza se eles teriam alguma ideia de que acreditamos em algo chamado Encarnação, Ressurreição ou Ascensão. Eles, no entanto, saberiam muito sobre as tendências de votação dos evangélicos, o debate sobre a ordenação de mulheres, posicionamentos sobre o aborto e qualquer outra controvérsia que esteja em alta no momento.

Nosso discurso on-line habitual muitas vezes nos doutrina a subestimar o vasto mistério de Deus — com toda a admiração e a adoração que ele inspira — e a mergulhar em comentários e discussões sociológicas e teológicas. Essas conversas importam, é claro. Mas corremos o risco de substituir a transcendência pela imanência. Perdemos os aspectos mais profundos de Deus para a controvérsia cristã do momento.

Há um termo para essa tentação que só ouvi entre sacerdotes: “queima do altar”. Refere-se a um perigo particular da nossa atividade. Os pastores lidam regularmente com coisas sagradas — cálices e pães consagrados, mas também com as Escrituras e momentos sensíveis da vida das pessoas.

Há um perigo inerente nesta exposição frequente. Passamos a tratar as coisas sagradas profanamente. Banalizamos as coisas sagradas. Em meio à cacofonia de uma semana de trabalho mundana, esquecemos o milagre completo que estamos proclamando.

Resistir à queima do altar costumava ser uma luta específica de pessoas que regularmente pregam, ensinam e lideram congregações. Hoje, porém, qualquer pessoa com um teclado pode falar, ensinar ou discutir sobre Deus, todos os dias, do nascer ao pôr do sol.

Com essa habilidade recém-descoberta, todos corremos o risco de queimar o altar coletivo. O Deus triúno, transcendente e totalmente avassalador torna-se algo reduzido a uma abstração sociológica ou teológica. Muitos de nós passamos muito mais tempo nas mídias sociais do que no culto, e esse espaço digital muitas vezes impede o verdadeiro arrependimento, a contemplação ou a oração.

Fica mais difícil nos aproximarmos de Deus como o misterioso criador da “Nebulosa do caranguejo” [restos da explosão de uma supernova], o sustentador de cada minuto e o redentor do cosmo, quando passamos horas lendo as palavras de estranhos discutindo com outros estranhos sobre coisas espirituais.

Quando se tornam diárias, essas atividades produzem um tipo de esgotamento em falar sobre Deus, com o qual perdemos de vista aquilo que é mais indescritível e mais poderoso sobre nosso Criador. Noções robustas de verdade, beleza e bondade tornam-se ralas em nossa imaginação.

Então, qual é a solução para impedir a queima do altar? Isso requer que voltemos a nos engajar com a sacralidade, o estranhamento, a assombrosa maravilha de Deus. Requer silêncio, quietude, adoração e arrependimento. Requer falar menos de Deus e buscar mais a Deus.

Mas como faremos isso? As mídias sociais vieram para ficar. No entanto, temos de aprender a recuar — não para longe das discussões sobre a fé, mas para aquelas formas mais antigas e mais lentas de conversa espiritual com pessoas reais e com livros de muitas páginas. Temos de adotar práticas como solitude, jejum, adoração conjunta e sacramentos – esses hábitos incorporados que resistem a serem subordinados pela tecnologia. E precisamos de topologias inteiras de terreno espiritual em nossa vida, as quais nunca discutimos on-line — partes de nós mesmos que preservamos apenas para Deus e nossas comunidades encarnadas.

Acima de tudo, precisamos estar atentos às tendências banalizantes da mídia com a qual nos relacionamos. Não existe meio neutro. Os hábitos tecnológicos geram nossa formação espiritual, que por sua vez gera nossa devoção e nossa doxologia.

“Quando a porta dos banhos de vapor é continuamente deixada aberta, o calor do interior escapa rapidamente por ela”, escreveu o asceta do quinto século, Diádoco de Foticeia. “Da mesma forma, a alma, em seu desejo de dizer muitas coisas, dissipa suas reminiscências de Deus pela porta da fala.”

Os cristãos agora têm a oportunidade de manter a “porta da fala” constantemente aberta. Dissipamos nossas reminiscências de Deus, mesmo quando temos as coisas da fé na ponta dos lábios — ou melhor, na ponta dos nossos teclados.

Embora a aplicação seja diferente, a sabedoria do Diádoco ainda permanece. Ele aconselhou os crentes a “evitarem a verborragia” em prol do “silêncio oportuno”, que é “nada menos do que a mãe dos mais sábios pensamentos”.

Aprender o “silêncio oportuno” é um ato contracultural, especialmente quando há coisas boas a dizer e uma mídia sempre pronta exigindo que as digamos. Mas, se não resistirmos às suas exigências, nosso discurso sobre Deus substituirá lentamente a adoração que somente a Ele é devida.

Tish Harrison Warren é pastora da Igreja Anglicana na América do Norte e autora de Liturgy of the Ordinary e Prayer in the Night (IVP, 2021). Siga-a no Twitter @Tish_H_Warren.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Tanto a ‘cultura da pureza’ quanto a cultura do ‘sexo casual’ falharam comigo

Então, encontrei comunhão na igreja.

Christianity Today April 26, 2022
Ben Duchac / Unsplash

Para os evangélicos, falar sobre pureza sexual em uma era libertina é uma constante. Em particular, a cultura da pureza dos anos 90 projeta uma sombra extensa e circula regularmente pelo espaço público. Um dos arquitetos do movimento, Joshua Harris, anunciou recentemente que abandonaria a fé. Como parte de um “processo de desconstrução” em andamento, como ele chama, sua rejeição da cultura da pureza cristã (há alguns anos) foi um dos muitos passos que o levaram — não de forma causal, mas sequencial — a rejeitar a própria fé.

A notícia me deixou com um vazio no peito. Ao acompanhar esse desenrolar da história de Harris ao longo dos anos, vi aspectos da minha própria vida espelhados na dele. No entanto, embora minha história comece em um lugar semelhante, ela caminha em sentido oposto, em direção à reconstrução da fé. Eu também rejeitei a cultura da pureza, mas em seu lugar descobri um compromisso mais profundo com a bela ortodoxia da fé cristã, uma apreciação mais profunda da doutrina da encarnação e um amor mais profundo pela igreja.

Minha história começa na adolescência. Junto com muitos outros jovens evangélicos, fui levada pela onda do movimento da pureza, que eu via como uma expressão de piedade pessoal e devoção à fé. Minhas ações, no entanto, eram quase que inteiramente motivadas por resultados futuros. Em outras palavras, eu esperava ter um relacionamento conjugal no futuro, e tinha medo de arruinar minha chance de um relacionamento perfeito. Fiz um voto de me abster de sexo até o casamento e usava um anel no dedo anular da minha mão esquerda. Quando comecei a sair com um rapaz, no ensino médio, eu me abstive de dar as mãos para ele, pois acreditava que havia um caminho curto entre entrelaçar os dedos e terminar na cama juntos.

Aos 19 anos, comecei meu primeiro ano na Purdue University e me deparei com um modelo diametralmente oposto: a cultura do “sexo casual”. Eu era uma cristã evangélica praticante, que seguia uma ética sexual tradicional, mas vivia em um campus comprometido com o sexo livre. Coisas como “ficar” e “amizade colorida” eram práticas comuns. No domingo de manhã, enquanto eu caminhava até o saguão do dormitório a caminho da igreja, minhas colegas levavam os namorados até a porta da frente.

Quando meus amigos chegavam para a aula, na segunda-feira de manhã, exaustos depois de um fim de semana de festas, eu ficava claramente ciente de que minhas convicções sinceras sobre sexo me separavam daquele grupo. Eu considerava muitos de meus colegas de classe e de quarto como amigos e, embora eles nunca zombassem de mim nem me condenassem ao ostracismo por causa das minhas crenças, ainda assim eu me sentia diferente.

Eu havia previsto essa solidão quando entrei na Purdue. Mas não havia previsto por completo que aquele meu primeiro ano seria o mais solitário da minha vida. Embora eu tenha experimentado a presença reconfortante do Senhor, e os cultos dominicais da igreja proporcionassem um doce alívio da rotina da faculdade, ainda assim eu ansiava por mais comunidade.

Eu esperava que Deus diminuísse minha solidão me dando um namorado, que mais tarde se tornaria meu marido, e orava por isso. Quando eu conhecia algum rapaz cristão gentil, eu me perguntava se ele era “quem eu estava esperando”; ficávamos amigos e, talvez, até saíamos para jantar; em pouco tempo, porém, ele parava de falar comigo ou manifestava interesse por outra mulher.

Em meio a esses altos e baixos da minha vida romântica, eu me vi cativada por outra pessoa: a noiva de Cristo. Essa percepção veio lentamente, ao longo do tempo. À medida que minha vida amorosa desmoronava, comecei a perceber que eu havia trocado um conjunto de visões antibíblicas sobre sexo por outro. A cultura da pureza, que eu adotara no ensino médio, era tão insuficiente e vazia quanto a cultura do sexo casual.

Hoje, pensando naqueles tempos, é difícil dizer quanto do problema estava em mim e em no processo de amadurecimento que eu ainda atravessava, e quanto estava ligado a distorções do movimento mais amplo da cultura da pureza. De qualquer modo, as duas coisas tinham influência, e eu tinha muito para resolver. Com o apoio de meus pais e através de inúmeras conversas com meu pastor do ministério de jovens e sua esposa, comecei a separar o joio do trigo, e passei muito tempo livrando as pepitas bíblicas da cultura da pureza dos nós de uma exegese pobre e de opiniões pessoais.

Também comecei a estudar o que a Bíblia dizia sobre casamento e sexo no contexto de toda a história das Escrituras. O que encontrei ali foi desanimador a princípio, mas libertador no final. Não havia promessa nas Escrituras de que bastava eu seguir uma ética sexual cristã que encontraria um marido, me casaria com ele e teríamos filhos. Fui compelida a levar em conta o fato de que a solteirice era uma possibilidade bem real para a vida (e não apenas uma fase) e que Deus a chamava de boa. E descobri que as Escrituras me chamavam à pureza não como um meio para um fim (no caso, o casamento), mas sim como algo intrinsecamente bom — como um fim em si mesmo, ou seja, para meu florescimento e bem-estar. Também percebi que, mesmo que me casasse, obedecer aos mandamentos de Deus não me garantiria felicidade sexual ou conjugal perfeita.

No fim, uma verdade central ficou clara para mim. Tanto a cultura da pureza quanto a cultura da libertinagem seguida no campus da minha universidade — embora ambas defendessem comportamentos muito diferentes — sofriam exatamente do mesmo problema: ambas colocavam o sexo e os relacionamentos românticos no centro do palco e davam a impressão de que essas duas coisas eram essenciais para a verdadeira realização. Tanto a cultura da pureza quanto a cultura do sexo casual me diziam que relações sexuais e relacionamentos românticos satisfariam minha solidão. E, a esse respeito, Deus me dizia: “Não é verdade. Eu tenho algo melhor.”

Na imensa solidão daquele meu primeiro ano, as coisas começaram a mudar não quando comecei a namorar um rapaz (algo que acabou em um rompimento), mas quando comecei a “viver em comunidade” com o povo de Deus.

O estudo bíblico de que eu participava, que a princípio parecia ser “algo para fazer na quarta-feira”, tornou-se um marco na minha semana. Quando voltei para o campus, depois dos feriados de fim do ano, um dos jovens que participava daquele estudo bíblico convidou a mim e a mais alguns jovens a irmos ao apartamento dele para cozinhar e jantar juntos. Esses jantares tornaram-se um acontecimento regular ao longo do semestre, e uma tradição semanal no ano seguinte. Depois que ele se formou, minha colega de quarto e eu demos continuidade à tradição e recebíamos pessoas para jantar todas as quintas-feiras à noite.

Esses jantares eram simplesmente fruto da rica comunidade que encontrei entre o povo de Deus. Nós nos inspiramos na visão de Atos 4 — da igreja primitiva, na qual todos adoravam juntos e viviam uns com os outros — e refletimos sobre o que isso podia significar para nós, em um campus universitário, em pleno século 21.

Durante esse tempo, eu ainda esperava casar. Mas já não ficava sentada, esperando que isso acontecesse, e esse desejo não me paralisava mais.

