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Minha igreja, minhas regras

Como essa noção moderna da autoconcepção do indivíduo transforma a comunidade cristã em uma identidade pessoal.

Christianity Today July 4, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Unsplash

A recente morte do pastor e teólogo Tim Keller despertou certa nostalgia pelos dias agitados da minha juventude, como participante do movimento Young, Restless, and Reformed (YRR) [Jovens, Inquietos e Reformados], que ele ajudou a liderar.

Como alguém que foi criada no fundamentalismo cristão, esse movimento me propiciou uma espécie de rebelião santa, onde a graça gratuita, a música contemporânea e o engajamento cultural vinham envoltos pela glória e pelo poder de Deus. Contudo, duas décadas depois, eu me vejo menos jovem, menos inquieta, menos reformada e mais velha, mais cansada e mais em processo de redirecionamento.

Não posso deixar de me perguntar como fui de um ponto a outro. Que caminho me levou das tradições da minha infância para outras e por outras tradições? Quanto do meu caminho espiritual foi escolha minha e quanto me foi dado? Minha vida espiritual foi “gerada [por Deus] ou feita [por mim mesma]”?

A ideia de que nossas jornadas de fé são maiores do que nossas escolhas desafia a própria espiritualidade que a maioria de nós considera natural. Um relacionamento pessoal de compromisso com Deus é algo característico da maioria das expressões modernas do cristianismo. Meu filho de 17 anos, por exemplo, considera um abominação que crianças sejam batizadas contra sua vontade. Ele não está fazendo uma afirmação teológica, mas muito mais uma afirmação antropológica, informada pela cultura americana mais ampla, que pressupõe essa noção da autoconcepção do indivíduo por meio da escolha.

Sendo justa com ele, a maioria das tradições das igrejas que dão pouca ênfase aos rituais — incluindo a igreja em que fui criada — mantém esse mesmo pressuposto individualista. O compromisso com a conversão pessoal e a afiliação voluntária como membro também pode explicar por que as igrejas não denominacionais representam hoje o maior segmento de protestantes nos Estados Unidos.

Essas igrejas são profunda e irrestritamente modernas, não por causa dos tênis e das máquinas de gelo seco que usam, mas porque se alinham com nossa compreensão contemporânea de escolha. Sem um progenitor denominacional, elas incorporam a autodeterminação e a autoconcepção em nível organizacional.

No entanto, os cristãos modernos não necessariamente rejeitam as tradições mais antigas. Quando um amigo meu confessou recentemente que estava considerando o anglicanismo, outro cogitou em voz alta: “Não é isso que significa ser evangélico hoje em dia?” Essas tradições preenchem um vazio da vida moderna, pois propiciam um sentimento de pertencer a algo maior do que nós mesmos.

Como escreveu o padre católico Henri Nouwen, em The Wounded Healer [O curador ferido], os seres humanos modernos são uma “geração sem pais”, sem raízes e sem limites. Para muitos deles, portanto, retomar práticas mais antigas é uma forma de encontrar um lar. Isso tem sido verdade para mim. A descoberta das doutrinas reformadas do século 16 ajudou a me dar algumas raízes teológicas. Mas, ironicamente, revisitar espaços pré-modernos é algo que se dá pelos meios tremendamente modernos da escolha pessoal.

Mesmo quando nós, líderes cristãos, condenamos essa maneira de buscar a igreja certa como algo consumista, continuamos a ensinar as pessoas a praticá-la. Ensinamos a elas que a riqueza e a dimensão real de suas vidas espirituais correspondem às suas escolhas. E, ao fazer isso, não fazemos nada mais do que garantir que suas caminhadas cristãs se tornem uma busca sem fim pela próxima coisa verdadeira. Tendo começado pela escolha, as pessoas são aperfeiçoadas pela escolha.

Em uma ironia ainda mais estranha, as igrejas com as quais escolhemos nos associar podem se tornar uma forma de projetar nossa identidade para o mundo. Nossas próprias biografias religiosas são reduzidas a conjuntos lineares de decisões, que explicam nosso estado espiritual atual. Para citar Robert Frost, chegamos a uma bifurcação na estrada, e qualquer caminho que escolhermos fará toda a diferença.

Mas, à medida que reflito sobre minha jornada pessoal, duvido do papel que a escolha pessoal desempenhou nela — não por ter me faltado arbítrio, mas porque a Providência me entregou escolhas como um pacote fechado. Elas foram limitadas pelo conhecimento e pelo que era possível em um dado momento [da jornada]. (Se a pessoa não morar perto de uma igreja luterana, por exemplo, as chances de se converter ao luteranismo são drasticamente reduzidas).

Em vez de refletir sobre meu passado pelas lentes do que escolhi, estou pensando mais sobre o que me foi dado. Eu me junto a Nouwen e concebo minha fé como “a aceitação de tradições de séculos [em vez de] uma atitude que cresce a partir de dentro [de mim]”. Essa estrutura me libertou, de modo a ver minha história espiritual com um distanciamento que me permite avaliá-la com mais honestidade. Como meu caminho não é mais uma afirmação sobre minha própria pessoa, posso pesá-lo e ponderá-lo. Posso honrar o que é bom, verdadeiro e belo, e, ao mesmo tempo, rejeitar o que é mau e feio.

Esse ato de diferenciação é particularmente importante para aqueles que vêm de ambientes disfuncionais ou espiritualmente tóxicos. Enquanto documentários como Shiny Happy People e The Secrets of Hillsong listam os pecados de movimentos evangélicos doentios, também desencadeiam um acerto de contas público. A historiadora Kristin Du Mez, refletindo sobre a popularidade dessas séries e de seu próprio livro, Jesus and John Wayne , observa que “isso ajudou integrantes [desses movimentos] a entenderem seu mundo e pode lhes dar alguma clareza para seguir em frente”.

Vejo uma dinâmica semelhante em ação na recente votação da Convenção Batista do Sul (SBC) para garantir que o papel de pastor / presbítero / bispo seja limitado aos homens ”. Embora a posição da Convenção nunca tenha sido questionada, até mesmo os mais ferrenhos complementaristas, como Denny Burk, ficaram surpresos com a velocidade e a intensidade da mudança.

Em respostas públicas, observadores de fora da Convenção se perguntaram por que as mulheres permanecem nela. Alguns chegaram a sugerir que as mulheres complementaristas estão funcionalmente em relacionamentos abusivos e não podem sair porque estão sendo controladas. Outros chamaram as mulheres de cúmplices de sua própria opressão. Em outras palavras, as pessoas de fora perguntavam: “Por que as mulheres escolhem ficar lá?”

Do meu ponto de vista, essas respostas colocam muito peso na escolha individual. Muitas mulheres — inclusive aquelas que discordam do posicionamento da Convenção — permanecem na SBC porque é lá que foram colocadas. Elas podem ficar lá para sempre, ou não. No momento, algumas estão lutando para saber se devem deixar suas igrejas alinhadas com a SBC, enquanto outras jamais ponderarão sobre essa questão.

No entanto, o ponto não são as escolhas delas. Suas jornadas espirituais e as nossas fazem parte de uma matriz maior de forças, tradições e crenças convergentes. Temos que transitar por elas com fidelidade e honestidade, mas não faremos isso sozinhos nem estritamente de acordo com as nossas vontades pessoais. Sim, temos arbítrio sobre nossas histórias de fé; porém, ao descentralizar o papel da escolha, somos libertados de seu poder paralisante.

Em minha própria vida de fé, aceitar esse caráter dado da minha jornada espiritual no passado me permitiu fazer as pazes com seus contornos sinuosos e a avançar para o futuro com confiança. Ao abrir mão do controle sobre o meu passado, eu simultaneamente abro mão do controle sobre meu futuro. E, como não descartei o caminho que percorri até aqui, estou livre para seguir para onde quer que Deus esteja me conduzindo agora.

Todos nós podemos ter certeza de que algo maior do que nossas próprias decisões está em ação. Assim como Deus nos fez nascer em certo lugar, ele pode nos chamar para viver em outros. Nesse processo, podemos entregar a nós mesmos e a nossas escolhas para o Senhor, sabendo que ele guiará nossos dias de peregrinação na terra.

Hannah Anderson é autora de Made for More, All That s Good e Humble Roots: How Humility Grounds and Nourishes Your Soul.

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Feridos pela igreja: os traumas do abuso espiritual precisam ser curados

Como permanecemos na igreja importa tanto quanto o porquê.

Christianity Today June 28, 2023
Denys Amaro / Unsplash

As pessoas estão deixando a igreja hoje por vários motivos — que vão desde questões como abuso espiritual ou sexual praticados por líderes, igrejas que se dividem, legalismo ou hiperpolitização. Uma pesquisa recente do Barna Group descobriu que duas das principais fontes de questionamentos, para a maioria dos crentes, são experiências negativas vividas em uma instituição religiosa e a hipocrisia de pessoas religiosas.

Mas nem todos os que tiveram uma experiência ruim em uma comunidade de fé optam por deixar a igreja ou o cristianismo por completo. Alguns permanecem na congregação que os feriu, e muitas vezes se mantêm lá por causa de relacionamentos que prezam ou por um senso de lealdade à instituição. Outros tentam apertar o botão da reinicialização e começar de novo em uma nova igreja, denominação ou tradição.

Qualquer que seja o caso, essas feridas do passado não desaparecem como num passe de mágica. Na verdade, novas experiências em outra igreja, quando sobrepostas a experiências do passado, podem exacerbar a dor daqueles que permanecem. Os bancos da igreja hoje estão cheios de pessoas que carregam cicatrizes — ou feridas ainda abertas — de mágoas sofridas na igreja. Em geral perguntamos por que as pessoas devem permanecer na igreja, mas às vezes essa pode ser a pergunta errada. Em vez disso, acho que precisamos falar mais sobre como permanecer na igreja.

Eu tive que responder a esta pergunta para mim mesma, como uma sobrevivente de feridas causadas pela igreja. Hoje estou frequentando outra congregação, mas a jornada para permanecer ligada a uma igreja local, depois do abuso que sofri, não tem sido nada fácil.

Também estou aprendendo ao observar como outros conduziram seu relacionamento com a igreja local, depois de terem sido feridos por irmãos e irmãs em Cristo. E o que descobri é que aqueles que optam por permanecer ligados a uma comunidade de fé local, apesar de seu trauma, têm sábias percepções sobre confiança, perdão e discernimento — que são valiosas não apenas para aqueles que foram feridos, mas para todo o corpo de Cristo.

Dê nome e revele as especificidades das feridas causadas pela igreja

Quando se trata de processar feridas causadas pela igreja, algo que ajuda é saber que você não está sozinho e que outras pessoas tiveram experiências semelhantes. Mas é igualmente importante identificar a fonte de seu próprio trauma e separá-la de outras narrativas de abuso que existem na igreja em geral.

Rachel Baker, uma esposa de pastor, descreveu seu processo de pensamento após uma experiência dolorosa em uma congregação anterior: “A fim de iniciar o processo de cura e perdão, tornou-se imperativo que eu identificasse ‘quem’ estava por trás da ferida. Assim que fui capaz de identificar ‘quem’ realmente causou o dano, fui capaz de separá-los da igreja como um todo. De repente, percebi que eu não estava na realidade sentindo ‘mágoa da igreja’, mas sim uma ‘mágoa relacional’.”

Essa diferenciação pode ser muito útil. Relacionamentos rompidos com outros membros da igreja podem deixar feridas profundas e contaminar outras amizades na congregação. Esse tipo de ferida pode fazer parte de uma constelação maior de relações danificadas, que gravitam em torno de um líder espiritualmente abusivo — ou ela pode limitar-se a uma luta entre dois indivíduos. Por isso é importante identificar a origem e a extensão da ferida.

Para muitos, porém, essa identificação não é possível. Embora nem toda experiência de mágoa vivida na igreja leve a um trauma religioso, padrões repetitivos de dano moral e de abuso espiritual são muito mais difundidos do que rompimentos relacionais isolados.

Uma mulher me disse que viu muitos casos de homens em posição de liderança que abusavam de seu poder, mentiam e ocultavam imoralidades. Agora ela luta para manter o coração aberto, combatendo o cinismo e o desejo de sair da igreja. Ela credita como algo fundamental para ajudá-la a permanecer ligada à igreja o tempo que tem passado com um conselheiro profissional licenciado. “Durante esse processo, tenho chorado muito, confessado minhas próprias reações pecaminosas e optado pela obediência em vez do desespero”, disse ela.

Há um aumento na conscientização, em alguns círculos da igreja, a respeito da necessidade de as congregações se tornarem informadas sobre traumas, para ministrarem melhor a sobreviventes de abuso espiritual.

Nos primeiros anos, após minha própria experiência de abuso espiritual, o aconselhamento cristão e sessões com um diretor espiritual maduro me ajudaram a reconhecer e a processar minha dor e a dar início à cura — bem como a aprender como lidar com os maus conselhos que recebia de outras pessoas.

Alguns amigos bem-intencionados enfrentavam a confusão, a raiva e a tristeza que eu sentia com clichês do tipo: “Bem, você sabe que não existe igreja perfeita! E, mesmo que existisse, você ou eu arruinaríamos tudo no momento em que entrássemos pela porta.” Eu já tinha lido as epístolas e sabia que a Bíblia esté repleta de casos de igrejas imperfeitas.

Mas um bom conselheiro me ajudou a entender que esse tipo de resposta é uma espécie de escape espiritual que não visava me consolar, antes visava mais aliviar o desconforto que minha dor lhes causava. Um instinto semelhante influenciou os amigos de Jó nas respostas (erradas) que deram ao seu sofrimento.

Em vez disso, uma cura holística de feridas causadas pela igreja requer que façamos um reconhecimento honesto da natureza e da extensão de nossa dor — em vez de tentarmos “seguir em frente” muito depressa.

Em um episódio bônus do podcast The Rise and Fall of Mars Hill, Mike Cosper entrevista a terapeuta cristã Aundi Kolber, que estuda os efeitos do trauma espiritual em nosso corpo — e cita obras como o influente livro de Bessel van der Kolk , The Body Keeps the Score [O corpo mantém os registros]. “Nós carregamos as cicatrizes, carregamos os danos. (…) E chega um momento em que acredito que o corpo diz: Chega”, disse Kolber. “Creio que é a graça de Deus.”

Como observa Russell Moore, a mesma coisa pode acontecer no corpo de Cristo como um todo: “O que não é reparado é repetido — e o que não é reformado não pode ser trazido de volta à vida”.

Mudar de igreja, de denominação ou de tradição

Muitos dos sobreviventes, no entanto, acham que acabaram ficando na igreja porque foram para outra congregação, denominação ou tradição.

