Hoje falamos menos sobre inimigos do que no passado.
Talvez não seja essa a nossa impressão. A quantidade de brigas internas, de acusações difamatórias, de xingamentos e de grosserias que vemos hoje no discurso público, inclusive dentro da igreja, é trágica e autodestrutiva. A calúnia e a maledicência se tornaram algo normal em muitos círculos. Por isso, nestes tempos instáveis e divisivos que vivemos, pensar e falar sobre inimigos pode parecer a última coisa de que precisamos.
No entanto, a verdade é bem o contrário, e por dois motivos. O primeiro deles é bíblico: as Escrituras falam sobre inimigos com grande clareza e uma frequência notável, inclusive de maneiras que somos abertamente incentivados a imitar. O segundo motivo é cultural: a confusão sobre quem exatamente são os inimigos de Deus e como a igreja deve reagir a eles torna os cristãos mais propensos a atacarem uns aos outros, e não menos.
Primeiro, vejamos o argumento bíblico. Há cerca de 400 referências a “inimigo” ou a “inimigos” nas Escrituras. (A título de comparação, essa frequência é cerca de duas vezes maior do que as aparições das palavras gracioso e graça). É bem verdade que muitos desses exemplos se referem a adversários políticos ou militares de Israel que não existem mais. Mas alguns deles se referem àqueles que amam o mundo, odeiam a cruz e odeiam a igreja (Tiago 4.4; Filipenses 3.18; Apocalipse 11.5, 12).
Muitas referências dizem respeito à obra do próprio Messias, que “possuirá a cidade dos seus inimigos” (Gênesis 22.17, ESV) e que —é citado com mais frequência por Jesus no texto bíblico e em todo o Novo Testamento — se sentará à direita de Deus, até que seus inimigos sejam transformados em um “estrado para os teus pés” (Salmos 110.1). Aparentemente, esmagar a cabeça de seus inimigos é uma característica central do que Cristo veio fazer. É o assunto da primeira profecia sobre ele, ainda lá no Jardim (Gênesis 3.15), e é prefigurado em várias histórias em que cabeças rolaram na Bíblia hebraica, começando por Sísera e passando por Abimeleque, Dagom e Golias.
De forma incisiva, os apóstolos exortam a igreja a orar e a cantar Salmos (Efésios 5.19) que estão repletos de orações por libertação e destruição de nossos inimigos. A menos que estejamos dispostos a cortar fora essas passagens com uma tesoura, assim como foi feito com a Bíblia editada por Thomas Jefferson, precisaremos encontrar maneiras que façam sentido de entender essas passagens e de orar a esse respeito. Afinal de contas, até mesmo Salmos 23, o mais pacífico, pastoral e popular dos salmos, fala de uma mesa que é posta “na presença dos meus inimigos” (v. 5).
Precisamos nos perguntar: O que significa orar pedindo “arrebenta os dentes dos ímpios”, ao mesmo tempo em que continuamos a amar nossos inimigos (Salmos 3.7; Mateus 5.44)? Estamos pedindo a Deus que derrube grupos como o Estado Islâmico ou tiranos como Vladimir Putin? Que esmague o Diabo e todas as suas obras? Que vindique Jesus? Que destrua nosso próprio pecado? Que acabe com todo o mal no Dia do Juízo? Que faça todas as opções anteriores? (Achei o livro Cursing with God [Amaldiçoando com Deus], de Trevor Laurence, extremamente útil para perguntas como essas).
O contexto cultural do nosso tempo torna ainda mais importante termos uma visão bíblica da inimizade. E um curioso paradoxo entra em ação nesse aspecto. À medida que os ocidentais modernos se tornaram menos convencidos de que o Diabo existe, ficamos mais inclinados a ver uns aos outros como diabólicos. (Conforme apontaram historiadores como Tom Hollande Alec Ryrie, agora invocamos Hitler, os nazistas ou o Holocausto, em vez de Satanás, os demônios ou o inferno, embora o efeito seja praticamente o mesmo).
Essas tendências estão interligadas. Sabemos, com tristeza, que o mal radical existe; portanto, se não sabemos exatamente quem são nossos inimigos, tendemos a vê-los por toda parte. A maioria de nós evita termos como inimigos ou perversos, preferindo uma combinação de insultos, palavrões, epítetos rancorosos e generalizações caluniosas. Mas, mesmo quando a linguagem da inimizade desaparece, a experiência que temos dela não desaparece, como bem sabe qualquer pessoa que já tenha se alegrado com a queda de alguém (ou lamentado o sucesso de alguém).
Uma solução para esse ciclo de destruição da inimizade é ter mais clareza sobre quem são nossos verdadeiros inimigos. O pecado, a morte, o mundo, a carne, o diabo: esses são os inimigos que Cristo veio esmagar. E eles estão agindo em nós, assim como estão agindo nas pessoas de quem não gostamos. Amamos o jovem rico por ele odiar Mamom. Amamos os efésios — e os londrinos e os nova-iorquinos — por odiarem a idolatria. Pois nossa luta é contra as forças espirituais do mal, não contra a carne e o sangue (Efésios 6.12).
“Todo grupo tem seu demônio”, lembro-me de um sábio pastor dizer isso, há vários anos. “Nesse caso, o nosso pode muito bem ser o Diabo.”
Andrew Wilson é pastor responsável pelo ensino na London King's Church e autor de Remaking the World.