De sua mesa de trabalho, dentro de um complexo murado, em uma região montanhosa de Mianmar que fica perto da fronteira com a Tailândia, uma mãe solteira de Uganda digitava mensagens em um de seis smartphones. Ela escrevia para admiradores online ao redor do mundo, tentando persuadi-los a investir em criptomoeda.
Quando conseguia convencê-los, ela direcionava esses contatos para um site que, sem o conhecimento deles, canalizaria o dinheiro dessas pessoas para contas pertencentes à organização criminosa chinesa que a empregava.
Certo dia, porém, em março de 2024, Kimuli — essa mãe solteira que se mudara para o outro lado do continente, a fim de trabalhar no que ela pensava ser um emprego em uma empresa de marketing — não se encontrava em sua mesa. Em vez disso, Kimuli estava presa no que ela e seus colegas chamavam de “quarto escuro”.
Como punição por se recusar a trabalhar, Kimuli fora colocada sentada, com um pulso algemado acima da cabeça — cortando sua circulação sanguínea — e o outro algemado ao chão. Ela tentava mudar de posição na cadeira, para recuperar a sensibilidade do braço, enquanto as algemas lhe entravam na carne.
Por dias ela permaneceu assim, presa, sem comer nem beber e sendo forçada a fazer suas necessidades ali mesmo. Às vezes, um soldado de um grupo militar local lhe aplicava choques com um bastão elétrico. Quando ela pedia água, ele trazia um pouco da urina dele. Quando ela se recusava a abrir a boca, ele encostava o bastão elétrico na bochecha dela e despejava a urina em sua garganta.
Era a quarta vez que ela ficava presa no quarto escuro, em um período de seis meses.
“Eu orei a Deus para morrer”, disse Kimuli. “Eu sentia tanto ódio de mim mesma. Eu estava tão cansada.”
Depois de três dias no quarto escuro, ela não conseguia andar e tinha perdido toda a sensibilidade na mão direita. No entanto, ela concordou em retornar ao seu trabalho de “abate de porcos”: um tipo de golpe cibernético que recebeu esse nome pela maneira como os criminosos bajulam os alvos com confiança e amor, até a hora do abate — drenando as contas bancárias das vítimas.
“Se você se rebelar novamente”, disseram os algozes de Kimuli, “nós cortaremos suas mãos”.
Seis meses depois, em um centro de detenção para imigrantes, na cidade fronteiriça tailandesa de Mae Sot, Kimuli contou em detalhes suas experiências para mim. Ela esfregava os pulsos marcados por cicatrizes, enquanto contava como aquilo que, a princípio, parecera ser uma “oportunidade de carreira inacreditável” rapidamente se transformou em um verdadeiro inferno.
Em 2023, segundo estimativas da ONU, pelo menos 120.000 pessoas podem ter estado presas em complexos de golpes cibernéticos em Mianmar. Mais 100.000 podem ter sido forçadas a trabalhar em operações semelhantes em outros lugares do Sudeste Asiático, como agentes em esquemas de investimento fraudulentos, aplicativos de namoro de fachada e golpes com criptomoedas.
As complexas organizações criminosas por trás dos golpes criam dois grupos diferentes de vítimas: aquelas que são enganadas e perdem grandes somas de dinheiro, após confiar em perfis online falsos, e as pessoas de carne e osso por trás desses perfis, que são frequentemente traficadas e forçadas a enganar estranhos, contra a sua vontade.
Pouco depois que esse golpe do abate de porcos começou a ganhar força, por volta de 2020, coalizões feitas entre autoridades governamentais, grupos de direitos humanos e organizações cristãs — que vão da International Justice Mission (IJM) à Global Advance Projects, sediada na Austrália — começaram a trabalhar para libertar esses trabalhadores escravizados e forçados a aplicar golpes.
“Isso é uma ameaça global. Afeta todos os governos da Terra”, disse Amy Miller, diretora regional para o Sudeste Asiático da Acts of Mercy International, o braço dedicado a assistência e desenvolvimento do Movimento de Igrejas Antioch, sediado no Texas. “Todos nós precisamos entrar no jogo. Não podemos nos dar ao luxo de ficar sentados e deixar o inimigo roubar e destruir.”