Em seu artigo sobre o chamado para a falta de filhos, Karen Swallow Prior escreve: “Por muitos anos, meu desejo era ser mãe. Meu desejo agora é ser a mulher que Deus me chama para ser. Nada mais. E nada menos.” Essa é a história dos meus anos como jovem adulta. Meu anseio mais profundo costumava ser a vida que o namoro me prometia, mas, então, um desejo diferente tomou conta de mim: eu queria ser a mulher que Deus me chamou para ser, nada mais e nada menos. Na faculdade, enfrentei o fato de que meu chamado talvez não incluísse o casamento. Mas meu chamado sempre inclui a condição de amar e viver entre o povo de Deus.

Minha vida mudou, desde que entrei na Purdue University, há uma década. Há muito me distanciei da cultura da pureza, que era um evangelho da prosperidade em uma nova roupagem, como escreve Katelyn Beaty. Hoje, sou uma mulher à beira dos 30 anos, casada há cinco anos, com uma filha de sete meses. Considero meu marido e minha filha duas das maiores bênçãos e agradeço a Deus por eles. Mas eles não são o prêmio da minha vida, nem são uma recompensa pelo meu bom comportamento. Eles não foram criados para suportar o peso de me conhecer e me amar do jeito que espero ser amada e conhecida pelas pessoas em minha vida. Só Deus pode carregar esse fardo.

Embora tenha levado anos para eu aprender essa lição, sei profundamente que não estou me apegando à minha fé tanto quanto ela se apega a mim. E esse “apegar” significa derramar minha vida na comunidade de Deus e, por sua vez, permitir que eles venham ao meu encontro, me amem, trabalhem ao meu lado e se sentem comigo em meio a tempos difíceis e angustiantes.Sou dia a dia relembrada de que, embora nem sempre tenhamos respostas claras para tudo, temos um Salvador que entra em nossa solidão e em nossa dor, senta-se conosco e promete restaurar todas as coisas.

Na obra Eu disse adeus ao namoro, Joshua Harris escreveu: “O mundo nos põe diante de uma tela dourada, na qual passam imagens tremulantes de paixão e romance, e enquanto as assistimos, o mundo diz: ‘Isto é amor.’ Deus nos põe aos pés de uma cruz, na qual um homem nu e ensanguentado está pendurado, e diz: ‘Isto é amor’”.

Embora Harris não seja mais cristão, ainda acredito no que ele um dia acreditou: o verdadeiro amor vem na Encarnação, quando Jesus entrou em nosso mundo de sofrimento para fazer novas todas as coisas. Ao olhar para o homem nu e ensanguentado na cruz, vejo alguém que me amou tanto que morreu para que pudesse me chamar de filha. Ele nunca me prometeu casamento. Mas, quando me chama de filha, ele me introduz em uma nova família — o corpo de Cristo — que me ama e vem ao meu encontro na minha mais profunda solidão.

Abigail Murrish mora em Norwood, Ohio, onde trabalha para sua igreja e é curadora da newsletter “Given Appetites”. Você pode assinar sua newsletter e encontrá-la on-line em abigailmurrish.com.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Ame a sua igreja com suas limitações

Entenda por que aceitar as deficiências de uma congregação é fundamental para desenvolver seus pontos fortes.

Christianity Today April 25, 2022
Illustration by Michael Marsicano

A igreja pode ser algo muito decepcionante. Queremos que ela seja saudável e vibrante, que cresça e seja missionária, fiel e generosa; muitas vezes, porém, o que vemos em nossas congregações locais são mais problemas do que triunfos, mais medo do que coragem e mais fraqueza do que força. Nem sempre somos um grupo dos mais atraentes.

Quando olhamos para além dos muros de nossa igreja, tantas são as necessidades que vemos em nossas comunidades e no mundo como um todo: queremos cuidar dos pobres, proclamar o evangelho, combater a injustiça, dar apoio a famílias em dificuldades — a lista é interminável. Nossa imaginação fica entusiasmada diante do que a igreja pode realizar, mas, em seguida, muitas vezes nos sentimos decepcionados com o quanto nossa obra é escassa na realidade. Será que estamos destinados a nos sentir eternamente desapontados com nossas igrejas?

Toda igreja tem limitações e desafios: é moldada por aspectos como localização física, finanças, redes de contato restritas e sua história. A longa pandemia da COVID-19 aumentou as dificuldades para muitas congregações, resultando em menos envolvimento na igreja e mais desafios na área de saúde mental, menos conexão relacional e mais polarização política.

Se formos honestos, isso pode nos deixar sem esperança. Mas e se, em vez de olharmos para as limitações de uma igreja como meros obstáculos, começarmos a vê-las como sinais da obra e da promessa de Deus? E se reconhecer nossas limitações pudesse fomentar amor, uma comunidade real e uma missão saudável? Eu gostaria de viver isso. Três princípios podem nos ajudar a evitar o romantismo, nos libertar para ver a obra mais ampla de Deus e nos fundamentar em suas promessas.

Realidade vs. romantismo

Reconhecer as limitações de nossa igreja nos ancora na realidade ao nosso redor e evita ilusões românticas. Há alguns atrás, alguém me contou a história de um homem que tinha namorado muitas mulheres, mas sempre terminava com elas. Uma mulher era brilhante, mas não sabia relaxar. Outra era bonita, mas tinha um senso de humor irritante. Uma terceira tinha uma carreira incrível, mas não compartilhava dos mesmos interesses intelectuais. E assim era. Ele tinha a imagem mental de uma mulher perfeita, mas era uma imagem de alguém super-humano, e não de uma mulher real. Em que resultou sua maneira de pensar? Ele trilhou um caminho de solidão e decepção, em vez de encontrar o amor verdadeiro com uma pessoa real.

Da mesma forma, muitas vezes criamos uma imagem de igreja que é simplesmente impossível. Algumas igrejas têm um louvor incrível ou tem programas impressionantes, e queremos ver isso em nossa igreja. Outras dão aulas de reforço escolar para as crianças do bairro, contribuem para abrigos de sem-tetos ou ajudam desempregados a encontrarem trabalho, e nós também queremos ver isso em nossa igreja. Ouvimos falar de pregadores talentosos, de pastores que sabem se fazer plenamente presentes para os doentes e idosos, e de congregações que têm uma rica diversidade, enquanto a nossa própria congregação não tem algumas ou nenhuma dessas qualidades. Cada igreja local tem sua particularidade concreta no sentido de possuir estas circunstâncias e não aquelas e, consequentemente, de fazer isto, mas não aquilo — e é evidente que nós muitas vezes nos concentramos naquilo [que não temos] e nos sentimos eternamente desapontados.

Na década de 1930, o jovem teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer se dedicava a preparar pastores para o ministério. Eles eram treinados ao mesmo tempo em que levavam uma vida em comunhão e, no processo, Bonhoeffer lhes mostrava como as estruturas sociais afetam a vida da igreja. Por exemplo, uma figura carismática pode levar as pessoas à ação, mas o mau uso da atratividade [desse carisma] pode destruir uma vida comunitária saudável.

Bonhoeffer enfatizava que pouca coisa era mais fatal para uma comunidade de fé do que uma visão romantizada do que era essa vida em comunhão. Ideias não realistas facilmente nos desconectam de nossas comunidades reais. “Aqueles que amam o sonho que têm de uma comunidade cristã mais do que amam a própria comunidade cristã tornam-se destruidores dessa comunidade, ainda que suas intenções pessoais possam ser as mais honestas, sinceras e sacrificais possíveis”, observa Bonhoeffer em Vida em comunhão.

Uma das atitudes mais restauradoras e poderosas que os pastores podem assumir para com suas congregações é apreciar em sua plenitude as pessoas que Deus reuniu ali. Uma vez que é Deus quem lança o fundamento e une seu corpo em Cristo, Bonhoeffer enfatiza: “nós entramos nessa vida em comunhão com outros cristãos não como quem faz exigências, mas como quem recebe com gratidão”. Para alguns, elaborar planos e visões impressionantes é muito mais fácil do que [ouvir] o chamado de Paulo para abrirmos o coração para as pessoas exasperantes ao nosso redor — muito embora abrir o coração seja exatamente o que devemos fazer (2Coríntios 6.11,13). Deus derrama sua graça sobre todos que aparecerem, e nos ensina a ouvir com interesse as histórias uns dos outros, a apoiar uns aos outros em nossas dores e também a descobrir os dons e os sentidos do chamado uns dos outros.

Essas pessoas, que são reunidas aqui e agora por Deus, não vêm cobertas de poder ou de perfeição, mas sim por sua necessidade de adorar a Cristo. E é nesta comunidade que você pode superar modelos hipotéticos de igreja e caminhar em direção a uma vida na qual dá e recebe graça, perdão e amor profundos. Somos um grupo estranho e desconcertante de pessoas que nem sempre se unem naturalmente, mas essa estranheza e esse caráter desconcertante são justamente uma dádiva de Deus, e ignorá-los prejudica a nós e ao nosso povo. Nossas limitações e nossa união são parte do chamado de Deus para servirmos estas pessoas neste lugar, e são uma parte indispensável para que ele nos capacite a fazê-lo.

Capacitados de forma única

Reconhecer as limitações da nossa igreja nos liberta para focar na obra que Deus a capacitou para fazer e, ao mesmo tempo, valorizar a obra mais ampla do reino que Deus está fazendo para além da nossa igreja. Todos nós já vimos crianças que, depois de terem ganhado um presente de Natal, notam o brinquedo que outra criança ganhou e decidem que aquele brinquedo é tudo o que querem. Da mesma forma, todos nós também podemos ficar imaginando quão grandiosa seria a vida se tivéssemos os talentos ou os recursos de outras pessoas ou igrejas. Isso se aplica a nós tanto como indivíduos quanto como grupo. E, quando as coisas se tornam especialmente desafiadoras para os líderes da igreja, pode ser difícil até mesmo enxergar o bem que nos é dado, pois nos sentimos sobrecarregados por dificuldades e decepções. Talvez precisemos de encorajamento para olhar novamente com graça [para nossa igreja].

Como diretora de inovação na organização The Chalmers Center, minha esposa, Tabitha, trabalha com igrejas e organizações cristãs sem fins lucrativos, a fim de ajudá-las a servirem suas comunidades e, em especial, aos materialmente pobres. Um dos princípios que ela ensina é que, em vez de começar um projeto de ministério olhando para o que as pessoas precisam, devemos começar olhando para os dons que uma comunidade ou uma pessoa traz para a situação. Quando um ministério é movido por aquilo que quem o sustenta acredita ser necessário, e não por uma consciência sincera dos recursos reais que as pessoas trazem [para aquela situação], estas geralmente acabam sendo feridas em vez de ajudadas.

Todas as pessoas — sejam elas ricas ou pobres, instruídas ou não, membros de igrejas grandes ou pequenas — todas têm dons. O objetivo é descobrir o que Deus deu em particular para esse grupo específico de pessoas, como ele o capacitou, e então nutrir e empregar esses dons para o serviço no reino de Deus.

Por exemplo, uma igreja com a qual Tabitha trabalhou queria acabar com a fome infantil em sua cidade — um desejo legítimo e que honra a Deus —; uma avaliação mais atenta, porém, mostrou que a congregação ainda não tinha as habilidades nem os conhecimentos necessários para esse ministério. Isso pode parecer decepcionante, mas para esta igreja não foi. A avaliação acabou liberando-os para virem a buscar uma obra mais adequada a seus dons e habilidades: uma creche, ministério em que eram bastante eficazes. Também liberou pessoas na congregação para buscarem, fora da estrutura do ministério da própria igreja, maneiras de combater a fome infantil. Algumas dessas pessoas se ofereceram para trabalhar como voluntárias em outras organizações sem fins lucrativos locais que já estavam atendendo a essa necessidade.

Todas as igrejas podem abençoar seus membros em oração e enviá-los para trabalhar com grupos e ministérios que estejam capacitados de maneira que uma igreja local em particular pode não estar. Dessa forma, amar a igreja levando em conta suas limitações espalha esse amor para além de seus muros. Qual é a situação de sua igreja local? Antes de se desesperar, tente ver seus ativos, bem como suas limitações. Aprenda a florescer dentro do espaço que Deus lhe deu, antes de tentar criar um novo espaço em outro lugar.

Deus conhece todas as necessidades de sua igreja e do mundo. E ele sabe que nenhum indivíduo e nenhuma congregação local podem atender a todas essas necessidades. Deus não está em pânico nem desapontado por este fato. Ele criou cada um de nós para dependermos dele, dos outros e da Terra. Somente quando enxergamos nosso lugar dentro dessa obra muito mais ampla de Deus conseguiremos passar do desapontamento com nossas igrejas locais para um sentimento de alegria e gratidão pelas contribuições que podemos fazemos.

