Naquele dia, quando o garçom trouxe o chá da tarde tão aguardado, não imaginei que, décadas depois, eu ainda sofreria ao me lembrar daquele momento.
Eu tinha 21 anos e estava curtindo “de verdade” meu primeiro recesso de primavera, passando uma semana em Londres e acumulando dívidas [para pagar mais tarde]. Depois de anos devorando castos romances ambientados na Inglaterra, aprendi que a Harrods [loja luxuosa de departamento] era o melhor lugar para experimentar as glórias dos scones [espécie de bolinho típico do chá da tarde britânico] com clotted cream [produto típico inglês, uma variação do requeijão, servido tradicionalmente com scones e geleia] e sanduíches minúsculos, todos servidos em reluzentes xícaras e pratos de porcelana e, claro, regados a muito chá quente. Assim, na minha primeira viagem transatlântica, me pareceu justo desfrutar das regalias do meu cartão de crédito em um belíssimo chá da tarde na Harrods. Sozinha.
À medida que comecei a olhar em volta do salão naquele dia, percebi que tinha cometido um erro grave. Nem mesmo os scones macios ou a perdição do clotted cream conseguiram equilibrar o gosto amargo do arrependimento. Na verdade, eles pioravam essa sensação. A cada coisa com que eu me deliciava, mais intensamente sentia a falta de alguém com quem compartilhar meu prazer.
Quando eu estava fazendo pesquisa de campo para meu livro sobre a vida de solteiro, alguém me disse que comer sozinho pode ser pior do que dormir sozinho. Comer sozinho é certamente um problema para pessoas que vivem sozinhas. Mas, com os horários do século 21 para trabalhar, praticar esportes e outras realidades estruturais, mesmo as pessoas que, em tese, teriam companhia garantida para comer, alguém como um cônjuge, os filhos ou um colega de quarto, muitas vezes fazem refeições solitárias. E mesmo quando compartilhamos a mesa, alergias e restrições alimentares podem criar outras formas de nos separar. Essa mudança modificou até mesmo o design de apartamentos e casas, eliminando das plantas as salas de jantar, à medida que se tornaram um espaço obsoleto.
Às vezes, a solidão de uma refeição sozinho pode parecer bem-vinda. Talvez uma pessoa introvertida, esgotada por um dia repleto de reuniões, não queira nada mais do que um tempo sozinha para relaxar. E para alguns pais que vivem na correria, uma xícara de café em paz — uma espécie de recompensa por acordar antes do resto da família — pode parecer um consolo raro e precioso.
Para os cristãos, porém, a questão de como e com quem comemos envolve mais do que meramente nossas preferências pessoais. Qual é o propósito de Deus para nossas refeições?
As Escrituras trazem um número surpreendente de histórias em torno da refeição. Em preparação para a sua libertação da escravidão, Deus faz os israelitas comerem uma refeição especial de Páscoa à base de cordeiro, pão sem fermento e ervas amargas, a qual os judeus praticantes continuam a reencenar anualmente, até os dias de hoje. Mais tarde, Jesus ressignificou essa refeição com o pão e o vinho da Ceia.
Jesus também usou a comida para fazer conexões com marginalizados e pecadores. Ele usou uma refeição para consertar o distanciamento causado pela traição de Pedro, fritando peixe para um café da manhã na praia. E foi somente em volta da mesa que a dupla a caminho de Emaús finalmente o reconheceu.
A comida desempenhou ainda um papel fundamental em ajudar a igreja primitiva a compreender o alcance da visão que Deus tinha para seu povo. Como Willie James Jennings escreve em seu comentário sobre Atos, “comer os animais que estavam associados a determinado povo era entrar no espaço de vida daquele povo”.
Isso dá grande significado à visão repetitiva que Pedro teve, que o chamava a comer alimentos proibidos anteriormente. Jennings escreve:
Não está sendo dito a Pedro que possua, mas sim que entre, que se torne, por meio do comer [aqueles alimentos], parte de algo do qual ele não se imaginava parte, antes de comer aquilo. Esse novo comer surge de outro convite a comer, oferecido por seu salvador e amigo: “Este é o meu corpo, que é dado por vocês”.
Nem toda igreja incorpora essa diversidade que reflete em sua plenitude o corpo de Cristo. Mas, até o ponto em que a incorporamos, a comida é uma das melhores maneiras de nos conectarmos por meio de nossa identidade compartilhada de filhos de Deus. Todos nós precisamos do lembrete encarnado da graça na Santa Ceia. Outras refeições compartilhadas, como almoços em grupo após o culto ou um momento para um cafezinho, apontam tanto para nossa dependência comum de Deus para a vida neste mundo quanto para o banquete que nos espera no céu.