Mas combater esses grupos de fraude cibernética não é tão simples quanto aumentar a conscientização [sobre esse problema]. As autoridades asiáticas geralmente demonstram menos empatia em relação a essas vítimas que fogem do tráfico de mão de obra, pis têm dificuldade para distinguir entre aquelas que foram atraídas involuntariamente e pessoas que conscientemente se juntaram a atividades criminosas.
Os sindicatos do crime cibernético também são adeptos de driblar a lei. Defensores de direitos humanos dizem que os grupos têm aliados poderosos em governos locais. E mesmo quando as autoridades conseguem reprimir negócios ilegais online, como as Filipinas fizeram em meados da década de 2010, essas organizações criminosas migram para países com governos mais fracos ou fragmentados.
E nenhum governo tem sido um destino tão promissor para grupos criminosos quanto o de Mianmar, país devastado pelo conflito.
Viajei para a fronteira entre Tailândia e Mianmar, para ver como os grupos de combate ao tráfico estão se saindo. No Camboja, local onde eu morava, esses golpes que as pessoas são forçadas a aplicar são uma ameaça bem conhecida.
O tráfico em larga escala de estrangeiros desavisados, que são forçados a aplicar golpes cibernéticos, começou no Camboja, durante a pandemia da COVID-19. O lockdown global esvaziou cassinos de propriedade chinesa, localizados em zonas econômicas especiais, destinadas a atrair investimentos chineses. Esses cassinos e hotéis que ficaram vazios, e que já eram foco de atividades ilegais antes da pandemia, forneceram oportunidades para grupos criminosos chineses inovarem.
Os sindicatos, alguns dos quais se envolveram em esquemas voltados para o golpe do abate de porcos, começaram a postar agressivamente listas fraudulentas de empregos online. Eles atraíram candidatos, geralmente de outras partes do Sudeste Asiático. Quando os candidatos ao emprego chegavam ao Camboja, agentes apreendiam seus passaportes e dispositivos eletrônicos, os trancafiavam em hotéis e os forçavam a ficar na frente das telas para começar a aplicar golpes.
Esses trabalhadores eram informados de que, se levantassem uma determinada quantia em dinheiro, poderiam ganhar sua liberdade de volta. Assim como na experiência de Kimuli, a desobediência geralmente resultava em espancamentos e tortura.
Os golpes inicialmente tinham como alvo cidadãos chineses. Mas, à medida que trabalhadores estrangeiros, fluentes em mais idiomas, passaram a integrar os grupos criminosos, os golpistas ampliaram seus esforços e começaram a fazer vítimas ao redor do mundo.
Andrew Wasuwongse, diretor da IJM na Tailândia, chamou esses golpes online forçados de uma “crise humanitária” que se espalhou rapidamente pelo Sudeste Asiático. “Esta é a forma de escravidão moderna que mais cresce no mundo”, disse ele.
As quantias de dinheiro envolvidas também são enormes. Com base nos depoimentos de vítimas e de testemunhas no Camboja, coletados pela IJM, segundo Wasuwongse, um golpista pode ganhar de US$ 300 a US$ 400 por dia. Especialistas estimam que as receitas oriundas de golpes, somente no Camboja, excedem US$ 12 bilhões anualmente — a mesma quantia que consumidores americanos gastaram durante a Cyber Monday em 2023. A Interpol disse, no início de 2024, que a indústria de golpes do Sudeste Asiático arrecada cerca de US$ 3 trilhões por ano.
Investigar e processar os casos de tráfico cibernético nem sempre é simples. Esses trabalhadores forçados a aplicarem golpes nem sempre se enquadram no conhecido perfil das vítimas do tráfico humano. Alguns deles têm bom grau de instrução, são bem viajados e falam vários idiomas. Alguns têm diplomas em áreas como TI ou engenharia.
“Algumas pessoas que saem desses complexos não são vítimas”, disse Wasuwongse. “Enquanto muitas são totalmente traficadas e não têm a mínima ideia daquilo em que estão se metendo, outras são um meio-termo. Estas últimas são pessoas que sabiam que estariam cometendo fraudes e golpes, mas não perceberam que seriam forçadas.”
No início de 2021, os colegas de Wasuwongse no Camboja começaram a rastrear relatos da mídia sobre trabalhadores estrangeiros forçados a conduzir golpes a partir de grandes complexos fortemente protegidos lá. Eles começaram a receber ligações dessas vítimas em abril de 2021, gravando depoimentos e compilando evidências de apoio. Forneceram informações a agências locais de aplicação da lei, a fim de ajudá-las a rastrear os casos com mais evidências e libertar as vítimas. Quando as vítimas conseguiam se libertar, a IJM as ajudava a registrar queixa nas embaixadas de seus países.