Ignorar as limitações da nossa igreja pode nos levar a tentar desenvolver ministérios que não atendam nem às necessidades genuínas nem às nossas habilidades, e, assim, perderemos o que Deus está fazendo. Amar nossa igreja dentro de suas limitações, reconhecendo suas qualidades e fraquezas, permite que seus membros sirvam em comunhão, sem se sentirem desapontados por não poderem ser tudo para todos.

A igreja é de Deus

Reconhecer as limitações da nossa igreja nos lembra que Deus assume a responsabilidade por seu povo. Especialmente para aqueles de nós que ocupam funções de liderança dos mais diversos tipos na igreja, é fácil sentir o peso da congregação sobre nossos ombros. Embora digamos que Deus ama sua igreja, nossas vidas muitas vezes demonstram que sentimos que somos nós, e não Deus, quem carrega a responsabilidade por sua sobrevivência. Essa falsa crença pode surgir por muitas razões, como épocas em que nossas orações sinceras parecem não obter resposta, ou quando vemos todo o trabalho que precisa ser feito e que ninguém mais se dispõe a fazê-lo. Continuamos fazendo mais e mais, e somos pouco a pouco esmagados por um peso crescente.

Em nosso desânimo, podemos chegar a pensar se Deus está de fato distante e despreocupado, aparecendo apenas ocasionalmente para grandes eventos ou emergências, como se ele nos tivesse dado as chaves do carro e depois desaparecido. Nossas instruções? Não bata o carro, continue dirigindo. No começo, adoramos a alegria de dirigir, mas o custo dos consertos e do combustível logo nos sobrecarrega. Nós olhamos ao redor e não vemos Deus; então, continuamos tentando consertar o carro nós mesmos, esperando que Deus um dia volte para buscá-lo e não se zangue muito conosco.

No entanto, no fundo, sabemos que a verdade é esta: a igreja é aquilo que Deus faz, não o que nós fazemos. Sim, Deus nos dá dons e energia para empregarmos com liberdade e vigor. Deus nos chamou para servir, e o que fazemos é importante. Mas, como aponta Bonhoeffer, essa atividade requer uma base mais profunda: “A comunidade cristã não é um ideal que devemos concretizar, mas sim uma realidade criada por Deus em Cristo da qual podemos participar”.

Bonhoeffer, com essas palavras, rejeitou a tentação que muitas vezes experimentamos: a de imaginar que somos os únicos responsáveis por criar a igreja, por fazê-la crescer e mantê-la. O reino de Deus é uma dádiva (Lucas 12.32). A igreja, o ajuntamento do povo de Deus que adora o Rei Jesus, é uma dádiva de Deus da qual participamos, e não um movimento que podemos iniciar ou sustentar à base de nosso próprio poder.

Ao contrário dos grupos de CrossFit ou dos clubes de jardinagem ou de qualquer outra organização criada para atrair tipos de personalidade semelhantes, a igreja reúne pessoas que muitas vezes não se uniriam naturalmente. Do ponto de vista sociológico, isso parece uma enorme desvantagem, mas do ponto de vista teológico, é um belo presente. Deus nos ajunta, com todas as nossas diferenças, e nos une somente pela graça do Senhor Jesus Cristo, na comunhão do Espírito e no amor do Pai. É Deus quem chama e sustenta seu povo; é ele quem cuida de seu povo.

O que une a igreja não é a boa vontade dos crentes nem uma visão compartilhada, mas sim o Espírito de Cristo. Nós não geramos a igreja; antes, somos libertados para dela participar com alegria. Ainda assim, tendemos a esquecer de algo: esta é a igreja de Cristo. Por mais que amemos o povo de Deus, ele os ama mais. Ele nos ama mais. Deus está mais comprometido com a vida e a saúde de sua igreja do que nós jamais poderíamos estar. Somente quando bebemos profundamente dessa verdade, nossa vida em comunhão pode ser movida por alegria e esperança, e não por frustrações ou manipulações.

Não é a nossa força, nem a nossa determinação, nem a nossa visão o que une a nossa igreja — isso é obra de Deus. O Espírito de Deus produz seu fruto entre seu povo — um fruto que nos é dado para ser usufruído, especialmente por aqueles famintos de amor, alegria, paz, paciência, benignidade, mansidão, bondade e verdade. Considerar a natureza da igreja, a de ser guiada pelo Espírito, nos capacita a reconhecer quando Deus fecha as portas ou nos lembra que só podemos fazer aquele tanto, e que está tudo bem. Jesus promete nos encontrar em seu povo imperfeito, e por meio desse povo.

Amor ilimitado

Amar nossa igreja local dentro de suas limitações exige que resistamos à tentação de idealizar nossa comunidade, mas, em vez disso, abracemos as pessoas que Deus nos trouxe. Amamos a Jesus em nossos irmãos e por meio de nossos irmãos, e não apesar deles. E isso nos permite ver nossa própria congregação especificamente como uma pequena parte da obra universal muito mais ampla de Deus. Assim, somos livres para ver outras igrejas e outros grupos de cristãos não como ameaças ou concorrentes, mas como colaboradores com os quais podemos nos alegrar.

Deus ama sua igreja e promete amar o mundo por meio de um grupo inexpressivo de pecadores que se curvam diante do Rei ressurreto. Nossa confiança não está em nossa fidelidade, mas sim na dele. Deus conhece nossas limitações muito melhor do que nós, portanto, se soubermos amar os outros, com nossas limitações e tudo o mais, participaremos da obra de Deus sem sermos esmagados por ela. Que Deus nos ajude a amar a igreja real e local da qual fazemos parte, porque tanto ela quanto nós pertencemos a ele.

Kelly M. Kapic é professor de estudos teológicos no Covenant College e atua como presbítero na Lookout Mountain Presbyterian Church, na Geórgia. Ele é o autor de vários livros, incluindo You’re Only Human: How Your Limits Reflect God’s Design and Why That’s Good News .

Este artigo é parte de nossa edição especial de primavera da CT para pastores, que explora o tema saúde da igreja. Você pode encontrar a edição completa aqui.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Para lidar com as críticas, os pastores não precisam de uma “casca” mais grossa

Já parou para pensar nisto: E se a solução para as críticas dolorosas for incentivar mais feedback, e não menos?

Christianity Today April 14, 2022
Ilustração por Anson Chan

Desde os primeiros dias no ministério, me disseram que, quando se trata de crítica, eu só tinha de desenvolver uma “casca” mais grossa. A implicação é que, se pastores conseguissem desenvolver essa casca, poderiam resistir melhor à dor aguda dos feedback negativos, da mesma maneira que uma pele mais grossa consegue resistir à perfuração de espinhos afiados. A dor não consegue ser tão profunda se a grossura da pele a mantiver à distância.

Hoje, com 16 anos de ministério, cheguei à conclusão de que essa casca mais grossa é algo que não existe. O problema com a metáfora da casca mais grossa é que ela oferece apenas duas opções: (1) Ou endurecermos para evitar a dor da crítica, (2) Ou permanecermos abertos à crítica e sermos destruídos por ela. A primeira opção é uma espécie de casca mais grossa que nos torna pouco receptivos a todas as formas de feedback, incluindo as críticas saudáveis e construtivas. A segunda opção significa nos submetermos a um ataque incessante de críticas, o que inevitavelmente leva ao esgotamento ou ao desespero. Eu tentei manter essa “casca mais grossa” por anos. Nunca funcionou, e duvido que algum dia funcionará. Certamente deve haver uma maneira melhor.

Sob ataque

Minha jornada para lidar com críticas dolorosas começou há cerca de uma década, quando fiz parte da transição, em uma comunidade de fé, de um estilo mais tradicional de adoração musical para um formato mais moderno. Essa mudança dramática — que incluiu mudanças esperadas como som mais alto, modernização na iluminação e na produção e, sim, máquinas de fumaça — foi bem recebida por alguns e considerada frustrante para outros. Foi o tipo de mudança que gerou, para os pastores, níveis de privação de sono semelhantes aos de pais de recém-nascidos. E gerou também alguns comentários nada surpreendentes: O som está alto demais. As músicas são desconhecidas. A equipe de louvor está muito “modernosa ”.

Mas o que foi realmente doloroso foram os momentos em que as críticas se transformaram em ataques ao caráter das pessoas ou à sua fidelidade a Deus. Para alguns dos que estavam descontentes não bastava discordar — seus comentários tinham de ser subscritos com justificativas pseudoteológicas.

Fomos confrontados com uma questão desafiadora: como liderar uma igreja ao longo de uma mudança dramática, de maneira a honrar as vozes daqueles mais afetados por ela e honrar a visão que Deus nos deu? É uma questão crucial que se relaciona com muitas situações que os pastores enfrentam: Como ouvirmos as críticas e ainda mantermos a convicção? Como discernimos comentários legítimos de reatividade? O que é necessário para criar na igreja uma cultura saudável em torno de críticas e feedbacks?

Nessa transição do estilo de adoração comecei uma jornada que me levou a descobrir que a resposta para todas essas perguntas, na verdade, envolve receber mais feedbacks e ouvir mais críticas, e não menos. Pela primeira vez, comecei a entender que lidar bem com as críticas tinha menos a ver com desenvolver uma casca mais grossa, e muito mais a ver com a estrutura e os ritmos de nossa igreja que favorecessem um feedback saudável.

Feedback vindo do rebanho

Todos nós temos em nossas igrejas aquelas vozes críticas que tememos encontrar, pois parecem ter sempre um “feedback” para nós. O pastor e treinador de líderes, Steve Cuss, se refere a esse tipo de pessoa como os “questionadores de sempre”. Não podemos dizer que não queremos ouvir seu feedback, porque pareceríamos inacessíveis ou arrogantes, mas sempre nos sentimos pior depois de conversar com eles.

Enquanto isso, outras pessoas em nossas comunidades geralmente evitam conflitos e se sentem desconfortáveis em falar sobre suas preocupações. Esses indivíduos precisam se sentir muito incomodados, antes de ficarem dispostos a falar — e então, quando começam a dar feedbacks, nos deparamos com o final explosivo de um ano inteiro de frustração reprimida! A essa altura, sem que estivéssemos cientes disso, o relacionamento provavelmente já se desgastou tanto que é quase impossível de se recuperar.

A boa notícia é que desenvolver hábitos e ritmos bons de feedback em nossas igrejas pode ajudar com esses dois desafios. No primeiro caso, pode fornecer um canal para as vozes críticas em nossas congregações. Isso protege os pastores de serem pegos de surpresa pelas críticas, e nos fornece um contexto específico em que possamos estar mental e emocionalmente preparados para recebê-las. E, no segundo caso, esses canais se tornam um convite e um sistema compensatório natural para se compartilhar feedbacks, antes que cheguem a um nível explosivo.

Quando criamos vários canais de feedback e fazemos dessa espécie de via de mão dupla uma coisa normal, não estamos apenas criando um sistema — estamos comunicando uma postura de humildade. Isso incentiva os congregantes a darem feedback antes que o relacionamento sofra, e permite que os líderes da igreja se beneficiem da sabedoria de sua comunidade. Embora certamente existam algumas exceções, a maioria dos feedbacks começa como um desejo de fortalecer algo de que esses indivíduos já gostam de fazer parte, e não como um desejo de destruir algo que eles não querem mais que exista. Ritmos de feedback consistentes e saudáveis nas igrejas permitem que os pastores respondam pessoalmente melhor às críticas e que as congregações se beneficiem organizacionalmente.

Sessões de escuta

Ao longo de todos os desafios de 2020, nós, como muitas igrejas, nos encontramos enfrentando conflitos dolorosos. Várias pessoas próximas a mim decidiram deixar nossa igreja ou se sentiram intensamente frustradas. Muitas vieram falar de suas preocupações diretamente comigo — o que foi preferível, embora também mais doloroso. Era fácil sentir-se incompreendido ou sentir que os outros não reconheciam o desafio daquele momento para os líderes da igreja. No entanto, refletindo sobre essas conversas, vimos que o denominador comum era a sensação das pessoas de não se sentirem ouvidas em nossa igreja; portanto, elas não se sentiam em casa em nossa igreja.

