Culture

“Venham a mim os cristãos culturais”

O mundo está percebendo outra vez os benefícios tangíveis da nossa fé. E esta é uma oportunidade para o evangelho.

Christianity Today May 16, 2024
Priscilla du Preez / Unsplash

À medida que o cristianismo continua em declínio no Ocidente, o mundo em geral começa a notar que algo não está bem. Apesar de todos os escândalos e falhas da igreja, parece haver uma consciência crescente de que a perda da cultura cristã deixa todos nós em uma situação ainda pior, e de que há benefícios em ser cristão e em viver numa sociedade cristã.

Por exemplo, Derek Thompson escreveu recentemente no The Atlantic sobre a perda da comunidade que surge com o declínio da frequência à igreja. “Talvez a religião, apesar de todas as suas falhas, funcione um pouco como um muro de contenção”, concluiu ele, “impedindo o avanço da pressão desestabilizadora do hiperindividualismo americano, que ameaça crescer e transbordar nessa ausência [do cristianismo]”.

Da mesma forma, Tyler J. Vander Weele, estudioso de Harvard, fez uma extensa pesquisa sobre os benefícios da participação em cultos religiosos, e descobriu que leva à melhoria da saúde física e mental, à felicidade e a um senso de propósito. Estatisticamente falando, ir à igreja regularmente ajudará a pessoa a prosperar como ser humano. Como mostrou Brad Wilcox, professor da Universidade da Virgínia, a frequência regular à igreja está correlacionada até mesmo com uma vida sexual mais satisfatória!

E, depois, ainda temos aqueles, como a ex-ateia Ayaan Hirsi Ali, que explicam a sua conversão ao cristianismo, ao menos em parte, como uma resposta à decadência do mundo contemporâneo, que está ameaçado pela “ideologia woke” [termo geralmente utilizado para denominar a ideologia defendida por grupos mais progressistas em temas como justiça racial e social], pelo “Islamismo global” e pelo autoritarismo. “Acredito que a única resposta digna de credibilidade consista em nosso desejo de defender o legado da tradição judaico-cristã”, disse Hirsi Ali em um ensaio no qual anuncia a sua nova fé. O famoso ateu Richard Dawkins opôs-se à conversão de Hirsi Ali, mas parece concordar com o que ela pensa, uma vez que recentemente descreveu a si mesmo como um “cristão cultural”, em resposta à crescente influência do Islamismo no Reino Unido.

O que estes argumentos têm em comum é o reconhecimento de que o cristianismo é bom, e de uma forma tangível, para a pessoa humana e para a sociedade. Melhora a nossa vida sexual, a saúde mental e as relações sociais, e nos dá uma estabilidade, uma ordem e uma base para a liberdade e a justiça que o mundo secular contemporâneo não consegue replicar. Estas são razões poderosas para se tornar cristão e encorajar a difusão de uma cultura ao menos superficialmente cristã — que assuma o ethos do cristianismo, mesmo que não aceite a ortodoxia do cristianismo. Afinal, os dados parecem ser claros: uma cultura mais cristã geraria mais prosperidade humana.

Mas será que esta consciência dos benefícios mensuráveis do cristianismo é uma ameaça à fé autêntica ou é uma oportunidade para o evangelho?

Por um lado, como cristãos que aceitam as doutrinas ortodoxas da fé, não nos surpreende o fato de que viver de acordo com a lei de Deus gere bênçãos. Viver contra a tecitura do universo certamente causará danos aos indivíduos e à sociedade. E, uma vez que somos chamados a “buscar a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei” (Jeremias 29.7), devemos defender políticas, práticas e normas sociais que se alinhem com a nossa fé cristã. Se acreditarmos que a vontade de Deus para a nossa vida é que vivamos de acordo com o seu desígnio para o universo, e se amarmos o nosso próximo, devemos encorajar o nosso próximo a viver de acordo com esse desígnio. À luz disto, até mesmo o “cristianismo cultural” de Dawkins, que é destituído de fé, talvez seja um pequeno passo na direção certa.

Por outro lado, a vontade de Deus para a nossa vida não é apenas que vivamos de acordo com a sua lei. Sua vontade é que o conheçamos por meio de seu Filho, Jesus Cristo. E isto introduz um desafio para os cristãos, à medida que mais pessoas se tornam conscientes dos benefícios pessoais e sociais da nossa fé: como proclamarmos a virtude do cristianismo sem transformá-lo em apenas mais uma ferramenta para alcançar o bem-estar? Em outras palavras, devemos nos perguntar se uma cultura que adota as virtudes da nossa fé, por causa de seus benefícios materiais, poderá negligenciar perpetuamente ou mesmo ficar vacinada contra os benefícios espirituais dessa fé.

