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Igrejas ouvem o chamado da criação

Como uma congregação em Baltimore começou a cuidar de uma floresta urbana, enquanto outra em Grand Rapids começou a contar libélulas, libelinhas e mexilhões brancos.

Christianity Today July 15, 2022
Courtesy of The Refuge

Chamado é uma coisa engraçada.

Quando Michael Martin aceitou a função de pastor, na Stillmeadow Community Fellowship, ele esperava pregar, orar, aconselhar, casar, enterrar, batizar e pastorear o rebanho na Evangelical Free Church, em Baltimore.

Ele não planejava se tornar guardião de uma floresta urbana.

“Demorou um pouco” disse ele, rindo da evolução de seu ministério.

Gary Koning sabe como isso acontece. O que começou como um esforço típico de limpeza de córregos alterou completamente sua congregação, a Trinity Christian Reformed Church, em Grand Rapids, Michigan.

“De uma coisa cresceu para outra e, depois, outra”, disse Koning, agora especialista em macroinvertebrados de bacias hidrográficas.

Os dois homens não se conhecem e não têm conexões em comum. Mas em suas respectivas igrejas e em seus respectivos chamados, ambos descobriram que ser fiel no ministério significava cuidar da natureza. O chamado de Cristo para “apascentar minhas ovelhas” exigia que cuidassem do pedaço de terra onde suas igrejas estavam. Embora nem toda congregação ou nem todo cristão tenha um jardim de verdade para cuidar, os ministérios de Martin e de Koning oferecem exemplos de como o conceito às vezes abstrato de “cuidado com a criação” pode parecer, quando levado a sério.

Em meio a pandemia, agitação social e mudanças geracionais na membresia da igreja, ambos os pastores viram como o relacionamento especial entre Deus e a natureza, uma comunhão que é refletida por toda a Escritura, deu nova vida às suas congregações.

Martin não conseguia sequer notar os 10 acres de floresta ao lado da Evangelical Free Church, quando chegou em Baltimore. Bem, é claro que ele era capaz de vê-los. Mas o mais importante é que ele não conseguia enxergá-los.

”Para mim era apenas ‘a floresta’”, disse ele.

Certa vez, ele caminhou até a beirada da floresta e olhou para dentro, mas estava escuro e agourento, e ele não cruzou essa linha. Além disso, ele tinha outras preocupações.

Décadas de migração branca [de uma área que estava se tornando mais etnicamente diversificada] e uma divisão na igreja deixaram a congregação de Stillmeadow com feridas profundas.

”Os relacionamentos dos membros uns com os outros sofreram uma fratura“, disse ele. “Eles careciam de cura”.

As feridas não curadas, segundo ele, levaram a um “problema na questão da mordomia”. Martin conta que, quando chegou, em 2017, ninguém tinha energia para pensar além das tarefas diárias dentro do prédio da igreja. Aqueles 10 acres de floresta eram invisíveis para eles.

A igreja também queria se conectar ao bairro. Quando Martin começou a tentar aprender sobre a comunidade ao redor da igreja, porém, um vizinho o levou de volta para a beirada impenetrável da floresta.

“Quando cheguei, ele empunhava um facão”, lembrou Martin.

Seguindo alguém que conhecia o lugar, desta vez Martin entrou. A serenidade o comoveu. Era tranquilo, cheio de trilhas de veados, cursos d’água e até trilhas por onde as crianças locais passavam. Os planejadores urbanos têm um nome para as linhas deixadas pelo repetido tráfego de pedestres fora da estrada: caminhos de desejo. Eles mostram onde o projeto paisagístico não atende às necessidades reais das pessoas — algo que Martin esperava que a igreja pudesse fazer.

Ele olhou ao redor da floresta e viu uma resposta de oração. O bairro precisava de espaço verde. A igreja precisava servir ao bairro. A floresta era um local em que essas duas necessidades se encontravam.

Isso é incrível, ele pensou consigo mesmo. Você simplesmente não consegue perceber do lado de fora.

Martin, em uma ação coordenada com o ministério Campus Crusade for Christ, recrutou centenas de estudantes universitários para limpar os detritos. Eles retiraram seis toneladas de vegetação rasteira e lixo da floresta. A igreja, então, fez parceria com o gabinete do prefeito de Baltimore e com o Departamento de Agricultura dos EUA. Eles removeram espécies invasoras e freixos derrubados pela broca esmeralda; também plantaram mais de 2 mil árvores adicionais.

No início, os membros da igreja pensavam no projeto como a “loucura do pastor Michael”, disse Martin. Mas ninguém o impediu. E como ele continuou a trabalhar nisso, recrutando voluntários e exortando a igreja a aprofundar seus cuidados uns com os outros e com seus vizinhos, a congregação começou a pensar mais na floresta como sendo a sua floresta.

Eles começaram a fazer jardinagem e a criar abelhas. Um ornitólogo da Universidade Johns Hopkins avaliou a população de aves. Martin reuniu um grupo de adolescentes para acompanhá-lo na avaliação. Ele observava, enquanto o cientista segurava um pássaro e permitia que os adolescentes se aproximassem.

“De repente, um garoto de 15 anos voltava a ter 7. Ele captava todo esse fascínio”, maravilhava-se o pastor. “Ele não é indiferente.”

Era um processo que ele viu se repetir várias vezes, à medida que as pessoas encontravam a floresta, que a igreja batizou de “Stillmeadow Community PeacePark and Forest” [Parque e Floresta da Paz da Comunidade Stillmesdow].

Pesquisas mostram que o tempo gasto na natureza melhora a saúde mental e física, mas os mesmos padrões da migração dos brancos, que deixaram Stillmeadow marcada e frustrada, também levaram a uma “lacuna de natureza” entre famílias brancas e famílias negras.

A crescente preocupação com esta e outras questões ambientais, incluindo ilhas de calor urbanas e a qualidade do ar, aumentou o interesse pela floresta de Stillmeadow, disse Martin. É a conexão das preocupações de sua comunidade predominantemente negra e do movimento ambientalista, em grande parte liderado por brancos, preenchendo o que ele vê como uma divisão artificial entre as duas causas. “Todos nós deveríamos estar falando sobre as coisas que são úteis e saudáveis”, disse ele.

Reabilitar uma área arborizada em um bairro negro não foi apenas uma benfeitoria ambiental, mas também um investimento no bem-estar daquele bairro. Ao mesmo tempo, aqueles motivados pela justiça social para os negros exigiam que estes se preocupassem com a saúde desses 10 acres de árvores, disse Martin.

Agora, quando está no parque e fecha os olhos, Martin disse que sente a alegria e a magnificência de uma brisa de primavera, a magnitude do farfalhar das árvores.

“São coisas que nos apontam para Deus”, disse ele.

Em Michigan, Koning sente o mesmo. Quanto mais vai até o divisor de águas de Rush Creek, perto de sua igreja, mais ele se convence de que a natureza não é apenas um bem, mas sim uma necessidade crítica para as pessoas que buscam a Deus.

Ele tem notado cada vez mais o quanto das Escrituras se passam em ambientes ao ar livre: desde Deus falando a Abraão, os salmos considerando os céus, até as andanças de Jesus para todos os lados, falando sobre o reino de Deus.

É um contraste gritante com os estudos da Bíblia que fazemos no ar condicionado, cercados de livros, que é como a maioria dos sermões modernos são escritos, disse Koning.

“Nós transformamos o cristianismo em uma religião entre quatro paredes.”

Certa vez, ele se lembra de pedir à sua congregação cristã reformada para dizer onde eles sentiram poderosamente a presença de Deus, destacando os lugares onde as pessoas passam a maior parte do tempo. No escritório? No lar? Sim, para poucas pessoas. Na igreja? Claro, às vezes.

Quando Koning disse “natureza”, pelo menos 80% das pessoas de sua congregação levantaram as mãos. Ele então se perguntou se o ministério deveria ser uma atividade tão estritamente interna, que acontece entre quatro paredes.

A igreja diminuiu muito nos anos 2.000, passando de cerca de 300 membros para 50, durante a pandemia. Esses 50, no entanto, são missionários, disse Koning, e comprometidos em cuidar de sua comunidade. Eles têm programas para pessoas com necessidades especiais, pessoas em situação de rua e pessoas que lutam para conseguir comida suficiente para viver.

Uma equipe também começou a limpar um pequeno córrego na propriedade da igreja, que deságua em um riacho próximo. Eles a chamavam de “equipe do córrego”. Foi apenas um pequeno esforço, no início, mas depois chamou a atenção dos conservacionistas do estado, que vieram e ensinaram os voluntários da igreja a monitorar a qualidade da água.

Então, com a ajuda dos conservacionistas, a igreja conseguiu cerca de 100 mil reais em subsídios do Departamento de Qualidade Ambiental de Michigan, para realizar um levantamento de espécies de macroinvertebrados — rastreando e contando as libélulas, efeméridas, tricópteros, libelinhas e mexilhões brancos.

“Deus os criou com propósito e design”, disse ele. “Se eles não estiverem lá [na natureza], não podem dar glória a Deus.”

Conhecer os macroinvertebrados era uma forma de cuidar do meio ambiente, mas para Koning também ficou claro que esse trabalho tinha a ver com adoração. Ele acredita que a degradação do habitat obscurece a glória de Deus.

“Por que estamos amordaçando Deus, colocando plástico em sua boca, para que a criação não possa falar?”, disse Koning.

A igreja agora se reúne ao ar livre a cada dois domingos. Eles designaram um local como “Estação da Criação”, e nele Koning ensina as crianças da igreja sobre a natureza. Eles vão para fora, faça chuva ou faça sol, reunindo-se ao redor de uma fogueira, se estiver frio — o que geralmente acontece em Michigan.

Em 2022, a congregação decidiu inclusive mudar de nome. A Trinity Christian Reformed Church agora se chama The Refuge [O Refúgio].

“Queríamos ser mais conhecidos por fornecer refúgio”, disse Koning, “não apenas para pessoas, mas para polinizadores, animais e macroinvertebrados”.

Chamado é uma coisa engraçada como esta. Você ama a Deus e quer servir, e logo estará rastreando e contando cuidadosamente criaturas ao longo de um córrego, e proclamando as Boas Novas junto com macroinvertebrados.

Traduzido por: Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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Eu era pró-vida na teoria, mas demorei muito para colocar isso em prática

Nossas convicções, quando vividas, terão um custo.

Christianity Today July 8, 2022
Petri Oeschger / Getty

No dia em que estou redigindo este texto, tenho planos para jantar com minha amiga, uma médica canadense. Sem dúvida, não vai demorar muito para nossa conversa, hoje à noite, se voltar para a recente decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Dobbs contra Jackson Women’s Health. E, sem dúvida, cada um de nós defenderá com veemência nossas opiniões opostas sobre o aborto.

Minha amiga, que não segue nenhuma fé religiosa, defende com vigor o direito da mulher de escolher o aborto. Ela vai me contar — como tem feito ao longo dos 11 anos em que moro no Canadá — sobre os casos de mulheres casadas que confirmam uma gravidez indesejada no pronto-socorro.

Minha amiga me diz que, às vezes, essas pacientes se preocupam com as dificuldades econômicas que outro filho imporá à família. Às vezes, tendo já passado por uma gravidez difícil, até mesmo com risco de vida, elas não conseguem conceber o risco de uma segunda gravidez (ou de uma terceira ou quarta). Às vezes, essas mães já estão cuidando de pais idosos ou de uma criança com necessidades especiais, e simplesmente não conseguem se imaginar assumindo a responsabilidade por mais uma vida.

“Muitas dessas mulheres não querem fazer abortos, mas não conseguem conceber a alternativa de ter mais um filho”, ela me dirá, implorando para que eu entenda as dificuldades delas. Ouvirei com simpatia as histórias que minha amiga conta e reconhecerei os medos reais de suas pacientes.

Quaisquer que sejam as visões éticas de uma mulher sobre o aborto, o fato é que ela pode interromper sua gravidez por não conseguir imaginar uma história de vida em que ela e o bebê floresçam. Como relata a Lifeway Research, quase 16% de todos os casos de aborto são feitos por cristãs evangélicas, muitas das quais podem vê-lo como um mal necessário e sentir que não têm escolha.

Qualquer que seja o status legal do aborto, nossa batalha contínua é conceber um mundo em que o aborto não seja a única opção. Não podemos simplesmente mudar as leis; devemos restaurar o imaginário nacional. Mas isso requer sacrifício de todos nós.

Talvez esta noite eu também conte uma história, a história de uma amiga que imigrou para o Canadá anos atrás, no auge do inverno, quando estava grávida de gêmeos. Na época, ela tinha todos os motivos para considerar o aborto como uma medida que salvaria a vida de sua família. Ela e o filho foram mandados para cá pelo marido e pai, que prometera vir em seguida — mas nunca veio.

A partir daquela noite fria em que essa mulher e seu filho deixaram o aeroporto de Edmonton — sem dinheiro, sem casacos de inverno, sem a documentação necessária, sem telefone celular nem um lugar para ficar — suas dificuldades foram muitas. Mas ela era uma mulher de fé, cristã, e uma mulher que procurou comunidades de fé cristã.

E Deus proveu.

Uma igreja em Edmonton hospedou essa família de duas pessoas, depois arrecadou fundos para pagar sua passagem aérea para Toronto, onde ela daria entrada em seu pedido de imigração. Houve uma agência cristã de reassentamento de refugiados que lhe forneceu moradia temporária, quando ela chegou à cidade, e, depois, a colocou em contato com o Safe Families Canada, uma alternativa cristã aos lares adotivos providenciados pelo governo.

Uma família confiável forneceu um lar para seu filho, nas semanas que se seguiram ao nascimento prematuro de seus gêmeos; depois, reuniu uma porção de mãos que se dispuseram a atender às necessidades práticas dessa jovem mãe e de seus três filhos pelos próximos anos.

Foi através do Safe Families Canada que me envolvi com a vida dessa jovem, há vários anos. Vi as necessidades da família dela postadas na rede do Safe Families, entre as quais havia pedidos simples como fraldas e refeições.

Para minha imensa vergonha, meu pensamento inicial ao receber esses pedidos foi: não quero fazer parte dessa história complicada. Eu temia que lhes trazer fraldas e alimentos fizesse eu me envolver de maneiras que estavam além da minha capacidade. E isso logo aconteceu mesmo. A questão aqui não é relembrar minha própria relutância. A questão é dizer: por mais que eu fosse teoricamente comprometida com os princípios pró-vida, ainda resistia em doar meu tempo para famílias em crise.

O tempo é a oferta da viúva para os nossos dias, uma moeda incrivelmente difícil de sacrificar. Na verdade, eu poderia ter dado dinheiro com muito mais facilidade. Mas não meu tempo. Não interrupções. Não um investimento a longo prazo de uma vida em outras vidas. Não bolos de aniversário nem compras de mercado toda semana. Não viagens mensais ao escritório de imigração. Não o tipo de tempo que exigisse minha presença.