Uma das características da boa escuta é a capacidade de manter o foco na pessoa que está vocalizando sua perspectiva. O desafio de receber críticas é o impulso instintivo de voltar o foco para nós, geralmente tentando nos defender. Na igreja (e nos relacionamentos em geral), as conversas que envolvem feedback acabam mal não apenas porque as pessoas saem sentindo que discordamos delas, mas porque saem sentindo que não foram ouvidas. Fazer com que as pessoas se sintam ouvidas está diretamente relacionado à nossa capacidade de receber — isto é, de ouvir verdadeiramente — um feedback. À luz disso, a advertência de Tiago exige um alto nível de inteligência relacional: “Sejam todos prontos para ouvir, tardios para falar e tardios para irar-se” (Tiago 1.19).

Como fruto do estudo de recursos e técnicas para ouvir bem, nossa igreja desenvolveu sessões de escuta, nas quais os líderes da igreja se sentavam com membros de nossa comunidade, e nosso único papel era fazer perguntas sobre tópicos controversos e, depois, ouvir e tomar notas. Não estávamos lá para desafiar, questionar, criticar nem mesmo responder. Simplesmente ouvíamos e fazíamos perguntas para esclarecer o assunto, na tentativa de comunicar nosso desejo de ouvir. Achamos essas sessões extremamente úteis para criar espaço para as pessoas comunicarem suas perspectivas sobre uma série de assuntos, e para que nós, como equipe de líderes da igreja, crescêssemos na habilidade da escuta não defensiva.

Reuniões que pulam níveis na hierarquia

Ouvi falar pela primeira vez de reuniões que pulam níveis na hierarquia no The Andy Stanley Leadership Podcast. Essencialmente, são conversas sobre feedback em que os líderes que ocupam determinado nível hieráquico em uma organização pulam um ou mais níveis de liderança para baixo deles, com o intuito de coletar informações. Em nossa igreja, os presbíteros estão acima de mim hierarquicamente; assim, eles me “pulam” e buscam informações de membros da equipe que se reportam diretamente a mim. Essas conversas são usadas para coletar feedback sobre a cultura e a experiência da equipe, inclusive sobre questões relacionadas a como posso servir e liderar melhor minha equipe, quais as áreas que carecem de mais clareza, desafios únicos que eles estejam enfrentando e qualquer outra coisa que os presbíteros possam achar útil para servir nossa equipe e a igreja .

Essas reuniões que pulam níveis na hierarquia permitem que os presbíteros alcancem duas coisas: primeiro, eles são capazes de obter feedback mais franco e honesto de cada membro da equipe (porque a pessoa não está sendo solicitada a dar feedback diretamente a seu chefe). Em segundo lugar, os presbíteros podem ouvir o feedback à medida que é dado, e não através do meu filtro interpretativo. Depois de várias reuniões que pulam níveis na hierarquia, os presbíteros pegam as informações coletadas, extraem as áreas em que preciso crescer e as relatam para mim (preservando o anonimato). Esse processo libera os membros da equipe da preocupação de como seu feedback afetará nosso relacionamento ou colocará em risco seus empregos. Também me liberta para ouvir o feedback através do filtro de como posso melhorar, e não de “O que essa pessoa pensa sobre mim?”

Mas a maior recompensa de todas é a cultural. Essa ferramenta de feedback ajuda os membros da equipe a sentirem que suas perspectivas são valorizadas e bem-vindas, que têm voz e têm um meio para comunicar suas necessidades ou preocupações.

Essas reuniões que pulam níveis na hierarquia foram extremamente benéficas, à medida que voltamos aos cultos presenciais semanais, em 2021. Nossa igreja estava perdendo muitos voluntários no início desse processo; então, iniciei algumas reuniões que pulavam níveis na hierarquia, e me reuni diretamente com os voluntários, para entender o porquê disso. No feedback que coletei tanto dos voluntários que desistiram quanto dos que ainda estavam servindo, as frustrações que eles compartilharam variaram, e iam desde desorganização de suprimentos, falta de planejamento antecipado e uso excessivo das mesmas pessoas repetidamente (devido à falta de voluntários), a treinamento insuficiente, comunicação inconsistente e uma experiência caótica e apressada como igreja móvel.

A partir dessas conversas, conseguimos depurar as prioridades mais importantes e montar um plano de ação para melhorar a experiência dos nossos voluntários. Mais importante, porém, é o que foi comunicado a eles durante o processo: estamos ouvindo, nos preocupamos com sua experiência e estamos trabalhando para melhorá-la.

Avaliações trimestrais

Uma terceira ferramenta que usei para coletar feedback foram as avaliações trimestrais. Como não queríamos criar uma cultura em que o valor de uma pessoa estivesse diretamente atrelado ao seu desempenho, nossa equipe a princípio resistiu a essas ferramentas. No entanto, à medida que percebi a necessidade de receber um feedback melhor, reconsiderei as avaliações e, desde então, as tornamos parte do ritmo de nossa equipe, mas com algumas modificações cruciais.

Primeiro, e mais importante, em uma cultura de feedback com ritmos saudáveis, sei que é crucial que eu mesmo seja submetido a uma avaliação (e não só os outros membros da equipe). Em segundo lugar, incorporamos uma autoavaliação como parte do processo. Acho isso muito útil no meu ministério pastoral. Na autoavaliação, respondo as mesmas perguntas sobre mim que nossos presbíteros (meus chefes) responderão sobre mim. Isso infunde um pouco de humildade em todo o processo — pois, se eu for honesto comigo mesmo, sei que não é realista esperar obter notas ideais em tudo. A autoavaliação prepara o caminho para que, quando nos reunirmos para uma conversa, eu já tenha pensado sobre as áreas pessoais nas quais posso melhorar, e também esteja com uma postura de humildade para receber feedbacks. Isso torna essas conversas bem menos pessoais e bem mais construtivas.

Mais, não menos

O segredo para lidar com um feedback negativo não é tentar desenvolver uma lendária casca que seja impermeável à perfuração emocional das críticas. É absurdo pensar que nós, pastores, poderíamos de alguma forma receber comentários negativos sobre nós, nosso desempenho ou nossa liderança e jamais ficarmos pessoalmente magoados com eles. Essa é uma mentira que de alguma forma perpetuamos sem cessar, simplesmente porque soa bem. Mas é hora de reconhecer a verdade: a tal “casca mais grossa” é um mito.

Por mais tentador que possa parecer, o segredo para lidar com críticas, como pastores, não é evitá-las nem ouvi-las menos. O segredo para lidar bem com as críticas é criar canais e práticas que permitam mais críticas, mas de maneira mais saudável. É claro que isso não removerá inteiramente o aguilhão da crítica e não removerá o espírito crítico de algum indivíduo de nosso rebanho. Mas as ferramentas de feedback saudáveis fornecem caminhos menos pessoais para que essa comunicação ocorra, a fim de que nós, como líderes, possamos permanecer humildes, abertos ao ensino e receptivos a conselhos sábios, sem sermos destruídos pelos golpes emocionais que geralmente acompanham um feedback.

Ike Miller é o autor de Seeing by the Light e pastor sênior da Bright City Church, em Durham, na Carolina do Norte. Ele tem doutorado em teologia pela Trinity Evangelical Divinity School.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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Quando você se sentir pequeno, olhe para o cosmo e para a cruz

Em tempos de dúvida, retomo a “visão de quem olha para Deus através do telescópio Hubble”.

Campo extremo e profundo visto através do Hubble.

Campo extremo e profundo visto através do Hubble.

Christianity Today April 14, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons

Aqui onde moro, nas Montanhas Rochosas, é possível enxergar milhares de estrelas a olho nu, em uma noite clara. Todas elas pertencem à Via Láctea, que contém mais de 100 bilhões de estrelas, incluindo uma de tamanho médio, em torno da qual nosso planeta Terra orbita — o Sol.

Nossa galáxia tem muito espaço: 26 trilhões de milhas separam o Sol da estrela mais próxima dele. Se você viajasse na velocidade da luz, levaria 25 mil anos para chegar ao centro da Via Láctea, a partir do nosso planeta natal, que fica nas margens da galáxia.

Até um século atrás, os astrônomos acreditavam que o universo consistia apenas em nossa galáxia. Então, na década de 1920, Edwin Hubble provou que uma aparente nuvem de poeira e gás no céu noturno, chamada Andrômeda, era na verdade uma galáxia separada. Agora eram duas as galáxias. Quando a NASA lançou um grande telescópio no espaço para ter uma visão mais clara, eles, de forma bastante apropriada, resolveram chamá-lo de Hubble.

Em 1995, um cientista propôs apontar o Telescópio Espacial Hubble para um ponto escuro, do tamanho de um grão de areia, para ver o que havia além da escuridão. Por dez dias, o telescópio orbitou a Terra e tirou imagens de longa exposição daquele local. O resultado, que foi chamado de “a imagem mais importante já tirada”, surpreenderia a todos. Descobriu-se que apenas aquele pequeno ponto continha quase 3 mil galáxias!

Nos anos posteriores, o Hubble revisitou o mesmo local com equipamentos mais sofisticados, e identificou muito mais galáxias a cada avanço [nos equipamentos]. Os astrônomos mapearam o Campo Profundo, o Campo Ultra Profundo, o Campo Extremamente Profundo e o Campo de fronteiras. Tendo atingido os limites da luz visível — e talvez por ficarem sem títulos para as façanhas do Hubble —, eles recentemente passaram a tarefa para um telescópio novo e mais potente. O Telescópio Espacial James Webb, lançado no último dia de Natal, poderá detectar ainda mais galáxias usando câmeras infravermelhas.

Os cientistas agora acreditam que, se tivéssemos uma visão ilimitada, poderíamos segurar uma agulha de costura à distância de um braço, voltada em direção ao céu noturno, e vermos 10 mil galáxias pelo buraco dessa agulha. Se a movêssemos cerca de dois centímetros e meio para a esquerda, encontraríamos outras 10 mil galáxias. Se a movêssemos o mesmo tanto para a direita, ou para onde quer que a movêssemos, encontraríamos outro número igual de galáxias. Existem aproximadamente um trilhão de galáxias no universo, e cada uma contém em média de 100 a 200 bilhões de estrelas.

Nos anos que se seguiram a essas descobertas, nossa casa — esse ponto azul pálido chamado Terra — não parou de encolher em estatura comparativa. Agora, descobriu-se que é um planeta de tamanho médio que orbita em torno de uma estrela de média grandeza, em uma galáxia entre um trilhão de galáxias.

Como devemos nos adaptar a essa nova e humilhante realidade?

No tempo em que as pessoas supunham que o universo era composto por alguns milhares de estrelas, um salmista se maravilhava em oração,

Quando contemplo os teus céus,
obra dos teus dedos,
a lua e as estrelas que ali firmaste, pergunto:
Que é o homem, para que com ele te importes?
E o filho do homem, para que com ele te preocupes? (Salmos 8.3-4)

A questão expandiu-se exponencialmente desde os dias de Davi. Eu tento envolver minha mente em torno do que chamo de “visão de quem olha para Deus através do telescópio Hubble”. Como aquele que gerou um trilhão de galáxias poderia se importar com o que acontece em nosso planeta infinitesimal?

Então, eu me volto para o Livro de Jó, onde um pobre e acuado Jó inverte a pergunta do salmista:

“Que é o homem,
para que lhe dês importância e atenção,
para que o examines a cada manhã e o proves a cada instante?
Nunca desviarás de mim o teu olhar?
Nunca me deixarás a sós, nem por um instante? (7.17-19)

Jó recebe uma resposta direta de Deus, que fala com ele do meio de uma tempestade. Jó havia guardado uma longa lista de perguntas — mas é Deus quem começa o interrogatório, não Jó. “Cinja os lombos como homem”, Deus começa a dizer. E prossegue: “pois eu lhe farei perguntas, e você me responderá” (Jó 38.3, NAA).

Ao ler este que é o discurso mais longo de Deus na Bíblia, posso ouvir Deus dizendo : Vamos comparar nossos currículos, você e eu, e eu começo, Jó. Frederick Buechner sintetiza desta forma: “Deus não explica. Ele explode. Deus pergunta a Jó quem ele pensa que é. E diz que tentar explicar o tipo de coisas que Jó quer que sejam explicadas seria como tentar explicar Einstein para um molusco de pescoço curto”. Deus não precisa do conselho de Jó, nem de qualquer outra pessoa, sobre como administrar o universo.