Até agora, Wasuwongse disse que a IJM ajudou mais de 100 indivíduos a escapar desses complexos de golpes no Camboja, e perto de 400 indivíduos no Sudeste Asiático.
As autoridades cambojanas começaram a repressão a esse tipo de crime em agosto de 2022. Desde então, eles dizem ter resgatado mais de 2.000 estrangeiros, fechado 5 empresas e prendido 95 pessoas. No entanto, a indústria ilegal continua por lá, e poderosos que agem no topo dessas organizações operam com impunidade. Até o momento, o governo cambojano não prendeu, não processou nem condenou sequer um único empresário acusado de conexões com esses golpes forçados, apesar de amplos relatos e depoimentos sobre o crime, segundo disse Wasuwongse.
Para escapar da responsabilização, muitas organizações especializadas em fraude cibernética mudaram suas operações para Mianmar. A guerra civil em andamento por lá deixou grande parte da fronteira perto da Tailândia, Laos e China fora do controle do governo.
Em meados de 2022, a IJM e a Organização Internacional para Migrações (OIM) notaram relatos de pessoas que estavam escapando desses complexos em Mianmar e chegando à cidade fronteiriça tailandesa de Mae Sot ou em Bangkok. Em centros de detenção de imigrantes, algumas pessoas acusadas de permanecer no país além do prazo de seus vistos alegaram ser vítimas desses golpes forçados.
Na mesma época, Judah Tana, fundador do Global Advance Projects, um grupo cristão que combate a exploração infantil, esteve em Mae Sot e observou funcionários da construção civil erguerem enormes e misteriosos complexos do outro lado do rio Moei, no estado de Kayin, em Mianmar.
Certa noite, Tana recebeu a visita de uma amiga que lhe mostrou uma mensagem surpreendente em um grupo de Mae Sot no Facebook, que ela monitorava. Na mensagem, uma mulher queniana estava perguntando sobre vistos e dizendo que havia sido traficada para a Tailândia.
“No começo, pensamos que era um golpe”, disse Tana. Ele enviou mensagens à mulher com perguntas sobre a sua situação e como ela tinha chegado à Tailândia. Então, a esposa de Tana encontrou um tuíte do governo queniano alertando sobre a existência desses complexos de golpes cibernéticos.
Tana entrou em contato com a embaixada queniana em Bangkok. Ele continuou se comunicando com a queniana e descobriu que ela era uma de sete quenianos que se encontravam na mesma situação e estavam implorando por ajuda. Conforme ele entrava em contato com diferentes pessoas da polícia tailandesa, do governo e de embaixadas estrangeiras, parecia que ninguém tinha a mínima ideia do que estava acontecendo nos complexos.
Em função de seu trabalho anterior na área de direitos humanos com refugiados, crianças imigrantes e ex-crianças-soldado, Tana desenvolveu conexões com grupos de resistência de minorias étnicas de Mianmar, que dominam muitas das regiões de fronteira do país. Ele contatou alguns de seus líderes e pediu ajuda para libertar os quenianos. Eles concordaram em falar com os chefes chineses dos complexos locais de aplicação de golpes.
Em outubro de 2022, os sete quenianos foram libertados. A partir de então, outros presos nos complexos começaram a ligar para Tana a partir de celulares contrabandeados.
Tana e outros grupos com ideais semelhantes formaram uma pequena coalizão para concentrar seus esforços em resgatar trabalhadores desses complexos. Miller, o diretor da Acts of Mercy, logo se mudou do Camboja para a Tailândia, a fim de ficar mais perto dos complexos da fronteira.
Um deles era onde Kimuli estava presa.
Antes de vir para a Tailândia, Kimuli trabalhou em um restaurante fast-food em Dubai, enviando dinheiro para seus pais em Uganda, para pagar a escola de seu filho.
Em uma entrevista à CT, ela contou como foi traficada e escravizada a mais de 4.800 quilômetros de lá.