E seja alimentando os famintos e marginalizados ou preparando refeições para os doentes e cansados, reconhecemos duas verdades: nossas vidas são interligadas, e o que fazemos pelos “menores” em nosso meio toca o coração de Jesus. Como o saudoso bispo ortodoxo David Mahaffey me disse: “Para mim, Deus nos deu o alimento como uma forma de comunhão com ele”.
E o que tudo isso significa para as muitas refeições que fazemos sozinhos? Elas estão intrinsecamente aquém do bom propósito de Deus para o sustento?
Uma das minhas coisas favoritas sobre a Bíblia é o quanto da vida ela contém: nela encontramos todos os tipos de pessoas, todos os tipos de situações.
No Livro de 1Reis, Deus envia Elias para o oriente, para Querite, um lugar supostamente remoto, onde ele é instruído a se esconder até novo aviso. O autor dá poucos detalhes sobre este período, exceto pelo milagre do sustento que Deus provê em um cenário de crescente fome. Corvos, aves mais conhecidas por tomar comida, levam alimento até o profeta.
Talvez, por causa das aves, eu nunca tenha pensado que essas refeições em si foram solitárias. No entanto, Elias deve ter passado um dia após o outro comendo sem a companhia de seres humanos. (A propósito, Adão também teria comido “sozinho”, até que Deus criou Eva).
Quero tomar o cuidado de não fornecer detalhes que os autores bíblicos não forneceram. Mas algumas coisas me impressionam a respeito das refeições solitárias desses homens. Primeiro, elas envolvem uma comunhão implícita com Deus. Refeições à parte, o pouco que sabemos sobre os períodos de solidão de Adão e de Elias sugere um forte relacionamento com o Senhor. E isso certamente se estendia às suas refeições também. Na verdade, por causa da presença de Deus, talvez eles nem se sentissem realmente sozinhos.
Segundo, ambos receberam provisão direta de Deus — água e a comida trazida pelos corvos, no caso de Elias, e frutas, no caso de Adão. Nessas circunstâncias, minha expectativa é de que ambos regularmente davam graças pelo alimento. Com que frequência e quão bem nós fazemos o mesmo? Quando engolimos uma torrada às pressas, enquanto dirigimos ou quando comendo as sobras da última refeição, assistindo à televisão no sofá — em circunstâncias assim fica muito fácil mergulhar direto no ato sem praticamente nenhuma palavra de agradecimento.
Por fim, me impressiona o fato de que esses dois homens comeram sozinhos durante períodos de preparação. Como Priscilla Shirer destaca, em seu estudo sobre Elias, Deus usou o tempo em Querite para preparar Elias para a comunhão inesperada em Sarepta e para o eventual confronto com Acabe. As refeições de Adão sozinho ocorreram durante um tempo de aprendizado sobre o trabalho que Deus lhe dera, e colaboraram para que ele pouco a pouco viesse a perceber que precisava de companhia humana. Inclusive, vale ressaltar que essas refeições de Adão ocorreram antes da Queda!
Sendo assim, talvez as refeições que fazemos sozinhos ainda possam honrar o propósito de Deus. Mas como? Talvez precisemos desacelerar um pouco para notar o visual, os sons, os aromas, as sensações e os sabores do alimento. (Isso também pode ajudar com a ansiedade e o estresse.) Em vez de nos distrairmos com o YouTube ou as mídias sociais durante as refeições, talvez possamos reconhecer e acolher a presença de Deus conosco. E possamos agradecer sinceramente por aqueles cujas mãos prepararam e nos entregaram o alimento, e por aqueles que o plantaram, cultivaram e colheram, bem como por Aquele que providenciou a chuva.
Mas também devemos procurar comer com outras pessoas, sempre que for possível.
Escrevo isso como alguém que hoje faz muitas refeições sozinha, sentada à minha mesa de jantar dobrável, na cadeira que fica de frente para a janela. Graças a uma entrevista para um livro que precisei fazer com um norueguês, que às vezes pagava contas enquanto comia — e odiava isso — eu me esforço para evitar trabalhar durante o jantar. Nas minhas melhores noites, eu como enquanto leio ou ouço um audiolivro. Nas piores, eu rolo o feed das rede sociais no meu celular, enquanto como.
Pouco tempo atrás, eu compartilhava um lanche, já tarde da noite, com um amigo que veio [à minha casa] para pegar alguma coisa. Quase sempre comemos algo juntos durante suas visitas, geralmente alguma sopa que eu fiz. Depois de umas poucas colheradas de sopa, ele me perguntou: “Como foi seu dia?”
Depois de anos vivendo em comunidade, estou há vários meses morando no segundo imóvel que aluguei sozinha em cerca de 20 anos. Só de ouvir a pergunta singela do meu amigo, meus ombros relaxaram e a tensão se dissipou. De repente, eu me vi de volta à mesa de jantar com minha família, nos meus anos de ensino fundamental e médio.