Deixando de lado 35 capítulos de debates sobre o problema do sofrimento, Deus mergulha em um poema deslumbrante sobre as muitas maravilhas do mundo natural. Deus aponta, uma a uma, as obras da criação que trazem sublime satisfação.

Em outras palavras, Deus pergunta a Jó: Você gostaria de dirigir o universo por um tempo? Vá em frente, tente criar um avestruz, ou uma cabra da montanha, ou até mesmo um floco de neve. Deus até faz referência à astronomia: “Você pode amarrar as lindas Plêiades? Pode afrouxar as cordas do Órion? Pode fazer surgir no tempo certo as constelações ou fazer sair a Ursa com os seus filhotes?” (Jó 38.31-32).

Jó teve uma aula detalhada sobre quão insignificantes nós, seres humanos, somos, quando comparados ao Deus do universo, e isso silenciou todas as suas dúvidas e reclamações. Eu nunca passei por nada parecido com as dificuldades que Jó suportou, mas sempre que tenho minhas próprias dúvidas, tento me lembrar dessa perspectiva — dessa “visão de quem olha para Deus através do telescópio Hubble”. Nas palavras de um musical da Broadway que ecoa o discurso de Deus a Jó: “Seus braços [são] muito curtos para lutar com Deus”.

Em meus momentos menos egocêntricos, porém, recorro a uma passagem muito diferente da Bíblia.

Em sua carta aos filipenses, o apóstolo Paulo cita o que muitos acreditam ser um hino da igreja primitiva. Em um parágrafo imponente e lírico, Paulo se maravilha com o fato de Jesus ter desistido de toda a glória do céu para assumir a forma de homem — e não apenas de homem, mas de servo — de alguém que voluntariamente se submeteu a uma morte ignominiosa na cruz (Filipenses 2.6-7).

Então, paro e reflito sobre o mistério da Encarnação. Em um ato de humildade que vai além da nossa compreensão, o Deus de um trilhão de galáxias escolheu “con-descender” — descer para estar — com seres humanos ignorantes neste planeta rebelde, dentre bilhões no universo. Eu hesito em fazer analogias, mas é algo semelhante a um ser humano se tornar uma formiga ou talvez uma ameba, ou mesmo uma bactéria.

No entanto, de acordo com Paulo, esse ato de condescendência provou ser uma missão de resgate que levou à cura de algo no universo que havia se partido. Como diz a passagem:

Por isso Deus o exaltou à mais alta posição
e lhe deu o nome que está acima de todo nome,
para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho,
no céu, na terra e debaixo da terra,
e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor,
para a glória de Deus Pai. (Filipenses 2.9-11)

Ouvimos o rugir de Deus no final do Livro de Jó, uma voz que inspira temor e admiração mais do que intimidade e amor. No entanto, Filipenses 2 dá uma perpectiva diferente a essa “visão de quem olha para Deus através do telescópio Hubble”. Ela nos dá a visão de um Deus que está além dos limites do tempo e do espaço, mas tem uma capacidade ilimitada de amor por suas criações, não importa quão pequenas ou rebeldes sejam.

E, curiosamente, essa mensagem é mais bem expressa não por meio de uma tempestade, ou de uma sarça ardente, ou de uma montanha fumegante, mas de pessoa para pessoa, por meio de Jesus e de seus seguidores.

Philip Yancey é autor de muitos livros, incluindo, mais recentemente, o livro de memórias Where the Light Fell.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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O crescimento dos “hesitantes” nas igrejas evangélicas

Ao contrário dos “sem religião” e dos “desiludidos”, muitos cristãos nas adjacências querem retornar à uma igreja local, mas sentem dificuldade.

Christianity Today April 8, 2022
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Jonathan Perez / Pexels / Raw Pixel / Priscilladu Preez / Stefan Spassov / Unsplash

Pela primeira vez em meus quase 40 anos, eu não pertenço a uma igreja local.

Todos os domingos acordo com o desejo de me reunir em torno de cânticos, das Escrituras e dos demais elementos sagrados comuns a esse dia da semana. Na maioria dessas manhãs, minha esposa e eu caminhamos até uma casa de repouso para idosos para celebrar e ter comunhão com uns poucos fiéis, muitas vezes esquecidos até por seus familiares e amigos.

Este ano, minha esposa e eu queremos plantar uma igreja nos arredores de Chicago, mas muitas vezes fico me perguntando: Onde nos encaixamos em tudo isso?

Recentemente, eu estava lamentando esse período de pandemia com um amigo. Ele ecoou meu sentimento, dizendo: “Também estou vagando sem igreja. Não é o ideal, mas é desse jeito que as coisas são”. O que compartilhamos não teve maior importância, uma vez que não passávamos de dois amigos se consolando em meio a esse purgatório eclesiástico. Mais tarde naquela semana, ouvi pensamentos semelhantes serem repetidos por meus vizinhos que se tornaram pais recentemente.

Mais uma vez, ouvi esse sentimento ser repetido por um amigo que trabalha em uma grande organização cristã sem fins lucrativos. Por meio de mensagens de texto e telefonemas, meu antigo colega de quarto dos tempos de faculdade e um executivo da minha denominação repetiram uma descrição de status semelhante. Mas o que realmente me chamou a atenção foi quando ouvi alunos e colegas do Northern Seminary descreverem a si próprios e a pessoas de suas congregações dessa mesma maneira.

Todos expressaram um forte compromisso com Jesus e o desejo de fazer parte da igreja, mas nenhum deles está ativamente envolvido em uma congregação local. Esse segmento crescente de crentes é o que estou rotulando de “hesitantes”.

Desiludidos, sem religião e hesitantes

A COVID-19 foi descrita como um raio-x em escala global, pois revelou algo que estava oculto em nossos sistemas e relacionamentos há tempos. Para ser mais preciso, a COVID-19 parece ser um raio-x em escala acelerada, pois revelou e amplificou essas verdades ocultas em um ritmo mais veloz do que o normal.

Conhecidos tornaram-se estranhos, à medida que os laços relacionais ficaram tensos. Desigualdades econômicas tornaram-se flagrantemente óbvias. E com a atenção mais voltada para as notícias, a nação foi impactada pelo assassinato de George Floyd e forçada a lidar com o racismo estrutural que muitas vezes permanece silenciado em nosso país.

Essa mesma revelação em escala acelerada recaiu sobre a igreja, revelando um grande declínio no envolvimento congregacional.

Ao longo dos últimos anos, pesquisas abrangentes registraram o surgimento dos “sem religião” e dos “desiludidos”. Os sem religião são ostensivamente aqueles que não se identificam com nenhuma afiliação religiosa, grupo mais predominante entre os zoomers (jovens da geração Z) e os millennials (jovens da geração Y). Os “desiludidos” são os dissidentes das religiões estabelecidas, mais notadamente do cristianismo. Por uma série de razões, eles estão “desiludidos” (cansados) da igreja.

Pesquisas iniciais sobre a pandemia sugeriram que até um terço dos fiéis pararam de frequentar a igreja. Dados mais recentes mostram que a frequência da maioria das igrejas encontra-se em um nível abaixo do nível pré-pandemia. Um estudo divulgado no início deste ano revela que a frequência à igreja caiu 6%, de 34% em 2019 para 28% em 2021.

As pessoas acabam se afastando da igreja por vários motivos, como os “sem religião” e os “desiludidos” têm demonstrado. Mas os “hesitantes” representam um grupo distinto sobre o qual vale a pena falarmos. Eu diria que muitos daqueles que se distanciaram da frequência à igreja, tanto de forma presencial quanto on-line, podem ser descritos como “hesitantes”.

Os “hesitantes” são uma categoria completamente diferente, e integrantes dessa categoria com os quais falei têm várias características em comum. Eles têm apreço pela igreja local, da qual foram membros ativos no passado. Levam Jesus a sério e querem pertencer a uma congregação local. Também não são amargurados nem cínicos. Na verdade, de alguma forma os “hesitantes” se sentem incomodados por não estarem comprometidos com uma igreja local.

Como consequência, há uma lacuna entre seu desejo e sua situação. Eles são “hesitantes” porque estão incertos e têm dúvidas sobre como se engajar novamente em uma igreja. E embora suas histórias individuais sejam inúmeras e difusas, gostaria de apresentar quatro tipos potenciais de “hesitantes” e suas lutas: os desorientados, os desmotivados, os desencorajados e os desencaixados.

Os desorientados: Nos últimos dois anos, essas pessoas se tornaram pais ou tiveram que voltar a morar com seus pais. Alguns perderam o emprego e estão procurando se recolocar, enquanto outros mudaram de emprego e ainda estão se adaptando a uma nova vocação profissional. Os ritmos desordenados da pandemia perturbaram a estabilidade de suas vidas, algo que a igreja costumava lhes proporcionar. Assim, em meio a grandes mudanças de vida, essas pessoas não estão mais ativas na igreja.

Os desmotivados: Esse tipo de “hesitantes” estão desestimulados por causa da variedade de problemas que testemunham na igreja. Talvez eles tenham reexaminado sua fé após ter vindo a público a queda de algum pastor estimado ou por causa de pecados constantes de racismo e sexismo, mas de forma alguma querem romper os laços com a igreja. Falhas ocorridas dentro da igreja afastaram muitos deles da prática de fazer parte de uma congregação.

Os desencorajados: O peso do sofrimento e do luto coletivo dos últimos dois anos desencorajou muitos “hesitantes”. Eles estão lutando por sua saúde mental e por motivação. Muitos de seus familiares, vizinhos, amigos e membros da igreja morreram. A perda de relacionamentos, seja por morte, divórcio ou distanciamento, deixou um resíduo de mal-estar que afastou alguns deles da igreja local.

Os desencaixados: Outro sentimento que ouvi frequentemente de “hesitantes” é que o culto on-line não funciona para eles. Pesquisas iniciais sobre a COVID-19 sugeriram que as igrejas centradas no culto dominical lutavam para reter grandes faixas de seus membros. Os “hesitantes” desse grupo ficaram mais afastados de suas igrejas à medida que os cultos passaram a ser digitais, e quando algumas congregações voltaram a se reunir presencialmente, eles não retornaram.

Muitos “hesitantes” foram deslocados, do ponto de vista físico e relacional, desarraigados do lugar e das pessoas com as quais conviviam, por um período. Eles estão vagando à procura de outra igreja para chamar de lar. Falei com cerca de 20 amigos e conhecidos, que poderíamos classificar como “hesitantes”, sobre como sua readmissão em uma igreja poderia se dar.

Ficou patente que, para muitos, essa volta provavelmente não será através do culto de domingo de manhã. Nesse aspecto, alguns “hesitantes” são semelhantes aos “desiludidos” e aos “sem religião”, que não têm o menor interesse em participar de um culto na igreja no Dia do Senhor.

Para as igrejas que centraram seus ministérios em torno dos cultos de domingo de manhã, isso representa um problema. Se o domingo de manhã não é mais o caminho, que um dia já foi para alguns, que propicia a comunidade e o cuidado pastoral, isso nos deixa com duas questões importantes: O que as igrejas centradas no culto de domingo devem fazer? O que os “hesitantes” devem fazer?

Reimaginando a casa de Deus

Como o frequentemente citado poeta Robert Frost ponderou: “Lar é aquele lugar em que, quando você tem de ir, eles têm que te acolher”. Lar é uma palavra tremendamente carregada, repleta de cheiros e sons, mas também de memórias de dor e de esperança.

O lar também é um fio de ouro tecido por toda a narrativa bíblica. Como o teólogo Douglas Meeks comenta em seu livro God the Economist, o Senhor está “procurando incessantemente criar um lar, uma família, onde as criaturas de Deus possam viver em abundância”.

Se meus instintos estiverem certos e o domingo de manhã não for mais a principal porta de entrada para alguns crentes, precisamos refletir ainda mais sobre a ideia de “igreja nas casas”. Especificamente, devemos reconsiderar os lugares físicos em que nos reunimos.

Gostaria de sugerir que redescobrir a casa como tema bíblico pode nos ajudar a interpretar a atual arquitetura social da igreja, a diagnosticar seus desafios e limitações e a fornecer um caminho fidedigno a seguir para os líderes da igreja e também para os “hesitantes”.

Na história bíblica, a casa de Deus é o lugar onde ele habita entre seu povo, que funciona como se fosse coordenadas terrenas da presença de Deus.