O abuso espiritual muitas vezes pode remodelar nossas prioridades, perspectivas e preferências. Por exemplo, se um sobrevivente foi ferido por um líder narcisista ou em uma megaigreja chamativa, essa pessoa pode procurar uma igreja local com uma estrutura de liderança descentralizada ou uma congregação menor e mais simples. Ou os sobreviventes de uma igreja que segue um modelo mais empresarial podem procurar uma comunidade que opere mais como uma família do que como um negócio.

Outras pessoas foram feridas por igrejas que se apresentavam como famílias saudáveis por fora, mas eram disfuncionais por dentro. Infelizmente, a doutrina sólida por si só não cria automaticamente uma comunidade espiritual saudável.

O conselheiro Jeff VanVonderen nos lembra que o modelo do Novo Testamento para uma igreja saudável é um lugar em que há apoio, amor e espaço para estarmos em processo. Ele sugere que observemos como os membros interagem uns com os outros, para identificarmos se uma comunidade é realmente forte e saudável ou se é uma placa de petri [instrumento de laboratório utilizado para identificação e cultura de microorganismos] em potencial para abusos espirituais.

Wendy Alsup fazia parte da hoje extinta megaigreja não denominacional Mars Hill, que ficava em Seattle. Mais de uma década depois, ela agora mora em outra parte do país e frequenta uma pequena igreja denominacional.

“Eu simplesmente tenho hoje a maturidade e a sabedoria que eu não tinha anos atrás sobre que tipo de líder procurar”, disse Alsup. “Eu costumava ser apaixonada pela pregação dinâmica e pelo crescimento rápido. Essas coisas me deixam nervosa agora (…) Não vejo mais utilidade em grandes produções dos cultos dominicais e não suporto mais fazer parte delas [das megaproduções].”

Mesmo assim, há muitos sobreviventes que deixaram congregações abusivas, mas ainda não encontraram nem se juntaram a outra igreja, pelos mais variados motivos, entre eles a pandemia. Na verdade, como Mike Moore disse em um artigo para a CT, esses últimos anos caóticos deixaram muitos crentes presos num “purgatório eclesiástico”, incertos sobre como se reconectar com a igreja.

Depois de sete anos em uma igreja rural liderada por um pastor narcisista, uma conhecida minha visitou outra igreja com o marido, pouco antes da COVID-19 começar. Depois de tantos anos solitários em sua congregação anterior, esse casal de antigos missionários esperava finalmente desfrutar de uma comunidade encarnada. Mas devido a alguns problemas graves de saúde, eles não puderam comparecer aos cultos presenciais.

Perguntei à minha amiga o que os mantém conectados à igreja e nutridos espiritualmente, e ela listou várias coisas. Além de assistir aos cultos de domingo e se comunicar com a equipe da liderança de sua igreja local, eles têm comunhão com amigos espirituais de longa data e aproveitam a variedade de materiais de ensino e devocionais disponíveis online.

“Acreditamos que há algo de poderoso em nossa conexão fiel com o corpo de uma igreja local, mesmo quando esse corpo não é necessariamente fiel a nós”, disse ela. “Acreditamos que Deus pode estar trabalhando em nós e através de nós, apesar do que vemos e experimentamos e apesar das nossas feridas. É difícil. É doloroso. Gostaríamos que fosse diferente. Mas nós perseveramos.”

Nos primeiros tempos da minha própria ferida, quando frequentar os cultos de domingo parecia algo muito estressante para mim, mantive a conexão com o corpo de Cristo participando de um estudo bíblico comunitário e buscando outras maneiras de servir a Deus ao lado de outros crentes. Meu objetivo não era deixar a igreja para sempre, mas descobrir como poderia ficar.

E, enquanto buscava a sabedoria de Deus para seguir em frente, sabia que tinha de proteger meu coração contra a amargura em relação à minha antiga igreja, e me envolver na contínua obra do perdão — em parte, para não trazer aquela bagagem comigo para a minha próxima comunidade.

A confiança parece diferente, depois que se é ferido

No entanto, mesmo que possamos localizar nosso trauma, processá-lo na terapia e encontrar uma nova congregação onde nos sintamos bem, permanecer na igreja ainda pode deixar a nós, sobreviventes, com uma postura defensiva em relação aos líderes da nova igreja.

Esse distanciamento emocional destina-se a atuar como um sistema de alerta precoce para reconhecer abusos de poder, antes que eles possam nos causar danos. Essa autoproteção pode vir da sabedoria da experiência vivida, mas também pode ser uma barreira para o crescimento futuro e novos relacionamentos. Este é o delicado processo de equilíbrio que os sobreviventes devem atravessar a longo prazo.

E embora possamos jamais ser capazes de recuperar o tipo de confiança inocente e de otimismo cor-de-rosa que um dia tivemos, existem maneiras de controlar nossa desconfiança.

Há alguns anos, um ex-pastor com uma história dolorosa de feridas causadas na igreja me disse que, em vez de tentar silenciar a voz cética em seu interior, ele aprendeu a administrá-la — reconhecendo-a como uma forma de autoproteção contra danos futuros. E quando damos as boas-vindas ao crítico interno da igreja que trazemos em nós, podemos de fato “dimensionar corretamente” a influência dessa voz, e com muito mais eficácia do que se tentarmos ignorá-la ou silenciá-la. Isso, por sua vez, nos ajudará a permanecermos presentes para Deus e para as pessoas ao nosso redor, em vez de ficarmos emocionalmente distantes.

Para sobreviventes, também pode ser útil lembrar que nossa sensibilidade e nosso discernimento podem realmente servir à missão da igreja a longo prazo.

“Mulheres e homens corajosos estão dando um passo à frente e dizendo: ‘Esta não é a visão de Cristo para a igreja, a liderança, os relacionamentos.’ Eles estão exigindo mais de nós como líderes”, observou o profissional de cuidado pastoral, Chuck DeGroat, em uma entrevista à CT. “Essas pessoas estão dispostas a fazer o trabalho duro de desmantelar sistemas e relacionamentos tóxicos, de identificar realidades prejudiciais, de caminhar na direção da esperança e da verdade em amor.”

Um homem me disse ter visto de perto a má conduta financeira e o abuso de poder de um pastor corrupto, antes de renunciar ao cargo de presbítero. “Eu não confio nem respeito mais ninguém automaticamente, só porque essa pessoa tem um título, uma posição ou influência.” Ele está frequentando uma nova igreja — embora com pouco envolvimento fora os cultos de domingo — mas permanece hipervigilante em busca de sinais de abuso de poder.

E embora muitas vezes considere deixar discretamente sua igreja atual, ele escolheu ficar: “Sei que responderei perante o Cabeça da igreja, e seu sofrimento supera em muito o meu”.

“Não quero usar minha experiência com os ‘pastores de Ezequiel 34’ como desculpa para me desligar de Jesus”, disse outra amiga que deixou seu cargo em uma igreja de médio porte, depois de um doloroso e prolongado conflito. “A ideia de abandonar o próprio Jesus me faz chorar.” Suas palavras revelam a importância de buscar uma conexão mais profunda com Cristo, apesar — ou talvez precisamente por causa — da dor que ela continua processando em oração.

O apóstolo Paulo enfatizou a liderança de Cristo para pelo menos duas congregações que passavam por dificuldades. Sua oração em Efésios 1.18-23 enfatizou que o Jesus ressurreto detém a autoridade e o domínio plenos sobre todas as instituições e governos humanos — mesmo em uma época na qual a cultura predominante contava uma história diferente.

Em sua carta à igreja de Colossos — que estava sob ataque de falsos mestres que pregavam um evangelho diferente — Paulo afirma que Cristo “é a cabeça do corpo, que é a igreja; ele é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a supremacia”(Colossenses 1.18)

Os sobreviventes sabem melhor do que ninguém que nem tudo o que acontece em uma congregação reflete o caráter e a autoridade de Jesus. Mas lembrar que Cristo é o cabeça de sua igreja nos proporciona clareza e perspectiva em relação às ações de nosso corpo local de crentes. Como diz o pastor Benjamin Vrbicek, nossa hiperconsciência em relação a “maus pastores” aponta para um “anseio mais profundo por bons pastores — e, em última análise, pelo Bom Pastor”.

As Escrituras deixam claro que Deus não tem um plano B, se sua igreja falhar com ele — embora tenhamos falhado de inúmeras maneiras impressionantes e terríveis nos últimos dois milênios. Nossos pais e mães espirituais na fé nos lembram, através dos tempos, que a igreja sempre precisará de reforma. E essa reforma inclui aqueles de nós que foram feridos.

Michelle Van Loon é autora de sete livros, entre eles Becoming Sage: Cultivating Meaning, Purpose, and Spirituality in Midlife.

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Em defesa de uma teologia do corpo

Deus tem um plano maravilhoso, que vai além de sexo, dieta saudável e esportes

Christianity Today June 27, 2023
iStock

Em setembro de 2010, Albert Mohler, presidente do Southern Baptist Theological Seminary, provocou uma tempestade de textos em blogs e posts nas redes sociais, ao argumentar que ioga e cristianismo são coisas incompatíveis. “A aceitação da ioga”, escreveu ele, “é um sintoma de nossa confusão espiritual pós-moderna e, para nossa vergonha, essa confusão atinge a igreja”. Como era de se esperar, a crítica de Mohler não caiu bem entre aqueles que praticam ioga para saúde ou crescimento espiritual. Ele teria recebido centenas de respostas, a maioria delas de teor negativo.

A controvérsia em relação à prática da ioga não era nova. De certa forma, ela lembrava uma controvérsia anterior entre Doug Pagitt, um líder da igreja emergente, que foi convidado para debater com John MacArthur na CNN, em 2007. Mais uma vez, as linhas de batalha estavam claras: MacArthur descartava a ioga como forma degradada de espiritualidade incompatível com a vida cristã, enquanto Pagitt a aceitava como forma de integrar o corpo em um relacionamento com Deus.

O que quer que pensemos da relação entre ioga e cristianismo, ela funciona como um indicador cultural dentro do evangelicalismo e sua descendência. Pagitt e aqueles que reafirmam a ioga o fazem em uma tentativa genuína de cultivar uma fé holística, que resiste a uma divisão dualista entre corpo e espírito. Esse movimento pode ser entendido como uma extensão da famosa sugestão de Eric Liddell no filme Carruagens de Fogo: “Acredito que Deus me fez com um propósito, mas também me fez rápido. E quando corro, sinto que ele tem prazer nisso.” Se isso acontece com a corrida, por que não com a ioga? Embora quase todos os evangélicos queiram reafirmar o sentimento de Liddell, há uma óbvia discordância sobre exatamente quais atividades são compatíveis com esse sentimento e quais não são.

Os evangélicos claramente precisam de limites. A prática da ioga (ainda que apenas para benefícios de saúde) foi normalizada para a maioria dos cristãos tradicionais no Ocidente. Mas e quanto à próxima mania fitness da moda? No final de março de 2011, a ABC News informou que um grupo pequeno, mas sério, de mulheres havia participado de aulas de “pole dancing cristã”. “Deus nos dá esse corpo, e ele deve ser o nosso templo e nós devemos cuidar dele”, disse a instrutora Crystal Dean, “e é isso que estamos fazendo”. Aparentemente, Dean não vê nenhuma incongruência em girar sugestivamente [em torno de uma barra vertical] ao som da música de adoração de Matt Redman.

Descobrindo o corpo

O benefício de tais controvérsias é que elas forçam os evangélicos a avaliarem e a articularem seriamente seus pensamentos sobre o lugar apropriado do corpo físico tanto em nossas práticas espirituais quanto em nossa teologia. A insatisfação cresce cada vez mais dentro do movimento evangélico, sugerindo que esta é uma discussão há muito tempo aguardada. Como escreveu o teólogo Michael Horton: “Parece que os críticos da religião americana nos dias atuais estão basicamente acertando o alvo, quando descrevem como essencialmente gnóstico todo o cenário da religião, desde a Nova Era ou os liberais, até os evangélicos e pentecostais”. Contra aqueles que transitam em noções “quase gnósticas” de “salvação da alma”, Horton sugere que o cristianismo genuíno é uma “religião telúrica e natural”.

Tais críticas, embora poderosas, às vezes minimizam a dinâmica única da espiritualidade e da prática evangélicas. De certa forma, os evangélicos estão mais interessados no corpo do que nunca antes. A atenção à cura física e a manifestações físicas da presença do Espírito Santo tem predominado por muito tempo dentro da ala carismática do evangelicalismo. Mas, hoje em dia, vemos ressurgir uma preocupação com a existência corpórea que está se espalhando por todo o movimento mais amplo: considere nossa maior sensibilidade às necessidades físicas dos pobres e nossa crescente apreciação pela beleza e pelas artes.

Esse interesse crescente pelas necessidades e expressões do corpo assume muitas formas. Veja, por exemplo, a renovada ênfase evangélica na dieta saudável, ou a consciência cada vez maior sobre os dilemas éticos na produção, na distribuição e no consumo de alimentos. Nosso gosto pelos esportes sem dúvida manifesta a seriedade com que desfrutamos dos prazeres que advêm da vida em um corpo. Além do mais, o fascínio de uma geração mais jovem pelas formas litúrgicas de adoração — fênomeno que Robert Webber percebeu há quase 20 anos — infundiu-se lentamente em muitas igrejas evangélicas. Em março de 2011, em St. Louis, a BiFrost Arts — uma nova organização dedicada a refletir sobre as formas como a adoração molda o corpo — organizou uma conferência voltada para presbiterianos de mentalidade litúrgica, mas também atraiu vários evangélicos de denominações tradicionais que estavam curiosos.

Talvez o indicador mais significativo de que os evangélicos estão despertando para a questão do corpo seja o resgate das disciplinas espirituais, auxiliado por escritores como Dallas Willard e Donald Whitney. Willard, em particular, em livros como The Spirit of the Disciplines [O Espírito das disciplinas] e Renovation of the Heart [A renovação do coração], articulou uma espiritualidade moldada pelas Escrituras que se infiltra por todas as partes da pessoa humana. Esse movimento cresceu a ponto de ganhar apoio institucional, dentro e fora da academia.

Teologia fragmentada

O renovado interesse evangélico pelo corpo talvez tenha ficado mais evidente — e problemático — em nosso ensino sobre sexo e sexualidade. A partir da década de 1970, os evangélicos experimentaram o que alguns estudiosos descreveram como a nossa própria revolução sexual. Após a publicação de The Total Woman [A mulher total], de Marabel Morgan, manuais destinados a maximizar o prazer conjugal inundaram o mercado de livros evangélicos. Buscando justificar o prazer físico em meio a estereótipos de puritanismo e repressão, os evangélicos adotaram interpretações literalistas de Cantares de Salomão, argumentando não apenas que Deus criou o sexo como algo bom, mas que, para os cristãos, o sexo deveria ser mais frequente e mais prazeroso do que para quaisquer outras pessoas — em uma espécie de apologética do sexo, se me permite assim dizer. No mínimo, este é um cristianismo em expansão, um cristianismo que está tentando sair de dentro das quatro paredes da igreja para alcançar todas as partes de nossas vidas — em especial o corpo.