Fico impressionada, é claro, com os argumentos temporais em prol do aborto. Alguns acham cruel pedir a uma mulher que considere levar adiante uma gravidez indesejada, sacrificar nove meses de sua vida pelo bem de um bebê que ela poderia abortar em uma visita a uma clínica, à tarde. Esta é provavelmente a opinião daquela minha amiga: ela acha que não tenho o direito de impor uma obrigação como essa a uma mãe relutante.

Mas como uma cristã pró-vida, direi a ela que essa questão me constrange para além dos argumentos de eficiência. Quero um mundo em que façamos coisas difíceis, e até mesmo possamos abrir mão de nossas liberdades pelo bem de nossos próximos mais vulneráveis.

E, no entanto, suponho que, se devemos pedir às mulheres que deem nove meses de sua vida para trazer um filho ao mundo (e também os muitos anos seguintes, se ela ficar com o bebê), também devemos estar prontos para dar isso, e muito mais, a fim de garantir o bem-estar dessa criança. Suponho que teremos de enfrentar nossos próprios juramentos de lealdade ao individualismo, e este mundo em que nunca somos incomodados pelas necessidades dos outros.

Os gêmeos da minha amiga comemoraram seu aniversário recentemente . Eu levei bexigas, e logo eles as estavam socando, gritando a plenos pulmões. Minha amiga parecia exausta, e, para piorar, seus médicos tinham diagnosticado, recentemente, que ela estava com uma deficiência de ferro. “Eles querem fazer transfusões. O que você pensa sobre isso?” Eu disse a ela que é uma boa ideia, um tratamento seguro. E ela ficou mais tranquila.

Eu me acostumei com essas conversas de fim de semana em torno da pequena mesa da cozinha da minha amiga e, por mais que sempre a visite, gostaria de ter vencido minha resistência de visitá-la. Eu não venci.

Mas uma coisa mudou: tenho evidências para reforçar a imaginação de um outro mundo possível. Um mundo em que o trabalho de muitas mãos torne mais leves nossos esforços para amar uma mãe, seus filhos e essa dádiva barulhenta chamada vida.

Jen Pollock Michel é escritora, apresentadora de podcast e palestrante em Toronto. Ela é autora de quatro livros e está trabalhando em um quinto: In Good Time: 8 Habits for Reimagining Productivity, Resisting Hurry, and Practicing Peace (Baker Books, 2022).

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Cristãos solteiros precisam de uma melhor teologia da solteirice ou melhor preparação para relacionamentos?

Como demonstram dois livros recentes, a resposta é: precisamos das duas coisas, juntas (e não apenas para os solteiros.)

Christianity Today July 7, 2022
Illustration by Rick Szuecs / Source images: FabrikaPhoto / DragonImages / Envato Elements

O casamento está em declínio, pelo menos nos Estados Unidos; enxergar isso como crise ou oportunidade, porém, depende de como você imagina serem a vida e a comunidade ideais. Como mostram dois livros recentes, é possível que os cristãos cheguem a conclusões muito diferentes sobre o estado atual dos relacionamentos. E isso é uma coisa boa.

Aqueles que lamentam o declínio do casamento tendem a se concentrar no que isso significa para as famílias e os filhos — e com razão. Relacionamentos em que há menos compromisso geram desafios fartamente documentados para as crianças nascidas e criadas em tais relações.

Mas o casamento em declínio não significa apenas estruturas familiares mais fracas. Também significa mais pessoas totalmente fora de um relacionamento amoroso: mais solteiros. Como a teóloga Lina Toth argumenta em Singleness and Marriage after Christendom, “o aumento que vemos hoje na quantidade de pessoas solteiras é, na verdade, uma oportunidade para a igreja reconsiderar tanto a solteirice quanto o casamento como estilos de vida distintamente cristãos”.

Os autores John Van Epp e J. P. De Gance têm uma visão muito diferente em seu livro Endgame: The Church s Strategic Move to Save Faith and Family in America. “Se [as igrejas] querem mudar a maré de um cristianismo em declínio”, escrevem os autores, então elas “devem edificar comunidades intencionais, ancoradas na defesa de relacionamentos saudáveis ​​que tanto levem a casamentos que afirmem a Deus quanto revitalizem esses casamentos”.

A solteirice de antes e de agora

Toth antecipa tais pontos de vista. Seu trabalho em grande parte histórico coloca a visão predominantemente cristã da solteirice e do casamento em um contexto bastante necessário e muitas vezes fascinante. Enquanto Van Epp e De Gance se concentram principalmente nas mudanças ocorridas nos séculos 20 e 21, Toth remonta ao início da igreja.

O que ela encontra é previsível e surpreendente. Não são surpreendentes, por exemplo, os lamentos pelo declínio da família, que não são novidade. Mas surpreendentemente, aqueles que os romanos “acusavam de destruir a família e […] a sociedade não eram outros senão os cristãos” (grifo meu).

Se você está pensando que é porque os romanos viam a “família” de maneira diferente do que vemos hoje, isso é verdade, diz Toth. Mas o mesmo acontecia com os cristãos que eles consideravam tão ameaçadores. Ela cita a “insistência dos primeiros crentes em que, para os seguidores de Jesus, sua comunidade primária deveria ser a nova criação chamada igreja”, o que representava uma ameaça radical às normas percebidas.

Essa visão da igreja tinha um apelo significativo para as mulheres, muitas das quais tinham poucas opções para a vida adulta fora do casamento e pouco arbítrio dentro do casamento. Como relata Toth, a solteirice na comunidade cristã desfrutava de vários séculos de estima, especialmente por parte das viúvas e das mulheres que nunca se casaram, para as quais oferecia muitos benefícios.

Com o advento do aumento da proteção legal e do controle da natalidade, as mulheres modernas de todas as religiões, bem como as que não têm religião, hoje nutrem expectativas de liberdades que antes existiam primordialmente para cristãos solteiros. (Para uma visão fascinante sobre esse assunto que, de forma importante, rompe esse quase monopólio do discurso branco, europeu/americano sobre a solteirice, veja a coleção de ensaios de Amia Srinivasan, The Right to Sex.)

Toth não leva em conta o papel reduzido da igreja na solteirice empoderada, talvez porque ela esteja tentando desafiar a frequente abordagem binária (e não bíblica) que os cristãos adotam em relação a essa parceria, abordagem que considera o casamento bom e a solteirice, em geral, ruim.

Tão errado quanto isso seria considerar o estado de solteiro melhor ou pior, dependendo da fé de uma pessoa (ou da falta dela). A solteirice cristã pode ser agonizante. Os solteiros seculares às vezes têm um controle melhor sobre o que esta fase da vida permite. Mas o estado do solteiro secular também pode trazer relacionamentos profundamente dolorosos, em especial aqueles que geram filhos. E os solteiros cristãos muitas vezes se veem presos entre diferentes padrões culturais.

A esse desafio prático, Van Epp e De Gance dedicaram grande parte de suas vidas — trabalho que informa profundamente seu livro Endgame. Van Epp, protestante, desenvolveu e ensinou os currículos sobre relacionamento que aparecem com destaque no livro. De Gance, católico, ajudou a fundar a iniciativa hoje chamada Communio, uma organização sem fins lucrativos que ajuda igrejas a fortalecerem os casamentos em suas comunidades.

No primeiro terço de Endgame, os autores descrevem o problema que seu livro aborda, baseando-se em pesquisas originais que encontraram uma conexão surpreendente entre o casamento dos pais e o envolvimento de adultos na igreja. O segundo terço se volta para relacionamentos saudáveis, argumentando que “a maioria das igrejas cristãs não oferece treinamento em habilidades de relacionamento, como complemento à sua ênfase no desenvolvimento das virtudes”. O terço final apresenta um plano para as igrejas desenvolverem ministérios voltados para relacionamento, como forma de envolver suas comunidades e fortalecer suas congregações.

Minha primeira impressão de Endgame me deixou cética, apesar de meu contato anterior positivo com a escrita de Van Epp sobre relacionamentos. (Seu livro, então intitulado How to Avoid Marrying a Jerk, foi para mim uma ajuda significativa para superar uma dolorosa decepção romântica; e continua sendo um dos guias sobre namoro mais sábios que já vi). A capa de Endgame mostra uma igreja afundando sob as areias de uma ampulheta. O título e o subtítulo dão um toque sinistro. Com o coração pesado, eu me preparei para mais uma obra que expressava a inquietação cristã sobre o casamento e ignorava a lacuna entre sexos, bastante substancial na igreja.

Felizmente o livro provou ser mais do que isso. Embora algumas de suas ideias para exaltar o casamento provavelmente aprofundem a dor dos solteiros (com base em minhas conversas com mais de 300 cristãos, em quase 40 países), Van Epp e De Gance reconhecem repetidamente aqueles que não têm parceiros. E não ignoram os solteiros mais velhos, como pessoas viúvas e divorciadas.

Endgame também nota a lacuna entre os sexos e incentiva as igrejas a pensarem sobre evangelismo que possa atrai mais homens para sua comunidade. (Não estou convencida de que o evangelismo vá mudar muito a lacuna entre os sexos, mas pelo menos eles reconhecem que isso existe! Muitos cristãos podem aprender com eles.)

Talvez a contribuição mais significativa de Endgame, no entanto, seja uma descoberta com que nem mesmo Toth poderia contar. De Gance descreve como, em seu papel na Communio, ele contratou o sociólogo Mark Regnerus para realizar uma pesquisa sobre a afiliação religiosa nos Estados Unidos. Inicialmente, os resultados repercutiram o que muitas outras pesquisas mostravam: uma aparente correlação entre frequência religiosa e idade. Mas quando De Gance pediu a Regnerus para filtrar as respostas por origem familiar, “Tivemos um grande momento ‘Aha!’ ”, escreve ele.

A descoberta deles? “As diferenças entre as faixas etárias na frequência à igreja desaparecem, se você controlar apenas uma variável: o casamento dos pais.” Quando os pais dos adultos permanecem casados, as pessoas frequentam a igreja a uma taxa bastante semelhante, independentemente da idade. Além de todos os outros desafios já bem demonstrados, os filhos de pais divorciados ou solteiros também parecem ter dificuldade ou estar menos interessados ​​em compromisso com a igreja.

Melhor juntos

Como esses dois livros são de editoras menores, é provável que muitos leitores não tenham ouvido falar deles. Mas se eu pudesse escolher, a maioria dos leitores desses livros os encontraria como eu os encontrei: juntos.

Por mais que eles tentem reconhecer os solteiros, Van Epp e De Gance parecem esperar que uma combinação de ministérios eficazes em evangelismo masculino e relacionamento consiga reduzir muito o número de solteiros na igreja. Toth serve como um forte contrapeso a isso. Mas, ao tentar evitar problemas comuns em torno da discussão da atividade sexual, ela erra ao abordar muito pouco seu papel na vida dos solteiros.

Toth dá muitos exemplos convincentes de como uma comunidade cristã vibrante tem ajudado os solteiros, desde os tempos de Jesus, a satisfazer quase todas as suas necessidades. Ao fazer isso, ela posiciona a solteirice como um período viável da vida, que pode ser tão significativo quanto o casamento, e às vezes até mais rico. Contudo, para cristãos que procuram seguir a ética bíblica tradicional, o sexo continua sendo a única área para a qual os solteiros não têm provisão alternativa.

Para a maioria dos solteiros cristãos, isso leva a uma combinação de sexo fora do casamento, lutas com pornografia e masturbação e muita culpa e vergonha em torno de nossos corpos e de nossa sexualidade. Não ajuda o fato de que as atitudes das igrejas em relação ao casamento tendam a sancionar o sexo e a sexualidade no contexto do casamento ​​como inerentemente obedientes e, portanto, primordialmente sem pecado, em oposição à sexualidade primariamente pecaminosa da solteirice.

Van Epp e De Gance não abordam de forma direta o desafio da sexualidade para os solteiros, mas seu livro consistentemente enquadra o treinamento relacional como algo do qual todos os cristãos podem se beneficiar. Isso o desestigmatiza significativamente e, à sua maneira, ajuda a trazer uma dose de igualdade que Toth pretende avançar. Sua ênfase nas habilidades relacionais também fornece amplo apoio para cristãos solteiros cujas lutas com a sexualidade afetam seus relacionamentos. (E de que maneira, como ato inerentemente relacional, a intimidade sexual pode não afetar os relacionamentos?)

Conversas integradas

Um dos maiores desafios da solteirice, para a maioria de nós, cristãos, é sua incerteza. Durante meus quatro anos na Redeemer Presbyterian Church, em Nova York, Katherine Leary, como ela então se chamava, serviu como um exemplo impactante de uma cristã solteira mais velha.

Embora eu nunca tenha tido muito conhecimento de sua história, sabia que ela teve uma carreira vibrante, encontrou Jesus e também um papel significativo em tempo integral ajudando cristãos, em todas as fases da vida, a pensar em como seu trabalho poderia ajudar a promover o reino de Deus. A vida dela não era exatamente uma vida a que eu aspirasse (eu realmente queria me casar), mas admirava o tipo de trabalho com o qual ela se comprometeu em sua vida de solteira de meia-idade. Isso me deu uma visão do propósito que minha própria vida poderia encontrar, mesmo que Deus continuasse a me negar o casamento.

Então, certo dia, notei que o nome dela havia mudado. Ela havia se casado — uma história que um dia eu adoraria ouvir. Outro amigo me contou sobre uma mulher, já falecida, que passou a vida inteira fazendo trabalho missionário sozinha… e depois se casou inesperadamente, aos 80 anos.

Nenhuma pessoa solteira sabe o que o futuro lhe reserva, não mais do que qualquer pessoa casada. (No entanto, a maioria dos solteiros provavelmente está mais ciente de nosso futuro incerto.)

Todos seremos solteiros pelo menos uma vez na vida, se não duas. Por essa razão, todos os cristãos precisam dessa imagem vibrante da igreja como nossa família definitiva, para a qual o livro de Toth nos chama. Mas todos nós também convivemos com os relacionamentos fragmentados e imperfeitos que De Gance e Van Epp querem nos ajudar a melhorar.

Igrejas e pastores que desejam ler esses livros ganhariam muito com uma discussão em grupo que envolvesse ambos os textos. E o mais importante é que esses dois livros fornecem maneiras para cristãos solteiros e casados ​​conversarem uns com os outros sobre o tipo de comunidade para a qual todos somos chamados. Tornar-se o corpo integrado que Jesus pretendia começa com conversas mais integradas.

Anna Broadway é autora de Sexless in the City: A Memoir of Reluctant Chastity. Ela mora no Alasca, onde está trabalhando em um livro sobre a experiência global da solteirice, que será lançado pela NavPress no outono de 2023.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Church Life

Aprendendo a enxergar beleza em meio às cicatrizes da guerra

Como uma jornada por uma terra devastada pela guerra mudou a mente de um acadêmico.