No início, a casa de Deus era uma porção de terra no Jardim do Éden, onde Deus andava com Adão e Eva na bem-aventurança de uma morada pré-queda. Em seguida, Deus instruiu Israel a construir uma casa móvel durante o Êxodo, chamada de tabernáculo, ou seja, uma propriedade que servia como “santuário” portátil e habitação para o Senhor (Êxodo 25.8).

Após o reinado de Davi, seu filho Salomão construiu uma casa fixa chamada templo: o lugar onde Deus habitaria entre seu povo escolhido. Yahweh prometeu que no templo ele viveria entre os filhos de Israel e não abandonaria o seu povo (1Reis 6.13).

Mas as gerações subsequentes caíram em pecado e, apesar das advertências dos profetas, o templo foi destruído e Israel foi exilado. Embora o templo tenha sido reconstruído durante o ministério de Esdras e Neemias, nunca voltou à sua antiga glória. Em vez disso, pelos próximos quatro séculos, Israel continuou a ser ocupado por potências estrangeiras, o que indicava a ausência da presença de Deus.

Então, no primeiro século, o Messias chegou e, de repente, Deus “habitou entre nós” (João 1.14). Em uma pessoa, Jesus, a plenitude de Deus veio habitar! Jesus se tornou o novo templo de Deus, as próprias coordenadas da presença de Deus, o lugar exato onde céu e terra se encontram.

Então, após a crucificação, ressurreição e ascensão de Jesus, o Espírito Santo desceu sobre os discípulos, no dia de Pentecostes. E, a partir daí, seria com o povo de Deus, a igreja, que Deus faria sua morada.

Tudo isso é uma boa nova para os “hesitantes”.

Encontrando novamente um lar

Embora, nos últimos meses, minha esposa e eu não façamos parte de uma igreja no formato convencional, ainda nos reunimos com amigos toda segunda-feira à noite para comer, orar e meditar nas Escrituras. Temos um grupo amplo de amigos com quem jejuamos todas as quartas-feiras. Um pequeno grupo de mentores se junta a nós, em uma videoconferência via Zoom, uma vez por mês para orar por nosso futuro.

Nenhum deles está formalmente ligado a uma igreja constituída, mas são apenas alguns exemplos de como os “hesitantes” podem navegar por este momento de transição, encontrando maneiras originais de não deixar de se reunir como igreja, segundo o costume de alguns, mas encorajarando uns aos outros (Hebreus 10.25).

Lembrem-se de que nosso distanciamento não precisa ser permanente. Como observei anteriormente, a maioria dos “hesitantes” lamenta a perda da comunhão cristã, e muitos anseiam por retornar ao corpo da igreja. E, muito embora possa ser tentador permanecer à distância e criticar a igreja, como fazem tantos, devemos lembrar que a igreja, com toda a sua beleza e suas mazelas, também inclui os “hesitantes”!

Então, quando você estiver pronto para fincar raízes em uma igreja local outra vez, primeiro considere as pessoas em sua vida que já estão ativas em suas respectivas igrejas. Aproxime-se delas em suas casas, ou melhor ainda, convide-as para compartilhar de sua mesa. Essas pessoas podem atuar como portas de entrada da igreja e podem orar a seu lado, enquanto você procura se readaptar.

Se você está “procurando” uma igreja para congregar, priorize aquelas próximas de sua casa que enfatizem uma missão que vá além dos cultos de domingo. Seja em um estabelecimento comercial local, em uma calçada, em um local alugado de forma temporária, em associações de bairro e em instalações públicas, todos esses ambientes podem se tornar locais não convencionais para os “hesitantes”, os “desiludidos” e os “sem religião” encontrarem o povo de Deus.

Por fim, nestes tempos em que tantos estão deslocados, podemos cultivar as virtudes da coragem e da longanimidade que marcaram os crentes por gerações.

De fato, esses tempos de incerteza para os “hesitantes” podem corresponder ao período de oração e jejum da Quaresma. Há muito o que lamentar no fato de se sentir deslocado, então, juntemo-nos à igreja global na cacofonia de orações por socorro e ajuda de Deus. Em nosso período de jejum, podemos sentir fisicamente, de forma simbólica, um pouco das dores que sentimos por estarmos distanciados do companheirismo que uma comunidade de fé pode proporcionar.

Quando rituais cristãos como esses são praticados em comunidade, tornam-se uma maneira de discernir e se envolver coletivamente com o que Deus está fazendo no mundo. Esses rituais de fé nos abrem para a presença de Jesus dentro das quatro paredes de nosso lar.

Uma das muitas razões pelas quais minha esposa e eu queremos plantar uma igreja é porque esse é um lugar apropriado para promover tais virtudes e práticas! A igreja se reúne para anunciar que, mesmo em momentos que nos sentimos desorientados, desmotivados, desencorajados e desencaixados, Deus não nos abandona.

Em uma época marcada por tanta morte e distanciamento, confessamos nossa necessidade de um irromper do Espírito Santo. Minha esperança para os “hesitantes” é que nosso amor e nossa admiração pelo Deus triúno não fiquem estagnados, e que nos próximos anos ainda possamos testemunhar que “grande é a tua fidelidade”.

Para aqueles pastores que desejam alcançar os “hesitantes” em sua área, todo esse momento ajuda a pensar para além da atual arquitetura social da igreja (ou seja, o clássico culto de domingo em um templo). Muitos pastores já estão fazendo isso, mas para aqueles que ainda não estão, tentem imaginar novas formas diferentes de ser “igreja” acontecendo nas casas dos membros de sua congregação, durante a semana, nas quais as pessoas se tornem as principais portas de entrada para o ministério.

Não estou sugerindo que os pastores vendam os templos ou cancelem o culto dominical. Os templos são recursos incríveis e as reuniões de domingo facilitam celebrações em grande escala de pessoas marcadas pela esperança da ressurreição. Contudo, quando as reuniões de domingo são a única porta de entrada para a igreja, certamente sentiremos falta de muitos “hesitantes”, “sem religião” e “desiludidos” em nosso meio.

Para abordar plenamente as realidades destacadas e amplificadas pela pandemia, a igreja e seus pastores devem buscar recuperar uma arquitetura social centrada em pessoas, e não em propriedades.

Talvez pastores e líderes possam marcar em um mapa as casas dos membros de sua igreja e considerá-las extensões de seus santuários, incentivando-os a convidar os vizinhos para jantar. Muitos “hesitantes”, “desiludidos” e “sem religião” podem não participar de um culto de adoração em um domingo de manhã, mas podem desfrutar de um churrasco em uma tarde de sábado no quintal de um dos membros de sua igreja.

Como isso revigoraria a missão da sua igreja ou realinharia seus recursos?

Ora, eu sei que, para meus colegas pastores, isso pode soar como mais uma tarefa pesada, além de questões que muitos já estão enfrentando, como a obrigatoriedade do uso de máscaras, as lacunas no orçamento, funerais e todo esse caos da vida da igreja diante do coronavírus.

Mas ouça estas palavras de Jesus: “Venham a mim todos vocês que estão cansados e sobrecarregados, e eu os aliviarei” (Mateus 11.28, NAA). Jesus pretende que encontremos descanso dele, e nossos lares físicos estão entre os lugares sagrados onde isso acontece, quando praticamos tanto o Sabbath quanto a hospitalidade.

Também reconheço que, para alguns, suas casas ou outros ambientes físicos não são uma opção, devido a questões de segurança, tamanho ou normas culturais. Independentemente disso, minha proposta permanece: a arquitetura social da igreja pode e deve se estender para além dos edifícios e passar a ocupar os espaços sociais onde quer que o povo de Deus habite.

Nós todos, povo de Deus, somos constituídos pela pessoa de Jesus. Assim como Jesus estendeu a presença de Deus para além do templo, para as casas de Simão e André, Maria e Marta, Zaqueu e Jairo, ele ainda bate à nossa porta hoje. Que o Rei da glória entre e se sinta em casa.

Mike Moore é diretor do Programa de Teologia e Missão do Northern Seminary (Lisle, IL), líder de missão local da Resonate Global Mission, e plantador de igrejas em Chicago. Ele é co-anfitrião do podcast Theology on Mission e é ordenado pela Christian Reformed Church.

Traduzido e editado por Marcos Simas.

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Cristo não cancelou a morte. Ele a venceu.

A Páscoa nos lembra que vida e morte estão entrelaçadas.

Christianity Today April 8, 2022
Illustration by Agata Lędźwa

Comecei a tradição de ler uma seção específica de A Estrela da Redenção todos os anos no Yom Kippur, o Dia da Expiação. A estrela da redenção, que foi escrita em cartões postais, no front na região dos Balcãs, durante a Primeira Guerra Mundial, é a obra-prima de Franz Rosenzweig, filósofo judeu alemão do século 20, que apresenta a interpretação mais abrangente e complementar de judaísmo e cristianismo já escrita.

No ano em que me casei, li as reflexões de Rosenzweig sobre o significado do Yom Kippur — apenas duas semanas antes do meu casamento — e fiquei impressionada de uma maneira inteiramente nova. Ao entrar nas difíceis horas da tarde do jejum do Yom Kippur, fiquei profundamente comovida com a discussão de Rosenzweig sobre uma veste branca, chamada kitel (kih’-tuhl), que é tradicionalmente usada por homens (e em alguns círculos judaicos, por mulheres também) durante o Yom Kippur.

Como tudo no judaísmo, o significado desse ato apresenta-se em camadas. Um kitel é a vestimenta funerária judaica tradicional; usá-lo no Yom Kippur representa a culpa coletiva do povo judeu diante de Deus, que é o foco principal deste dia. Deus não pode tolerar profanação e impureza, e no Yom Kippur, o povo judeu deve enfrentar sua própria pecaminosidade e suas falhas. “Perdoa-nos, redime-nos, expia-nos”, implora repetidamente a liturgia do Yom Kippur. O Dia da Expiação é um dia de julgamento, no qual cada judeu individualmente (e o povo judeu coletivamente) deve considerar o peso de seu pecado diante de Deus.

No entanto, usar um kitel também representa o milagre do perdão de Deus, outro tema-chave do Yom Kippur. Vestir um kitel é encarnar visualmente a noção de que “ainda que seus pecados sejam como escarlate, eles serão brancos como a neve” (Is 1.18). Para Rosenzweig, Yom Kippur é, portanto, profundamente, um dia de vida e morte. Em lugar da morte como consequência do pecado, Deus concede ao povo o perdão generoso e o dom da vida continuada. Um não existe sem o outro, e cada um dá significado ao seu oposto.

Depois de descrever de forma pungente o significado de usar um kitel no Yom Kippur, Rosenzweig faz referência a Cântico dos Cânticos 8.6, onde lemos que “o amor é tão forte quanto a morte”. Rosenzweig continua: “E é por isso que o indivíduo [o noivo], uma vez na vida, usa essa vestimenta mortuária completa: no dia do casamento, sob o dossel da cerimônia de matrimônio, depois de recebê-lo das mãos da noiva”.

Naquele ano em particular, isso fez minha respiração ficar presa na garganta. Já tinha lido isso muitas vezes antes, mas nunca com essa mesma seriedade de significado. Morte e nova vida, pecado e redenção, arrependimento e perdão — esses temas-chave em torno de Yom Kippur também são os caminhos que trilhamos diariamente no casamento, uma realidade que eu experimentaria profundamente nos próximos anos.

Vale ressaltar que há mais uma ocasião no calendário judaico em que um kitel é tradicionalmente usado: durante a celebração anual do Pessach (a Páscoa judaica), especialmente por quem dirige a cerimônia. Naquele dia específico de outono, no Yom Kippur, fiquei pensando sobre a conexão não apenas entre o Yom Kippur e o dia do casamento, mas também entre o Yom Kippur e a Páscoa.

Muitas dessas conexões teologicamente ricas se perderam à medida que o judaísmo e o cristianismo se distanciaram um do outro, rompendo os próprios fios que outrora entrelaçavam os ritmos profundamente significativos do ano litúrgico. Mas este ano, a Páscoa judaica e a Páscoa cristã caem na mesma semana, um lembrete para os cristãos das raízes judaicas de nossa fé.

O Yom Kippur é instituído na Torá (Lv 16,23.26-32; Nm 29.7-11) e cai no décimo dia do sétimo mês do calendário judaico, o mês de Tishrei. Este mês é precedido por Elul, um mês focado no tema do arrependimento. De acordo com a tradição judaica, um período de 40 dias de arrependimento começa em Elul e vai até Tishrei, correspondendo aos 40 dias que Moisés intercedeu pelo povo de Israel, após o pecado do bezerro de ouro.