A desvantagem é que os evangélicos às vezes são desajeitados em seus esforços para enxergar como a Palavra deve moldar a “carne”. Nossas abordagens em relação ao corpo muitas vezes ocorreram de maneira bastante fragmentada. Qualquer que seja a tendência que esteja em voga em dado momento, os cristãos prontamente respondem com uma versão própria, cristã, “aprovada por Jesus”, para essa tendência. Quando a dieta saudável se tornou moda, logo apareceu uma dieta cristã. À medida que a ioga ganhou popularidade, surgiu a ioga cristã. E enquanto a revolução sexual desfraldava suas bandeiras, os cristãos buscavam justificativas bíblicas para cederem aos prazeres da carne.

Embora o cristianismo claramente afete todos os aspectos de nossa vida no corpo, uma abordagem fragmentada a uma teologia do corpo tem desvantagens significativas. Para além da compreensão fragmentada do corpo, que vem do cuidado voltado apenas para uma série de atividades e funções, a ausência de um pano de fundo teológico abrangente corre o risco de reduzir nossos ensinamentos éticos e o cuidado pastoral a mero legalismo. Perdemos a noção de que o que o cristianismo propõe é mais um estilo de vida diferenciado do que uma lista moralizadora do que fazer e não fazer.

Existe um bem maior do que o prazer: o relacionamento mútuo de amor.

Além do mais, fragmentar ou dividir nossa teologia do corpo em análises separadas do sexo, da ioga ou de outras experiências acarreta dois riscos adicionais: se nos concentrarmos estritamente nas Escrituras, afirmaremos apenas o que seu texto explicitamente permite; ou, se nos concentrarmos estritamente no prazer físico, entregaremo-nos a uma “espiritualidade” de busca do prazer desvinculada do testemunho bíblico.

Portanto, o que os evangélicos precisam desesperadamente é de uma explicação ordenada de como as Escrituras informam nossa compreensão do corpo humano e de seus usos. Mas, com poucas exceções — como James K. A. Smith e Amos Yong — a teologia evangélica ainda está tentando recuperar o atraso nessa área. Como o teólogo do Westmont College, Telford Work, apontou recentemente nestas páginas, a teologia do corpo é uma das doutrinas menos desenvolvidas do evangelicalismo.

Encontrando novos recursos

A dificuldade de passar da prática à teologia nunca foi tão clara quanto em nossa abordagem à sexualidade. Culturalmente falando, o prazer sexual tornou-se um bem inviolável que supera qualquer outra consideração, quando buscado por adultos e for consentido. Quando o professor de sexualidade da Northwestern University, J. Michael Bailey, organizou para os alunos um ato sexual ao vivo, depois da aula, ele o defendeu alegando que não “se renderia à negatividade e ao medo do sexo”. Uma dose de negatividade e de medo sem dúvida prejudicou o ensino evangélico sobre a sexualidade, mas nossa inquietação também reflete o fato saudável de levarmos em conta a decadência da humanidade. Não podemos ignorar o quão completamente o pecado corrompeu toda a criação, incluindo sobremaneira nossos apetites sexuais.

Envenenar ainda mais a luxúria por prazer de nossa cultura é uma mentalidade terrivelmente egoísta: costumamos dizemos que nada deve nos impedir de ter satisfação sexual, a não ser a ausência de consentimento ou a intenção de evitar danos corporais (e, às vezes, nem mesmo nesse último caso). Infelizmente, muitos evangélicos adotaram, ainda que às vezes com certo desconforto, justamente essas atitudes egocêntricas. Como um dos exemplos mais célebres, temos Douglas Rosenau, autor do best-seller A Celebration of Sex [A celebração do sexo], que endossa um “saudável egoísmo sexual”.

O desafio para uma compreensão evangélica da sexualidade, portanto, é articular a natureza do prazer e sua relação com a sexualidade de modo que não nos tornemos nem libertinos nem puritanos. Precisamos desenvolver uma visão do corpo que evite tratá-lo como um instrumento de prazer pessoal vinculado apenas a um mandamento de não prejudicar os outros. Caso contrário, acabaremos permitindo que atitudes hedonistas e egocêntricas se infiltrem em nosso ensino e, por fim, minem nosso testemunho.

Para desenvolver uma teologia do corpo, os evangélicos devem olhar com profundidade para a nossa própria tradição, usando os recursos que temos à mão. Mas não devemos ter medo de consultar outras fontes de ensino cristão. Provavelmente, a obra que está mais pronta para o diálogo evangélico é a Teologia do corpo, de João Paulo II, uma compilação de preleções de rádio semanais que o Papa fez entre 1979 e 1984. A obra tem sido influente dentro do catolicismo romano, mas os evangélicos praticamente não tiveram nenhum envolvimento com ela. Glenn Stanton, do ministério Focus on the Family, tem sido uma espécie de profeta clamando no deserto. Pelo que posso dizer, seu panfleto de 2011 da Ascension Press — A Christian Response to the Sexual Revolution: An Evangelical Discovers the Theology of the Body [Uma resposta cristã à Revolução do sexo: um evangélico descobre a teologia do corpo] — constitui praticamente toda a reflexão evangélica impressa que temos sobre este tópico tão injustamente negligenciado.

Aprendendo com João Paulo II

Muiso são os desafios para nós, evangélicos, aprendermos com a obra do Papa João Paulo II. Além de divergências substanciais sobre as doutrinas da justificação, da autoridade da igreja e o conteúdo do cânon — algumas das quais são mais aplicáveis à obra Teologia do corpo do que outras — muitos evangélicos se recusarão a afirmar a sacramentalidade do casamento e os ensinamentos do Papa sobre contracepção.

Mas há benefícios para nós na leitura da obra de João Paulo. Talvez, o mais importante deles seja que a obra consegue fundir teologia, reflexão pastoral e ensino prático de uma forma que orienta o leitor para uma transformação genuína. O Papa confronta questões morais sem cair no moralismo, envolvendo-as em uma explicação mais ampla sobre o corpo humano e a sexualidade humana. E ele faz isso justamente para realizar algo que vá além de uma articulação verdadeira de uma teologia do corpo. Como diz João Paulo, “o ethos cristão é caracterizado por uma transformação da consciência e das atitudes da pessoa humana” em relação ao corpo e ao sexo. A obra Teologia do corpo é uma catequese destinada a encorajar transformação pessoal; o texto tem uma qualidade meditativa que é mais bem apreciada a partir de seu interior. Portanto, os interessados em se familiarizar com essa obra seriam mais bem informados indo ad fontes, ou seja, direto à própria fonte, em vez de confiar em seus muitos expositores.

A obra Teologia do corpo fornece uma maneira de falar sobre a sexualidade que evita tanto um caráter profano quanto um silêncio pudico. Em 2009, quando o pastor John MacArthur escreveu quatro postagens, em um blog, criticando Mark Driscoll por seus ensinamentos sobre sexualidade, ele afirmou que Driscoll havia transformado a poesia de Cantares de Salomão em “pornografia leve e obscena”. A abordagem de Driscoll, que ele próprio descreveu como “franca, mas não grosseira”, reflete um desejo generalizado entre os jovens evangélicos de ter conversas francas sobre sexualidade. Contudo, embora a instrução sobre aspectos técnicos da sexualidade tenha seu lugar, a igreja tem sua própria maneira de falar sobre sexo — pense em Gênesis 1, Efésios 5 e Cantares de Salomão —, a qual preserva suas dimensões de mistério. A obra Teologia do corpo fornece alguns recursos para transitar por esse dilema.

João Paulo II fornece uma visão do prazer sexual com a qual os evangélicos podem aprender, ainda que tenham dificuldade em engolir outros elementos de sua teologia.

Talvez o mais importante seja que João Paulo II fornece uma visão do prazer sexual com a qual os evangélicos podem aprender, ainda que tenham dificuldade em engolir outros elementos de sua teologia. A obra não hesita em proclamar o caráter bom do prazer sexual. Mas ela não reafirma nem as compreensões contemporâneas do prazer nem as teorias deficientes da natureza humana que estão por trás delas. Em vez disso, o prazer sexual deve acompanhar o significado mais fundamental do corpo humano, que é “um testemunho à criação como dádiva fundamental e, portanto, um testemunho ao Amor como fonte da qual brota essa própria dádiva”.

Este amor, do qual o nosso corpo dá testemunho, é um amor em que “a pessoa humana se torna uma dádiva e — através desta dádiva — realiza o próprio sentido do seu ser e da sua existência”. Esta é uma maneira radicalmente diferente de enquadrar a sexualidade do que aquela em que o egoísmo sacralizado limita nossa busca pelo prazer apenas quando prejudica outras pessoas. E, ao contrário do best-seller evangélico His Needs, Her Needs: Building an Affair-Proof Marriage [As necessidades dele, as necessidades dela: construindo um casamento à prova de adultério], João Paulo não cai vítima de descrever o sexo como uma necessidade ou um impulso dentro de um relacionamento. Tratar o sexo dessa maneira mina a liberdade única que temos por meio do autodomínio e da continência, qualidades que são essenciais, se quisermos nos entregar a um relacionamento de amor. Ao situar o prazer sexual nesse contexto, João Paulo II defende seu bom caráter sem transformá-lo em algo absolutamente necessário para o florescimento humano, e muito menos na principal busca da vida humana. Existe um bem maior do que o prazer: o relacionamento mútuo de amor.

Por trás dessa compreensão da sexualidade está a visão de João Paulo II sobre o que significa dizer que os seres humanos são feitos à imagem de Deus. Em vez de apelar para uma noção individualista da imago Dei, como racionalidade ou mesmo criatividade, João Paulo II se move em uma direção mais social (como muitos teólogos evangélicos têm feito nos últimos anos). Tornamo-nos a imagem de Deus, segundo João Paulo II, “não tanto no momento da solidão, mas no momento da comunhão”. O mesmo amor abnegado que constitui a vida interior do Deus triúno se manifesta na ordem original criada e através da redenção do corpo, alcançada mediante a morte e a ressurreição de Cristo.

Em outras palavras, a compreensão de João Paulo II da “imagem de Deus” confere ao matrimônio (e à vocação para o celibato, ainda que de maneira diferente) seu caráter sacramental. O corpo, nessa visão, é “um sinal visível da economia da Verdade e do Amor”. Como diz o Papa, somos um “corpo entre corpos”. Pertencemos ao mundo material. Mas nossa consciência de estarmos em um corpo e nossa capacidade de nos entregarmos espontaneamente em amor nos diferenciam de todas as demais criaturas que possuem um corpo. É importante destacar que, somente no final da obra Teologia do corpo, é que João Paulo II fala do casamento como um “sacramento” no sentido que os teólogos católicos usam hoje. Grande porção da primeira parte de sua explicação dedica-se a destacar a sacramentalidade do corpo — a maneira pela qual, ao nos doarmos pessoalmente, tornamos visível a imagem de Deus.

Sexualidade moldada em Jesus

No mínimo, essa explicação das dimensões sexuais do corpo tem uma profundidade que às vezes falta em nossos manuais sobre sexo e nossos ensinamentos pastorais. Mas tem essa profundidade apenas porque aponta para a relação mais básica de doação mútua no seio da criação: a relação entre Cristo e a Igreja. Quando Paulo expõe o profundo mistério entre maridos e mulheres, em Efésios 5, ele nos lembra que sua referência primária é Jesus e seu povo. Cristo se entregou por nós e, quando movidos pela graça de Deus, respondemos com a grata entrega de nós mesmos a ele e aos outros. Embora a ideia de uma sexualidade “moldada em Jesus” possa parecer escandalosa, ela aponta o caminho para um ideal do evangelho: homens e mulheres, imbuídos de uma mentalidade de servos, submetem espontaneamente sua busca de prazer físico ao bem do outro.

Embora a ideia de uma sexualidade “moldada em Jesus” possa parecer escandalosa, ela aponta o caminho para um ideal do evangelho: homens e mulheres, imbuídos de uma mentalidade de servos, submetem espontaneamente sua busca de prazer físico ao bem do outro.

Essa visão do corpo também fornece recursos importantes para solteiros e jovens, os que mais sofrem quando a sexualidade é reduzida a um impulso animal ou a um elemento essencial para o florescimento humano. Exortados a permanecerem castos dentro de uma cultura que ridiculariza a castidade como algo que é social e biologicamente autodestrutivo, não é de admirar que os jovens evangélicos lutem para viverem vidas sexualmente corretas. Uma teologia do corpo moldada na autodoação da cruz, porém, pode começar a reformular o diálogo em torno da sexualidade e do florescimento humano, sugerindo padrões de vida no corpo dos quais solteiros e casados possam participar igualmente.

Uma teologia evangélica do corpo também ajudaria a neutralizar a espiritualidade desleixada, cuja popularidade crescente mina a diferenciação de nosso testemunho. A maneira de minimizar o apelo da ioga como prática espiritual é resgatando uma compreensão do corpo que torne mais atraentes as práticas que vemos nas Escrituras. Tal teologia também poderia assumir um tom mais evangelístico: se já teve um momento em que a dignidade e o status do corpo estiveram em questão, esse momento é agora, e os evangélicos têm a oportunidade de acolher corpos de todos os tipos, conferindo-lhes uma dignidade e um valor intrínsecos que eles não podem ter em outro lugar.

Quando Paulo exorta a igreja em Roma a que “ofereçam [seus] corpos como sacrifícios vivos”, ele está recomendando a eles um ato espiritual de adoração. Nossos corpos e o que fazemos com eles é algo que importa para Deus. Eles nos foram dados como uma dádiva — um presente que se destina a ser devolvido ao serviço de Deus. Como evangélicos, o padrão do nosso sacrifício deve ser o padrão da Cruz, e o poder para nos doarmos deve ser o poder da Ressurreição. Caso contrário, nossa ética será mero moralismo e nossa espiritualidade estará desconectada da revelação sem igual de Deus ao homem, na pessoa encarnada de Jesus Cristo.

Matthew Lee Anderson é autor de Earthen Vessels: Why Our Bodies Matter to Our Faith (Bethany House). Formado pelo Torrey Honors Institute da Biola University, ele escreve no blog em MereOrthodoxy. com

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Faça aos outros o que você quer que eles lhe façam: essa é a vida cristã

O que queremos para nós torna-se o que oferecemos aos outros.

Christianity Today June 21, 2023
Illustration by Abigail Erickson / Source Images: Getty, New York Public Library Digital Collections

Era uma típica noite de sexta-feira na casa dos Wilkin. Um jantar de última hora havia reunido um número crescente de vizinhos e amigos. Enquanto a cozinha enchia de pessoas e conversas, inclinei-me para cada um dos meus filhos e sussurrei o código que eles provavelmente já esperavam: “FSP”.