Em 2023, uma amiga do trabalho contou a ela sobre um emprego promissor na área de marketing, em Bangkok, com horas de trabalho e remuneração melhores. Kimuli adorava a televisão tailandesa e achou que morar em Bangkok seria divertido. Sua colega de trabalho a colocou em contato com uma recrutadora chamada Joanna; logo Kimuli e sua amiga se juntaram a várias outras pessoas para conhecer a recrutadora em Dubai.
Os candidatos ao emprego fizeram perguntas sobre a descrição do cargo, benefícios e o processo de contratação. Joanna respondeu a cada uma das perguntas com confiança. A empresa, Young An, exigia velocidade básica de digitação e habilidades com computadores e prometeu treinamento na função. Joanna mostrou vídeos de funcionários compartilhando depoimentos positivos sobre seu ambiente de trabalho. Impressionada, Kimuli se candidatou e foi aceita, após uma rodada de entrevistas.
Kimuli e outros contratados foram orientados a entrar na Tailândia com vistos de turista que logo seriam convertidos em vistos de trabalho, um processo que é legal na Tailândia. Em setembro de 2023, Kimuli e outros quatro colegas desembarcaram em Bangkok. Um motorista da empresa os encontrou no aeroporto para levá-los ao hotel.
As coisas rapidamente tomaram um rumo sombrio. O motorista gesticulou para que entregassem a ele seus passaportes. Eles ficaram nervosos, à medida que a viagem se prolongou por duas horas. Quando tentaram fazer perguntas, o motorista disse: “No English [Não falo inglês]”. Nenhum deles tinha celular local, então, não puderam ligar para ninguém.
Quando o motorista parou para abastecer e comprar lanches, eles se viram trancados no veículo. Durante a noite, passaram por vários bloqueios na estrada, patrulhados por soldados armados.
“Eu clamei a Deus e orei”, disse Kimuli. “Achei que ia morrer.”
O motorista parou em um lugar que parecia ser no meio do nada, e uma van chegou. Eles foram forçados a entrar no novo veículo, que acelerou noite adentro. Então, chegaram à beira de um rio, e um grupo de homens armados colocou suas bagagens em um barco e lhes disse para entrarem.
Finalmente, eles chegaram aos portões de um complexo vigiado. Soldados pegaram seus celulares e revistaram suas bagagens.
“Eu não conseguia pensar direito naquele momento”, disse Kimuli. “Eu estava tão dominada por medo e exaustão. Todas nós, mulheres, fomos trancadas em um quarto para dormir. Eu sentia que aquele lugar era perigoso.”
Após cerca de três horas de sono, um chefe chinês as acordou. Um homem birmanês traduzia, enquanto o chefe explicava qual seria a rotina diária delas no complexo.
Todos os chefes eram chineses, disse Kimuli, mas os soldados que patrulhavam o complexo eram de Mianmar — informação que bate com um relatório da ONU, que descobriu que “forças da guarda de fronteira, sob a autoridade do exército de Mianmar, ou seus representantes” fornecem proteção para operações do esquema de fraude. Tais arranjos ajudam a financiar grupos armados, disse Tana.
O tradutor de Kimuli a levou para outra sala, onde esta logo percebeu que ela e os outros estrangeiros sequestrados trabalhariam enganando pessoas. Um chefe deu a ela seis smartphones, uma longa lista de números de celulares e um roteiro para seguir quando ela enviasse mensagens às pessoas. Quando as vítimas do golpe pediam para fazer um bate-papo por vídeo ou para ver fotos de Kimuli, os chefes traziam moças que eram modelos, que, segundo ela descobriu, também eram mantidas ali contra a vontade.
Para ganhar a confiança de suas vítimas, Kimuli e outras colegas frequentemente tentavam forjar uma ligação romântica. Criavam perfis no Tinder. Alguns disseram à CT que, se seus perfis de aplicativos de namoro fossem delatados como suspeitos e derrubados, os chefes as faziam criar contas no X e fazer amizade com apoiadores do presidente eleito Donald Trump. Usando um script, elas discutiam política e, então, apresentavam às vítimas a investimentos em criptomoedas ou pediam que fizessem doações para falsas causas de direita.
Kimuli e suas colegas de trabalho disseram à CT que eram forçados a trabalhar de 16 a 20 horas por dia. Eles descreveram condições semelhantes às que outras vítimas do tráfico compartilharam em grupos de direitos humanos e na mídia.
“Haviam punições severas se demorássemos muito tempo para responder à pessoa que estávamos enganando”, Kimuli lembra. “Eu não conseguia sair do meu teclado.”