Em Êxodo 32, enquanto Moisés estava no topo do monte Sinai recebendo de Deus as duas tábuas de pedra, o povo ficou ansioso e impaciente e fez um ídolo para adorar — episódio que se destaca como uma das maiores afrontas de Israel diante de Deus.

Ao descer ao acampamento e ver o povo dançando ao redor do bezerro de ouro, Moisés atira as tábuas de pedra, despedaçando-as ao pé da montanha. É um ponto absolutamente baixo na história de Israel, quando a profundidade de seu pecado e de sua culpa diante de Deus parece irreparável.

Em um ato de pura graça imerecida, enquanto Moisés talha um novo par de tábuas de pedra, Deus renova a aliança com seu povo e declara que ele é “Senhor, Deus compassivo e misericordioso, tardio em irar-se, abundante em amor e fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado” (Êxodo 34.6-7). Depois de permanecer na montanha por 40 dias e 40 noites, Moisés novamente desce ao acampamento, com o rosto resplandecente.

De acordo com os rabinos, este episódio é a origem do Yom Kippur, o dia que representa tanto o auge do pecado e da iniquidade do povo quanto a profundidade do amor infalível de Deus e de seu perdão imerecido. Esta é a grande história em que o povo judeu, a cada ano, entra vestido de branco e sempre necessitado da misericórdia e da graça divinas.

A história da Páscoa (Pessach, em hebraico) tem lugar na narrativa do Êxodo pouco antes da chegada do povo ao monte Sinai. Como parte do resgate divino dos israelitas, que foram libertados dos grilhões da escravidão sob Faraó, Deus traz dez pragas sobre os egípcios. Antes da décima praga (a morte dos primogênitos) começar, Deus diz a Moisés para instruir cada família israelita a abater um cordeiro e usar seu sangue para marcar os batentes e lintéis [das portas] de suas casas. O espírito de destruição, encarregado de tirar a vida de todo primogênito, vê o sangue na entrada das casas dos israelitas e passa por cima delas, poupando os primogênitos de Israel.

O que precisamos não é apenas resgatar o vínculo entre a Páscoa judaica e a Páscoa cristã.

De acordo com a instrução de Deus, Moisés decreta que Israel deve observar a festa de Pessach a cada ano, e assim, até hoje, os judeus se reúnem fielmente para esta refeição das mais sagradas, no 14º. dia do primeiro mês, o mês de Nissan (Êxodo 12). A mesa é adornada com elementos e comidas especiais, todos os quais desempenham um papel em lembrar — literalmente, saborear — a experiência daquela noite fatídica e da peregrinação que se seguiu pelo deserto do Sinai. Israel, assim, comemora para sempre que, na noite mais escura da história registrada do Egito, a carne e o sangue de um cordeiro marcaram — e salvaram — os filhos de Abraão, Isaque e Jacó.

Durante o Sêder anual de Pessach, o povo judeu reencena e enfrenta mais uma vez as dores da escravidão, as lágrimas do desespero e até os gritos dos egípcios. Mas os judeus também comemoram o triunfo da libertação, a alegria de novos começos, o mistério do poder e do amor de Deus, e a esperança de um dia erguer um lar adequado na Terra Prometida.

Como todos os quatro Evangelhos deixam claro, a Páscoa serve como pano de fundo da entrada de Jesus em Jerusalém, sua última ceia com os discípulos e, finalmente, sua morte e ressurreição. Constantino, no Concílio de Niceia, decretou que se separasse a Páscoa judaica da Páscoa cristã, decisão que desencadeou um longo processo para varrer as raízes judaicas da Semana Santa.

A fim de aprofundar e redescobrir essas conexões ricas e fundamentais, o que precisamos não é apenas resgatar o vínculo entre a Páscoa judaica e a Páscoa cristã, mas também incorporar o Yom Kippur em nossa compreensão da Semana Santa. No pensamento de Rosenzweig, bem como na tradição judaica em geral, o talit — o icônico xale de oração judaico — simboliza o kitel [túnica branca usada por judeus durante celebrações]. Também é tradicionalmente branco e, embora em geral seja usado apenas durante o dia, a única exceção a isso é a véspera do Yom Kippur, quando é usado após o pôr do sol. Na verdade, é tradição usá-lo o dia inteiro durante o Yom Kippur.

Muitos homens judeus não possuem nem usam o talit até se casarem, e é tradição que a noiva dê ao noivo um talit (em vez de um kitel) no dia do casamento. Meu noivo, Yonah, manteve essa tradição e, antes de voltarmos para os Estados Unidos, para o nosso casamento, fomos ao Ramot Mall, nos arredores de Jerusalém, e escolhemos um lindo talit, que dei a ele como parte de nossa cerimônia de casamento.

“Não devemos, portanto, ter nada em comum com os judeus, pois o Salvador nos mostrou outro caminho”, afirmou Constantino, no Concílio de Niceia. “Foi declarado particularmente indigno que esta, a mais sagrada de todas as festas, seguisse o cálculo dos judeus, que sujaram as mãos com os crimes mais temíveis e cujas mentes estavam cegas”. Este episódio na história da igreja é conhecido como a controvérsia quartodecimana, pois o assunto em questão era a celebração da Páscoa judaica no dia 14 (quarta decima em latim) de Nissan.

Os quartodecimanos eram aqueles que eram a favor de contar a Páscoa de acordo com a celebração da Páscoa da comunidade judaica. Esta era uma posição espantosa de se defender, pois essencialmente ligava o calendário cristão ao calendário judaico. Tal ligação tornou-se intolerável para a igreja, uma vez que procurou se desvencilhar do judaísmo, e o Concílio de Niceia solidificou essa separação.

O que se perdeu, com esta decisão, foi a conexão intencional que se torna abundantemente clara nos Evangelhos. O significado e o sentido da Semana Santa só podem ser compreendidos plenamente se tivermos em vista a história de Israel, à medida que a percorremos. A morte e ressurreição do Messias tomam como modelo o êxodo do Egito, que serve como evento fundante do povo judeu. Neste momento fundacional no início da igreja, em que ela é enxertada na aliança duradoura de Israel com Deus, Jesus se torna o cordeiro pascal por cujo sangue o povo de Deus é poupado.

Como vimos em outras áreas, a teologia cristã muitas vezes procura analisar minuciosamente elementos que a teologia judaica se sente confortável em deixar em tensão. Este contraste também se destaca na eventual distinção entre a Páscoa judaica e a Páscoa cristã.

Para a igreja, a Sexta-feira Santa é reservada para a morte, enquanto o domingo é designado como celebração da vida ressurreta. Esse arranjo temporal de adoração pode acabar bifurcando vida e morte, assim tornando ousada (e dualista) a afirmação de que, com a chegada do domingo, a morte não é mais uma força que precisamos levar em conta. Somos instruídos a nos apegar à vida e a esquecer o poder da morte, porque Jesus deixa a morte para trás, de uma vez para sempre, em seu sepulcro vazio. Efetivamente, o aguilhão da morte pode ser relegado aos que estão fora dos muros da igreja. Esta mensagem é profundamente desorientadora e, em última análise, desumanizadora.

Como a vida de muitos de nós já mostrou, a realidade é muito diferente da afirmação simplista de que a morte foi cancelada pela ressurreição. A morte, em todas as suas mais diversas formas insidiosas, ainda permeia nossas vidas diárias. Mesmo depois da gloriosa ressurreição de Jesus, continuamos a lutar com dimensões inquietantes de nossa humanidade: traumas que revivemos, perdas que suportamos, decepções que acumulamos, ansiedades que nos paralisam. E, infelizmente, a igreja pode enviar a mensagem sutil de que se deixar perturbar por essas lutas bem reais é, de alguma forma, não ter fé adequada ou entender mal o núcleo da mensagem cristã.

A Páscoa judaica, em contrapartida, abrange esse complexo entrelaçamento entre vida e morte; na verdade, retrata a vida e a morte como forças convergentes e entrelaçadas. Na narrativa de Israel, embora a vida seja, em última análise, triunfante, a tradição judaica nos lembra que é impossível separar a vida que vivemos de nossas memórias individuais e coletivas da morte.

Na mesa da Páscoa judaica, lembramos a morte de um cordeiro cujo sangue poupou nossa vida. Damos graças pelo dom da liberdade, mesmo enquanto as ervas amargas nos lembram da amargura persistente da escravidão. Regozijamo-nos em deixar o Egito, mesmo lembrando que a Terra Prometida ainda não é nosso lar. E, de forma digna de nota, amenizamos nossa alegria e lembramos do sofrimento dos egípcios, tirando dos nossos cálices gotas de vinho, bebida que simboliza alegria.

O confronto mais ousado do judaísmo com a morte, no entanto, ocorre em outro dia que a história da Páscoa antecipa: o Yom Kippur. No Yom Kippur, o povo judeu está diante de Deus nos estertores da morte, trajando vestimentas mortuárias, mas dotado da coragem de acreditar que Deus está presente e acessível, mesmo na sepultura.

Tal como acontece com a Páscoa, não há vida sem morte no Yom Kippur. Mesmo a vida, ao que parece, não nos dá a capacidade de esquecer a morte. Vida e morte permanecem juntas em um paradoxo impossível, e caminhamos a partir da realidade de ambas, enquanto aguardamos a redenção final.

A Páscoa judaica e o Yom Kippur nos lembram que não podemos separar nem ordenar cronologicamente a vida e a morte.

A Páscoa judaica e o Yom Kippur nos lembram que não podemos separar nem ordenar cronologicamente a vida e a morte. Infelizmente, por enquanto, devemos permanecer nessa tensão entre ambas — e este é precisamente o lugar onde encontramos a plenitude do amor de Deus em Cristo, nosso cordeiro pascal cujo sangue expia o pecado.

Ironicamente, as correntes interpretativas que informam o culto cristão na Páscoa podem apagar o próprio contexto que nos permite compreender plenamente o significado da morte e ressurreição de Jesus. Ao apresentar o judaísmo como seu contraste, a tradição cristã muitas vezes obscureceu a unidade e a coerência da narrativa bíblica, na qual a aliança de Deus com Israel é o contexto necessário para a obra de Jesus e a fundação da igreja.

Por este ângulo, o Calvário começa a se parecer muito mais com o Sinai. O véu rasgado lembra as tábuas quebradas no Sinai, a morte de Jesus invoca os sacrifícios do Yom Kippur, o mistério do Sábado de Aleluia espelha a intercessão de Moisés no topo do Sinai, e a ressurreição de Jesus torna-se uma aliança renovada mais uma vez — uma declaração do infinito e infalível amor de Deus, primeiro pelos judeus e depois pelos gentios (Romanos 1.16).

Abordada a partir desta perspectiva, a alegre declaração de que “Cristo ressuscitou!” assume uma profundidade de significado inteiramente nova. Afinal, o Salvador do mundo é o tão esperado Messias de Israel.

Este artigo é uma adaptação da obra Finding Messiah , de Jennifer M. Rosner. Copyright © 2022, Jennifer Rosner. Publicado pela InterVarsity Press, Downers Grove, IL. www.ivpress.com. Michael Stone contribuiu para este artigo.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

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“Socorro! Minha fé esfriou.”

Por que os cristãos caem na apatia espiritual e como podem se recuperar dela

Christianity Today April 1, 2022
Alex Mccarthy / Unsplash / Edits by Rick Szuecs

Os crentes muitas vezes descrevem a vida cristã como uma sucessão de montanhas e vales, com períodos alegres de caminhada com Cristo seguidos por períodos de apatia espiritual. Uche Anizor, professor da Talbot School of Theology da Biola University, escreve para aqueles que caminham pelo vale em seu livro Overcoming apathy: gospel hope for those who struggle to care [Superando a apatia: esperança do evangelho para aqueles que se esforçam para se importar]. Matthew LaPine, pastor que escreve sobre temas da teologia e da psicologia humana, conversou com Anizor sobre as causas da apatia espiritual e o caminho de volta para uma busca apaixonada por Deus.

Overcoming Apathy: Gospel Hope for Those Who Struggle to Care

Overcoming Apathy: Gospel Hope for Those Who Struggle to Care

Crossway

192 pages

$12.49

O que o motivou a escrever um livro sobre apatia entre cristãos?