Família, segurem as pontas (FSP). Talvez você também conheça essa estratégia. Calculando a quantidade de comida em relação aos convidados presentes, ficou evidente que precisávamos de uma solução não milagrosa para os cinco pães e dois peixes que tínhamos. Meu marido orou agradecendo o alimento e, então, silenciosamente, os Wilkins se deslocaram para o fim da fila, servindo-se de porções mínimas para fazer render a comida. Eles sabiam que não ficariam sem comer; a questão não era se eles iriam comer, mas quando iriam. Na pior das hipóteses, pediríamos uma pizza, assim que os convidados fossem para casa.

Ninguém quer ficar no fim da fila. Quando podemos escolher, queremos ficar em primeiro lugar, pegar uma porção completa, sentar na cadeira mais confortável. Mas os seguidores de Cristo entendem que viver é mais do que fazer o que queremos. É fazer o que desejamos.

Deixe-me explicar.

Todos nós podemos imaginar momentos em que desejamos que nos tratassem melhor, em que ansiamos por ter recebido mais cuidado, mais reconhecimento e mais graça do que recebemos dos outros. Podemos olhar para trás e pensar: Gostaria que minhas falhas tivessem sido encaradas com gentileza. Eu gostaria de ter recebido apoio durante aquele período difícil. Eu gostaria de ter recebido amor, em vez de rejeição. Eu gostaria que aquele aniversário tivesse sido lembrado ou que aquela conquista tivesse sido reconhecida. Eu gostaria de ter me sentido necessário, incluído, alguém que tem importância, que é estimado.

Não estamos errados em nutrir desejos como esses. Eles ilustram a necessidade humana básica de ser conhecido, amado e aceito. E o que fazemos com a forma como nos sentimos em relação a nossos desejos, sejam eles atendidos ou não, moldará o curso de nossas vidas.

Para tanto, Jesus nos convida a viver uma vida guiada por aquilo que queremos, embora não da maneira que poderíamos antecipar: “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas” (Mateus 7.12).

Trocando em miúdos, Jesus nos diz para fazer o que queremos. Pensamos em nossa própria lista de desejos, e, então, agimos em relação aos outros de acordo com essa lista.

Damos [aos outros] o encorajamento que gostaríamos de ter recebido, e os tratamos com a mesma honra que gostaríamos de ser tratados. Estimamos [as pessoas] como queremos ser estimados e as servimos como queremos ser servidos. Entramos no fim da linha. Pegamos a cadeira menos confortável. Protelamos o que desejamos para nós mesmos e, em vez disso, garantimos isso para os outros.

Família, segurem as pontas. Todos os dias, nos grandes e nos pequenos momentos, procuramos maneiras de fazer pelos outros o que gostaríamos que os outros fizessem por nós. Mas não fazemos isso sozinhos nem o fazemos com quem não tem esperança. É mais fácil passar para o fim da fila, quando se faz isso acompanhado de sua família. É mais fácil se servir de uma porção menor, quando se sabe que a falta de comida é apenas temporária.

O mundo diz: “Faça o que quiser, não se importe com os outros”. Vá para a frente da fila. Pegue o máximo que puder. Se seus desejos não correspondem à sua realidade, alimente raiva e ressentimento. Jesus diz: “Façam o que vocês querem, levando o outro em consideração”. E assim ele fez. Ele adiou a glória pela privação, para que pudéssemos receber a abundância de sermos reconciliados com Deus. Ao fazer isso, ele cumpriu o desejo de seu Pai e convidou seus seguidores a colocarem em prática a mesma atitude que ele teve.

Este mundo está completamente sedento de bondade e decência. Sua fome por significado e propósito é voraz, e nós somos justamente a família que deve convidá-los a se sentarem à mesa.

Gostaria que as pessoas fossem mais gentis com você? Então, seja a pessoa mais gentil que puder ser. Você gostaria que suas mágoas fossem notadas e que suas vitórias fossem aplaudidas? Esteja atento àqueles à sua volta que estão sofrendo. Você gostaria de ser encorajado com mais frequência? Incentive seu próximo.

Faça isso junto com outras pessoas, como família; faça isso pela alegria que lhe está proposta. O que quer que lhe falte nesta vida é suportável à luz da recompensa que está por vir. Faça, assim como Cristo fez por você. Faça para os outros aquilo que quer que façam para você.

Jen Wilkin é esposa, mãe e ensina a Bíblia. Ela é a autora de Women of the Word [Mulheres da Palavra] e None Like Him [Ninguém como Ele]. Seu twitter é @jenniferwilkin.

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O que vem depois de reavaliarmos a cultura da pureza

Não precisamos de um guia melhor ou de um conjunto diferente de regras. Precisamos mudar a maneira como abordamos a conversa.

Christianity Today June 21, 2023
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Marina Reich / Unsplash

Eu gostaria de ainda ter os livros de sucesso sobre sexualidade e namoro que li na minha juventude para poder ver quais trechos eu grifei, quando tinha 15 anos. Tenho certeza de que há uma lista em algum lugar com a minha letra intitulada “O que eu quero em um futuro marido” (embora, para ser honesta, ela provavelmente fosse bem curta: Jonathan Taylor Thomas).

Enquanto escrevia Talking Back to Purity Culture [Respondendo à cultura da pureza], reli exemplares novos desses livros. Ao revisitar as palavras que tanto moldaram a mim e a meus colegas, senti como que um vidro que se partia sob o peso das minhas crenças internalizadas. Fiquei envergonhada ao perceber que muito do que eu aceitei como verdade nada tinha a ver com a sexualidade bíblica nem com a graça de Deus.

Before You Meet Prince Charming [Antes de conhecer seu príncipe encantado], obra da autoria de Sarah Mally, retrata o coração de uma mulher como um bolo de chocolate. Se alguém comer um pedaço do bolo antes da festa (ou seja, antes do casamento), o bolo e, consequentemente, seu valor relacional, não está mais inteiro. Na introdução da obra Every Young Woman’s Battle [A batalha de toda jovem], Stephen Arterburn adverte as leitoras de que toda vez que um homem faz sexo com uma mulher, ele leva “um pedaço de sua alma”.

Lado a lado com essas mensagens antibíblicas sobre o valor humano, que contrariam diretamente a teologia da imago Dei, estavam as falsas promessas de casamento, sexo de qualidade e filhos para quem quer que praticasse o celibato antes do casamento. Mas, talvez, o que mais me pesou, quando eu era uma adolescente que crescia na igreja, foi a mensagem abrangente de que as mulheres eram as responsáveis pela pureza sexual de ambos os sexos.

Em seu livro, For Young Women Only [Apenas para jovens mulheres], Shaunti Feldhahn e Lisa A. Rice relatam que “os rapazes adolescentes estão em conflito com seus fortes impulsos físicos” e “muitos deles não se sentem capazes ou responsáveis por impedir a progressão para o sexo”. Sabe a que conclusão essas autoras chegam em relação às mulheres? “Os rapazes precisam da sua ajuda para proteger vocês dois.”

Apesar das palavras de Jesus dizerem o contrário, lembro-me de acreditar que os homens realmente não conseguiriam controlar sua luxúria se as mulheres não assumissem a responsabilidade de se vestirem e de agirem de maneira a reprimi-la. Esses livros deixaram claro para mim que a responsabilidade pelo pecado e pela tentação sexual — até mesmo em casos de agressão sexual — recai diretamente sobre os ombros das mulheres. Eu não conseguia acreditar em algumas das mentiras que via escritas entre versículos da Bíblia ou nas táticas usadas e nas iscas penduradas. Eu me encolhi. Chorei. E, em uma das vezes, atirei longe o livro que estava lendo.

Há um movimento crescente de cristãos conversacionais que sentem um santo descontentamento com a maneira que o movimento evangélico aborda tópicos como sexo, casamento e gênero. Temos visto ensinamentos nocivos e antibíblicos sendo perpetuados há muito tempo, e um ajuste de contas necessário está ocorrendo.

Sheila Wray Gregoire, blogueira e autora de The Great Sex Rescue [O grande resgate do sexo], viu a própria perspectiva mudar, quando aprendeu mais sobre as experiências das mulheres em casamentos cristãos, inclusive por meio de uma sólida pesquisa sobre satisfação conjugal, fé, e crenças sobre sexo.

“Passei o ano passado removendo postagens antigas dos meus blogs e pedindo que meus livros mais antigos fossem retirados de circulação”, ela me disse. “Estou revisando e aprimorando. Quero ter certeza de que as informações que estou dando são realmente saudáveis.”

Sua esperança é que autores cristãos populares que promoveram o que ela hoje considera mensagens falsas e prejudiciais sobre sexo e casamento — entre eles Emerson Eggerichs (autor de Love & Respect [Amor e respeito]), bem como Stephen Arterburn e Fred Stoeker (autores de Every Man’s Battle[A batalha de todo homem]) — façam o mesmo que ela.

Mesmo quando nossos olhos se abrem para as deficiências e os erros dos ensinamentos do passado, não tem sido fácil articular o que deveríamos estar ensinando. Se não ensinarmos os princípios da cultura da pureza dos anos 90, o que devemos ensinar aos nossos filhos sobre sexualidade?

Ensine discernimento.

A pergunta mais comum que recebo é: “Que livro posso dar para meu filho/minha filha adolescente ler?” Livros são coisas tangíveis. Podemos tocá-los, recomendá-los e marcar suas páginas. Se você assinar um cartão com uma promessa de pureza, poderá colocá-lo em seu quadro de avisos em casa ou dentro de um diário. Se você comprar um anel de pureza, poderá usá-lo no dedo todos os dias. Adoramos segurar a obediência nas mãos.

Mas meu medo é que, em nossas tentativas de reformar os ensinamentos do passado, possamos facilmente trocar as velhas regras por outras novas, e tratá-las como a nova definição de sabedoria, obediência e cristianismo para todos os crentes.

Nossas novas regras podem parecer diferentes, mas podem muito rápido vir a se tornar igualmente dogmáticas e extrabíblicas. Além disso, regulamentos do tipo “preto no branco” sobre esses tópicos — coisas como beijo fora do casamento ou quando os adolescentes podem começar a namorar — podem diminuir nossa necessidade de estudar a Palavra de Deus, praticar o discernimento e desenvolver nossas próprias convicções.

Certamente, crianças e adolescentes precisam de orientação, e é sábio criar regras e uma estrutura para a família. Mas subestimamos os adolescentes se assumirmos que eles são incapazes de lidar com essas questões. Dê a eles uma chance. (Você sempre pode usar o seu poder de veto!) Conversar com eles pode parecer algo mais intimidador do que simplesmente estabelecer uma lei, mas, no final, isso dá a seus filhos ferramentas para navegar por essas questões com sabedoria e discernimento, inclusive muito tempo depois de não estarem mais sob os seus cuidados.

A cultura da pureza começou com conceitos bíblicos. A santidade é bíblica, assim como as advertências contra a fornicação. Mas eu me pergunto como as coisas teriam sido diferentes para muitos de nós se, em vez de o grupo de jovens da igreja se transformar em mais um debate sobre namoro versus corte, tivéssemos estudado juntos e em profundidade os atributos de Deus. Ou se, em vez de fazer um desfile de moda sobre modéstia, tivéssemos nos debruçado sobre os Evangelhos e sobre a vida de Cristo. Isolar e enfatizar excessivamente certas ideias da Bíblia pode levar a uma má interpretação, mas também pode nos levar a criar nossa própria versão de cristianismo, de retidão e até de salvação.

Quando eu ensinava inglês no ensino médio, os alunos frequentemente perguntavam: “O que vai cair na prova?” Eles perguntavam isso com tanta frequência que parei de aplicar testes e passei a lhes pedir para fazerem apenas redações e projetos. Isso os forçou a buscar uma reflexão e nuances mais profundas e, é claro, a trabalhar mais. Mas não eram apenas os alunos que preferiam respostas mais claras e diretas. Como professora, eu teria achado mais fácil abrir um romance e dizer a eles o que pensar, ou lhes explicar uma visão de mundo, em vez de pedir que eles a descobrissem sozinhos, enquanto líamos o texto juntos. Demandava mais tempo, mais discussão e mais frustração ensinar literatura com todas essas nuances e reflexão. Mas valia a pena.

O discernimento é um jogo de longo prazo. Se substituirmos a cultura da pureza por uma nova série de livros e conferências do tipo “o que fazer e o que não fazer”, estaremos caindo nas mesmas práticas. Quando nossos filhos são pequenos, podemos colar uma lista de regras na geladeira. Crianças precisam de orientação clara. Elas ainda estão crescendo e não são capazes de pensar as coisas com o discernimento de um adulto. Há espaço para listas de regras que vão além das Escrituras, com coisas como “Guarde seus brinquedos antes de pegar outros” ou “Nada de guloseimas antes do jantar”. Mas, como cristãos maduros, devemos ir além e não viver apenas de leite.

“Quem se alimenta de leite ainda é criança, e não tem experiência no ensino da justiça. Mas o alimento sólido é para os adultos, os quais, pelo exercício constante, tornaram-se aptos para discernir tanto o bem quanto o mal” (Hebreus 5.13-14).

A igreja não precisa de um conjunto de regras novo e melhor sobre sexualidade. Precisamos de formação espiritual. Quando simplicamos áreas difíceis e cinzentas das Escrituras e as transformamos em regras extrabíblicas, sejam elas conservadoras ou progressistas, tiramos dos cristãos a oportunidade de discutirem, refletirem com profundidade, lutarem com a Palavra de Deus e serem conformados à imagem de Cristo.

Sempre se reformando

Há um trecho do novo livro de Gregoire que diz: “É importante enfrentarmos como cultura o dano que causamos — ainda que por acidente — para que possamos caminhar em direção à vida abundante que Jesus deseja para nós”. Meu marido, Evan, sugeriu que um termo para descrever esse processo pode ser emprestado da Reforma Protestante: semper reformanda, isto é, “sempre se reformando”.

Devemos estar dispostos a olhar com humildade para o que acreditamos e ensinamos lá atrás. O objetivo de estar “sempre se reformando” é se conformar cada vez mais à Palavra de Deus e à pessoa de Jesus Cristo. Não é Deus quem precisa se reformar, mas sim nosso próprio coração e nossa própria compreensão.

Haverá um tempo, em um futuro próximo, em que olharemos para este período da história da igreja, quando os cristãos decidiram reavaliar a cultura da pureza e descobriram críticas que deixaram de ouvir o evangelho e oscilações do pêndulo que precisavam ser corrigidas. Meu livro estará nessa lista. Assim como muitos outros. É assim que tudo funciona.

Somos discípulos imperfeitos, lutando continuamente para entender melhor a Deus e a sua Palavra. Cometeremos erros ao longo do caminho, e isso exigirá constante reflexão. Reavaliação. Reforma. A humildade é necessária não só para a conversão, mas também para toda a vida cristã.

Em tudo aquilo que fizermos, dissermos e incentivarmos, devemos dar um passo atrás e nos perguntar: “Isso é realmente de Cristo?” Sim, é um trabalho exaustivo, mas sagrado.