Fotografia da capa por Jessé Manuel

Christianity Today June 30, 2022

Em 12 de agosto de 2021, o escocês Andrew Walls, historiador da igreja e missiologista, morreu aos 93 anos. Ele conhecia e entendia a história e o povo da África — e se importava com ambos. Walls abriu meus olhos para padrões históricos; ele nos ajudou a entender melhor a Bíblia. Foi seu trabalho que acabou alterando fundamentalmente minha perspectiva sobre o corpo global de Cristo.

Walls fez duas observações profundas ao resumir a obra fenomenal de Kenneth Scott Latourette, A History of the Expansion of Christianity. Primeiro, ele explicou que “a fé cristã deve continuar sendo traduzida, deve continuamente entrar na cultura local e interagir com ela, ou murcha e desaparece”. E segundo, “cruzar fronteiras culturais tem sido o sangue vital do cristianismo histórico” e “a energia para a travessia das fronteiras veio da periferia e não do centro”.

Enquanto eu mergulhava nos impactantes escritos de Walls, trabalhava como professor de estudos congregacionais e missiologia na Universidade de Stellenbosch, na África do Sul. Na época, eu estava envolvido em uma rede de escolas teológicas em rápida expansão pelo nosso continente, que se chamava Network for African Congregational Theology — ou NetACT, de forma abreviada. Em 2003, a NetACT recebeu um chamado do tipo “Passa à Macedônia, e ajuda-nos!”, para visitar e ajudar Angola.

Os portugueses começaram a negociar com os angolanos em 1560 e os subjugaram em 1590. Uma história de exploração, corrupção e tráfico de escravos continuou até 1960, quando os movimentos de libertação começaram a se rebelar, exigindo a independência. Essa luta continuou até 1975, quando os portugueses tiveram uma mudança de governo e a independência foi concedida a Angola.

O MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) conquistou o controle do país com o apoio de Cuba e da antiga URSS. Seu governo foi contestado pelo movimento UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), apoiado pela África do Sul e pelos Estados Unidos. Dezesseis anos de guerra civil se seguiram até um acordo de paz, em 1991. Depois, realizaram-se eleições, mas a UNITA não aceitou os resultados, o que fez com que os combates ressurgissem, persistindo até a morte do líder da UNITA, Jonas Savimbi, em 4 de abril de 2002. Os pais dos líderes dos três movimentos de independência eram todos pastores protestantes.

Em junho de 2004, a maioria das principais estradas angolanas, outrora repletas de minas terrestres, foram desobstruídas. Sete de nós, integrantes da NetACT, viajamos para Angola em um Land Rover e um veículo à prova de minas (que, para mim, se parecia muito com uma aranha de pernas compridas atravessando a estrada). Nosso objetivo era visitar igrejas e escolas teológicas. A viagem também coincidiu com um projeto de pesquisa em que embarquei. Eu fazia três perguntas, onde quer que encontrássemos cristãos angolanos: “O que aconteceu com a igreja durante os 40 anos de guerra? Cresceu ou diminuiu? O que aconteceu com a educação teológica?”.

O nosso primeiro encontro foi em Lubango, a maior cidade do sul da Angola. No dia seguinte à nossa chegada, tivemos um encontro matinal com os líderes da igreja. No entanto, seu porta-voz principal, que era fluente em inglês, estava atrasado. As lideranças locais insistiram que esperássemos a chegada do Pastor José Evaristo Abias, que foi secretário geral da UIEA (União de Igrejas Evangélicas de Angola) e presidente da AEA (Aliança Evangélica Angolana). Quando ele finalmente apareceu, seu rosto brilhava. Ignorando o protocolo, simplesmente tivemos que perguntar: “Algo aconteceu com o senhor, pastor; por favor, compartilhe conosco!”.

Ele assentiu e a história se desenrolou em palavras rápidas e jubilosas.

“Sou responsável pela repatriação de refugiados e ontem à noite recebi uma ligação informando que alguns caminhões de refugiados deveriam chegar esta manhã. Trinta e seis anos atrás, em 1969, quando eu tinha 15 anos, nossa aldeia foi atacada. No caos total que se seguiu, todos se dispersaram. Com o tempo, os membros da minha aldeia se reencontraram e sobreviveram em pequenos grupos em áreas rurais desabitadas. Nossa família também conseguiu se reencontrar. No entanto, minha irmã, Adelaide, estava desaparecida e nunca mais a encontramos nem ouvimos falar dela. Esta manhã, os caminhões chegaram da Zâmbia. Caixas foram colocadas para que os passageiros exaustos pudessem descer do caminhão. Eu vi uma mulher descendo. Ela me parecia tão familiar que eu não conseguia tirar os olhos dela. Quando se virou para se orientar, a mulher me viu olhando para ela. Ela hesitou e então, com passos lentos e incertos, começou a se mover em minha direção.

Com dificuldade, consegui pronunciar uma palavra: ‘Adelaide?!’

Ela começou a correr para mim e gritou: ‘José!’”

No silêncio que se seguiu à sua história, os olhos do pastor José estavam cheios de lágrimas, mas sua postura irradiava a maravilha dessa “ressurreição da morte”. Todos nós estávamos enxugando lágrimas dos olhos.

A cerca de 400 quilômetros ao norte de Lubango fica Huambo, a segunda maior cidade de Angola e o local onde ocorreram alguns dos piores combates durante a guerra civil. Começamos a nossa caminhada para a cidade numa manhã de sexta-feira. Tínhamos um compromisso no seminário naquela tarde, o último dia do semestre.

Logo percebemos que estávamos em apuros. O Google Maps e os celulares não funcionam na maior parte de Angola. Não havia placas na estrada. Nós simplesmente tivemos de seguir destroços de todos os tipos de veículos — especialmente os de tanques e outras máquinas de guerra. A estrada principal que liga Lubango a Huambo estava completamente esburacada e cheia de crateras provocadas pela explosão de minas terrestres. Ainda estávamos longe de Huambo, quando a escuridão nos alcançou numa simpática aldeia chamada Catata.

Para nossa surpresa, quando chegamos a Huambo, no final do dia seguinte, os funcionários e alunos da escola teológica não se incomodaram com o nosso atraso — eles nos receberam com música e dança. Rindo, eles nos disseram que era impossível viajar de uma cidade para outra em apenas um dia. Além disso, explicaram, não se importavam de nos esperar, pois éramos os primeiros visitantes estrangeiros que recebiam em muitos anos.

Ficamos alguns dias em Huambo e o diretor da escola insistiu em nos mostrar a cidade. Foi uma experiência traumática. A cidade estava devastada. Prédios e outras infraestruturas foram bombardeados e estavam em ruínas. Nada parecia estar funcionando; o esgoto corria a céu aberto em pequenos riachos ao longo das ruas e, eventualmente, em imundos rios de lixo. Eu mal podia suportar o cheiro de tudo aquilo. As vias estavam cheias de buracos, enquanto, acima delas, cabos de eletricidade se cruzavam. Eu nunca tinha visto tantas pessoas com membros amputados e outras cicatrizes físicas de guerra em toda a minha vida. Apesar disso tudo, o Pastor Alexandre dos Santos Mioco contava-nos alegremente histórias sobre a vida em Huambo.

Lutando para manter a compostura, nós o interrompemos com uma pergunta simples: “Como o senhor mora em uma cidade como esta?”

Houve um silêncio repentino. Pelos seu olhar, sentimos que ele não havia compreendido nossa pergunta — havia neles até mesmo traços de choque e mágoa. Depois de alguns segundos embaraçosos, ele respondeu: “Temos paz agora. Um ano atrás, ninguém nesta cidade estava seguro, todos os dias pessoas morriam aqui, vivíamos com medo…”

Levei muito tempo para entender a seriedade do que aconteceu naquela manhã: o pastor local e um grupo visitante de convidados estrangeiros estavam andando pela mesma cidade, voltando seu olhar para as mesmas visões e situações, mas nossas percepções eram radicalmente diferentes. Vindo da África do Sul, eu via apenas um caos total. O nosso amigo de Huambo, em contrapartida, via uma cidade livre do medo e da luta. Mais tarde, percebi que eu não estava realmente ouvindo nosso anfitrião. Na terminologia de Andrew Walls, eu não tive sensibilidade pastoral para cruzar as fronteiras interpretativas. Eu estava preso em minha própria estrutura [de interpretação]. Sem a capacidade de cruzar fronteiras, permanecemos em mundos à parte. E, no entanto, há esse constante convite para enxergarmos [o mundo] por meio dos olhos do outro.

A nossa última parada foi no nordeste de Angola, em Kinkuni, na província do Uíge. Visitamos uma escola teológica reformada, o Instituto Teológico da Igreja Evangélica Reformada de Angola. Antes da independência, o governo colonial português e a Igreja Católica Romana tinham um acordo: as igrejas protestantes podiam operar em Angola, mas apenas uma denominação específica era permitida em cada província. A Igreja Reformada foi autorizada a atuar na província rural de Uíge, mas não em nenhuma das outras 17 províncias.

O seminário reformado de Kinkuni foi fundado em 1940 e destruído duas vezes. Primeiro em 1961, pelos portugueses (que se ressentiam da crítica dos protestantes às suas políticas coloniais). Depois que a igreja o reconstruiu, o seminário foi novamente destruído em 1978, desta vez pelas forças marxistas do MPLA após a independência (com base no fato de o cristianismo ter um efeito nocivo sobre o povo).

Fui convidado a falar aos alunos e funcionários na abertura do semestre da escola teológica. O título do meu artigo era: “O futuro da igreja e a igreja do futuro”. Um estudante com um rádio-gravador enorme estava na minha frente, gravando a apresentação. Quando terminei, a maioria dos funcionários e todos os alunos foram para fora do prédio. Eles ouviram a gravação debaixo de uma árvore próxima e uma discussão entusiasmada e ruidosa se seguiu.

Em Angola, sempre que eu perguntava sobre a formação teológica que esses alunos recebiam, a resposta era “formação de discipulado”. Eu realmente nunca entendia o que isso significava, mas desta vez pudemos ter uma explicação.

Foi-nos dito que era difícil — às vezes, impossível — receber educação teológica formal. Os líderes militares encarregados das províncias eram sobretudo marxistas e fortemente contrários ao cristianismo, o que significava que os crentes tinham de se reunir em segredo.

À medida que a igreja se adaptava [a esse contexto], três tipos de congregações se desenvolveram. Algumas realizavam reuniões formais da igreja em campos de refugiados em países adjacentes. Na maioria das cidades angolanas, membros de antigas congregações emergentes se reuniam em grupos menores, em casas ou sob árvores, disfarçados para parecerem reuniões comuns e informais de amigos. Outros, principalmente em áreas rurais, existiam como pequenos grupos que fugiam, se escondiam ou simplesmente sobreviviam e viviam da terra. Todos eles tinham pastores e todos os pastores estavam discipulando um ou dois membros do grupo para assumir [o trabalho], caso o pastor fosse morto ou os membros tivessem de fugir e acabassem separados uns dos outros. Em 2004, a maioria dos pastores das igrejas protestantes em Angola ainda recebia esse “treinamento de discipulado”.

Em todos os lugares a que ia, eu perguntava quantas congregações tinha uma determinada denominação e de quantos membros ela era composta. As respostas eram geralmente as mesmas. Eles riam, jogavam os braços para o ar e admitiam que não tinham a menor ideia. Estavam constantemente descobrindo novas congregações, agora que a guerra havia acabado, até mesmo em províncias distantes. A guerra havia espalhado os fiéis para além das fronteiras das províncias. Os refugiados de uma dada denominação e província ficavam muito agradecidos por encontrarem grupos de cristãos em outros lugares. As diferenças denominacionais eram a menor das preocupações.

Em retrospecto, sinto-me bastante envergonhado da minha mentalidade capitalista e acadêmica, que perguntava sobre o crescimento e o declínio da igreja, a fim de obter dados para escrever um artigo para uma revista teológica. No entanto, posso dizer em minha defesa, e felizmente, que tudo aconteceu durante um processo em que eu e meus colegas sul-africanos estávamos cruzando nossas próprias fronteiras, literalmente, nas estradas de Angola. No entanto, à medida que a jornada continuava, limites mais profundos — as nossas estruturas interpretativas obstinadas — foram descobertos, enfrentados e atravessados.

Viemos a conhecer e a amar pessoas que nos ensinaram sobre nós mesmos e nossas muitas deficiências. Entramos no território deles e eles entraram no nosso. Foi mutuamente benéfico. Na verdade, foi mais do que benéfico. Foi uma experiência essencial para entendermos sobre o que é o reino de Deus.

Uma das memórias mais marcantes da nossa viagem de 2004 à Angola foi que não havia presente que fosse recebido com mais exuberância do que uma Bíblia nova em português. Quanto mais se prolongava a guerra, mais preciosa a Palavra se tornava. Quando se chega “ao fim da linha”, a fé nos concentra em Deus e a Bíblia nos ajuda a ouvi-lo. Durante este tempo, a igreja angolana experimentou um crescimento espetacular. A fé adentrou na cultura local, na guerra e nas dificuldades, e ajudou pessoas a entenderem o que não tinha sentido, a sobreviverem no dia a dia.

Ensinar teologia em um contexto de sala de aula é um fruto do Iluminismo. Não acho mais que seja adequado somente preparar pastores para o ministério. Devemos seguir o exemplo de Jesus e ir até onde está a dor, até os “pobres”. Ser “rico” é algo que precisa ser redefinido. Fomos enriquecidos em Angola, em 2004 e desde então. Se cruzarmos fronteiras e interagirmos com as diferentes culturas locais, veremos o reino de Deus se revelando entre nós. Este reino não é uma busca acadêmica, e não é brincar de igreja ou com números denominacionais. É o poder de Deus em ação no meio do seu povo.

Eu e minha casa resistiremos a Mamom

O dinheiro promete autonomia abundante. Mas o que precisamos é de um lugar onde não possamos nos esconder.

Christianity Today June 30, 2022
Ilustração de Michael Hirshon

Quando eu e minha esposa, Catherine, nos mudamos para nosso primeiro apartamento, vários amigos nos ajudaram; eles desceram e subiram dois lances de escadas íngremes e estreitos. Três itens da mudança pareciam quase impossíveis de subir por aquelas escadas: uma velha e frágil cômoda que minha esposa havia herdado da avó, uma cama queen-size e um sofá-cama infindavelmente pesado.

Nós batizamos esses móveis de Provação da Delicadeza, Provação da Dimensão e Provação da Força. Vinte anos depois ainda nos lembramos dessas provações, dos amigos que as suportaram alegremente conosco, suando e praguejando naquele dia quente de junho, e da sensação de alívio quando conseguimos superar cada uma delas.

Anos mais tarde, quando minha esposa assumiu o cargo que ocupa desde então, chegou a hora de mudar de novo. Desta vez, a faculdade que a contratou cobriu os custos da mudança.