Se ela fosse demorasse para responder ou dormisse, seu algoz a espancaria ou encostaria um bastão elétrico para controlar gado em sua perna. A primeira vez que ela foi punida por demorar muito para responder, um guarda bateu com tanta força na parte de trás de suas pernas, que ela sentiu dor para sentar por duas semanas.
A pior punição, no entanto, era o quarto escuro.
Quando Kimuli perdeu um cliente com quem estava tentando construindo um relacionamento, seus algozes a levaram para o quarto escuro, a algemaram e a penduraram pelos braços em um cano suspenso. Soldados a chutavam, espancavam e eletrocutavam, se ela chorasse ou se dormisse. Eles borrifavam água em seu rosto até ela achar que iria sufocar. Ela ouvia os gritos de outras pessoas que também estavam sendo torturadas. Às vezes, os chefes chineses vinham ajudar os soldados.
Certo dia, em dezembro, Kimuli e outros 20 ugandenses se recusaram a trabalhar e exigiram que seus algozes os mandassem para casa. Cerca de 100 soldados armados foram chamados para levar os manifestantes para o quarto escuro, onde Kimuli conta que foram torturados e privados de alimento e de água por três dias.
Depois disso, Kimuli e algumas outras pessoas foram transferidas para outro complexo. Era um local semelhante, embora agora Kimuli estivesse enganando cidadãos turcos e paquistaneses no Facebook e no TikTok. Depois que ela fisgava uma vítima, um trabalhador chinês assumia o controle para fechar a parte financeira do golpe.
Cerca de cinco meses depois de começar a trabalhar, um chefe disse para Kimuli fazer as malas: ela iria voltar para casa. Mas, em vez de ir para o aeroporto, ela foi levada de volta ao primeiro complexo. Lá foi dito a ela: “Eu comprei você. […] Gastei muito dinheiro com você. Agora precisa trabalhar por muito tempo para pagar por isso.”
Kimuli sentiu sua determinação enfraquecer.
“Eu simplesmente me deitei e desisti de lutar”, ela disse. Foi quando ela foi levada para o quarto escuro pela quarta vez.
Outros trabalhadores resgatados disseram à CT que foram obrigados a fazer centenas de agachamentos sob o sol quente, por não atingirem suas cotas. Eles disseram que seus chefes não lhes davam alimentação, se tivessem um desempenho abaixo do esperado. Eles eram torturados por reclamar das condições de trabalho ou por cometer erros por causa do seu inglês.
Um sobrevivente tirou a camisa para mostrar o peito e as costas, cobertos de cicatrizes e hematomas por causa de chicotadas e de choques; alguns ferimentos ainda estavam cicatrizando. Assim como Kimuli, seus braços e pulsos também tinham marcas de algemas.
Enquanto Kimuli vivia seu pesadelo, autoridades do governo trabalhavam para libertá-la. Alguns ugandenses tinham celulares escondidos; Kimuli usou um desses para ligar para casa e também foi colocada em contato com Tana e Miller. Por volta de dezembro, outro ugandense contatou Betty Oyella Bigombe, embaixadora de Uganda em vários países do Sudeste Asiático.
Chocada com o que ouviu, Bigombe começou a receber ligações dos ugandenses presos dia e noite, encorajando-os a permanecerem fortes, enquanto ela tentava fazer algo. Bigombe tinha experiência em fazer acordos: na década de 1990 e no início dos anos 2000, ela foi a negociadora-chefe durante as negociações de paz com Joseph Kony, o líder do grupo rebelde militante Lord’s Resistance Army [Exército de Resistência do Senhor].
Por fim, colocaram Bigombe em contato com Miller e Tana. Então, ela contatou as Forças da Guarda de Fronteira (BGF), um grupo militante de Mianmar que controla a região onde os complexos estão localizados. Por meio do BGF, ela negociou com os chefões do crime, que inicialmente pediram um resgate de 10.000 dólares por pessoa, o qual Bigombe disse que se recusou a pagar.
Em 2024, no fim de semana da Páscoa, os chefes acordaram Kimuli e outros 22 ugandenses mais cedo. Ela disse que eles forçaram alguns dos trabalhadores a gravar vídeos dizendo que tiveram uma boa experiência com a empresa; todos foram obrigados a assinar confissões de que aceitaram o trabalho por livre e espontânea vontade e que foram bem tratados.