Rachel Joy Welcher é autora de Talking Back to Purity Culture: Rediscovering Faithful Christian Sexuality, bem como colunista e editora da revista Fathom.

Traduzido por: Mariana Albuquerque.

Editado por: Marisa Lopes.

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Em busca de uma sexualidade masculina que não seja tóxica

Podemos recuperar uma visão de masculinidade saudável e que honre a Cristo?

Christianity Today June 21, 2023
Illustration by Joseph Rogers

Nas últimas décadas, os evangélicos investiram uma quantidade colossal de discipulado, ativismo e esforço editorial para promover a “pureza sexual” e uma visão “bíblica” de sexualidade. Apesar disso, um padrão de comportamento marcado por escândalos, abusos e má conduta por parte de homens e líderes masculinos cristãos deixa claro que o movimento em favor da pureza não resolveu o problema da sexualidade doentia na igreja. O movimento #ChurchToo e investigações relacionadas a denominações específicas demonstraram que a “pureza sexual” geralmente é mera fachada que encobre padrões mais profundos de iniquidade.

A crise relacionada a questões como abuso, disfunção e violência sexual na igreja decorre de uma compreensão teologicamente deficiente do que significa ser homem. Especificamente falando, perpetuamos uma visão hipersexualizada de masculinidade. Esses escândalos e padrões de desumanização não infectaram a igreja a despeito desse movimento de pureza, mas de muitas maneiras justamente por causa dele.

É hora de mudar a forma como falamos e pensamos sobre a sexualidade masculina. Essa visão subcristã de masculinidade cria uma cultura na qual os homens podem chafurdar em uma imaturidade sexual contínua. Não deveria nos surpreender o fato de uma teologia desumanizante levar a um comportamento desumanizante — e, consequentemente, pecaminoso.

A igreja está começando a perceber como a cultura da pureza objetifica e desumaniza as mulheres. O que em geral é menos percebido é a maneira que esse movimento também desumanizou os homens. Se a cultura da pureza desumanizou as mulheres, por tratá-las como objetos sexuais, também desumanizou os homens, por transformá-los em animais sexuais. Se essa cultura hipersexualizou os corpos das mulheres, também hipersexualizou as mentes dos homens. Grande parte de nossa retórica e dos nossos recursos adotou o pressuposto dessa cultura de que os homens são inescapável e irremediavelmente hipersexuais, uma crença perpetuada nos seriados de TV e aceita nas “conversas de vestiário”.

Os cristãos com frequência criticam a cultura que os cerca por sua preocupação com sexo e satisfação sexual, mas a igreja não é inocente no que diz respeito a criar seus próprios ídolos sexuais. Ao mesmo tempo em que, por um lado, pregam abstinência e celibato para solteiros e minorias sexuais, alguns pregadores e autores cristãos heterossexuais, por outro lado, celebram gratuitamente as glórias da satisfação sexual (masculina) no casamento heterossexual.

O reino de Jesus não nega o fato de que, nos termos da criação, a sexualidade é algo bom, mas sem dúvida a tira do centro.

Em uma bizarra reviravolta no evangelho da prosperidade, alguns mestres cristãos argumentaram que seguir o desígnio de Deus para o sexo é o caminho para o que há de melhor em sua vida sexual. As esposas recebem o encargo de estarem mais disponíveis sexualmente para seus maridos, como solução para as lutas deles contra a pornografia. Homens solteiros são informados de que a “provisão” de Deus para seus desejos sexuais fora de controle é o casamento, assim reduzindo um relacionamento de aliança a uma via de escape sexual permissível. Uma vez que a satisfação sexual sutilmente se torna normalizada como legado legítimo dos homens piedosos, certas formas de prerrogativas sexuais masculinas são muito comuns.

A crise da masculinidade nos EUA vai muito além do sexo e da sexualidade (estatísticas revelam crescentes quedas no desempenho educacional, aumento das dificuldades relacionais e românticas, bem como padrões de terrorismo doméstico), embora esses tópicos tenham despontado como uma questão crucial desse diálogo na igreja evangélica, e por um bom motivo.

Vimos garotas serem submetidas a olhares maliciosos de homens décadas mais velhos do que elas. Há os que desculpem o estupro conjugal com base em uma leitura ruim de 1Coríntios 7. Homens e garotos que desejam desesperadamente parar de ver pornografia têm problemas para abandonar o hábito, apesar de seus melhores esforços em prestar contas e memorizar as Escrituras. Clipes de sermões e livros controversos de pastores conhecidos viralizam pelos motivos errados.

Os cristãos devem resistir com vigor à insinuação de que a masculinidade e o fato de “ser homem” são coisas inerentemente tóxicas e desumanizantes. Devemos ir além das críticas e começar a traçar um caminho para modelos positivos e vivificantes de masculinidade. E podemos olhar para Jesus como nosso exemplo.

Primeiro, na Encarnação vemos o caráter bom da masculinidade. Homens e mulheres são ambos criados, reafirmados e abençoados por Deus na criação (Gn 1.26-28), e o próprio Filho de Deus veio à Terra encarnado como homem em um corpo humano. E, embora seja verdade que Jesus é o modelo para a verdadeira humanidade, e não apenas para a verdadeira masculinidade, também é verdade que sua personificação masculina pode e deve ser singularmente instrutiva para os homens, no sentido de como eles pensam e expressam sua sexualidade.

Por exemplo, aprendemos com Jesus que os homens não precisam de uma via de escape sexual para viverem uma vida plena, com domínio próprio e piedosa. Para muitos meninos e rapazes cristãos, alcançar a “verdadeira” masculinidade muitas vezes implica em alguma espécie de conquista sexual batizada — cortejar com sucesso uma esposa e ter filhos. Jesus não fez nenhuma dessas duas coisas. Se nosso roteiro de masculinidade se tornou tão centrado no sexo a ponto de excluir Jesus, talvez ele precise ser revisto.

Jesus também encarna uma visão positiva para relacionamentos não sexuais com mulheres. Como João 4 deixa claro, Jesus não seguiu a regra de Billy Graham. Ele honrou as mulheres com relacionamento e atenção. Nos Evangelhos, Jesus nunca disse uma só palavra sobre roupas femininas incitarem os homens à luxúria. Mas para os homens habituados a erotizar as mulheres, ele disse: Corte fora sua mão e arranque seu olho (Mateus 5.27-30).

Em segundo lugar, a morte e a ressurreição de Cristo inauguram uma nova maneira de ser humano, e isso significa que há uma nova maneira de ser homem. O “velho homem” morreu com Cristo (Romanos 6.6). Em um mundo entregue à carne pecaminosa, com muita frequência ouvimos que “rapazes são assim mesmo“. Mas unidos a Cristo na ressurreição, rapazes podem se tornar homens maduros, piedosos, gentis, com domínio próprio e amorosos.

Quaisquer que sejam as inclinações “naturais” ou culturais que possamos associar ao fato de ser homem, se elas tenderem ao pecado e à desumanização, foram mortas com Jesus na cruz. A morte e a ressurreição de Cristo significam que a masculinidade não precisa ser definida em termos de domínio, força física, desejo hipererótico, proezas sexuais, casamento ou paternidade de filhos biológicos.

O reino de Jesus não nega o fato de que, nos termos da criação, a sexualidade é algo bom, mas sem dúvida a tira do centro. Viver a imitação de Jesus, portanto, nos permite situar o sexo sob o bem maior do florescimento dos outros. E liberta os homens da necessidade de perseguirem uma narrativa cultural que dá destaque a uma performance hipersexualizada para se alcançar a “verdadeira” masculinidade.

Há muitas críticas merecidas que prevalecem no diálogo atual sobre a masculinidade cristã. Mas e se nos deixássemos cativar por uma visão de masculinidade redimida? E se sonhássemos com uma igreja e um mundo onde as mulheres não vivessem com medo dos homens? No reino de Jesus, parafraseando Miqueias 4.4, toda mulher se sentará debaixo da própria figueira, e nenhum homem a deixará com medo.

Mas redimir o que significa ser homem não se resume apenas a proteger as mulheres de danos. Também tem a ver com o contentamento dos homens. Nós realmente acreditamos que a nova vida em Cristo oferece aos homens algo melhor do que os prazeres carnais do sexo? Ousamos esperar que os abusadores e os viciados em sexo, de hoje e de amanhã, possam ser transformados, pelo poder do Espírito que ressuscitou Jesus dos mortos, em pessoas que contribuirão para a prosperidade da sociedade? Podemos esperar que homens quebrantados encontrem alegria e cresçam em sua capacidade de amar e servir aos outros, assim como Jesus fez?

A expressão “nem todos os homens [são assim]” pode ser uma arma para silenciar sobreviventes de abuso e amenizar problemas e padrões de masculinidade desumanizantes. Ao mesmo tempo, é verdade que muitos homens na igreja são modelos de um caminho melhor. Uma pesquisa mostra, por exemplo, que os homens que frequentam a igreja foram significativamente menos propensos do que outros homens a terem visto pornografia no ano passado. Muitos homens levam muito a sério as alegações de abuso sexual e não hesitariam em responsabilizar outros homens por esses pecados e crimes. Muitos pais e mentores ensinam os meninos, desde pequenos, a respeitarem e a honrarem os outros como seres sexuais criados à imagem de Deus.

Esses bons exemplos já existem em nossas igrejas e comunidades. Se abrirmos os olhos para ver sua fidelidade silenciosa, ouvir suas histórias, sua sabedoria e aprender com seu amor, talvez possamos ver que o trabalho fatigante da “batalha de todo homem” não é o único roteiro disponível para os homens seguirem.

Podemos ter aspirações maiores para os homens. Podemos sonhar não apenas que eles parem de agir com violência ou de se afundar em um comportamento sexual compulsivo, mas que eles se tornem mais verdadeiramente humanos como defensores da justiça, amigos fiéis, protetores nobres, maridos honrados e amantes altruístas. Ao olharmos para Cristo, o verdadeiro homem, podemos nos tornar novos homens.

Zachary Wagner é diretor editorial do Center for Pastor Theologians e autor de Non Toxic Masculinity: Recovering Healthy Male Sexuality. Speaking Out é uma coluna de opinião de escritores convidados pela Christianity Today.

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Não finja que a lei anti-homossexualidade de Uganda é cristã

Nem tudo que é pecado é crime — e muito menos crime passível de ser punido com pena de morte.

Protesto contra a lei anti-homossexualidade de Uganda.

Protesto contra a lei anti-homossexualidade de Uganda.

Christianity Today June 14, 2023
Themba Hadebe / AP Images

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Nestes nossos tempos de mentalidade de rebanho nas mídias sociais e de extremismo alimentado por trolls [provocadores], não é incomum que um político seja atacado nos meios digitais por ser muito fraco e por “não ser realmente um de nós” — no que diz respeito a uma série de tópicos aparentemente infinita.

Mesmo assim, alguém pode se surpreender ao ver o senador Ted Cruz — do Partido Republicano, do estado do Texas, e que não é conhecido por repudiar os extremos de sua base — ser rotulado em várias plataformas de mídia social como um político brando, fraco e complacente. Alguns até sugeriram que Cruz estava rejeitando a própria Palavra de Deus. E sabe qual é a sua ideia radicalmente “progressista”? Que Uganda não deveria criminalizar a homossexualidade nem executar gays.

Normalmente, uma controvérsia nas redes sociais é o mais efêmero dos pseudoeventos. Pessoas que querem ser notadas postam coisas chocantes e até ridículas (“Pessoal! Não é apenas a Target que apoia ideias tidas como progressistas; vamos boicotar a Chick-fil-A também!”) só para chamar a atenção, sabendo que serão denunciadas e citadas no Twitter, o que ampliará o seu alcance. Elas acham que retweets e seguidores vão, de alguma forma, dar-lhes o senso de pertencimento e significado que tanto desejam. Frequentemente, o melhor caminho é ignorar essas coisas no espírito de Provérbios 26.4: “Não responda ao insensato com igual insensatez, do contrário você se igualará a ele”.

Às vezes, porém, o tipo de trollagem que essas pessoas fazem pode levar a dois fins catastróficos, que deveriam preocupar aqueles que seguem a Cristo: a morte injusta de seres humanos criados à imagem de Deus e, ao mesmo tempo, o falso testemunho sobre o que o evangelho cristão realmente é.

O que está em questão é uma nova e rigorosa legislação, assinada pelo presidente de Uganda, Yoweri Museveni, que não apenas proibiria a homossexualidade, mas também exigiria uma “reabilitação” obrigatória — um tipo de terapia de conversão — para gays presos, além de impor uma espécie de cultura de vigilância, pela qual os cidadãos seriam criminalmente responsabilizados por não denunciar pessoas que eles sabem que são gays. Entretanto, o mais assustador de tudo é que essa lei imporia a pena de morte a categorias que fossem consideradas como “homossexualidade agravada”.

É claro que regimes repressivos violam os direitos humanos o tempo todo e em todo o mundo — e há limites imensos em relação ao quanto outras nações podem fazer a esse respeito. Mas, neste caso específico, muitos estão se perguntando se o problema principal não seria o fato de que Uganda está tirando a Bíblia do contexto.

Alguns dos que criticam Cruz — especialmente por ele ter classificado a lei de Uganda como “horrenda” e “errônea” — argumentam que a questão do senador é realmente com Deus. Afinal, segundo eles dizem, a Bíblia não prescreve que “Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticaram um ato repugnante [e] Terão que ser executados, pois merecem a morte” (Levítico 20.13)?

Sou um cristão evangélico comprometido com a inspiração verbal da Bíblia, o que significa que acredito que cada palavra dela é exatamente o que Deus pretendia que fosse, pelo poder do Espírito. Também estou comprometido com a inerrância das Escrituras: creio que a Palavra de Deus diz a verdade. A visão de Jesus sobre a Bíblia, quando ele diz que “A Escritura não pode ser anulada” (João 10.35), resolve essas questões para mim.

Eu também sou um cristão que concorda com o que ensinam as Escrituras e a igreja — ortodoxa, católica e protestante, por 2 mil anos — a respeito de o casamento ser uma aliança de uma só carne, entre um homem e uma mulher, e que a expressão sexual fora dessa aliança é algo errado.

E, no entanto, minha repulsa pela violência do governo de Uganda nesta lei não se dá apesar desses compromissos que tenho, mas precisamente por causa deles.

Ninguém honra a autoridade das Escrituras se obscurece seu significado. Levítico 20 condena de maneira explícita quase todas as formas de imoralidade sexual — sexo antes do casamento, sexo fora do casamento, e praticamente todos os outros tipos de expressão sexual que não sejam no contexto do casamento. Pecados sexuais são incluídos em conjunto com praticar ocultismo, necromancia e amaldiçoar pai ou mãe.