Os carregadores profissionais passaram pelas mesmas provações, com a nossa mudança, que nossos amigos haviam passado alguns anos antes — suaram e, provavelmente, praguejaram também — mas certamente não consigo me lembrar de seus nomes, ou mesmo de um traço sequer de seus rostos. Eles foram pagos de forma justa para fazerem um trabalho justo. E, uma vez feito o trabalho, eles se foram.

Este é o poder do dinheiro: ele nos permite realizar coisas, muitas vezes por meio de outras pessoas, e sem as complicações da amizade.

Quanto mais tempo passamos no mundo que o dinheiro constrói, mais nos conformamos à sua imagem.

Até hoje, eu me sinto em dívida com meus amigos pela mudança no início do nosso casamento — no mínimo, eu lhes devo meus agradecimentos e meu carinho. Na verdade, eu já devia algo a eles mesmo antes da mudança. Ser amigo é estar entrelaçado a outra pessoa de forma livre, mas permanente.

A nossa relação com os carregadores profissionais, porém, tal como se deu, era diferente. Começou e terminou com uma forma moderna de magia — uma transação que, sem o menor esforço real de nossa parte, transportou todos os nossos pertences de Boston para a Filadélfia e os depositou, ilesos, em nossa nova casa. No momento em que os carregadores colocaram a última caixa em nossa sala e partiram, nossa dependência deles acabou.

A experiência foi leve, do ponto de vista relacional, sem impor nenhum fardo e sem deixar rastros. Ela ilustra a coisa mais distinta que o dinheiro nos permite — bem como sua promessa mais sedutora: abundância sem dependência.

O dinheiro tem contribuido, genuinamente, para a prosperidade humana. Facilitou a extraordinária troca de valor desobstruída pelas revoluções industrial e computacional. Um bom trabalho, bem feito e bem pago — como acredito ter sido, no caso dos homens que nos ajudaram com a mudança — contribui para a dignidade humana e o bem comum.

Mas o dinheiro não nos tem ajudado a prosperar como pessoas da maneira que mais importa. Ele opera em uma esfera onde os complexos compostos de coração-alma-mente-força e projetados para o amor simplesmente não são relevantes. O dinheiro é concebido para um mundo em que, para conseguir o que queremos, não precisamos de amor, nem mesmo de relacionamentos. Quanto mais tempo passamos no mundo que o dinheiro constrói, mais nos conformamos à sua imagem.

Existe um nome para este sistema global, um sistema que alimenta a magia tecnológica que todos nós, até certo ponto, manejamos diariamente, e que é por ela alimentado. Seu nome é antigo, e cheguei a acreditar que é melhor entendê-lo como um nome próprio — isto é, não como um mero substantivo comum, mas como o nome de alguém.

Seu nome é Mamom.

Encontramos este nome em um dos pronunciamentos mais duros e inquietantes de Jesus, que é traduzido desta forma pela versão King James: “Não podeis servir a Deus e a Mamom” (Mt 6.24). Ao falar sobre o perigo dos tesouros terrenos no Sermão do Monte, Jesus descreve Mamom como um rival de Deus, um senhor alternativo.

Mamom é uma palavra em aramaico; os apóstolos que preservaram os ensinamentos de Jesus geralmente os traduziram do aramaico para o grego, língua que seus leitores conheciam melhor. Eles poderiam facilmente ter feito o mesmo com o termo Mamom, e usado palavras como dinheiro ou mesmo riqueza, que têm pouca conotação negativa. Em vez disso, eles deixaram sem traduzir essa palavra em aramaico, sugerindo que ela tinha um significado particular.

Nos primeiros séculos da igreja cristã, mestres e bispos concluíram que, ao usar o nome Mamom, Jesus tinha em mente não apenas um conceito, mas um poder demoníaco. Para Jesus, o dinheiro não era uma ferramenta neutra, mas sim algo que poderia dominar uma pessoa tão completamente quanto o verdadeiro Deus. Mamom não é simplesmente dinheiro, mas um impulso antiDeus que encontra seu poder no dinheiro.

E quanto mais entendemos o poder desfigurador de Mamom na história humana, mais ele parece ganhar vontade própria. What Technology Wants [O que a tecnologia quer], título de um livro de 2010 de Kevin Kelly, parece um floreio retórico um pouco exagerado — porém, um livro chamado What Mammon Wants [O que Mamom quer] teria uma plausibilidade imensa e aterrorizante.

Pois tem algo que Mamom definitivamente quer muito, pois ele, em última análise, não é apenas uma coisa, nem mesmo um sistema, mas sim uma vontade em ação na história. E o que Mamom quer, acima de tudo, é separar poder e relacionamento, abundância e dependência, bem como ser e pessoalidade.

É por isso que a tecnologia, adotada com tanto entusiasmo por seu potencial para o florescimento humano, muitas vezes parece estranhamente sair dos trilhos. Como o teólogo cristão Craig Gay observa com perspicácia, em seu livro Modern Technology and the Human Future, a tecnologia primordialmente não existe — nem nunca existiu — para nos servir ou para sustentar a “corriqueira existência humana encarnada”.

Em vez disso, segundo argumenta Gay, ela sempre foi desenvolvida para servir, em primeiro lugar, à geração de lucro econômico — quer ela também contribua ou não para uma real prosperidade pessoal. Este é um ponto sutil, mas importante. Em muitos casos, a tecnologia realmente traz o bem para nossas vidas. Os hospitais usam bombas de infusão automatizadas para administrar doses precisas de medicamentos, de acordo com um cronograma rigoroso, aliviando os seres humanos de uma tarefa que até mesmo os enfermeiros mais dedicados achariam difícil realizar de forma consistente. Quando tal benefício para os seres humanos se alinha com o lucro econômico, é isso que a tecnologia “quer”.

Mas a tecnologia também “quer” coisas que não conferem benefícios líquidos a nenhum ser humano, a não ser aos proprietários das empresas de tecnologia. A companhia de seguros que paga pelas bombas de infusão também pode coletar dados médicos, divorciados tanto do contexto humano quanto da responsabilidade humana, para tomar decisões mais lucrativas sobre quais condições — e talvez, eventualmente, quais indivíduos — ela se recusará a segurar.

Embora esses impulsos sejam controlados até certo ponto pela regulamentação, não há dúvida de que, se deixadas por conta própria, as empresas que implantam a tecnologia também vão “querer” esse resultado.

Às vezes, os resultados são mistos. Os seres humanos podem se beneficiar, por exemplo, de ter acesso a quantidades ilimitadas de música gravada do mundo todo e de toda a história da música. Com certeza, a tecnologia tem prazer em fornecer isso — gerando lucro econômico para os proprietários dos serviços de streaming, embora não de uma maneira que sustente mais do que um punhado de músicos humanos, e que são quem trabalha de verdade.

Mas os seres humanos também se beneficiam enormemente quando criam música, algo que requer profunda instrução comunitária, atenção pessoal e anos de prática e preparação. Isso, infelizmente, é um tipo de benefício que a tecnologia não pode fornecer de imediato — ao menos não de forma lucrativa —, daí a tecnologia não “querer” particularmente ajudar.

E assim, acabamos com o mundo que temos, no qual se consome mais música do que nunca e se cria menos música do que nunca — especialmente por pessoas comuns e de maneiras que sejam economicamente sustentáveis.

O que a tecnologia quer é realmente o que Mamom quer: um mundo de poder livre de contexto, livre de responsabilidades, livre de dependências, medido em unidades de valor fungíveis e armazenáveis. E, em última análise, o que Mamom quer é transformar um mundo feito e administrado por pessoas em um mundo feito de coisas e reduzido a coisas.

Desse modo, a razão para a dura afirmação de Jesus sobre Deus e Mamom torna-se clara. Em última análise, não podemos servir ao Deus verdadeiro e a Mamom porque seus objetivos são justamente opostos um ao outro.

Deus deseja colocar todas as coisas a serviço das pessoas e, em última análise, trazer à tona a prosperidade da criação através da prosperidade das pessoas. Mamom quer colocar todas as pessoas a serviço das coisas e, em última análise, trazer à tona a exploração de toda a criação.

Que tipo de lugar precisamos para prosperar como pessoas?

Se você e eu somos complexos compostos de coração-alma-mente-força e projetados para o amor, precisamos de um lugar onde possamos exercitar nossas capacidades fundamentais — um lugar onde possamos canalizar nossas emoções e anseios, ser conhecidos na profundidade única do nosso ser, contribuir para compreender e interpretar o mundo, e aplicar a força e a agilidade de nossos corpos a trabalhos que tenham valor em todos os três planos da realidade física.

Acima de tudo, precisamos de um lugar onde possamos investir profundamente nos outros, nos preocupar com sua prosperidade e nos entregar em serviço e sacrifício mútuos, de maneiras que garantam nossas próprias identidades, em vez de apagá-las.

O nome desse tipo de lugar, segundo eu acredito, é clã.

Essa palavra antiga e já meio mofada é a melhor opção que temos em nossa língua para designar algo que era central para a vida no mundo antigo, e ainda o é para a vida em muitas culturas de hoje. Um clã é uma comunidade de pessoas que podem perfeitamente se abrigar sob o mesmo teto, mas também, e mais fundamentalmente, que podem se abrigar sob o cuidado e a preocupação de umas com as outras. Elas proveem umas para as outras e dependem umas das outras. Elas mesclam seus ativos e passivos, seus dons e suas vulnerabilidades de tal forma que é difícil dizer onde um membro termina e o outro começa.

O clã é a comunidade fundamental de pessoas. Construída sobre mais do que um só par isolado, mas abrangendo poucas pessoas, a ponto de todas poderem ser observadas e vistas de forma profunda, verdadeira e persistente, o clã tem o tamanho perfeito para o reconhecimento que todos procuramos a partir do momento em que nascemos.

Precisamos de um lugar onde possamos investir profundamente nos outros, nos preocupar com sua prosperidade e nos entregar em serviço e sacrifício mútuos.

Como saber se você faz parte de um clã?

Você faz parte de um clã se houver alguém que saiba onde você está fisicamente hoje e que tenha ao menos alguma noção de como é estar onde você está. Você faz parte de um clã se houver alguém que procura não fazer barulho, quando souber que você está dormindo. Você faz parte de um clã se alguém se preocupar quando você não acorda. Você faz parte de um clã se as pessoas souberem coisas sobre você que você mesmo não sabe, inclusive coisas que, se você soubesse, tentaria esconder.

Você faz parte de um clã se os outros estiverem perto o bastante para ver e conhecer você tão bem ou melhor do que você mesmo se conhece.

Você faz parte de um clã se vivencia o conflito que é o companheiro inevitável da proximidade — se alguém exige tanto de você que às vezes você sonha em expulsá-lo de sua vida. Você faz parte de um clã se, às vezes, sonha em fugir, talvez para um país distante, para não ser assim tão conhecido.

Você faz parte de um clã, quando sua volta de uma longa viagem é motivo de celebração espontânea. Você faz parte de um clã se, quando você evita entrar em uma festa por sentir raiva, orgulho, culpa ou vergonha, alguém percebe e sai para implorar que você entre.

Esta é a única coisa que precisamos mais do que qualquer outra: uma comunidade que nos reconheça. Embora devamos sempre insistir no fato de que todo ser humano importa, quer seja ou não visto ou tratado como ser humano pelos demais, também sabemos que nenhum ser humano pode prosperar como pessoa, a menos que seja visto e tratado como tal. E, para isso, o clã é o primeiro e o melhor lugar. Precisamos de um lugar onde não possamos nos esconder. Precisamos de um lugar onde não possamos nos perder.

Grande parte da tragédia do mundo moderno se resume a isto: a maioria de nós não tem um lugar assim.

Talvez já tenhamos tido, por um tempo. Talvez houvesse uma casa na rua, de parentes ou amigos, cuja porta dos fundos ficava sempre aberta para nós, quando éramos crianças; quem sabe tenhamos lembranças de ter vivido sob o mesmo teto, durante o serviço militar ou algum trabalho missionário de curto prazo; ou de ter vivido um ou dois anos com colegas de quarto que faziam mais do que apenas dividir as contas da casa. Mas, como esses arranjos são temporários, eles se dissolvem prontamente.

Muitos de nós temos amigos, mas amizades que não estão ligadas por meio da vida em um clã tendem a permanecer tênues e frágeis neste nosso mundo instável — ainda mais depois do ápice dos vínculos [que tivemos] nos anos finais da adolescência.

Muitos de nós temos famílias, mas a família também é frágil, e seu estágio mais crucial — o da criação dos filhos, desde a infância até a idade adulta — é temporário por essência. Um casal com um ou dois filhos em casa é o padrão cultural implícito; hoje, porém, isso descreve apenas uma minoria das famílias identificadas pelo censo dos Estados Unidos. E uma família tão pequena mal tem tamanho suficiente para realmente formar o tipo de comunidade de personalidades para a qual fomos feitos, mesmo antes de os filhos crescerem e partirem.

Se você está procurando uma única causa imediata para a solidão epidêmica em nosso mundo, ela consiste na escassez de clãs.

Nada pode realmente apagar o fato de que a maioria de nós vive longos períodos de nossas vidas sem essa comunidade que nos reconheça, da qual mais precisamos. E nem é preciso dizer que simplesmente ter colegas de quarto — ou ter um cônjuge, pais ou filhos — não é garantia alguma, no reino de Mamom, de que seremos membros de verdadeiras comunidades que nos reconheçam, de que haverá alguém que realmente nos conheça.

Se quisermos seguir um caminho diferente, precisamos começar a construir clãs.

Se você vive com outras pessoas, há, todos os dias, momentos em que vocês estão juntos, construindo o tecido de uma vida na qual vocês sejam vistos e conhecidos? Vocês estão participando de atividades conjuntas que envolvam seus corações, almas, mentes e forças? Estão criando e não apenas consumindo — na cozinha, na sala, na garagem, no quintal ou na varanda? Existem partes de suas vidas cotidianas em que diferentes membros do clã contribuam de modo a combinar seus dons e necessidades individuais?

Ou vocês, mesmo que tecnicamente sendo da família, são mais como meros colegas de quarto, cada um cozinhando, limpando e cuidando de si mesmo? Existem maneiras de vocês proverem uns para os outros, em vez de presumir que cada pessoa proverá para si mesma?

Em alguns lares, a resposta natural para todas essas perguntas já será sim — mas, em outros, essas perguntas podem levar a um reestruturação significativa dos padrões da vida cotidiana, a começar por quem lava a louça (e quem lava a louça de quem, e quantas pessoas lavam) até chegar a outras questões, como saber se toda a família se senta para jantar ou sai junta para uma caminhada diária.

A privacidade que prezamos corre constante perigo de congelar no isolamento.

E então, quem precisa ser incluído nessas práticas domésticas — quem precisa ser convidado? Há outros que tenham a chave da sua casa e um convite franco para usá-la? Os membros da família que vivem a uma distância razoável podem ser convidados a uma proximidade mais incômoda, embora também mais favorável ao reconhecimento?