Então, eles foram levados para uma ponte sobre o rio Moei, na Tailândia, do outro lado.
Kimuli só percebeu que estava realmente sendo libertada quando avistou Tana e Miller na costa tailandesa.
Os ugandenses pisaram na Tailândia três meses após seu primeiro telefonema para Bigombe, que havia corrido para recebê-los na chegada em Mae Sot.
“Não há como essa história ter acontecido sem Jesus”, disse Miller. “A embaixadora ficou de joelhos, orando por eles por meses. Estávamos constantemente em oração.”
Em fevereiro de 2024, enquanto eu fazia uma reportagem sobre esta história, recebi uma ligação de uma amiga chamada Heidi Boyd, que mora no noroeste dos Estados Unidos.
Enquanto colocavamos a conversa em dia, perguntei a Heidi como estava indo sua vida amorosa. Ela está na casa dos 40 anos e estava tendo dificuldades para conhecer homens solteiros da sua idade. Ela havia tentado o aplicativo de namoro Bumble, mas ficou decepcionada com os poucos encontros que teve.
Heidi me disse que estava prestes a sair do Bumble, em 2023, quando um homem chamado Sim entrou em contato com ela pelo aplicativo. Ele fora atraído pelo perfil de Heidi, segundo disse, porque ela se descreveu como alguém que era atraída por pessoas que ajudavam os outros.
Sim e Heidi começaram a conversar diariamente. Heidi tinha ido à China várias vezes, e Sim era um cidadão de Hong Kong que disse que morava em Los Angeles, cidade em que ela havia morado anteriormente. O perfil de Sim e suas informações foram conferidos e batiam. Ele disse a ela que estava em Hong Kong cuidando do pai que estava doente, então, poderia demorar um pouco até que eles pudessem se encontrar pessoalmente.
Passado um tempo, eles sentiram que era hora de se tornarem exclusivos, e passaram a conversar pelo WhatsApp, em vez do Bumble. Eles conversaram por vídeo apenas algumas vezes, pois seus fusos horários eram difíceis de conciliar.
Cerca de três meses depois de seu relacionamento se aprofundar, eles começaram a planejar viajar pelo mundo juntos para servir aos outros.
Nessa época, Sim compartilhou que teve algum sucesso com investimentos em criptomoedas. Heidi, que se considera experiente em investimentos, ficou interessada. Ela pensou que o dinheiro que ganhava com trading [compra e venda de ativos na Bolsa de Valores] poderia ser usado para apoiar ministérios globais.
“Tenho consciência de que sou uma pessoa privilegiada e de como tenho a responsabilidade de ajudar pessoas com meus recursos”, disse Heidi. Ela me mostrou capturas de tela de seus bate-papos. “Eu queria doar dinheiro para pessoas que precisassem.”
Sim recomendou um aplicativo de investimento em criptomoedas. Heidi investigou a plataforma de criptomoedas e seu site; eles pareciam legítimos. Ela baixou o aplicativo em seu celular e começou a aplicar fundos. Alguns dias ela ganhava dinheiro e em outros ela perdia. Ela podia sacar os fundos quando quisesse.
Houve demoras ocasionais, quando ela tentou transferir dinheiro de seu banco para sua conta de investimento. Mas Sim disse a ela que isso era normal, porque os grandes bancos não queriam perder clientes.
Nos meses seguintes, seu investimento cresceu. Quando chegou a 150.000 dólares, a plataforma de criptomoedas de repente marcou sua conta como suspeita, notificando-a de que precisava apresentar mais provas de sua identidade. A plataforma impôs uma nova restrição: ela não poderia sacar seus fundos, a menos que fizesse um depósito de 20% do montante.
Heidi pediu dinheiro emprestado à mãe para fazer o depósito. Ela me disse que estava a um dia de fazer o depósito, quando sua irmã lhe enviou um artigo sobre algo chamado abate de porcos.
Heidi leu o artigo e percebeu que estava vivendo aquilo.
“Acho que estou sendo enganada”, ela me disse ao telefone. Ela estava pouco a pouco começando a reconhecer que Sim tinha feito parte do golpe.
Heidi me disse que queria escrever para ele e dizer o quanto ele era uma pessoa horrível.
Eu sugeri que o próprio Sim poderia ser uma vítima — que, na verdade, o Sim poderia, na verdade, ser várias pessoas, algumas das quais poderiam ter sido escravizadas por grupos criminosos.