E isso, claro, é consistente com o restante do testemunho bíblico (o que quer que se pense de sua autoridade). No entanto, as penas de morte que acompanham essas violações estão situadas em um contexto muito específico na história da redenção. Deus revelou que o código civil teocrático, bem como suas punições, tinha um propósito: separar seu povo do restante das nações, a fim de prepará-los para entrar na herança da terra prometida (Levítico 20.26).

Citar tais passagens da lei civil da antiga aliança como mandatórias para um estado civil que não pertence a essa aliança é uma interpretação errônea que não se encaixa em nenhum ensinamento histórico e apostólico do cristianismo. Na verdade, está de acordo com aqueles que argumentariam contra qualquer conteúdo ético da fé cristã, dizendo: “Sim, bem, se a Bíblia diz a verdade, também não poderíamos comer ‘Tudo o que vive na água e não possui barbatanas e escamas’” (cf. Levítico 11.12).

No instante em que alguém ouve isso, já sabe que quem apresenta esse argumento ou não está ciente das distinções entre a antiga aliança e a nova aliança quanto às leis cerimoniais e alimentares (algo que recebe grande ênfase no Novo Testamento) ou não está argumentando de boa fé. O mesmo se aplica àqueles que diriam “Bem, na igreja do Livro de Atos as pessoas compartilhavam suas posses, tinham tudo em comum” e usariam isso como argumento para que o Estado impusesse um totalitarismo comunista como o de Lenin, Stalin ou Mao.

Na igreja do Novo Testamento, os apóstolos resolveram a questão da Lei no Concílio de Jerusalém. Eles não eliminaram, como alguns podem argumentar, o conteúdo moral da Lei do Antigo Testamento. Por exemplo, os cristãos — fossem judeus ou gentios — ainda deveriam se abster de imoralidade sexual (Atos 15.20). Mas a comunidade da nova aliança não era uma reconstrução do código do Antigo Testamento relativo a penas criminais por violações da santidade.

Na verdade, temos um exemplo atrás do outro em que Jesus e os apóstolos ensinam o contrário. Eu considero como Escritura autêntica a passagem de João 8.7, na qual Jesus impede o apedrejamento de uma mulher adúltera (“Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela”). Eu sei que alguns cristãos acreditam que isso foi acrescentado posteriormente ao texto; porém, mesmo que isso fosse verdade, a postura de Jesus para com os pecadores foi consistente ao longo dos Evangelhos.

Ao escrever para a igreja em Corinto, o apóstolo Paulo repreendeu um exemplo de imoralidade sexual que é explicitamente mencionado no texto de Levítico 20 — fazer sexo com a esposa de um membro da família. Paulo também citou: “Expurgai o perverso do meio de vós” (1Coríntios 5.13, ESV) — texto que foi usado na lei civil do Antigo Testamento para designar a pena de morte (Deuteronômio 13.5; 17.7 ; 22.21).

No entanto, Paulo não usou essa linguagem para exigir qualquer pena criminal que fosse por parte do Estado — e certamente também não exigiu a pena de morte. Em vez disso, ele entendeu o “vós” da nova aliança como algo que se aplicava à igreja, e não ao Estado. E à igreja não foi dado o poder da espada (Mateus 26.52; Romanos 13.1-7; 2Coríntios 10.4).

Além disso, Paulo observa especificamente em sua carta que a igreja não tem poder de julgamento sobre os de fora. A igreja local deve remover uma pessoa sexualmente imoral — se esta, por fim, não se arrepender — da membresia de sua comunidade, mas isso não significa que eles devam parar de se associar com quem fizer as mesmas coisas fora da igreja: “Pois, como haveria eu de julgar os de fora da igreja? Não devem vocês julgar os que estão dentro?” (1Coríntios 5.12).

O verbo julgar aqui não significa fazer avaliações morais sobre o que é certo e o que é errado, mas sim identificar quem deve prestar contas a quem. Em outras palavras, o mundo não presta contas à igreja. A igreja presta contas à igreja — e, mesmo assim, não com penas físicas ou criminais, mas com os meios espirituais da Palavra e do sacramento.

Edmund P. Clowney, reverenciado teólogo bíblico presbiteriano, destacou as consequências desastrosas daqueles que usam a Bíblia sem serem capazes de situar seus textos em seu respectivo contexto histórico-redentor. Na verdade, ele disse que usar a Bíblia como uma coletânea de exemplos morais — desvinculada da história mais ampla do propósito de Deus de reunir tudo no Cristo crucificado e ressurreto — leva a uma situação em que a história bíblica é “uma confusão caótica”.

“Aqueles que veem na Bíblia apenas contos morais compilados são constantemente envergonhados pelas boas obras de patriarcas, juízes e reis”, escreveu ele em Preaching and Biblical Theology [Pregação e Teologia Bíblica]. “Certamente não podemos padronizar nossa conduta diária pela conduta de Samuel, quando ele despedaça Agague, ou pela de Sansão, quando ele comete suicídio, ou pela de Jeremias, quando ele prega traição.”

“Consequências terríveis aconteceram, quando a cegueira para a história da revelação juntou-se à coragem de seguir exemplos mal compreendidos”, escreveu Clowney. “Hereges foram despedaçados em nome de Cristo, e salmos imprecatórios foram cantados em campos de batalha.”

Ao revelar seu propósito, Deus de fato demonstrou seu juízo por meio da espada de Samuel, do autossacrifício de Sansão, e assim por diante; porém, esse momento na história da redenção não é onde estamos situados agora. “Cristo, agora, não deu a espada, mas sim as chaves [do reino] para aqueles que são investidos de autoridade em seu nome”, escreveu Clowney. “A santificação do nome de Deus na disciplina espiritual da igreja reflete em nossa situação a obediência teocrática de Samuel.”

Interpretar isso da forma errada é o equivalente a concluir que se deve sacrificar um cordeiro na mesa da comunhão da igreja, durante uma série de sermões sobre Levítico. Neste momento da história, Deus nos encarregou não de subjugar o mundo com violência, mas de dar testemunho daquele que ele enviou: “Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele” (João 3.17).

Nem tudo que é pecado é crime. Igualar todo pecado a um crime, sem ter a autoridade para fazê-lo, é por si só um pecado contra Deus — é tomar o nome do Senhor nosso Deus em vão. Se a visão cristã histórica do casamento e da família é verdadeira, boa e bela, como acredito que seja, então, demonstramos essa verdade, essa bondade e essa beleza a nossos próximos incrédulos por meio de nosso testemunho — e não com ameaças de morte.

Desencadear a violência da execução, da prisão e da vigilância de gays e lésbicas ugandenses, ordenada pelo Estado, é um ato condenável de autoritarismo e uma violação dos direitos evidentes e inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Fazer tal coisa é uma questão de poder, não de convicção. Demonstra não um compromisso com a autoridade da Bíblia, mas uma rejeição dela.

Chame como quiser, mas nem por um segundo sequer chame isso de cristão.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Projeto de Teologia Pública.

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Books

Conheça a história de Pat Robertson, o comunicador evangélico que levou a TV cristã para o mainstream

Com a CBN, “The 700 Club”, Regent University, Christian Coalition e uma candidatura à presidência, ele mudou o lugar dos evangélicos na vida pública.

Christianity Today June 13, 2023
Pat Robertson / edits by Rick Szuecs

Ao longo de seis décadas à frente das câmeras, Pat Robertson trouxe sua sensibilidade pentecostal e a política conservadora para milhões de lares, como pioneiro da televisão cristã e líder da Christian Coalition.

O apresentador franco e direto morreu no dia 8 de junho, aos 93 anos, em Virginia Beach, lar de sua Christian Broadcasting Network (CBN) e da Regent University. Robertson aposentou-se como apresentador do programa principal da CBN, The 700 Club, em 2021, aos 91 anos, embora continuasse a aparecer nos segmentos mensais de perguntas e respostas.

Durante sua carreira na TV, o ex-candidato à presidência pelo Partido Republicano entrevistou cinco presidentes dos EUA e dezenas de líderes globais; orou por milhões de telespectadores; fez previsões políticas; e gerou polêmica com seus comentários de improviso, que classificavam desastres como furacões, terremotos e os ataques de 11 de setembro como juízo de Deus.

Embora seus comentários controversos atraíssem muita atenção em seus últimos anos, Robertson também esteve entre os evangélicos mais influentes do século 20, com seu espírito empreendedor e sua disposição de fazer tudo o que achava ser da vontade de Deus.

“Robertson influenciou três grandes desenvolvimentos religiosos: a renovação carismática, a TV cristã e a política evangélica”, escreveu a CT em um perfil de Robertson escrito em 1996. “Juntos, esses desenvolvimentos ajudaram a transformar o evangelicalismo de um pequeno reduto defensivo para a principal força do cristianismo americano”.

Antes de a CBN se tornar a potência da transmissão televisiva que é hoje — com um orçamento anual de 300 milhões de dólares e alcance em 174 países — ela foi uma extinta estação de televisão da Virgínia e um chamado de Deus.

Não havia um modelo de sucesso para a TV cristã, quando Robertson comprou uma instalação decadente em Portsmouth, Virgínia, e lançou a WYAH-TV (assim batizada em homenagem a Yahweh), em 1961, transmitindo três horas de programação todas as noites, a partir de uma única câmera em preto e branco. Aqueles primeiros anos foram exaustivos, vertiginosos e sem planejamento; para o empresário pentecostal, porém, a estação parecia um milagre.

A primeira campanha televisiva da CBN lançou o “The 700 club”, em 1963, recrutando 700 telespectadores para doarem 10 dólares por mês, a fim de cobrir as despesas da estação; o show, que levava o mesmo nome, veio três anos depois.

Robertson manteve a estação em crescimento arrecadando mais fundos, mais talentos — os evangelistas Jim e Tammy Bakker ingressaram em 1965 — e com novas tecnologias. A criação das redes Praise the Lord (PTL) e a Trinity Broadcasting Network aconteceu logo em seguida.

Robertson se tornou um dos primeiros executivos da TV a investir em satélite, permitindo que a CBN transmitisse sua campanha anual em 18 cidades e lançasse uma rede a cabo com transmissão 24 horas por dia, em 1977. Em uma década, a CBN estava em 9 milhões de lares.

Como a CT relatou em 1982, “A CBN começou a substituir a linguagem de púlpito e o inglês ao estilo King James pelo estilo do talk show de Johnny Carson e o vernáculo de novelas. Seu programa âncora, The 700 Club, assumiu um formato dinâmico de revista, recheado com anúncios de notícias de Washington, a capital dos Estados Unidos. Outros programas lembravam as programações populares do TV Guide, com uma novela de alta qualidade, um programa matinal de notícias e entrevistas, uma minissérie sobre pornografia, análises de Wall Street e entretenimento para crianças”.

Embora Robertson se sentisse confortavelmente em casa no set da CBN, discutindo sobre oração e política com seu estilo carismático, ele se tornou um tipo diferente de pessoa do que quando era um batista do sul, lá em Lexington, na Virgínia, irriquieto e desinteressado da fé evangelística.

Marion Gordon Robertson nasceu em 1930, e foi apelidado de “Pat” por conta dos tapinhas que seu irmão lhe dava em suas bochechas rechonchudas. Seu pai, A. Willis Robertson, foi senador dos Estados Unidos, e Pat Robertson teve uma educação de elite na Washington and Lee University e na Yale Law School. Ele serviu dois anos na Guerra da Coreia.

Depois de ser reprovado no exame da ordem dos advogados americana e de largar um emprego no mundo dos negócios em Nova York, ele decidiu se tornar pastor, uma decisão que confundiu sua devota mãe que morava na Virgínia. Ela o colocou em contato com um missionário holandês chamado Cornelius Vanderbreggen. Certo dia, Robertson foi jantar com Vanderbreggen na Filadélfia e se encolheu envergonhado, quando este compartilhou um folheto evangelístico com o garçom e leu a Bíblia à mesa.

Mas Robertson vinha estudando as Escrituras secretamente e começou a sentir Deus falando por meio delas. Ele fez uma confissão de fé a Vanderbreggen, que mais tarde passou a ver como sua conversão pessoal “de filhinho de papai a santo”. Naquele momento, dizia ele, passou do assentimento religioso sobre a existência de Deus para um relacionamento salvífico com seu Pai Celestial.

Ele surpreendeu sua esposa, Dede, com o zelo gerado pela sua conversão — ele despejou seu uísque caro pelo ralo, deixou-a por um mês, grávida de seu segundo filho, enquanto participava de uma conferência da InterVarsity e, mais tarde, vendeu os móveis da casa e se mudou com a família de cinco pessoas para um quarto e sala de um apartamento compartilhado no Brooklyn, inspirado no mandamento de Lucas 12.33 de “vender seus bens e dar aos pobres”. Seu primeiro trabalho no ministério foi na Bayside Community Church, em Long Island.

Com quase 30 anos, Robertson frequentou o Seminário Bíblico em Manhattan, juntando-se a um grupo de crentes devotos que oravam, jejuavam e se dedicavam a buscar a Deus enquanto ministravam entre os pobres. Ele participou de retiros de oração com colegas de classe, entre os quais estava Eugene Peterson. Robertson e os “soldados de Cristo” pregaram nas esquinas, quando Billy Graham chegou na cidade, em 1957. Eles se encontraram com a editora do Guideposts, Ruth Stafford Peale, e oraram em línguas por avivamento, inspirando dois livros seminais da renovação carismática, They Speak with Other Tongues [Eles falam em outras línguas] e The Cross and the Switchblade [A cruz e o punhal].

“Agora eu havia entrado no Livro de Atos e não era mais um espectador, e sim um participante ativo nas obras de um Deus que faz milagres”, dizia Robertson.

Robertson trocou Nova York por sua cidade natal na Virgínia, depois de se formar, em 1959. Em Lexington, ele teve a oportunidade de pregar em segmentos de rádio de 15 minutos, e ficou sabendo que havia uma estação de TV à venda a cinco horas de distância, em Portsmouth. Quando sua família se mudou, ele sequer tinha um aparelho de TV, “apenas 70 dólares no bolso e a visão de abrir a primeira rede de televisão cristã nos Estados Unidos”, conta sua biografia . Ele pregou em igrejas locais para sobreviver, antes que a rede de TV começasse a funcionar; alguns lhe davam ofertas de 5 dólares e outros o pagavam com um saco de soja de 30 quilos.

Muitos dos empreendimentos de Robertson seguem esse padrão de ouvir um chamado de Deus e, em resposta, lançar um projeto.

“Eu queria fazer parte do plano de Deus; seu plano é evangelizar o mundo e trazer milhões para o reino, e ele me deixou fazer parte disso”, disse Robertson.

Ele disse que Deus falou com ele, durante o almoço (de meio melão e queijo cottage), para que construísse uma escola para sua glória e, em 1977, Robertson comprou 70 acres em Virginia Beach para a CBN University, que mais tarde se tornaria a Regent University. Setenta e sete alunos se matricularam no primeiro ano.