Os lockdowns por causa do coronavírus, com suas restrições à escola e aos cuidados infantis, levaram muitas famílias a criar “conchas” ou “guarda-chuvas” que acolhiam um punhado de unidades formadas por pais e filhos. Como relacionamentos mútuos desse tipo podem continuar, mesmo quando os lockdowns acabarem?

Até mesmo levantar essas questões, pelo menos para mim e minha casa, é levantar todo um conjunto de dúvidas e medos. Em quem eu realmente confio o suficiente para convidar a viver tão perto da minha própria vida, de minha esposa e meus filhos? Como vou manter essa privacidade e essa autonomia sem problemas, as quais passei a prezar?

Que riscos estarei acrescentando à minha vida, se eu convidar pessoas a se aproximarem mais do que a distância de um braço, se me tornar dependente de outras pessoas, em vez de trocar pagamento por serviços que me deixam formalmente desobrigado, livre?

A verdade, porém, é que somente pressionando a aceitação dessas questões e superando-as, cresceremos de modo a ter pessoas de fora do nosso círculo íntimo mais restrito em quem possamos confiar.

A privacidade que prezamos corre constante perigo de congelar no isolamento. Até mesmo alguns eventos adversos em nosso casamento ou em nossa saúde pessoal, sem mencionar o transcorrer dos anos e o envelhecimento, podem levar nossa independência atual a uma solidão terminal.

Construir clãs desse tipo exige justamente o oposto de soluções fáceis. É um trabalho lento, de paciência e humildade. E esses clãs produzem justamente o oposto de Mamom, com sua promessa fraudulenta de abundância sem dependência.

Eles criam, através da dependência mútua, o tipo de abundância que não se pode contar nem transportar — que a ferrugem não come e que ninguém pode roubar.

Andy Crouch é parceiro da Prazis nas áreas de teologia e cultura. Este artigo foi adaptado da obra The Life We’re Looking For: Reclaiming Relationship in a Technological World. Copyright © 2022 por Convergent Books.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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Na República Dominicana, evangélicos pedem uma reforma da polícia

Leia esta e outras notícias sobre cristãos em um giro rápido ao redor do mundo.

Christianity Today June 28, 2022
Spencer Platt / Staff / Getty

A Suprema Corte da Carolina do Sul decidiu que a Igreja Anglicana na América do Norte deve devolver 14 das 29 propriedades paroquiais à Igreja Episcopal. As congregações se separaram da Igreja Episcopal em 2012, e levaram consigo cerca de 500 milhões de dólares em propriedades da igreja, depois que uma convenção geral votou para permitir a bênção para casais do mesmo sexo. O tribunal estadual decidiu a favor das congregações separatistas em 2017, mas a Igreja Episcopal entrou com recurso contra essa decisão. Analisando novamente o processo [em segunda instância], o tribunal percebeu que 14 das paróquias desafiliadas tinham subscrito a um estatuto de 1979 que dizia que elas detinham suas propriedades sob o regime de trust, ou seja, apenas as administravam em benefício da denominação.

Estados Unidos: morre mulher que alegava batismo forçado

O Departamento de Investigação do Tennessee está investigando a morte de uma mulher de 42 anos que estava processando um xerife por forçá-la a ser batizada. Shandle Marie Riley foi parada em uma fiscalização de trânsito, em 2019, e disse ao xerife Daniel Wilkey que portava um cigarro de maconha. Ela afirma que ele, então, lhe fez uma proposta: prisão ou batismo. Riley escolheu o batismo. O ritual religioso foi filmado por um segundo agente. Tem pos depois, Riley entrou com uma ação, alegando que os policiais violaram sua liberdade religiosa. Um juiz do Tennessee decidiu em abril que seu processo poderia prosseguir. Uma semana depois, Riley foi encontrada morta. Wilkey também foi acusado de desnudar pessoas na beira da estrada com o intuito de revistá-las e enfrenta vários processos civis e acusações criminais em Chattanooga.

República Dominicana: Evangélicos pedem uma reforma da polícia

A Confraria dos Pastores das Igrejas Evangélicas de Ocoa pede uma reforma da polícia na capital da província, depois que um homem de 32 anos sob custódia policial morreu. A equipe médica disse, inicialmente, que José Gregorio Custodio morreu depois de ser espancado por policiais; porém, mais tarde, o resultado do laudo foi alterado, afirmando que os hematomas no corpo do homem morto foram causados ​​​​por uma reação alérgica. “Depois que um cidadão é preso, não deve ser vítima de maus-tratos e muito menos se deve matá-lo”, disse o pastor Andrés Febles.

Trinidade e Tobago: escola das Assembleias de Deus enfrenta auditoria

O governo de Tobago está investigando as finanças de uma escola de ensino médio da Assembleia de Deus que foi fechada repentinamente. A Escola Secundária da Fundação Pentecostal Luz e Vida encerrou atividades em abril, um dia após o início do período letivo, com 23 dos 27 professores da escola deixando as instalações por causa de preocupações com as condições do prédio. Duas outras escolas também foram fechadas, uma católica e uma adventista do sétimo dia, e também serão investigadas. A escola das Assembleias de Deus recebe o equivalente a cerca de 88 mil dólares do governo por período letivo, e parte disso deve ser usado para custear a manutenção do prédio. A diretora da escola disse que esses são problemas contínuos e criticou a secretaria da educação por divulgar suas preocupações nas redes sociais.

França: A liberdade religiosa precisa ser vigiada 'como leite no fogo'

Os evangélicos franceses pediram ao presidente Emmanuel Macron que priorize a liberdade religiosa em seu segundo mandato. Thierry Le Gall, membro do Conselho Nacional de Cristãos Evangélicos da França, disse: “A liberdade de expressão religiosa precisa ser vigiada como leite no fogo”, porque leis recentes que visam os muçulmanos transformaram a nação “de um pacto republicano de tolerância em uma política de vigilância a religiões”. Pesquisas mostram que a maioria dos evangélicos apoiou Macron contra Marine Le Pen, sua oponente nacionalista conservadora. Macron é agnóstico.

Suíça: cristão requerente de asilo ganha recurso

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos decidiu que as autoridades suíças não avaliaram devidamente o risco que havia para um convertido do Exército da Salvação, caso ele fosse deportado para o Paquistão. Eles olharam para a questão da perseguição às igrejas, mas não para os riscos que existem para convertidos individuais. Os governos europeus têm se esforçado para desenvolver um sistema viável para avaliar a legitimidade das conversões de requerentes de asilo.

Nigéria: Pastores debatem casamento “bíblico”

O ator nigeriano Yul Edochie anunciou seu casamento com uma segunda esposa, provocando um debate nacional sobre a poligamia. Reno Omokri, ex-assessor do presidente Goodluck Jonathan e pastor independente [sem vínculos denominacionais], disse que nas Escrituras muitos homens de Deus são polígamos e que a prática só é proibida para bispos e anciãos. A aceitação pelos africanos do “construto ocidental” da monogamia levou à aceitação social do adultério e do casamento entre pessoas do mesmo sexo, argumentou ele. Kingsley Okonkwo, um pastor que frequentemente aborda a questão dos relacionamentos, rebateu, dizendo que, embora alguns homens na Bíblia tivessem mais de uma esposa, fica claro nas Escrituras que esse nunca foi o plano de Deus para o casamento.

Israel: homenagem a policial morto

Ônibus lotados de judeus ultraortodoxos compareceram ao funeral de um policial árabe cristão, homenageando-o como um “herói de Israel”. Amir Khoury, 32 anos, correu para o local de um tiroteio terrorista, na cidade de Bnei Brak, perto de Tel Aviv. Ele e seu parceiro trocaram tiros com um palestino de 27 anos, que teria ficado bravo por uma parente ter sido atacada por colonos. O palestino e Khoury foram mortos no tiroteio. Em Israel, cristãos recentemente entraram em confronto com as autoridades. Alguns afirmam que o governo não os quer no país.

Coreia do Sul: 1 milhão de dólares é enviado para imigrantes judeus em Israel

Cristãos sul-coreanos doaram 1 milhão de dólares para ajudar judeus etíopes e ucranianos que imigram para Israel. O dinheiro irá para a Agência Judaica em Israel e terá sua destinação organizada por One New Man Family, um ministério que visa reunir judeus e gentios para “celebrarem a Segunda Vinda de Cristo”, de acordo com seu site. A maioria dos cristãos coreanos acredita que a igreja é o novo Israel, mas o pastor Eun Soo Seol — também conhecido como Pastor Joshua — quer persuadi-los a “ver Israel como Israel na Bíblia”.

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Os filhos de missionários não estão bem

Crianças da terceira cultura estão lutando contra a crise de cuidado na igreja, dizem especialistas.

Christianity Today June 28, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / Elīna Arāja / Pexels / Tony Sebastian / Unsplash

“Como vai?”, meu professor me pergunta quando entro na sala de aula vazia. “Eles estão bombardeando minha cidade”, é tudo que consigo dizer. “Ah, não”, eles murmuram. Eles se lembram de onde eu sou. Parte de um poema de Abigail de Vuyst, 18 anos, filha de missionários americanos que viveram na Ucrânia.

Abigail de Vuyst, filha de missionários americanos que está no primeiro ano da faculdade, já sentia falta de sua casa na Ucrânia, lugar em que viveu a maior parte de sua vida, enquanto estudava na faculdade em Michigan. Agora, ela passa seus dias se preocupando com os amigos. Será que eles estão seguros em seus porões? Será que vão conseguir sair?

“É difícil ficar apenas sentada, vendo tudo acontecer”, disse ela.

Lar é um conceito complexo para filhos de missionários (FMs) — crianças e jovens cuja cidadania pertence a um país e cuja criação se dá em outro. Mesmo na melhor das circunstâncias, o mundo dos FMs é “areia movediça”, disse a autora Michele Phoenix, defensora da causa dos FMs. E agora?

“Estamos destruídos”, disse Annie Wiltse, professora da escola internacional na Ucrânia que Abigail costumava frequentar. Annie e seus alunos tiveram apenas 24 horas para fazer as malas para a evacuação. “Este é… em alguns casos, o único lar que eles já conheceram na vida.”

Os registros sobre o número de crianças que vivem com seus pais missionários em outros países não estão disponíveis, mas os números de 2020 da World Christian Database mostram que havia cerca de 6 mil missionários cristãos na Ucrânia e 425 mil missionários estrangeiros em todo o mundo.

Alguns filhos de missionários americanos estão se sentindo impotentes, presos nos Estados Unidos por causa das restrições da COVID-19; outros estão esperando no Kansas por um período ainda indefinido, em função de um problema de sequestros no Haiti, e muitos que estão na fase de transição para a faculdade (algo que acontece a cada outono) estão deixando para trás países de origem em turbulência.

Os FMs crescem viajando pelo mundo, desfrutando de ricas experiências culturais e muitas vezes permanecem conectados a fortes comunidades de fé. Mas, mesmo para aqueles criados em países não devastados pela guerra, essa não é toda a história, dizem os especialistas. Muitos experimentam perdas, confusão de identidade, crises de fé e negligência.

De fato, pesquisas mais recentes indicam que o nível de trauma que os filhos de missionários vivenciam é muito maior — quase o dobro — do que o das crianças que crescem nos Estados Unidos. E, no entanto, suas necessidades são muitas vezes negligenciadas por agências missionárias, por parceiros da igreja local e até mesmo por suas próprias famílias, tanto no campo missionário quanto fora dele.

“É um mito essa história de que as crianças são naturalmente resilientes”, disse Lauren Wells, outra autora e defensora da causa dos FMs. “Resiliência é algo que precisa ser construído, nutrido e cuidado.”

Eu mesma sou filha de militar, fui uma criança da terceira cultura, sou mãe de três filhos de missionários, dos 14 anos que servimos na Indonésia, e jornalista que também escreveu para esse público dos FMs nos últimos 2 anos, desde que retornamos para os Estados Unidos. Achei que entendia bem as dificuldades que eles enfrentam. Mas minha entrevista com Wells e a pesquisa sobre trauma e negligência foram reveladoras.

Felizmente, há um contingente cada vez maior na comunidade missionária que finalmente está começando a prestar atenção às necessidades críticas dessas crianças. Especialistas, defensores e apoiadores — muitos deles filhos de ex-missionários — estão oferecendo orientação sobre como lidar com os problemas singulares que os FMs enfrentam.

As comunidades missionárias não apenas devem se mostrar dispostas a falar sobre questões difíceis, mas também devem fazer planos para fornecer cuidados intencionais de longo prazo, dizem esses especialistas. E a igreja global tem um papel importante a desempenhar nesse esforço.

Muitas vezes, as famílias de missionários são vistas como “supercristãos” que são invulneráveis às consequências negativas decorrentes de seus muitos sacrifícios pela missão de Deus. E assim, embora as agências missionárias tenham uma responsabilidade especial de ajudar os FMs, as igrejas locais que fazem parceria com esses missionários também devem reconhecer que seus filhos estão pagando um alto preço pelo compromisso dos pais com o reino de Deus.

“A igreja precisa estar ciente de que os filhos de missionários precisam ser cuidados, e não colocados em um pedestal”, disse Wells.

O trauma por trás dos sorrisos

Os filhos de missionários são apenas um dos tipos de criança da terceira cultura (TCK, na sigla em inglês), termo cunhado pelos antropólogos John e Ruth Useem, na década de 1950, para descrever crianças que não se identificam plenamente com a cultura de seus pais nem com a cultura do país em que vivem, formando, em vez disso, uma “terceira cultura”.

Elas experimentam transição frequente e espera-se que voltem para o país de origem de seus pais, também chamado de “país do passaporte”, para frequentar a universidade. As crianças da terceira cultura são conhecidas pela capacidade de interagir bem com várias culturas e por serem construtoras de pontes, mas uma pergunta as deixará perplexas: “De onde você é?”

“Há tantas respostas diferentes para essa pergunta simples”, disse o autor Dan Stringer, um filho de missionários que cresceu entre Nepal, Filipinas, República Democrática do Congo, Canadá e Estados Unidos. “Onde eu nasci? De onde são meus pais? Qual é o país que mais conheço? Onde moro atualmente?”

Essas transições podem ser experiências traumáticas — especialmente quando as perdas incluírem não apenas os amigos e a cidade [em que viviam], mas também o país, o idioma, a cultura, os alimentos, sons e cheiros. É por isso que filhos de missionários e crianças da terceira cultura geralmente apresentam sinais de transtorno de estresse pós-traumático complexo (TEPT) quando adultos, disse Wells.

“É a perda de um universo a cada vez”, disse Phoenix.

Agora, os defensores da causa dos FMs têm a pesquisa para educar os pais e as organizações. Os resultados preliminares do TCK Training mostram que as pontuações dessas crianças na categoria experiência adversa na infância (ACE, na sigla em inglês) são mais altas do que as das crianças americanas, disse Wells, CEO da organização e responsável por liderar a pesquisa junto com Tanya Crossman. Cerca de 20% das crianças da terceira cultura, quando se tornam adultos, relatam ter quatro ou mais fatores relacionados a ACE — em contraste com os cerca de 12,5% da população em geral dos EUA.