Nos dias de semana, o jantar era, em geral, a única refeição que fazíamos com meu pai. Então, ele usava nossos jantares para ajudar nós seis a nos conectarmos. Um por um, ele fazia perguntas a cada um de nós, enquanto compartilhávamos os pontos “altos” e “baixos” do nosso dia. Este foi um dos rituais mais formativos, do ponto de vista emocional, da minha criação. Tinha um ritual de limpeza estruturado (um rodízio de tarefas noturnas, cuidadosamente acompanhadas pelo calendário) e limites claros para discordar de forma limitada das regras da família (cada um de nós podia escolher um prato que não quisesse comer do cardápio rotativo das receitas que a mamãe fazia).
Com nossos jantares de sexta-feira à noite, à base de hambúrgueres caseiros e batatas fritas, aprendemos a celebrar o comum. Às vezes, nossos pais até compravam uma garrafa de dois litros de refrigerante, embora eu não fizesse a conexão entre o refrigerante comprado e o dia do pagamento do salário deles até me tornar adulta.
A hospitalidade sacraliza o cotidiano. Enquanto aplicativos ajudam alguns a encontrar companhia para refeições em restaurantes, comer em casa traz uma vulnerabilidade extra, que aprofunda as conexões e acomoda os orçamentos mais variados. Adoro que um amigo, que mora perto de mim, tenha começado a me enviar mensagens de texto sempre que faz muitas batatas ou muito chili (o que, geralmente, leva a um convite para jantar de última hora). Outros amigos sabem que podem ter que me ajudar a tirar uma porção de coisas que fui deixando em cima da cadeira da mesa de jantar ou que pode ser que eu sirva as sobras de outra refeição. Depois de meses de visitas como essa, uma amiga casada finalmente me convidou para almoçar na casa dela — nossa primeira refeição lá, em anos de amizade.
Compartilhar comida pode exigir vulnerabilidade e flexibilidade. Mas, uma vez que você supera o risco ou o desconforto inicial, uma conexão mais profunda geralmente se estabelece, e a solidão diminui.
No verão passado, morei por um breve período com um casal que muitas vezes só se encontrava no fim do dia. Antes de sair para seu trabalho de barman, o marido preparava o jantar numa panela de pressão elétrica e o deixava pronto para a esposa comer, quando ela chegasse em casa do trabalho como cabeleireira. Uma noite, ele fez um guisado picante; em outra noite, peixe ensopado. Mesmo quando ele chegava tarde em casa, e mesmo que ela já tivesse comido o que ele tinha deixado preparado, eles frequentemente se sentavam à mesa e conversavam sobre o seu dia, compartilhando alguma comida ou bebida.
Quando me mudei para a casa do casal, eles estavam ansiosos para abraçar a vida em comunidade, mas duvidavam que pudéssemos comer juntos. Eu cozinhava pratos muito diferentes dos deles, e ambos tinham várias alergias alimentares. Mas, como eles frequentemente adoravam o cheiro da minha comida, fiz uma lista de suas restrições alimentares para poder adaptar minhas receitas à dieta deles. À medida que fomos nos acostumando a viver juntos, tentei encontrar receitas que todos nós pudéssemos comer, ou fiz pequenos ajustes para que se encaixasse na dieta deles. Comemos pimentões recheados com folhas de repolho; no aniversário dele, fiz a receita do bolo de maçã da minha família sem ovos e com farinha sem glúten. No final dos meus quatro meses lá, eles estavam tentando me incluir em seus planos detalhados de refeições semanais.
Foi preciso que todos nós entrássemos num acordo. Mas, olhando para trás, parece que todas as vezes em que nós três nos sentimos mais conectados envolveram comida, a cozinha ou as duas coisas. Quer algum de nós reconheça isso ou não, o plano de Deus para a comida parece continuar se confirmando. Talvez seja por isso que Jesus com muita frequência descreva a vida celestial como uma grande banquete, um tema que João mais tarde aborda em suas alusões à ceia das bodas do Cordeiro.
Apocalipse termina com a promessa do alimento restaurada, afinal. Em seu capítulo final, a árvore da vida, cujo fruto fez com que Deus banisse os seres humanos do Éden, reaparece (Gênesis 3.22, Apocalipse 22.2). Somente quando Deus retoma o ato de compartilhar esse alimento com os seres humanos é que a Bíblia declara que já não haverá maldição nenhuma, e que Deus e os seres humanos estarão tão próximos que “eles verão a sua face”.
Anna Broadway é autora de Solo Planet: How Singles Help the Church Recover Our Calling [Planeta solo: como solteiros ajudam a igreja a recuperar nosso chamado] e Sexless in the City: A Memoir of Reluctant Chastity [Sem sexo na cidade: memórias de uma castidade relutante].