No Natal do ano seguinte, Robertson disse que Deus falou para ele “proclamar uma mensagem simples de salvação”, pois enviaria seu Espírito por todo o mundo e milhões responderiam. Ele lançou o que viria a se tornar a CBN International. Hoje, 90% dos telespectadores da rede são de fora dos Estados Unidos.

A leitura da promessa de bênção em Isaías 58 o levou a fundar a instituição de caridade humanitária Operation Blessing, em 1978; o ministério passou a ajudar pessoas em 90 países e territórios.

E foi também com um chamado de Deus em mente que Robertson entrou na arena política. Ele voltou para o brownstone Bedford-Stuyvesant, onde morou em Nova York, para anunciar sua candidatura presidencial, em 1987.

Mesmo antes de concorrer à presidência, os espectadores cristãos reconheciam o interesse de Robertson pela política, alguns com entusiasmo e outros com cautela. Ele brincava que o Senado, onde seu pai serviu por décadas como um democrata conservador do Sul, seria um rebaixamento, mas a presidência seria um “mudança lateral” de seu cargo na CBN.

A Christianity Today escreveu sobre o burburinho inicial em torno das ambições de Robertson à presidência, em 1985:

Ele está intensamente interessado em educar os cristãos sobre questões públicas e em estimular seu entusiasmo pelo envolvimento na política. Robertson acredita que a América enfrenta uma encruzilhada, na qual os valores da família e a fé em Deus podem perder para o estatismo e o hedonismo. Concorrer à presidência não garantirá a Robertson um mandato na Casa Branca, mas quase certamente significará que os candidatos à presidência, em 1988, não serão capazes de descartar as questões morais com que os cristãos se importam.

No início dos anos 80, Robertson começou a dedicar a primeira meia hora do The 700 Club a questões públicas, ficando cada vez mais preocupado com o secularismo e as ameaças à liberdade religiosa, como restrições à oração nas escolas. Ele viu o conteúdo do programa passar por uma mudança em resposta aos excessos do governo. “Não é que estejamos entrando na política”, disse ele. “Eles é que estão entrando na religião.”

Robertson disse que via a presidência como uma forma de continuar seu chamado para servir. Apesar de terminar em segundo lugar nas primeiras convenções de Iowa, ele perdeu na Superterça e desistiu da candidatura, passando a apoiar George H. W. Bush. Após a campanha, ele escreveu em The Plan [O Plano] que via um propósito mais profundo em sua corrida fracassada à Casa Branca.

“Será que o motivo da minha candidatura foi cumprido com a ativação de dezenas de milhares de cristãos evangélicos no governo?” Robertson disse. “Pela primeira vez na história recente, cristãos patriotas e pró-família aprenderam técnicas simples para promover uma organização partidária eficaz e uma campanha bem-sucedida. Sua presença, como uma força ativa na política americana, pode vir a resultar no fato de pelo menos um dos principais partidos políticos da América assumir uma perspectiva profundamente cristã em suas plataformas e estrutura partidária”.

Ele aproveitou esse impulso para lançar a Christian Coalition, que reuniu eleitores evangélicos e distribuiu guias de votação para as igrejas, a partir de 1989. No ano seguinte, ele também fundou um escritório de advocacia “pró-família, pró-liberdade e pró-vida”, o American Center for Law and Justice (ACLJ) [Centro Americano em defesa da lei e da justiça].

Parte de um movimento maior da direita religiosa, a coalizão via que alguns evangélicos conservadores concordavam com suas posições também conservadoras, mas permaneciam reticentes em declarar uma posição cristã em questões que não tinham um mandato bíblico claro. A organização também lutou por uma década com o governo federal, por causa de seus guias apartidários, e acabou perdendo seu status de isenção de impostos.

Robertson se via como um evangélico com dom carismático e perspectiva ecumênica, tendo dito certa vez: “No que diz respeito à majestade da adoração, sou episcopal; quanto à crença na soberania de Deus, sou presbiteriano; quanto à santidade, sou metodista… quanto ao sacerdócio dos crentes e ao batismo, sou batista; quanto ao batismo no Espírito Santo, sou pentecostal; então, sou um pouco de todos eles”.

Companheiros cristãos frequentemente desafiavam (ou reviravam os olhos para) algumas das declarações que Robertson, ao longo dos anos, fez na televisão, enquanto comentava eventos da atualidade e respondia a perguntas dos telespectadores. Ele pediu que os EUA assassinassem o presidente venezuelano Hugo Chávez. Defendeu que o marido poderia se divorciar de uma esposa com Alzheimer. Também previu a vitória de Donald Trump e não aceitou sua derrota, em 2020, até uma semana depois que Joe Biden foi declarado vencedor.

“Pat Robertson fazia parte de uma tradição de cristãos evangélicos que tinham uma visão perspicaz da mídia como uma ferramenta para alcançar o público”, disse Michael Longinow, professor de jornalismo digital e mídia da Biola University. “Sua tendência de fazer declarações de improviso que eram incendiárias também segue uma tradição — ainda que trágica — de cristãos evangélicos que misturaram o evangelho com perspectiva política.”

Quer se ame ou se odeie Robertson, seu alcance é algo difícil de ignorar. The 700 Club vai ao ar em 97% dos mercados de TV nos Estados Unidos e está entre os programas mais antigos da história.

Em seu site, Robertson listou “abrir empresas/transações financeiras” como um de seus hobbies, e seu sucesso nessa área vai além da CBN. Ele fundou a International Family Entertainment Inc., empresa controladora do Family Channel, que foi vendida em 1997 por US$ 1,9 bilhão. Equilibrando seu sucesso financeiro e seu chamado, Robertson disse: “Percebi que Deus não queria que eu fosse um investidor bilionário. Ele me queria como um servo humilde que dependia dele e queria andar em seus caminhos”.

Dede, esposa de Robertson por 67 anos, morreu em 2022. Ele deixa dois filhos, duas filhas, 14 netos e 23 bisnetos. Seu filho, Gordon Robertson, é CEO da CBN e o apresentador e produtor executivo do The 700 Club.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Encontrando alegria, ainda que a figueira não floresça

O profeta Habacuque nos aconselha a confiar nas promessas de Deus, a despeito de nossas circunstâncias.

Christianity Today June 13, 2023
Alexandre Chambon / Unsplash

O presidente George Washington idealizava uma nação em que “Todo homem poderá sentar-se debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira, e ninguém os incomodará” (Miqueias 4.4). Ele sonhava com um povo que fosse abençoado com segurança, prosperidade, paz e virtude.

No entanto, muitas vezes reivindicamos as graciosas promessas de Deus como se fossem direitos, e não bênçãos. O que acontece, quando a figueira não floresce e não há uvas nas videiras (cf. Habacuque 3.17)? Ainda assim podemos exultar no Senhor e nos alegrar no Deus da nossa salvação (v. 18)?

Até mesmo a igreja que pastoreei por 12 anos, uma congregação multiétnica em crescimento, no sul da Califórnia, começou com uma morte.

Ganhamos uma propriedade e um punhado de santos preciosos, quando outra igreja da denominação Christian & Missionary Alliance fechou suas portas. Aquela igreja ostentava uma rica herança de discipulado e missões, mas o fruto de sua videira havia caído. Alguns dos congregantes estavam com raiva a ponto de acontecerem brigas. Outros escreveram páginas e páginas de reclamações em um bloco de notas amarelo. Muitos foram embora e nunca mais voltaram.

Eles estavam de luto pela perda de uma igreja que amaram por décadas e por um futuro que não existiria mais, enquanto aguardávamos com grande expecativa a plantação de uma nova igreja. Então, durante aquela temporada, encontrei-me com o remanescente dessa congregação, fui em suas casas e ouvi suas histórias.

Nós oramos, esperamos e sofremos juntos sob aquela figueira estéril. E quando replantamos a igreja, eles foram alguns dos nossos maiores apoiadores. Eles perceberam como a morte de uma igreja poderia levar a uma colheita abundante em outra (João 12.24).

O livro de Habacuque fala a nossas vidas naqueles momentos em que não sentimos a presença de Deus, quando não entendemos seus caminhos e não sabemos se conseguiremos perseverar. Achei Habacuque um guia muito útil para aconselhar os fiéis a atravessarem os períodos mais difíceis de suas vidas, em momentos de desesperança nos quais não há frutos.

Em seu embate com Deus, observamos o profeta Habacuque passar do desespero pelas circunstâncias de Judá para um alegre contentamento. Como ele declarou: “Mesmo não florescendo a figueira, não havendo uvas nas videiras; mesmo falhando a safra de azeitonas, não havendo produção de alimento nas lavouras, nem ovelhas no curral nem bois nos estábulos, ainda assim eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação” (Habacuque 3.17-18).

“Até quando, Senhor, clamarei por socorro?”

Enquanto pregava uma série de sermões em Habacuque, no ano de 2012, recebi um telefonema de um jovem da minha congregação, tarde da noite. “Pastor, estou pensando em me suicidar”, ele sussurrou. Então, eu insisti com ele: “Vamos conversar. O que está acontecendo?”

Ele compartilhou sobre como sua mãe o abandonara e como temia sentir a ausência de Deus. Perguntei o que ele estava aprendendo com Habacuque, e deixamos que o profeta, que viveu em Judá, 600 anos antes da época de Cristo, falasse à situação daquele jovem, mais de 2.500 anos depois. Conversamos por horas noite adentro, depois por meses a fio no futuro, trazendo suas tristezas perante a eterna Palavra de Deus.

Nos dias de Habacuque, o povo escolhido de Deus tornara-se perverso e corrupto. Os ricos de Judá oprimiam os pobres, e os governantes haviam conduzido o povo à idolatria. Eles haviam abandonado Deus, e parecia que Deus os havia abandonado.

Então, o profeta bradou em sua dor: “Até quando, Senhor, clamarei por socorro, sem que tu ouças? Até quando gritarei a ti: ‘Violência!’ sem que tragas salvação?” (1.2).

Nós também podemos sentir uma angústia como essa, quando um ente querido sofre de uma doença crônica, quando um filho pródigo abandona a fé ou quando a pilha de contas não pagas continua a crescer. Em meio ao tumulto da vida, nosso lamento parece insuportavelmente longo.

Por baixo dessa camada de expectativas não atendidas, também podemos culpar o Senhor por nos haver abandonado. O jovem que aconselhei às vezes vinha até mim zangado com sua situação, às vezes ansioso com seu futuro. Como o profeta, não entendemos o que Deus está fazendo ou por que nos faz sofrer.

Confiar em Deus, mesmo quando não entendemos

No caso de Habacuque, o Senhor respondeu a seus apelos mostrando-lhe o que havia preparado, algo “em que não creriam, se lhes fosse contado” (1.5). Ele estava levantando a nação pagã da Babilônia para punir os ímpios em Judá, conquistando o povo de Deus.

Quando Habacuque lamentou pela segunda vez, vários versículos mais para frente, ele estava mais perturbado com as ações de Deus do que com sua prévia inércia. Em vez de reviver o passado, Deus prometeu ira no futuro. Em vez de salvação, Deus enviaria uma matança. Como podia esse Deus soberano parecer perder o controle, esse Deus pessoal parecer tão distante e esse Deus eterno estar tão morto para o seu povo?

Essas perguntas também ecoavam na mente do meu jovem amigo. Ele sentia que o Deus revelado nas Escrituras parecia estar contra ele. Como um Deus bom e amoroso podia permitir que ele experimentasse tamanha dor? Por que parecia que seus opressores eram os únicos que prosperavam?

Juntos, observamos Habacuque esperar, sobre a muralha da cidade, que o Senhor acalmasse suas emoções enfurecidas (2.1-3). O profeta resolveu confiar nas Escrituras, e não nas circunstâncias, e deixar que suas perguntas o levassem ao Deus que sempre responde. Mesmo não podendo compreender as ações de Deus, ele conhecia o Deus dessas ações. Assim, como uma sentinela, o profeta olhou para além de sua torre de vigia — não para os babilônios que se aproximavam, mas para o Deus que cumprira suas promessas anteriores: Você foi escolhido. Você é amado. Você está separado para a redenção.

Todas as vezes que meu jovem amigo vinha com perguntas, não nos debruçávamos sobre suas circunstâncias, mas sobre os atributos imutáveis de Deus. Eterno. Pessoal. Fiel. Soberano. Misericordioso. Santo. Transcendente. Confiável. Meditamos sobre cada uma dessas verdades, até guardá-las em nossos corações. Juntos, buscamos confiar que os caminhos de Deus são mais elevados do que os nossos caminhos e seus pensamentos, mais elevados do que os nossos (Isaías 55.8-9).

Às vezes, o Senhor pode amaldiçoar nossa figueira para propósitos que não conhecemos (Marcos 11.12-25) ou tirar nossa sombra para expor um coração doente (Jonas 4). De uma vez para sempre, Deus enviou seu Filho para morrer na cruz pelos pecadores. Isso aconteceu ao único que algum dia já foi verdadeiramente bom, para que a Palavra de Deus cumprisse seu propósito soberano e gerasse a videira da qual nós somos os ramos (João 15).

“Temo diante dos teus atos, Senhor”

Deus respondeu à espera de Habacuque com um cântico de escárnio para os inimigos de Judá. Por cinco vezes, Deus pronunciou juízo sobre a Babilônia com um surpreendente “Ai!” (Habacuque 2.6-20). Por cinco vezes, ele condenou sua idolatria e prometeu destruí-los. A justiça de Deus prevaleceria, muito embora a Babilônia parecesse triunfante no momento.

Assim, a palavra de Habacuque para Deus torna-se a Palavra de Deus para nós: “Senhor, ouvi falar da tua fama; temo diante dos teus atos, Senhor. Realiza de novo, em nossa época, as mesmas obras, faze-as conhecidas em nosso tempo; em tua ira, lembra-te da misericórdia” (3.2).

Nós também podemos nos lembrar da fidelidade de Deus, registrada em sua Palavra: de sua misericórdia no juízo, de sua glória na vitória e de seu miraculoso poder de operar maravilhas. A salvação de Deus ao longo da história garante sua ajuda no presente. O Deus que resgatou Israel da escravidão no Egito, abrindo-lhe um caminho através do mar Vermelho, também pode nos livrar de nossos becos sem saída.

Como pastor, já chorei com homens e mulheres cujos cônjuges os abandonaram e com amigos a quem médicos disseram que tinham apenas algumas semanas de vida. No entanto, mesmo naqueles momentos como os do mar Vermelho, confiamos em nosso Deus para fazer o impossível. Às vezes, a figueira florescerá apenas na glória eterna; outras vezes, porém, uma nova vida brota de galhos antes mortos.

Aquele jovem que queria tirar a própria vida agora aconselha outros homens por meio das Escrituras. Muitos desses casamentos que estavam desfeitos agora exaltam nosso Senhor como Cristo. Pois o mesmo Deus que veio em poder no êxodo virá um dia “buscar e salvar o que estava perdido” (Lucas 19.10).