As diferenças são particularmente surpreendentes quando consideramos que as pontuações mais altas de ACE nos Estados Unidos geralmente vêm de um status socioeconômico mais baixo, disse Wells. No entanto, muitas destas crianças crescem com privilégios comparativos.

“Só porque as coisas parecem realmente ótimas não significa que essas crianças [FMs] não estejam expostas a um nível ainda mais alto de trauma de desenvolvimento”, disse Wells.

O estudo, que será publicado ainda este ano, mostra, como era de se esperar, que essas crianças veem muita morte e pobreza, relata Wells. Mas alguns dos traumas são inesperados. Por exemplo, se ficam com uma babá que não fala a língua delas — uma prática comum, vista como oportunidade pela imersão no idioma que ela proporciona — algumas crianças podem sentir isso como negligência emocional.

“Do ponto de vista da criança, a pessoa que deveria cuidar das minhas necessidades não consegue entender nada do que estou dizendo e não há ninguém por perto a quem eu possa pedir isso”, disse Wells. “Às vezes, podemos mitigar esses traumas educando sobre coisas desse tipo.”

A negligência familiar também foi um fator medido pelo estudo. Cerca de 32% das crianças da terceira cultura acreditavam que seus pais não as achavam especiais ou importantes, enquanto 24% achavam que em suas famílias as pessoas não apoiavam umas às outras, relatou Wells.

No passado recente, várias organizações missionárias exigiam que os pais enviassem seus filhos para internatos a partir dos seis anos de idade, e alguns pais ainda optam por fazê-lo, pela qualidade da educação. Mas para alguns filhos de missionários, isso pode parecer abandono tanto por parte de seus pais quanto de Deus, dizem os defensores dos FMs.

Este problema não se limita aos Estados Unidos. Na verdade, os filhos de missionários são cada vez mais crianças que não são brancas nem americanas, dizem os especialistas. O Sul Global agora envia mais missionários, coletivamente, do que os Estados Unidos, de acordo com as estimativas de 2020 da World Christian Database.

O Brasil é o segundo maior país de envio, depois dos Estados Unidos, com cerca de 40 mil missionários enviados. Os brasileiros muitas vezes se juntam a uma equipe de língua inglesa em outros países. Seus filhos podem frequentar escolas internacionais de língua inglesa, o que acrescenta mais um idioma que eles devem aprender, disse Alicia Macedo, coordenadora do “Filhos de Missionários” da Associação Brasileira de Missões Transculturais.

Independentemente do país de origem dessas crianças, no entanto, os problemas que enfrentam são amplamente universais.

Quando Deus é seu empregador

Para os filhos de missionários, a resposta para a pergunta sobre quem os enviou para o exterior é muito mais clara: foi Deus. Isso acrescenta complexidade — e às vezes dor — à experiência dos filhos de missionários.

Muitos deles cresceram em uma cultura na qual os sentimentos negativos são reprimidos. Eles se sentem perdidos no propósito maior da missão de Deus, e sua dor fica escondida. Deus não é visto como alguém seguro para alguns, disse Wells.

“O componente fé para os filhos dos missionários os torna únicos, porque Deus é o instigador de todas as coisas grandiosas e de todas as partes dolorosas de se crescer transculturalmente no ministério”, disse Phoenix. “Tudo na vida deles está relacionado à fé.”

Falei pela primeira vez com Phoenix quando ela estava se apresentando em uma conferência sobre educação, na Tailândia. Eu era uma mãe missionária que fazia homeschooling com meus filhos, morava em Bornéu, e estava tentando descobrir como ensinar melhor meu filho que tinha dificuldades de leitura. Ela me abriu os olhos para algumas dessas dificuldades mais profundas.

Segundo dizem os defensores, mesmo quando os FMs relatam experiências de fé e familiares mais positivas, ainda assim eles precisam de liberdade para examinar suas crenças.

“Faço isso desde o início, porque tenho feito comparações”, disse Rachel Kuo, uma americana filha de missionários que cresceu em Hong Kong e Taiwan, mas visitava os Estados Unidos. “Eu ficava perplexa com a igreja americana e me perguntava: Por que ela é tão próspera? Por que se reúne em prédios tão grandes?”

Alguns filhos de missionários usaram o próprio processo pelo qual passaram como um convite para que a igreja americana pudesse enxergar o cenário maior. Stringer, que escreveu Struggling with Evangelicalism: Why I Want to Leave and What It Takes to Stay, usa a diversidade de suas experiências cristãs para encorajar os cristãos americanos em sua fé.

“Eu experimentei o quanto a fé varia em função de geografia, raça”, disse ele. “Sei que somos apenas um lugar em um grande mapa. Isso me ajuda a filtrar quais são as coisas essenciais que qualquer cristão valorizaria e quais são as coisas que são exclusivas da América”.

Muitas crianças da terceira cultura que lutam com traumas ou abusos em missões, com sua sexualidade ou saúde mental acabam desconstruindo sua fé, disse Phoenix.

Por exemplo, quando a família de Josh — que na época tinha tinha seis anos — se mudou para o leste da Ásia, ele perdeu todos os amigos que eram dos Estados Unidos. (O sobrenome de Josh está sendo omitido por razões de segurança, por causa de onde seus pais ainda servem.) Ele levou anos para aprender o idioma bem o suficiente para fazer amigos locais em sua nova casa.

Anos depois, ele voltou para os Estados Unidos para fazer faculdade e lutou para encontrar seu lugar mais uma vez. E, bem no momento em que ele estava tentando se ajustar à sua nova vida, perdeu um amigo próximo (também filho de missionários) que se suicidou. Ele começou a lutar contra a depressão e não conseguiu encontrar apoio na igreja. Então, culpou Deus e se afastou da fé.

“De todas as pessoas que poderiam legitimamente se considerar filhos de Deus, sinto que as crianças da terceira cultura são as que devem ter mais direito a isso, pois somos um grupo de pessoas nômades, que viajam em nome de Deus, levando sua palavra e vida às nações”, ele disse. “E, no entanto, somos os que aparentemente são deixados de lado e não são amados nem cuidados pelo corpo da igreja.”

Outro filho de missionário o encorajou, e ele finalmente voltou à fé e à igreja. Agora, ele está se preparando para se mudar com a esposa para a Espanha, a fim de apoiar filhos de missionários que estão no campo missionário. Seu objetivo é ajudar essas crianças a processarem experiências traumáticas enquanto são mais novas, antes que se tornem obstáculos que precisem ser superados quando adultos.

Imigrantes ocultos envolvidos em jornadas profundas

Há muitas maneiras de as igrejas locais apoiarem os filhos de missionários de suas redes.

Por exemplo, e se todas as congregações dedicassem um tempo para entrar em contato com as famílias missionárias com as quais fazem parceria, perguntando especificamente como poderiam apoiar as crianças? Ou se as igrejas organizassem eventos especiais para esses filhos de missionários sempre que suas famílias voltassem para licença ou para tarefas do ministério?

Pode ser algo tão simples quanto uma família que tenha crianças da mesma idade levá-los para almoçar depois do culto ou levar seus adolescentes para grupos de jovens ou acampamentos da igreja. E, na era da mídia social, há muitas maneiras de continuar em contato com filhos de missionários que estejam enfrentando dificuldades no exterior.

Quanto aos filhos de missionários que voltam para os Estados Unidos para fazer faculdade e se juntam a uma igreja próxima, pode ser adotada uma abordagem diferente — como estar disposto a fazer perguntas mais profundas e estar preparado para ouvir respostas difíceis.

“Ouvir é exercer hospitalidade”, disse Rachel Kuo.

Pergunte a esses jovens como eles estão realmente se saindo e o que tem sido difícil em suas experiências, sugerem os defensores. Mas também deixe de lado as diferenças e ouça pessoas que vêm de um outro mundo de experiências, Kuo pede.

Outro ponto foi mencionado por várias das pessoas que entrevistei para este artigo: filhos de missionários estão hoje perguntando: Como os missionários e as igrejas que os apoiam podem alcançar prostitutas na Ásia, mas não acolhem bem em sua vida pessoas que têm pensamentos e crenças diferentes dos seus?

As jornadas das crianças da terceira cultura não são apenas amplas, por abrangerem o mundo todo, mas também profundas, disse Kuo. Elas estão tentando se encontrar enquanto suas famílias se veem em meio a grandes e complexos diálogos que envolvem missões e colonialismo, racismo institucional e sofrimento humano.

Na verdade, uma das ocasiões em que as crianças da terceira cultura mais precisam do apoio dos pais e de suas comunidades eclesiásticas é quando elas se mudam para o seu país de passaporte, dizem os defensores do FMs, especialmente porque muitas vezes se sentem ressentidas por terem de deixar o país em que nasceram.

Por exemplo, esses chamados “imigrantes ocultos” podem parecer americanos por fora, mas não se sentem como se fossem daqui, diz Josh.

“Em países estrangeiros, somos tratados com graça”, disse Josh. “Quando você volta para os Estados Unidos, todo mundo lhe trata como um idiota, porque ‘Como você pode não saber disso?’”

Às vezes, até as coisas mais simples podem revelar essas diferenças — como não saber como funciona um banco ou um hospital no outro país. Muitos filhos de missionários chegam aos Estados Unidos para fazer faculdade sem saber dirigir.

“Precisamos de muito mais ajuda do que jamais admitiremos”, disse Josh.

Nos EUA, o MK Harbor Project é uma rede para pessoas dispostas a ajudar filhos de missionários com esse tipo de coisas práticas. As faculdades estão descobrindo como fazer isso também.

Algumas faculdades cristãs estão encontrando maneiras de fazer perguntas sobre ser criado em países estrangeiros, disse Tammy Sharp, diretora do MuKappa, que é um ministério para filhos de missionários presente em 20 campos universitários. Algumas até mantêm uma orientação separada para calouros que são filhos de missionários. Outras faculdades cristãs estão ligadas a ministérios que acolhem filhos de missionários que queiram viver com colegas (também filhos de missionários), enquanto frequentam a faculdade.

De sua parte, Kuo está convidando crianças da terceira cultura que participarem este ano da Urbana, uma conferência de missões globais, para um momento especial “para lutar com algumas das coisas que estão por vir”. Mas a proposta é, principalmente, ser um espaço onde elas possam ter um senso de pertencimento.

Ter esse senso de “pertencimento” pode ser pedir demais, agora, dos filhos de missionários que fogem da guerra na Ucrânia. Mas Wiltse espera que dar voz a seus alunos os ajude a encontrar seu caminho. Ela acorda cedo em Michigan — às 3 da manhã — para dar aula para seus alunos na Europa.

Ela os guia em momentos de escrita livre. Ela se gaba da defesa que eles fazem em prol da Ucrânia. E ela publica a poesia que de Vuyst escreveu para todo o mundo ver.

“Como vai?” Eu suspiro; sei que estou segura com eles. “Tem sido um dia difícil.” Eles me ajudam a processar, Choram comigo e oram comigo. — Abigail de Vuyst

Rebecca Hopkins é uma jornalista que vive no Colorado.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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15 orações para um mundo violento

Em uma época exaurida por tanto sofrimento, como podemos orar?

Christianity Today June 27, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons

Como pai de duas crianças na faixa etária entre 5 e 10 anos, fiquei profundamente abalado com a notícia do tiroteio em massa, no dia 24 de maio, em Uvalde, no Texas — local que fica apenas a três horas ao sul de minha casa em Austin —, que resultou na morte de 19 crianças e 2 professores.

Quando levava minha filha para a escola, na manhã seguinte, senti intensamente a fragilidade e a imprevisibilidade da vida, e percebi que estava ficando com muito medo — e cada vez mais zangado.

Apenas 10 dias antes, um homem de 18 anos, por motivações raciais, vestido com armadura corporal e empunhando um rifle com uma alta capacidade de munição, atirou e matou 10 pessoas em um supermercado Buffalo, ferindo outras 3. Onze das 13 vítimas eram negras.

Um dia após o tiroteio em massa em uma loja Tops Friendly Markets, ao norte de Nova York, um atirador entrou na Igreja Presbiteriana de Genebra, em Laguna Woods, Califórnia, onde um grupo de paroquianos se reuniu para um almoço em homenagem a um ex-pastor de uma congregação de Taiwan, que usa a igreja para seus cultos — e atirou e matou uma pessoa e feriu outras 5.

Uma nação bombardeia outra, uma denominação mantém uma lista secreta de pastores abusivos, um homem é revistado por causa de sua cor de pele, um cristão é perseguido por causa de sua fé e milhares são cruelmente desalojados de suas casas — e tudo isso ocorre junto com uma pandemia global como pano de fundo.

À luz de toda essa violência, é tentador se desligar emocionalmente. É tentador ceder ao desespero. “Assim caminha a humanidade”, poderíamos dizer, desejando que fosse de outra forma, mas nos sentindo impotentes para fazer alguma diferença. É tentador mergulhar no trabalho ou buscar chavões espirituais para anestesiar a dor. “Entrega para Deus e confia”. "Deus trabalha de formas misteriosas”. “O céu é o nosso verdadeiro lar.”

Mas nosso mundo é violento e a Bíblia não nos permite ignorar essa violência nem explicá-la com slogans teológicos bem arranjadinhos. Ela nos pede para encararmos o mundo de frente, juntos, e, quando necessário, expressarmos nossa raiva a Deus. A Bíblia nos convida a ficar zangados com Deus, pois ele pode lidar com todas as lágrimas e maldições que rogamos com amargura e raiva. E essas palavras precisam ser ditas em voz alta, porque é assim, em parte, que evitamos que o caos da violência crie raízes em nossos corações.

Conforme escrevo em meu livro sobre os salmos, no Saltério, o livro oficial de adoração de Israel, não há oração devotada que banalize o mal, não há fé genuína que ignore os poderes destrutivos do pecado e não há sequer um testemunho genuíno que feche os olhos para a violência do nosso mundo. É por essa razão que nos voltamos para os salmos em busca de orientação em tempos como estes que vivemos, pois eles nos mostram aquilo que podemos — e, na verdade, devemos — orar em um mundo violento.

Mas uma pergunta permanece: Como exatamente oramos após tamanha violência? Que palavras de lamento podemos colocar em nossos lábios que darão sentido à insensatez? À luz do poder corrosivo do ódio, que permite que alguém mate irracionalmente o seu próximo, ao que todo o povo de Deus poderia dizer “amém”? O que um povo exausto e abatido diz a Deus numa hora dessas?

Essas perguntas estão, é claro, longe de serem fáceis de responder, mas nos últimos dois anos tenho tentado traduzir em palavras esses assuntos, sob a forma de uma Coletânea de orações — na esperança de que elas possam ser úteis, e talvez reconfortantes, para pessoas que enfrentam de diferentes formas os terrores e traumas de ações violentas.

Que o Senhor, em sua misericórdia, ouça nossas orações.