Foram duas as minhas motivações. Uma vem de experiências no início da minha vida cristã, em particular de quando trabalhei com a Campus Crusade for Christ. Basicamente, meu trabalho era orientar os alunos e fazer evangelismo tradicional. No entanto, havia muitos dias em que eu temia enfrentar essas tarefas espirituais monumentais. Isso me incomodava: eu tinha levantado sustento para fazer aquilo, mas quando chegava a hora, eu realmente não queria fazer. Assim, o medo do evangelismo foi provavelmente um fator. Mas, em regra, havia uma “falta de interesse” generalizado em minha atitude. Durante esse tempo, eu disse várias vezes às pessoas que meu principal vício como cristão era ser uma pessoa apática. Então, eu queria entender o porquê disso.

Minha outra motivação veio de ter orientado muitos alunos durante meus anos na Biola. Eles lutam com questões típicas, mas acho que a principal é simplesmente uma falta de interesse por sua vida espiritual. Do ponto de vista intelectual, eles sabem a importância de conhecer teologia, de amar a Jesus e de viver a vida cristã. Mas não conseguem se interessar do jeito que, no fundo, sabem que deveriam.

Quando se trata de uma inclinação para a apatia, você vê alguma diferença geracional?

Há apatia em todas as gerações. Mas pessoas diferentes processam e avaliam a apatia de maneiras diferentes. A ironia hoje é que os mais jovens costumam ser muito mais emocionalmente conscientes disso do que os mais velhos. Eles estão cientes de seu mundo interior, conscientes o suficiente para querer falar sobre isso abertamente. Mas não tenho certeza de que a consciência os leve a lidar com o que está acontecendo lá dentro. Seus amigos podem dizer: “Sim, eu me conecto totalmente com esse problema”. Mas eles estão todos presos nesse lamaçal de autoafirmação.

Talvez as gerações anteriores fossem menos emocionalmente conscientes. Mesmo se tivessem sentimentos de apatia, apenas continuavam abaixando a cabeça e fazendo seu trabalho, ao passo que os membros dessa geração mais emocionalmente consciente podem parar de fazer algo, quando não sentem uma paixão genuína por aquilo. Se eles estiverem se sentindo apáticos em relação às coisas de Deus, estarão menos inclinados a continuar buscando essas coisas.

Como você distinguiria entre apatia e problemas próximos como a depressão, o desânimo e o que poderíamos chamar de “período de seca”?

É importante notar que não estou usando o termo apatia em sentido clínico, mas sim no que diz respeito às coisas que os cristãos supostamente valorizam, as coisas de Deus. Há sobreposição entre esse tipo de apatia espiritual e a depressão. Mas existem certas características únicas a cada um desses problemas. A depressão está relacionada a questões como ideação suicida e uma falta generalizada de energia ou motivação que afeta todas as áreas da vida.

A apatia, no entanto, tende a ser mais seletiva. No caso dos jovens que orientei, eles não são apáticos em relação a tudo. Eles podem estar bastante empolgados com jogos, ou suas namoradas, ou o LA Lakers. A depressão tende a ser mais generalizada e pode exigir terapia ou outras formas de tratamento que não necessariamente se aplicam à apatia.

Quanto ao desânimo, eu o defino como uma profunda tristeza, ou desorientação, especialmente no que diz respeito às coisas de Deus. Se estivermos lidando com desânimo em vez de apatia, o que a pessoa desanimada mais precisa é ser consolada.

No caso dos períodos de seca, ou o que poderíamos chamar de noite escura da alma, estamos lidando com algo que é bom e divinamente orquestrado. Deus pretende que isso seja para o nosso bem. A pessoa que está passando pelo período de seca só precisa de ajuda para perseverar e permanecer em Deus.

No livro, você descreve várias causas possíveis para a apatia, desde uma causa situacional até espiritual. Como alguém pode desvendar essas possíveis causas?

Muitas pessoas ficam perdidas com sua apatia. No livro, apresento sete possíveis causas, que misturam fatores internos e externos. Estou ciente de que poderia ter apontado mais causas, mas o objetivo é simplesmente oferecer alguma ajuda para o autodiagnóstico — alguns espelhos para ajudar a pessoa a avaliar em que ponto está. Talvez, por exemplo, minha descrição da dúvida espiritual soe verdadeira para você. Ou talvez você tenha estado imerso em trivialidades e simplesmente parou de se importar com basicamente tudo. Ou talvez tenha parado de fazer qualquer coisa que seja relacionada a Deus e, com isso, naturalmente, tornou-se indiferente. Se não se encaixar em alguma dessas causas, basta passar para a próxima. O livro pretende ser uma espécie de parceiro para uma conversa.

No seu caso, você descreve como sua fase de apatia surgiu tanto da dúvida quanto da depressão. Causas espirituais e não espirituais podem se reforçar mutuamente?

A apatia pode ter causas que não são abertamente morais ou espirituais. Pense no luto, por exemplo. As Escrituras não tratam o luto como algo problemático ou pecaminoso. Todos nós sofremos [com o luto], mesmo que não devêssemos sofrer como aqueles que não têm esperança. Portanto, embora o luto seja uma categoria amoral, pode contribuir para a desesperança, que é algo que tende à apatia. Há outras coisas — como consumir mídia ou experimentar certas formas de dúvida — que podem não ser inerentemente problemáticas, mas que podem levar à apatia, se forem tratadas como não se deve ou exageradas.

Você recomenda combater a apatia por meio do cultivo — ou seja, você mistura uma metáfora militar com a linguagem da jardinagem. Por que essa combinação?

A metáfora do combate comunica que somos chamados a travar uma verdadeira batalha espiritual contra a carne e o Inimigo. Isso não é cristianismo passivo. Não é “Deixe estar, deixe Deus”. Estamos engajados em uma batalha.

No entanto, esta batalha não tem um momento decisivo, em que eu pego minha espada do Espírito, recito algumas Escrituras, mato o diabo e sigo em frente com a vida. Superar a apatia envolve cultivar uma vida de virtude, de integridade e de santidade.

Você escreve sobre a importância de cultivar a comunidade, o afeto, o significado, a missão, a generosidade e a força. O que foi mais importante em sua jornada para se afastar da apatia espiritual?

Eu diria que a comunidade — tanto a comunidade da igreja quanto a comunidade cristã em termos gerais. Estar com o povo de Deus me fez continuar a caminhar nas minhas estações mais secas, especialmente quando estou lutando contra a dúvida. Simplesmente estar com cristãos comuns e participar da vida da igreja tem sido fundamental. Tem sido útil ter amizade íntima com pessoas apaixonadas [por Cristo].

Percebi que era fundamental não passar meu tempo somente com pessoas que se sentiam paralisadas como eu. Não estou dizendo para rejeitarmos as pessoas que estão lutando. Mas é importante ter alguém para quem responder sobre essa questão, principalmente alguém que lute por esse zelo e seja um exemplo real disso.

O que você mais espera alcançar com esse livro?

Espero que aqueles que estejam lutando contra a apatia espiritual possam ter uma noção clara de que Deus é por eles e com eles. O Pai nos deu seu Filho e seu Espírito, o que nos capacita a superar a apatia em nossa vida. Espero que meu livro possa dar às pessoas uma esperança real de que a mudança é possível, mesmo que não haja soluções mágicas. A apatia não é a nossa sina. O ideal é que o livro possa oferecer algumas ferramentas para ajudar as pessoas a darem pequenos passos para superá-la.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

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Pastores precisam mais de caráter do que de carisma

A renúncia do fundador da megaigreja Hillsong, Brian Houston, nos lembra que precisamos de pastores piedosos, e não apenas talentosos.

Christianity Today March 28, 2022
Marcus Ingram / Contributor / Getty

Em Sydney, na última terça-feira (22), Brian Houston, fundador e pastor sênior da megaigreja Hillsong renunciou ao cargo à luz de um processo judicial pendente e após revelações de má conduta pastoral.

O processo judicial se refere à suposta ocultação, por parte de Houston, de abuso sexual cometido por seu pai contra um menino, na Nova Zelândia, na década de 1970. Embora Houston tenha removido o pai do ministério, denunciado-o às autoridades da denominação e tenha reconhecido publicamente que o abuso ocorreu, a polícia estadual de New South Wales alega que Houston “tinha conhecimento de informações relacionadas ao abuso sexual de um jovem, na década de 1970, e deixou de levar essas informações à atenção da polícia”.

O julgamento está marcado para outubro deste ano.

Mais recentemente, o conselho global da Hillsong escreveu um e-mail aos membros sobre duas queixas contra Houston. A primeira, que ocorreu há dez anos, “envolve mensagens de texto inadequadas do pastor Brian [Houston] para um integrante da equipe, o que posteriormente resultou no pedido de demissão feito por essa pessoa”. Essa indiscrição foi explicada como consequência acidental de Houston estar “sob efeito de pílulas para dormir”.

A segunda denúncia ocorreu em 2019, quando Houston bateu na porta do quarto de hotel de uma ocupante do sexo feminino e passou uma quantidade significativa de tempo nesse quarto. Do mesmo modo que no outro caso, seu comportamento foi explicado como o resultado infeliz de uma mistura de medicamentos ansiolíticos com álcool em seu organismo.

A Hillsong teve um impacto internacional significativo, plantando igrejas em todo o mundo e levando o pentecostalismo para a era digital. Com o sucesso, porém, vem a tentação de fazer qualquer coisa para manter a máquina funcionando, proteger o ministro e o ministério e manter as fontes de dinheiro fluindo — mesmo que isso signifique fechar os olhos para indiscrições ou arrumar desculpas para o que é imperdoável.

O que acho decepcionante são as explicações dadas para as ações de Houston. Embora uma medicação possa afetar negativamente o estado mental de uma pessoa, nunca é justificativa para comportamentos inadequados. Essas desculpas soam vazias, especialmente para vítimas de assédio sexual.

Uma questão óbvia, corretamente observada pelo conselho da Hillsong, é que “o modelo de governança da Hillsong historicamente colocou um controle significativo nas mãos do pastor sênior”. Sobrecarregar uma única pessoa com autoridade não é um sinal indicativo de uma cultura de liderança saudável. Faríamos bem, portanto, em refletir sobre qual modelo de governança de uma igreja e qual estilo de liderança são mais conducentes à transparência e à prestação de contas.

Como sugere Andy Judd, estudioso da Bíblia, devemos sempre perguntar: “Por onde o poder está distribuído? Como as decisões são tomadas e revistas? E o que acontece depois que um líder é forçado a deixar seu cargo e seguir em frente?”

Mais importante do que as estruturas de liderança, porém, é o caráter de uma pessoa. As qualificações bíblicas para um pastor não dependem de likes, de downloads, das vendas de livros, da receita da igreja, de circuitos de conferências, do número de pessoas sentadas nos bancos ou de quantas celebridades frequentam sua igreja.

Em vez disso, elas exigem que um pastor seja “irrepreensível” e “sóbrio, prudente, respeitável, hospitaleiro e apto para ensinar; não deve ser apegado ao vinho, nem violento, mas sim amável, pacífico, não apegado ao dinheiro” (1Tm 3.2-3). Jesus ensinou que “o maior entre vocês deverá ser servo. Pois todo aquele que a si mesmo se exaltar será humilhado, e todo aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado” (Mt 23.11-12).

Durante meu tempo no seminário, entrei para uma igreja maravilhosa e fiel à Bíblia; na época em que estava sendo considerado para uma vaga de estagiário no ministério pastoral, encontrei-me com um dos pastores. Tendo me conhecido há pouco tempo, ele estava otimista sobre meu potencial, mas sabiamente cauteloso quanto ao meu caráter.

Ele disse: “Sei que você é talentoso, mas não sei se é piedoso”. Trago comigo essas palavras desde então.

Há uma diferença — e bem grande, por sinal — entre ter dons e ser piedoso. É a diferença entre o show que você consegue fazer e os desejos que traz em seu coração; entre o que faz quando está em cima do palco e o que faz quando acha que ninguém está observando você.

Os acontecimentos em torno de Houston são um lembrete de que o mundo evangélico precisa de líderes que demonstrem ter um caráter cristão, e não apenas que sejam autoconfiantes em público; precisamos de líderes que cultivem discípulos, não que treinem bajuladores; precisamos de líderes que se vejam nus diante de Cristo, não que estejam envoltos no prestígio de suas plataformas. Precisamos de líderes que saibam que, quando o sucesso se torna um ídolo, encobrir as coisas se torna um sacramento.

Michael Bird (PhD University of Queensland) é reitor acadêmico e professor de Novo Testamento no Ridley College em Melbourne.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

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