O poder de trazer à memória

Habacuque concluiu seu lamento com louvor a Deus, embora nada em suas circunstâncias tivesse mudado. Sua cidade ainda seria conquistada pelos babilônios. A figueira e a videira continuavam estéreis. Não haveria comida nem gado, pois todas as maldições de Deus por sua desobediência os alcançariam (Deuteronômio 28.15-68). Ainda assim, o profeta se apegou às bênçãos da aliança que viriam, se eles obedecessem à voz do Senhor, seu Deus. Mesmo que Yaweh liberasse todas as maldições de uma só vez, ele ainda havia prometido que permaneceria fiel na tempestade.

Pois “Um ramo surgirá do tronco de Jessé, e das suas raízes brotará um renovo” (Isaías 11.1). O fim não era o fim, mas sim o começo. Muitos anos após o exílio de Judá na Babilônia, uma criança nasceria em Belém. Eles o chamariam de Jesus, pois ele salvaria seu povo de seus pecados. Este Messias, este menino Jesus, este Salvador do mundo suportaria a ira de seu Pai na cruz. Em sua misericórdia, Deus colocaria nossos pecados sobre seu Filho amado e atribuiria a justiça de Cristo a nós (2Coríntios 5.21).

Os “e se” que tanto incomodam nossa mente são o hino da nossa ansiedade, fazendo com que nossos medos se transformem em desespero. No entanto, a fé em Deus nos permite substituir esses “e se” pelos “ainda que”. Pois se Deus foi fiel em tragédias passadas, certamente ele nos sustentará hoje. Ainda que não sejamos promovidos — ainda que não haja um anel em nosso dedo — ainda que não possamos ter filhos — ainda que o médico tenha diagnosticado um câncer — podemos clamar com o profeta Habacuque: “ainda assim eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação” (Habacuque 3.17-18).

A última linha do livro de Habacuque revela que ele registrou esta palavra de Deus para a adoração comunitária. O louvor cheio de fé não foi fruto apenas dos lábios do profeta, mas de toda a congregação dos filhos de Deus, ao longo da história.

Também levantou-se dos lábios daqueles santos preciosos que entregaram sua igreja moribunda ao descanso e continuaram conosco, enquanto plantamos uma nova igreja. Desde o primeiro dia, eles se alegraram conosco na adoração, apoiaram a obra de Deus financeiramente e em oração, e ensinaram os filhos das novas famílias que Deus trouxe para nossa comunhão.

Juntos, apoiamos ou plantamos novas igrejas a cada ano de nossa existência, enquanto celebramos o Deus que é especialista em ressurreição. Desde então, muitos daqueles santos também foram para a glória, onde a figueira nunca falha e onde eles beberão do fruto da videira por toda a eternidade (Mateus 26.29). Seu cântico de louvor em tempos de esterilidade produziu uma alegre colheita.

Tom Sugimura é mentor de plantação de igrejas, conselheiro e pastor da New Life Church em Woodland Hills, Califórnia. Ele é o autor de Habakkuk: God’s Answers to Life’s Most Difficult Questions [Habacuque: as respostas de Deus às perguntas mais difíceis da vida].

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Culture

A música de adoração manipula nossas emoções. Você confia em quem está ministrando o louvor?

O Espírito está operando, mas os mecanismos em torno de sets de adoração hiperproduzidos também estão.

Christianity Today June 6, 2023
Linda Xu / Unsplash

“Mais intensidade!” disse a voz no meu ponto.

Eu estava no palco, em uma sala escura, quase cega pelos holofotes. Era a primeira vez que eu conduzia a adoração em uma grande conferência regional para estudantes universitários, e um dos gerentes de produção na cabine de som me incentivava a levantar mais as mãos, a me movimentar mais no palco, a bater mais palmas, a pular, a dar mais demonstrações físicas.

Eu sempre soube que os sets de adoração da conferência eram orquestrados, mas esta foi a primeira vez que pude ver as minúcias. A certa altura, disseram-me para imaginar meus braços presos àquelas boias de piscina do tipo espaguete, para mantê-los retos e erguê-los bem alto. Cada música era classificada de 1 a 5, pelo seu “nível de energia”, e certas sessões só podiam ter músicas acima do nível 3.

Lembro de me perguntar: Estou manipulando as pessoas que assistem, que cantam e ouvem? Estou usando a música para gerar uma resposta emocional na multidão?

A resposta curta é sim, estou. A música de adoração pode comover e manipular emoções, e até mesmo moldar crenças. A adoração coletiva é neurológica e fisiológica. Martinho Lutero insistia no fato de que a capacidade de comover e manipular fazia da música um dom divino singular. “Depois da Palavra de Deus”, escreveu Lutero, “somente a música merece ser exaltada como senhora e governanta dos sentimentos do coração humano. […] Até o Espírito Santo honra a música como uma ferramenta de trabalho.”

Compositores e líderes de adoração usam mudanças de ritmo e de dinâmica, modulação e instrumentação variada para deixar a música de adoração contemporânea envolvente, imersiva e, sim, emocionalmente comovente.

Como adoradores, podemos sentir isso. Músicas com longos interlúdios lentamente constróem uma expectativa rumo a um refrão familiar. Ou a banda sai para que as vozes cantem, quando o refrão toca. Além disso, as próprias letras podem ser uma deixa para nosso comportamento (“I’ll stand with arms high and heart abandoned” [“Ficarei em pé com os braços levantados e o coração abandonado”]) [Trecho da música “The Stand”, Hillsong United].

Existem questões válidas e interessantes sobre as particularidades que dão repercussão à música de adoração contemporânea — convenções emprestadas de canções de amor seculares e de baladas pop ou associações com a estética de shows de rock de artistas como U2 e Coldplay, feitos em arenas gigantes com milhares de pessoas, por exemplo. Mas as preocupações atuais sobre o poder manipulador da música de adoração parecem ter menos a ver com estilo e gosto musical do que com as pessoas e as instituições envolvidas na produção e na execução dela.

Então, talvez a pergunta que eu deveria estar me fazendo no palco não é se a música era manipuladora, mas se nós, responsáveis pelo contexto da adoração, éramos mordomos e pastores confiáveis daquela experiência.

A adoração coletiva nos convida a nos abrirmos à direção espiritual e emocional. Essa abertura parece vulnerável, e de fato é. E à medida que a adoração se torna uma produção maior em igrejas e eventos ministeriais, um coro crescente tem questionado se nossas emoções estão em boas mãos.

“Essa é a parte complicada sobre as emoções. [Na adoração com música] algo acontece dentro de você que é voluntário e involuntário ao mesmo tempo”, disse a etnomusicóloga Monique Ingalls, que dirige programas de pós-graduação e pesquisa em música sacra, na Baylor University.

Os adoradores têm participação; eles decidem o quanto se abrem à direção das emoções. Mesmo exemplos extremos de propaganda musical requerem receptividade por parte do ouvinte. A propaganda musical é mais eficaz quando a música é usada para aumentar a devoção — para edificar nossa fé — e não para mudar ou alterar crenças. Contudo, uma vez que haja confiança e aceitação, uma manipulação emocional perigosa e exploradora é possível.

“A manipulação emocional em um culto de adoração é como um pastor que conduz as pessoas a certos pastos sem saber o porquê”, escreveu Zac Hicks, autor de The Worship Pastor, sobre a questão da “manipulação versus pastoreio”.

“A manipulação, na melhor das hipóteses, é um ‘pastoreio sem propósito’ ou um ‘pastoreio parcial’”, escreveu Hicks. “Uma pessoa-ovelha que desperta da névoa da manipulação geralmente exclama primeiro: ‘Espere aí, por que estou aqui?‘”

Em vez de um líder de adoração ver a resposta emocional da multidão — mãos levantadas, olhos fechados ou lágrimas — como um sinal de sucesso, Hicks argumentou que um pastor sério usará o que ele chama de “contornos emocionais do evangelho” (“a glória de Deus”, “a gravidade do pecado” e “a grandeza da graça”) para moldar a adoração musical e evitar a manipulação.

Mas quando os adoradores suspeitam que a atenção aos contornos do evangelho foi substituída por outras influências, a confiança começa a se desgastar. O líder de louvor à frente da igreja parece estar mais preocupado em cultivar uma imagem em particular do que em servir em um papel pastoral? Os momentos emocionais muito intensos parecem se tornar aberturas para levantar dinheiro? Os adoradores temem a manipulação quando têm motivos para duvidar das intenções de um líder ou de uma instituição.

“É fácil confundir manipulação emocional com um mover de Deus, certo?”, disse a jornalista e autora Kelsey McKinney, no documentário de 2022 Hillsong: A Megachurch Exposed. “Você está chorando porque o Senhor está operando algum tipo de intervenção em sua vida ou está chorando porque a estrutura de acordes foi feita para fazer você chorar?”

A suspeita de que uma estrutura de acordes possa ser “feita para fazer você chorar” é uma simplificação exagerada da relação entre música e emoção. A música não atua simplesmente sobre o ouvinte; há uma dialética entre indivíduo e música pela qual cada parte influencia e reage à outra.

Mas o medo de ser levado a perceber uma música cuidadosamente elaborada como um encontro espiritual é compreensível, quando parece que pessoas poderosas, que estão no comando de megaigrejas, estão usando música impactante para cultivar lealdade e devoção — não apenas a Deus, mas também à marca delas.

Escândalos como os que atormentaram a Hillsong nos últimos anos, bem como sinais de que a música de adoração contemporânea está cada vez mais moldada por interesses financeiros estão alimentando o ceticismo. Uma parcela crescente da música de adoração tocada nas igrejas vem de um pequeno mas poderoso grupo de compositores e intérpretes que a maioria de nós nunca verá pessoalmente.

Quando se trata de pastoreio emocional, Ingalls vê a confiança e a autenticidade como primordiais — duas coisas difíceis de manter em um relacionamento entre fãs e celebridades.

“Acho que o medo da manipulação, a pergunta ‘Posso confiar nessa pessoa?’ está totalmente envolvida no debate da autenticidade”, disse Ingalls.

Mas as preocupações com a manipulação emocional são muito anteriores à Hillsong e aos mega-artistas de adoração dos últimos 20 anos. Uma capa da Christianity Today de 1977, intitulada “A música deve manipular nossa adoração?”, questionava novas expressões marcadas por “uma batida forte e um tom emocional alto”, de bandas de “rock gospel” com ritmo musical acelerado.

Os estilos musicais mudaram, mas a condução oferecida continua relevante para hoje:

Se a igreja evangélica deve responder com maturidade aos padrões de expressão musical em rápida mudança, precisamos de ministros de louvor treinados e preocupados, que possam nos guiar para além das armadilhas tanto do esteticismo (a adoração da beleza) quanto do hedonismo (a adoração do prazer).

Precisamos de músicos que sejam primeiramente ministros. Eles devem entender as necessidades espirituais, emocionais e estéticas das pessoas comuns e ajudar a liderar uma igreja em sua busca pela verdadeira Palavra e por uma expressão criativa, autêntica e plena de sua fé. Este tipo de ministério está mais preocupado em treinar participantes do que em entreter espectadores.

Meio imperfeito, pastores imperfeitos

C. S. Lewis, embora não fosse músico, professava a crença de que a música poderia ser “uma preparação ou mesmo um meio para encontrar Deus”, fazendo a ressalva de que poderia facilmente se transformar em distração ou ídolo.

O musicólogo John MacInnis observou que a exposição de Lewis à música de Beethoven e de Richard Wagner foi um portal espiritual. Lewis considerava momentos musicais transcendentes em sua vida como sinais, e olharia em retrospectiva, após sua conversão ao cristianismo, e os veria como encontros que lhe moveram o coração e a mente em direção a Deus.

Mas Lewis reconhecia a imperfeição da música como modo de adoração ou meditação devocional. “O efeito emocional da música pode ser não apenas uma distração (para algumas pessoas, em alguns momentos), mas uma ilusão: por exemplo, ao sentir certas emoções na igreja, eles as confundem com emoções religiosas, quando podem ser totalmente naturais.”

Lewis não entendia sua reação ao ciclo do Anel de Wagner como adoração, mas sentia que ele o levou a alguma forma de transcendência, a um encontro sublime e avassalador.

Os ouvintes impressionados com o espetáculo visual e sonoro de um show da Taylor Swift podem sentir uma euforia que, de fato, supera o escopo usual de suas emoções. A música e seus contextos podem nos levar ao ápice de nossas capacidades emocionais. Podemos ficar impressionados com sua beleza ou seu poder, com a mídia visual que a acompanha, com uma lembrança que só ela pode ativar com precisão e potência.

Como Lewis, talvez todos possamos nos beneficiar ao nos deixarmos dominar pela música fora do santuário, de vez em quando. Pode ser que entender nossa capacidade de sermos tocados pela música nos ajude a transitar pela nossa abertura emocional na adoração.

A exata atuação da música sobre as emoções é algo inescrutável, mesmo com as novas pesquisas neurológicas que exploram ainda mais os efeitos da música no cérebro. Por trás do medo de sermos manipulados emocionalmente, para a maioria de nós, existe um medo de estarmos sendo coagidos a fazer ou a crer. Tememos que nossas emoções estejam apenas respondendo à música, e não ao Espírito Santo; tememos que aquilo que percebemos como um encontro espiritual seja falso, fabricado por músicos habilidosos, uma equipe de produção e um refrão bem escrito.

A transparência pode ser um antídoto. Para músicos e líderes de adoração, pode ser útil simplesmente serem mais abertos sobre as maneiras como programam música ou sobre qual pode ser o propósito de uma seleção musical específica. Um líder pode prefaciar uma música meditativa com letra comovente, encorajando a congregação a refletir sobre uma passagem das Escrituras. O simples fato de reconhecer o peso emocional do momento indica autoconsciência e cuidado por parte do líder.

Ingalls sugere avaliar as experiências emocionais de adoração musical em uma igreja ou em ministério específico pela observação do fruto dessa adoração fora do santuário. “Quando estivermos avaliando as emoções na adoração, podemos perguntar: ‘O que os adoradores que têm essas intensas experiências emocionais estão fazendo lá fora?’”

Se aceitarmos que nossos momentos comoventes, às vezes lacrimosos, em uma congregação que louva são quase sempre causados por uma espécie de cooperação entre Deus em nós e a música ao redor de nós, podemos ficar de olho no trabalho de nossos pastores contemplando o pasto em que nos encontramos do outro lado.

“O que está sendo feito no solo” — Ingalls sugere que perguntemos — “para trazer a paz de Deus a este mundo? Para restaurar relacionamentos quebrados com Deus, com os outros e com a terra?”

Kelsey Kramer McGinnis é correspondente de música de adoração da CT. Ela é musicóloga, educadora e escritora, e pesquisa música em comunidades cristãs.

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