Uma oração de ira:

Ao Deus cuja santa ira cura;

Ao Messias cuja justa ira vence o mal;

Ao Espírito que impede que nossa ira se torne destrutiva:

Recebam nossos corações feridos;

Acolham nossas palavras ardentes;

Protejam-nos do desejo de vingança.

Que nossa justa ira se torne combustível para a justiça em nosso mundo fragmentado

e para a reconciliação de relações rompidas em nossos bairros e lares.

Pelo amor do teu nome.

Amém.

Uma oração após um tiroteio em massa:

Ó Senhor, a ti, que abominas aqueles que assassinam inocentes, rogamos que não fiques surdo aos nossos clamores amargos e não nos abandones à nossa dor neste dia. Ouve nossas palavras furiosas de protesto, ó Deus de Jacó, ouve nossos gemidos por justiça e encontra-nos neste lugar de humilhação e desespero. Desperta, Senhor! Desperta-te! Livra-nos do mal, por amor do teu nome! Assim oramos para que possamos testemunhar teu poder de salvação e cura. Assim oramos em nome daquele que é nossa Fortaleza e Refúgio. Amém.

Uma oração de amargo lamento:

Deus misericordioso, tu que choras com os que choram, que socorres os oprimidos, que inclinas os ouvidos aos necessitados e que curas os quebrantados de coração: ouve a nossa oração. Acaba com a nossa angústia. Preserva nossas vidas. Resgata-nos. Cura-nos. Esteja perto de nós neste dia. Oramos isto em nome de Jesus, homem de dores que sabe o que é padecer, sobre quem lançamos todas as nossas preocupações. Amém.

Uma oração pela paz em tempos de guerra:

Ó Senhor, a ti, que és o Verdadeiro Rei, rogamos que tenhas misericórdia das pessoas que sofrem os estragos da guerra neste dia. Silencia os beligerantes, dissipa os sanguinários, destrói as armas de guerra e tem piedade dos vulneráveis, para que a paz e a justiça verdadeiras possam ser restauradas nesta terra. Oramos isto em nome do Príncipe da Paz. Amém.

Uma oração contra a sede de sangue:

Ó Senhor, a ti, que abominas os sanguinários, rogamos que repreendas os assassinos e quebres a espada dos violentos, para que possamos dar testemunho de ti como Deus de justiça e Senhor de retidão, sob a luz do sol do meio-dia. Assim oramos em nome de Cristo, nosso Rei. Amém.

Uma oração em resposta à morte:

Ó Cristo ferido, a ti, que foste às profundezas monstruosas e tragaste a morte por inteiro, provando de sua amarga natureza definitiva e vencendo-a, de uma vez por todas, rogamos que nos livres do medo da morte e nos confortes das perdas que experimentamos por conta da morte, para que nossos corações sejam hoje infundidos com a tua vida de ressurreição. Assim oramos em nome daquele que é a Ressurreição e a Vida. Amém.

Uma oração pelos policiais:

Ó Senhor, a ti, que amas a retidão e a justiça, oramos hoje por todos os policiais; que tu os apoies e os abençoes em seus deveres, e os fortaleças para que defendam a causa dos vulneráveis, protejam o direito dos oprimidos, sirvam em prol do bem da comunidade e preservem a paz em nossas cidades, a fim de que sejam emissários da tua justiça no mundo. Assim oramos em nome daquele que governa as nações. Amém.

Uma oração por nossos inimigos:

Ó Senhor, a ti, que nos pedes para fazer o impossível — abençoar nossos inimigos, orar por aqueles que nos perseguem e amar aqueles que nos causam mal —, oramos para que faças o impossível em nós: Ajuda-nos a amar nossos inimigos como tu os amas e a lembrar quem são nossos verdadeiros inimigos: Satanás, a morte e as forças espirituais do mal. Faze também um milagre em nossos inimigos, por meio do teu Espírito, e em tua soberania restringe o poder do mal neste mundo. Assim oramos em nome Daquele que faz coisas impossíveis. Amém.

Uma oração contra o ódio ao nosso próximo:

Ó Senhor, a ti, que nos mandas abençoar nossos inimigos, rogamos que nos protejas de transformar nossos próximos em inimigos dignos apenas de ódio e merecedores de nada além de insultos e maldições; em vez disso, concede-nos o coração de Jesus, para que possamos amar nossos próximos como tu os amas. Assim oramos em nome Daquele que faz nascer o sol sobre maus e bons. Amém.

Uma oração para amar um próximo que esteja ferido:

Ó Senhor, a ti, que não desvias o olhar da dor deste mundo, rogamos que abras os nossos olhos para a dor do nosso próximo e, pela graça, que sejamos para ele a presença e o poder restaurador de Jesus, a fim de que desse modo, neste dia, nossos corações possam se inflamar de amor pelo próximo. Assim oramos em nome daquele que é Misericordioso. Amém.

Uma oração para se tornar um povo que ama a justiça:

Ó Senhor, oramos a ti, que odeias aqueles que tomam decisões injustas, para que possamos ser um povo que se oponha à injustiça que ocorra em qualquer lugar, como algo que ameaça a justiça em todos os lugares, a fim de podermos nos tornar representantes dignos do teu reino justo e extremistas pelo amor de Cristo. Assim oramos em nome Daquele que liberta os oprimidos. Amém.

Uma oração para aqueles que estão cansados ​​de fazer o que é certo:

Ó Deus, a ti, que vês o coração de todos com perfeita clareza, confesso minha irritação com aqueles que abrem caminho com palavras de intimidação, que pensam que ninguém vê o que eles fazem nas sombras e que vivem em um mundo de negação. Estou com raiva, com medo e cansado de fazer a coisa certa. Oro para que fortaleças meu coração, a fim de que eu não perca a esperança. Assim oro em nome do Bom Pastor e do Justo Juiz. Amém.

Uma oração contra a dubiedade do coração:

Ó Senhor, tu que fostes aplaudido e zombado pela mesma multidão, tem misericórdia de meus próprios caminhos dúbios: quando confesso um pecado abertamente e escondo outro; quando bendigo a Deus com um lado da boca, enquanto amaldiçoo meu próximo com o outro; quando sorrio em público, mas fico irado em particular; quando amo a Deus e ao dinheiro igualmente; e por todos os outros pecados que cometo além destes. Concede-me a graça da integridade — de ser uma coisa só por inteiro — não importa a que custo. Assim oro em nome Daquele que permanece Verdadeiro. Amém.

Uma oração pelo pacífico reino de Deus:

Ó Senhor, tu que fostes manifestado ao mundo na visita dos Reis Magos, manifesta-te ao mundo hoje como o Rei que se recusa a usar a violência do mundo para alcançar a paz que tanto desejamos, a fim de que possamos ser fortalecidos para fazer a obra do teu reino pacífico em nosso próprio tempo e lugar. Assim oramos em nome do nosso Redentor e Rei. Amém.

Uma oração de fidelidade ao Príncipe da paz:

Ó Senhor, a ti, que mereces toda a nossa lealdade, hoje juramos fidelidade ao Cordeiro de Deus e ao reino invertido, uma nação santa sob Deus, para a qual ele representa o Rei Servo e o Príncipe da Paz, com liberdade e justiça para todos, por completo. Oramos isto em nome da Santíssima Trindade. Amém.

W . David O . Taylor é professor associado de teologia e cultura no Seminário Teológico Fuller. Ele é o autor de Open and Unafraid: The Psalms as a Guide to Life e que vem acompanhado de cartões de oração com salmos ilustrados.

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Os cristãos deveriam liderar as discussões sobre diversidade e equidade

Nossa fé nos encoraja a estender a outros o mesmo senso de pertencimento que recebemos.

Christianity Today June 21, 2022
Edits by Christianity Today / Source Image: Juan Moyano / Getty

Entre nós, aqueles que acreditam que somos salvos pela fé e que cuidar dos outros é uma extensão de nossa fé sabem que a salvação deve preceder o cuidado — e, mesmo sabendo disso, é muito fácil deixar que tarefas e listas de coisas que precisam ser feitas sejam nossas estrelas-guias.

Como uma personalidade do tipo três no Eneagrama, um performático, entendo intimamente como é deixar a busca do progresso e da realização ofuscar o real motivo de estarmos nesta jornada. O desafio é que, quando permitimos que nossos o quê e como substituam nosso porquê, podemos ficar rapidamente sobrecarregados na busca de completar nossa lista de tarefas.

Ao fazer isso, negligenciamos a mudança mais profunda do coração, que é necessária para lidar com o quebrantamento e o sofrimento em nossos bairros, comunidades e sociedade.

Este é o problema enfrentado por aqueles que hoje trabalham em áreas ligadas a diversidade, equidade e inclusão (DEI). Por exemplo, um artigo sobre liderança, publicado na Forbes, apresentou quatro razões pelas quais os programas DEI falham: todas elas são centradas em tarefas. Mas, como cristãos, sabemos que há muito mais coisas envolvidas nessa questão.

Diversidade, equidade e inclusão devem ser importantes para nós porque resultam de uma verdade crítica e profundamente enraizada na fé cristã. A verdade é que, apesar de nossas diferenças, todos somos feitos igualmente à imagem de Deus e, em última análise, pertencemos a Deus e uns aos outros. Este é o “porquê” por trás de tudo o que fazemos — o combustível que mantém nossos ministérios de evangelismo em movimento.

No entanto, o foco não deve estar apenas em DEI, mas sim nos esforços em prol de DEB (diversidade, equidade e pertencimento, sigla em inglês em que a palavra “inclusão” é substituída por um senso mais holístico de pertencimento [belonging]), o qual acredito ser o eixo crucial em torno do qual diversidade e equidade giram.

Acredito que os cristãos estão na melhor posição para promover iniciativas e movimentos voltados para DEB que resistirão ao teste do tempo e servirão como um legado para o mundo. Mas não podemos fazer isso até que tenhamos compreendido por completo as duas realidades centrais do por quê devemos ouvir e elevar as vozes e vidas daqueles que são diferentes de nós.

Primeiro, pertencemos a Deus.

Por vários anos, minha comunidade tem se olhado com franqueza no espelho, para entender como temos garantido que aqueles que são chamados a servir conosco tenham esse senso de pertencimento. Nosso objetivo é trazer pessoas com todos os tipos de vida e ajudá-las a crescerem em sua fé, de modo que sintam e saibam que podem prosperar em seus chamados individuais.

Para esse fim, temos procurado lançar os alicerces para aquilo que esperamos ser um trabalho continuado de erguer e incluir pessoas de origens e experiências diversas. Fui profundamente convencido a fazer isso porque acredito que diversidade, equidade e pertencimento são assuntos ligados ao evangelho.

O raciocínio é simples: fazemos este trabalho porque Cristo morreu para que cada um de nós — independentemente de nossas diferenças — pudesse outra vez pertencer ao reino de Deus. As Escrituras não dizem que Cristo morreu por alguns segundo uma certa hierarquia (por exemplo, pelos brancos mais do que pelos que não são brancos, pelos ricos mais do que pelos pobres, pelos homens mais do que pelas mulheres etc.).

Em sua bondade, Deus oferece a todos nós o verdadeiro pertencimento — um senso familiar de comunidade e a noção de que pertencemos a ele e nunca precisamos estar sozinhos. No centro do nosso desejo de garantir que as pessoas sejam vistas e ouvidas não está o desejo de participar do momento cultural, mas sim de refletir a verdadeira natureza de um Deus que ama a todos e, portanto, ama a diversidade.

Deus quer que confiemos nele, nos aproximemos dele e façamos parte de sua família. Nós somos seus filhos. Quando colocou seu selo em nós, Deus disse que pertencemos a ele.

Quantos de nós precisamos ouvir essa mensagem hoje? Quantos de nossos próximos que são negros e pardos, mulheres, deficientes, pobres e negligenciados precisam saber que pertencem a Alguém que procura abraçá-los em Cristo, em vez de julgá-los e zombar deles por quem são, por sua aparência ou pelo que a sociedade pensa deles?

Deus sabe algo que não sabemos (chocante): As diferenças que menosprezamos nos outros são um lembrete do quanto nosso Deus é escandalosamente intencional, criativo, bonito, generoso e alguém de coração aberto. A mesmice não é uma virtude na economia de Deus. Pelo contrário, a mesmice na verdade limita nossa capacidade de ver e apreciar toda a beleza do mosaico diversificado que é a criação de Deus.

Em The Next Evangelicalism, Soong-Chan Rah escreve: “Embora nosso individualismo ocidental concentre nossa atenção nesse reflexo pessoal da imago Dei no indivíduo, precisamos ver a imagem de Deus expressa como um reflexo coletivo”. É somente em nossa diversidade que manifestamos toda a beleza da imagem de Deus.

Conclusão? Os braços acolhedores de Deus não têm limites. Como cristãos, nós mesmos experimentamos o que é esse pertencer a Deus, e deve ser nosso desejo que todas as pessoas experimentem esse pertencimento, por parte de Deus e uns dos outros.

Em segundo lugar, pertencemos uns aos outros.

Palavras-chave existem por uma razão. Quando a pandemia chegou em 2020, quantos de nós ouvimos a expressão “novo normal”, a ponto de pensarmos que não aguentaríamos mais ouví-la? E, no entanto, essa expressão era o que aquele momento exigia. Hoje, um termo em ascensão que tenho ouvido muito ultimamente é “proximidade” — a importância da proximidade no espaço, no tempo ou nos relacionamentos.

Acredito que simplesmente nunca faremos o certo em relação a “DEI” (diversidade, equidade e inclusão) até que cultivemos um senso de proximidade entre nós mesmos e aqueles ao nosso redor — preenchendo as lacunas de compreensão entre a nossa experiência e as experiências de pessoas de diferentes perfis (sejam eles étnicos, raciais, econômicos, geracionais etc.)

Correndo o risco de soar controverso, às vezes me pergunto se os crentes transformam certos termos ou ideias em bicho-papão só porque estamos procurando uma maneira fácil de escapar de discussões e tensões difíceis. Quantos de nós já vimos uma conversa ser encerrada, assim que surgem termos como “teoria crítica da raça” ou “woke” [termo hoje usado para se referir a uma percepção e consciência de questões relativas à justiça racial e social]?

A verdade é que alguns aspectos da teologia ocidental americana falharam em nos preparar para lidar com a tensão e o desconforto. Isso pode nos deixar lamentavelmente incapazes de nos inclinarmos para as duras realidades que a busca de pertencimento exige que vejamos e, em consequência disso, nos acomodamos. Para nós, é muito mais difícil pressionar nossos pontos de conflito e explorar nossas diferenças juntos.

Em seu livro Think Again, o psicólogo Adam Grant explica que muitas vezes ouvimos opiniões “que nos façam sentir bem, em vez de ideias que nos façam pensar muito”, e também opiniões que “favoreçam o conforto da certeza em vez do desconforto da dúvida”. Ai, essa doeu!