“Estou com metade do coração partido por perder um relacionamento que parecia real”, Heidi me disse mais tarde. “Pensei que tinha um futuro com alguém. Compartilhei muita coisa da minha vida com ele, ao longo de cinco meses. A outra parte de mim está magoada por ter perdido a minha aposentadoria.”
Ambas as traições a feriram e lhe causaram uma vergonha incrível. Heidi concordou em compartilhar sua história, segundo ela, porque esperava que trazer essa vergonha à tona privaria esse golpe de seu poder — e também por causa da possibilidade de que sua vergonha seja compartilhada por alguém do outro lado do mundo.
“Sinto-me movida a orar”, disse Heidi. “Deus me deu tamanha garantia de seu amor e de que ele ama todas as pessoas vítimas do tráfico. Deus ama os chefões do crime chineses. Tenho orado para que seus corações sejam transformados.”
Histórias como a de Kimuli — em que um grupo inteiro de trabalhadores é libertado com a ajuda de funcionários do governo — são inspiradoras. E também são raras.
Mais frequentemente, as vítimas são libertadas porque pagaram um resgate, ou porque atingiram sua cota, ou porque têm baixo desempenho.
“Normalmente, eles sabem que estão sendo libertados”, disse Miller, da Acts of Mercy. “Eles entram em contato, e nós vamos buscá-los. Eles passaram por traumas; precisam de tempo para respirar e fazer algumas escolhas ou para andar por aí e sentir a liberdade.”
Quando trabalhadores presos entram em contato com o mundo exterior para obter ajuda, pode levar meses de contatos para coordenar uma libertação — com grande risco para o trabalhador.
Ocasionalmente, em casos dramáticos, uma vítima contata Tana e Miller e diz que estão sendo transferidos ou vendidos para outro complexo. As vítimas alertam Tana e Miller sobre sua localização e, então, pulam de veículos em movimento para escapar.
Tais abordagens são perigosas: as vítimas fogem sem mala, sem passaporte e podem sofrer ferimentos.
“Não sou ignorante nem ingênuo quanto aos riscos”, disse Tana. “Mas eu amo muito Jesus, e acho que é isso que Ele faria.”
No entanto, escapar dos complexos é apenas o começo do que pode ser uma jornada árdua de volta para casa.
Trabalhadores traficados para aplicar golpes, que foram trazidos primeiro para a Tailândia, geralmente ficam presos em Mianmar, quando seus vistos expiram. Se eles conseguem voltar para a Tailândia, eles o fazem envolvidos por uma nuvem de suspeita — tendo ultrapassado o prazo do visto, perdido o passaporte e se envolvido em atividades criminosas.
Em situações como essa, os trabalhadores libertos podem se entregar à imigração tailandesa e pagar uma multa de 4.000 bahts (110 dólares). Depois de alguns dias na prisão, eles serão enviados para um centro de detenção até que consigam dinheiro para comprar uma passagem de volta para casa.
“O centro de detenção de imigrantes é um lugar difícil de se estar”, disse Miller. “Eles quase não recebem comida, e as condições podem ser piores do que nos complexos.”
Outra opção é passar pelo Mecanismo Nacional de Referência, um programa internacional para reconhecer vítimas de tráfico humano e fornecer-lhes moradia e outros tipo de assistência. Autoridades tailandesas entrevistam as vítimas para avaliar suas alegações e reunir evidências que, um dia, poderiam ser usadas para processar os traficantes de mão de obra.
Todos os 23 ugandenses optaram por tentar o reconhecimento do governo como vítimas de tráfico, com Bigombe ao seu lado. Em 11 de abril de 2024, após dois dias de entrevistas, todos os 23 receberam o reconhecimento.
Eles tiveram sorte. Miller disse que apenas cerca de 10% dos candidatos a esse programa recebem reconhecimento oficial. “Tentamos ajudá-los a ficarem cientes de como será o processo e quais perguntas serão feitas. Mas o governo tem seu próprio ônus da prova e do que faz de alguém uma vítima. E nem sempre isso fica claro.”
A organização de Miller e Tana, assim como outros grupos cristãos de direitos humanos, estão pressionando para que haja uma maior conscientização global sobre a batalha árdua que as vítimas do tráfico enfrentam, mesmo depois de conseguirem sua liberdade.