Num artigo recente sobre a declaração de Dawkins, o editor-chefe da CT, Russell Moore, expressou justamente esta preocupação. “O cristianismo não tem a ver com hinos nacionais, capelas em vilarejos e canções de Natal à luz de velas”, escreveu ele. Não é simplesmente um não-Islã (como gostaria Dawkins) ou não-woke (como seria o desejo de Hirsi Ali). “Se o evangelho não for real, o evangelho não funciona. O paganismo genuíno sempre vencerá o cristianismo fingido.” Cristianismo sem ortodoxia — um cristianismo que não seja uma fé viva em resposta a um Deus vivo — transforma-se em nada mais do que uma identidade social.

E o mundo já está repleto dessas identidades sociais. Se alguém puder receber os benefícios materiais do cristianismo sem realmente acreditar no evangelho, então, por que essa pessoa se preocuparia em morrer para si mesma e viver em obediência radical a Cristo? Como argumentei em meu livro Disruptive Witness [Testemunho disruptivo], a tendência moderna é ver o cristianismo como uma opção de estilo de vida, não como uma verdade revelada por um Deus transcendente que entrou na história na forma de Cristo. Se as pessoas vierem para o cristianismo apenas porque o veem como uma forma superior de otimização pessoal, então, quando as exigências do cristianismo se tornarem demasiadamente grandes, elas irão abandoná-lo por algum modismo mais fácil.

Nesse contexto, é fácil imaginar a evolução de um cristianismo alternativo que verdadeiramente zomba da fé, desvirtuando-a, removendo o Cristo do cristianismo. Pior ainda, Cristo poderia vir a ser entendido como um mero símbolo, um meme para um movimento em grande parte político, que não tem nenhuma preocupação com a verdade das Escrituras.

É fácil imaginar isso, pois já acontece há muito tempo em alguns segmentos do cristianismo americano. O evangelho social de progressistas que abandonaram doutrinas fundamentais como a da Ressurreição é um exemplo perfeito. E na direita, o cristianismo pode tornar-se uma forma de religião cívica, como na recente divulgação do ex-presidente Donald Trump de uma Bíblia patriótica. O cristianismo corre sempre o risco de ser cooptado por aqueles que desejam os benefícios materiais da fé sem a realidade espiritual do evangelho.

Mas será que aqueles que são atraídos pelos benefícios materiais do cristianismo necessariamente não conseguirão chegar a uma fé profunda, pessoal e ortodoxa? Será possível que pessoas preocupadas com um mundo insano possam chegar à fé através deste caminho mundano — em um primeiro momento, atraídas pela ordem que Deus concebeu e que é inerente ao cristianismo —, mas, posteriormente, possam ser atraídas pelo próprio Deus? É possível que pessoas solitárias e deprimidas possam chegar à fé atraídas, em um primeiro momento, por essa comunidade concebida por Deus, inerente à igreja?

Eu enxergo os riscos reais do cristianismo cultural. Mas acredito que os incrédulos — mesmo sendo, em um primeiro momento, atraídos pelos benefícios do cristianismo, e não pelo evangelho — ainda possam acabar encontrando a fé. Eles podem buscar a Deus “e talvez, tateando, [podem] encontrá-lo, embora não esteja longe de cada um de nós” (Atos 17.27).

Há perigo aqui, e devemos ter o cuidado de não encorajar uma cultura cristã superficial e desvirtuada. Mas vivemos um momento de uma abertura notável para proclamar o evangelho. Quer as pessoas venham à igreja para socializar, quer por obediência a Deus, elas precisam ouvir o evangelho. Quer as pessoas demonstrem interesse no cristianismo por seus receios em relação à cultura progressista, quer por estarem convencidas da historicidade da Ressurreição, elas precisam ouvir o evangelho.

O desafio é convidar aqueles que enxergam os benefícios da nossa fé a enxergarem também que estes benefícios são dádivas perfeitas do Pai, e não meros resultados positivos de um estilo de vida otimizado. O evangelho é esse convite. Somente proclamando o evangelho é que poderemos explicar aos nossos próximos que a cultura cristã é boa porque vem de um Deus amoroso que “abençoa ricamente todos os que o invocam” (Romanos 10.12), um Deus que deseja que eles se arrependam e se voltem para ele.

O. Alan Noble é professor associado de inglês na Oklahoma Baptist University e autor de três livros: On Getting Out of Bed: The Burden and Gift of Living [Sobre sair da cama: O fardo e a dádiva que é viver], You Are Not Your Own: Belonging to God in an Inhuman World [Você não pertence a si mesmo: Pertencendo a Deus em um mundo desumano], e Disruptive Witness: Speaking Truth in a Distracted Age [Testemunho disruptivo: Falando a verdade em uma época alienada].

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