A realidade do reino de Deus é que todos pertencemos uns aos outros e, portanto, não podemos ignorar conversas difíceis que buscam honrar a imago Dei em todos nós. Muitas vezes, olhamos para nós mesmos e para os outros apenas como indivíduos. Mas a obra de Deus em nós também é coletiva e comunitária — ele nos colocou no contexto de uma família no corpo de Cristo.

É por isso que diversidade, equidade e pertencimento são importantes — porque é importante para Deus que todos nós trabalhemos e vivamos juntos. Ele nos criou para viver em comunidade, uns com os outros, e para refletir sua imagem neste mundo.

Eu convidaria todos nós a refletirmos não apenas sobre esses “o quê” e “como” da diversidade, equidade, inclusão e pertencimento, mas também para examinarmos por que estamos exaltando esses valores. Como cristãos, devemos começar nossa busca por iniciativas em prol de diversidade, equidade e pertencimento mantendo-nos firmes no fundamento que Deus já lançou para nós.

Somos um povo que pertence a Deus e uns aos outros — e Deus deseja que isso seja verdade para todas as pessoas, em todos os lugares. A boa-nova é que Deus nos convida a participar desse esforço para que aqueles que nos cercam possam experimentar essa verdade e descobrir que eles também pertencem ao seu reino.

Arthur L. Satterwhite III é vice-presidente de Diversidade, Pertencimento e Estratégia da Young Life.

“Speaking Out” é uma coluna da Christianity Today em que os convidados dão sua opinião, que (ao contrário de um editorial) não representa necessariamente a opinião da revista.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Uma palavra pode valer mais que mil imagens

Por que o púlpito — e não a tela — ainda ocupa o lugar central em nossas igrejas.

Christianity Today June 16, 2022
Shutterstock

Há muito tempo, o apóstolo Paulo escreveu: “Deus decidiu, pela loucura da nossa proclamação, salvar os que creem” (1Coríntios 1.21, NRSV, versão usada em todo o texto). A pregação, segundo ele sugere, é essencial para os propósitos de Deus. Ao mesmo tempo, Paulo reconhece de forma implícita que a pregação dificilmente parece ser um meio sensato para os propósitos de Deus. Palavras apenas? E palavras inevitavelmente imperfeitas. Que loucura! Loucura, mesmo naquela época.

Mas se Paulo tivesse vivido nos dias de hoje, em uma cultura tão visual como a nossa — e cada vez menos atenta a discursos verbais extensos —, ele poderia ter dito algo diferente? Será que ele poderia ter dito que Deus decidiu usar a loucura dos nossos longas-metragens, da nossa publicidade e da nossa arte visual para salvar os que creem?

Afinal, aprendemos a ser sensíveis ao contexto cultural tanto das possibilidades históricas que constrangem os escritores dos textos bíblicos, que nunca viram uma tela de cinema ou de televisão ou de um tablet, quanto ao contexto cultural das demandas de nossa própria situação. Paulo disse na mesma carta: “Tornei-me tudo para todos, para por todos os meios salvar alguns” (1Coríntios 9.22). Os evangélicos em particular foram rápidos em adotar novos métodos, ansiosos por usar todos os meios adequados na esperança de salvar alguns. Não podemos negar o poder que os recursos visuais têm de nos comover, de nos conectar tanto com o coração quanto com a mente. Há muito tempo os pregadores são ensinados a falar de modo que as pessoas possam visualizar aquilo que está sendo falado. Imagens, especialmente imagens em movimento, nos compelem de maneiras que somente palavras em geral não o fazem. Certamente devemos tirar proveito dessas dádivas.

Além disso, Deus criou um mundo físico e visível. Ele não escolheu criar apenas criaturas espirituais que se ocupassem de ideias abstratas. Ele se encarnou neste mundo, agindo nele em nosso favor. Na literatura sapiencial, bem como nas parábolas de Jesus, somos encorajados a olhar para o mundo natural para alcançar entendimento — desde a diligência da formiga, ao poder do fermento e à beleza despreocupada dos lírios. Nos sacramentos (batismo e ceia do Senhor), falamos que a Palavra se torna visível. E consideramos os raros cristãos que não seguem nenhuma observância sacramental como praticantes de uma versão truncada da fé.

Então, será que os reformadores tomaram um rumo errado, quando se afastaram decididamente da ênfase significativa no visual que vemos nas igrejas católica romana e ortodoxa oriental? Os reformadores moveram o púlpito para o centro do santuário, para onde ficava o altar. Alguns até se engajaram no que muitos de nós hoje vemos como excesso: quebraram vitrais e removeram obras de arte que eram entendidas, ao menos em parte, como livros ilustrados para analfabetos.

Não é que os reformadores tenham ignorado o visual. Em vez disso, eles se preocupavam ativamente com a possibilidade de o visual suplantar a Palavra (e também com a quebra do segundo mandamento, que proíbe a idolatria). Assim, “somente a Escritura, somente a fé, somente a graça” foi o grito de guerra da Reforma, e podemos prontamente citar textos como Romanos 10.17: “a fé vem pela pregação, e a pregação vem pela palavra de Cristo.”

Os reformadores acreditavam que o Espírito Santo fazia uso especial das Escrituras e do ouvir a Palavra pregada para levar as pessoas a Cristo de maneira absolutamente essencial à fé. Por que acreditavam nisso? Circunstâncias históricas, inclusive a corrupção na igreja ocidental que comprometia suas alegações de autoridade, naturalmente desempenharam um papel importante. Os protestantes passaram a entender as Escrituras, e não a tradição, como o árbitro decisivo da verdade cristã. Mas havia e ainda há mais do que circunstâncias históricas. Duas questões-chave merecem destaque: as limitações das imagens em relação à transmissão de significado e a questão do endereçamento pessoal.

Imagens não são suficientes

Ninguém duvida que as obras visuais evoquem emoção, mas se você perguntar aos artistas o que seu trabalho significa, eles responderão, cobertos de razão: “Se eu pudesse te dizer [o que significa], eu não teria pintado [ou esculpido ou filmado] isso”. E as pessoas perspicazes geralmente desprezam a arte “predicativa” — a arte que trai sua integridade para transmitir uma mensagem abertamente. Mas os símbolos e ações cristãs significam praticamente tudo. A cruz é apenas um arranjo arbitrário de pedaços de madeira ou é nada mais do que um antigo método de execução por tortura ou é um sinal da nossa salvação? Pedaços de madeira não nos dizem [nada], e não sabemos [algo] sem que nos seja dito. A Ceia do Senhor é um ritual estranho, ou é um lanche inadequado ou, no mínimo, uma comunhão que compartilhamos justamente quando nos lembramos da morte de Jesus em nosso favor? Até mesmo os vitrais [das igrejas] tinham de ser explicados em sermões.

Hoje, professores que dão boas aulas ou escrevem bons livros sobre “teologia através do cinema” geralmente têm um conhecimento sofisticado da teologia clássica. E se eles não ministrassem essas aulas nem escrevessem esses livros, as pessoas jamais descobririam como os temas cristãos aparecem nos filmes. Se o conhecimento clássico não for mais transmitido por palavras, perderemos a capacidade de ver as artes visuais com olhos profundamente cristãos.

Algo semelhante acontece com os atos de caridade cristã. Quando o caráter culturalmente opressivo de alguma obra missionária se torna muito claro, alguns pensam que o melhor caminho a seguir é simplesmente ajudar as pessoas com suas necessidades urgentes, de forma tácita — mas apenas de forma tácita — em nome de Cristo. Não funcionou, pelo menos não como testemunho cristão. O texto de 1Pedro 3.15 nos instrui a estarmos sempre prontos a fazer uma defesa ou a dar uma resposta a qualquer um que perguntar sobre a esperança que há em nós. Sem essa resposta, sem a proclamação do evangelho, boas obras e outras evidências, por mais apreciadas que sejam, não levam ao conhecimento de Cristo. O próprio Jesus deu uma palavra definitiva sobre esses assuntos, quando contou a parábola em que Abraão se recusou a fornecer um sinal à família do homem rico no Hades: “Se eles não ouvem a Moisés e aos profetas, também não serão convencidos, ainda que alguém ressuscite dos mortos ” (Lucas 16.31). Mesmo o maior dos milagres — das manifestações visíveis — não converterá um coração fechado à Palavra de Deus.

As palavras também nos ajudam a fazer distinções necessárias — algo que encontra forte resistência em alguns círculos hoje, uma vez que distinções e julgamentos sobre a verdade parecem ser tudo, exceto acolhedores e tolerantes. No entanto, tais distinções são indispensáveis para preservar a verdade cristã e fomentar o discernimento moral (1Coríntios 11.19; Hebreus 3.12-13).

Por exemplo, quando a igreja ainda jovem enfrentou uma de suas primeiras decisões doutrinárias críticas, sobre se Jesus era em essência um com Deus ou apenas semelhante a Deus (a controvérsia ariana), os escarnecedores ridicularizaram o debate como uma controvérsia sobre um iota — a menor letra do alfabeto grego —, uma vez que os termos em questão (homoousios, “da mesma substância” e homoiousios, “de substância semelhante”) diferem apenas por essa letra. A igreja acreditava, no entanto — como os cristãos ortodoxos em todos os principais ramos da igreja continuam a acreditar — que há um sentido real no qual nossa salvação está em jogo aqui: Se Jesus não é Deus, ele não pode nos salvar. Erros doutrinários sobre pontos cruciais têm consequências cuja importância se expande cada vez mais, assim como desviar-se da trilha, por menor que seja o ângulo [do desvio], acaba levando a pessoa para bem longe do destino pretendido. G. K. Chesterton colocou isso de forma impressionante:

A Igreja não podia se dar ao luxo de desviar um fio de cabelo que fosse em algumas coisas, se quisesse dar continuidade a sua grande e ousada experiência de equilíbrio irregular. […] Não era um rebanho de ovelhas que o pastor cristão estava liderando, mas sim uma manada de touros e tigres, de ideais terríveis e doutrinas vorazes, cada qual forte o bastante para se voltar para uma religião falsa e devastar o mundo. […] Um deslize que seja nas definições pode interromper todas as danças; pode murchar todas as árvores de Natal ou quebrar todos os ovos de Páscoa.

Chesterton fornece uma imagem visual bem gráfica — dada em palavras — para enfatizar uma precisão que somente imagens não podem alcançar.

Para abençoar ou amaldiçoar

No entanto, o significado e a verdade em abstrato, por mais precisos que sejam não serão suficientes, se não penetrarem em nossos corações e mentes. Para este fim, o poder das palavras é tão eloquente quanto [o das imagens] e provavelmente mais misterioso. Por que as palavras, diferentemente de paus e pedras, podem quebrar muito mais do que ossos? Qualquer pessoa que fique perplexa com o testemunho bíblico de que bênção e maldição fazem uma diferença real no mundo deve conversar com crianças que cresceram em lares onde as palavras de seus pais tiveram profundos efeitos positivos ou negativos sobre elas. Muitos adultos testemunharão que uma única declaração feita a eles, quando ainda eram jovens, continua a ecoar em seus ouvidos de maneira inescapável. Uma palavra dita a nós por alguém de fora tem um poder incrível, muito mais do que as palavras que dizemos a nós mesmos. Por exemplo, quem tem mais probabilidade de se abster fielmente de comer carne de porco, alguém que tenta manter uma dieta por motivos pessoais ou alguém cuja religião proíbe comê-la?

As palavras ditas por outros podem manipular e destruir, mas também podem reconstruir e consolar. Isso é o que acontece quando a outra pessoa nos concede o perdão. E é um mau conselho dizer às pessoas que perdoem a si mesmas, pois isso é justamente algo que não fomos criados para fazer. Precisamos que alguém nos diga que fomos perdoados. Simplesmente saber não é suficiente. Precisamos que nos repitam muitas vezes até mesmo aquilo que sabemos.

Pregar o evangelho não é uma mera questão de transmitir informações. Quando a Palavra é genuinamente pregada e recebida, ela entra na alma através do ouvir — com esperança e promessa, desafio e absolvição, bênção e consolo.

Uma professora cristã que conheço, que dá aulas para o jardim de infância, me contou a história de uma garotinha que se viu no meio de um divórcio violento dos pais. Subindo no colo da minha amiga, a menina disse: “Diga-me novamente que Jesus me ama. Eu continuo esquecendo.” Dentro de si mesma, a menina sabia que Jesus a amava, mas ela ainda precisava ouvir isso de alguém de fora. Assim afirma o antigo hino gospel de Katherine Hankey: “Adoro contar a história, para quem a conhece melhor / Parece faminto e sedento de ouvi-la como o restante”.

Pregar o evangelho, então, não é só transmitir informações. Quando o evangelho é genuinamente pregado e recebido, ele entra na alma por meio do ouvir — com esperança e promessa, desafio e absolvição, bênção e consolo. Ele não apenas ordena, mas concede o que ordena, pelo poder do Espírito Santo. Não pede ao ouvinte que acredite em coisas impossíveis antes do café da manhã como evidência de fé. Em vez disso, transmite a realidade do Cristo vivo como a única coisa verdadeiramente necessária para a vida humana e um futuro eterno.

Imagens, estáticas ou em movimento, não podem fazer tais coisas. Dizer isso não significa negar que as artes enriquecem a vida humana nem significa impedi-la de entrar no santuário. Na verdade, elas podem ter valor positivo. No entanto, os recursos visuais às vezes são intromissões, como quando adições de PowerPoint a sermões (seja com texto ou imagens) dividem o foco de atenção dos ouvintes e impedem seriamente a comunicação direta. Analistas seculares são incisivos quando nos pedem para imaginar o discurso “Eu tenho um sonho” de Martin Luther King Jr. apresentado em PowerPoint, ou quando fornecem uma apresentação de slides simulada para acompanhar o “Discurso de Gettysburg” de Abraham Lincoln. Um videoclipe que não trata da questão exata de um texto bíblico e não serve para elucidá-la acaba sobrecarregando o sermão. Acaba deixando implícito que algo além da Palavra na realidade nos capacitará a viver de maneira fiel diante de Deus e de nosso próximo.

Deus criou o mundo físico falando (Gênesis 1; Salmos 33.6,9). Podemos até sugerir que ele nos constituiu como seres humanos ao falar, ao nos dar nosso papel distinto na criação (Gênesis 1.28). Podemos pensar ao olhar para outra pessoa: “Fala, para que eu te veja”; e ao ouvir uma pessoa com deficiência física grave falar, podemos ficar envergonhados quando reconhecemos que antes não a enxergávamos de verdade. O próprio Jesus é conhecido como o Logos, a Palavra, por meio de quem todas as coisas foram feitas (João 1.1-3). E o termo logos carrega o sentido da estrutura de toda realidade. Então, talvez a escolha de Deus de pregar, de usar palavras para dar nova vida aos que creem não seja assim tanta loucura, afinal.

Marguerite Shuster é Professora Emérita da cátedra Harold John Ockenga de pregação e teologia e professora sênior de pregação e teologia no Seminário Teológico Fuller.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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