“Ainda há muitas reuniões a portas fechadas sobre as coisas, para as quais apenas chefes de Estado ou grandes players são convidados… de modo que as informações não chegam para o cidadão comum”, disse Tana. “O corpo de Cristo precisa divulgar isso globalmente.”
Os trabalhadores desses centros de golpe voltam para casa traumatizados, incapazes de falar sobre suas experiências. Muitos deles são muçulmanos ou cristãos e sentem profunda vergonha pelo que fizeram.
“O que eu fiz foi haram” [foi proibido, uma coisa inaceitável ou ilegal segundo a lei islâmica], um jovem muçulmano do sul da Ásia me disse, logo após fugir de um complexo, referindo-se a práticas proibidas pela lei islâmica. “Minha família nunca poderá saber disso.”
A certa altura, segundo ele conta, seus algozes lhe ofereceram uma prostituta por seu bom trabalho, o que ele recusou.
Miller e Tana dizem que os muçulmanos que foram forçados a aplicar golpes disseram a eles que, se as pessoas ficassem sabendo o que fizeram, eles seriam forçados a cometer suicídio por vergonha.
Embora o combate ao tráfico seja uma das causas favoritas dos evangélicos nos Estados Unidos e em outras nações ricas, os ministérios de combate ao tráfico dizem que as igrejas na África e na Ásia também têm papéis importantes a desempenhar nessa luta.
Quem está começando a se envolver nessa causa pode aumentar a conscientização entre as populações mais suscetíveis ao tráfico de mão de obra. Uma vítima de Uganda me disse que gostaria de ver a igreja fornecer mais instrução e treinamento em habilidades que mantenham as pessoas empregadas em suas próprias comunidades, tornando-as menos propensas a buscar oportunidades enganosas no exterior.
Grupos de combate ao tráfico também querem ver mais igrejas se tornarem espaços seguros para ex-golpistas falarem sobre sua culpa e seu trauma. Um dos objetivos de Miller e de Tana é criar um banco de dados global de igrejas que fornecem aconselhamento, cuidados posteriores e serviços de recolocação de mão de obra para repatriados que foram forçados a aplicar esses golpes.
“Eles precisam que os líderes da igreja e de ONGs [organizações não governamentais] ouçam e entendam de onde eles vêm”, disse Miller. “A cura acontece com a presença e com o fato de estar com as pessoas em seu sofrimento. Jesus está presente conosco em nosso sofrimento.”
Mesmo depois de os ugandenses terem sido oficialmente reconhecidos como vítimas de tráfico, Kimuli permaneceu em um abrigo do governo, em Mae Sot, por mais dois meses.
Havia documentação para processar. Havia a logística lenta para garantir fundos da ONU para alimentação, custos jurídicos, abrigo e passagens aéreas. E havia um número crescente de trabalhadores fugitivos como Kimuli em todo o Sudeste Asiático, todos sobrecarregando os pequenos programas humanitários que tentavam ajudá-los.
Em 23 de maio de 2024, os ugandenses finalmente embarcaram em um avião de volta para casa. Kimuli sonhava com uma simples refeição composta de mandioca e chá, na mesa da cozinha de sua família.
Durante essa longa espera, Kimuli refletiu muito sobre a provisão de Deus.
Ela, a princípio, tinha respondido ao anúncio de emprego na Ásia porque tinha um filho para sustentar e queria fazer por ele mais do que conseguia com seu emprego de fast-food em Dubai.
Mas Deus já estava cuidando dele.
Enquanto Kimuli ficou presa, por sete meses, fazendo trabalho forçado, ela soube, mais tarde, que a escola de seu filho havia lhe dado uma bolsa de estudos para cobrir sua mensalidade e alimentação. “Eu desapareci do mapa, e Deus continuou cuidando do meu filho”, disse ela.
O dinheiro, descobriu-se, havia enganado todo mundo naquele complexo de Mianmar: seus chefes criminosos, suas vítimas online — e até ela mesma.
“Fui seduzida pelo dinheiro”, disse Kimuli. “Deus me mostrou que dinheiro não é tudo. Agora sei que Deus pode me dar tudo o que preciso. Vou para casa sem nada, somente com a minha confiança em Deus.”
Erin Foley mora na Tailândia e atua na área de comunicação para ministérios que trabalham com refugiados e órfãos.