A prática do Advento em tempos de turbulência

Enquanto nossa nação lida com divisão e desconfiança, como podemos abordar este tempo litúrgico?

Christianity Today November 21, 2022
Daniel Davis / Lightstock

Nota da edição em português: Este artigo foi escrito em 2016, para o contexto norte-americano, mas acreditamos que ele ainda tem muito a ensinar hoje, para outras pessoas ao redor do globo.

Nunca antes aguardei com tanta ansiedade o início do Advento. Este último ano eclesiástico começou com os tiroteios de San Bernardino. Vimos as mortes de Alton Sterling, Philando Castile e Terence Crutcher, a emboscada da polícia em Dallas e em Baton Rouge, e o horror do massacre da boate Pulse. Testemunhamos a crescente crise de refugiados sírios, a violência contínua do ISIS, a contaminação da água em Flint, bem como terremotos mortais, furacões, inundações e incêndios florestais pelo mundo todo. E, é claro, passamos por uma eleição presidencial, que trouxe à tona e continua a expor profunda divisão, hostilidade e desconfiança em nossa sociedade.

Tem sido um ano difícil. Coletivamente falando, todos estamos sofrendo. O Advento não poderia vir em melhor hora.

Para mim, houve anos em que praticar o Advento exigia disciplina; tinha que me segurar para não pular logo para a alegria do Natal. Este ano, eu não poderia pular para um Natal alegre nem se tentasse. Este ano, sei, com toda a minha convicção, que preciso desse espaço para parar e lamentar o quanto estamos quebrados, e toda essa decepção e essa escuridão que nos cerca. Este ano, eu me joguei nos braços do Advento como se estivesse me atirando nos braços de um velho amigo. Nesse espaço, sou abraçada pela comunidade da minha igreja local e global, enquanto, juntos, lamentamos, esperamos, sofremos e cantamos “Oh Come, Oh Come Emmanuel” [Ó venha, ó venha, Emanuel”].

Meu amigo e mentor, padre Kenny, me disse recentemente: “Você não pode continuar em águas turbulentas por muito tempo. Depois da turbulência, você precisa de águas tranquilas.” Acho que todos nós, coletivamente, poderíamos nos beneficiar de um pouco dessas águas tranquilas.

Mas como são essas “águas tranquilas” do Advento?

As tradições litúrgicas orientais e ocidentais celebram o Advento, mas nossas práticas têm um sabor e um foco ligeiramente diferentes. Nas igrejas ortodoxas orientais, o Advento é uma época penitencial, uma “pequena Quaresma”. Nas tradições litúrgicas ocidentais, enfatizamos a preparação para a vinda de Cristo, o que certamente envolve arrependimento, mas também envolve descanso, esperança, anseio e quietude.

O Advento mantém em tensão duas posturas de fé complementares, mas aparentemente paradoxais: o arrependimento e o descanso.

Uma vantagem de viver no hemisfério Norte é que o calendário litúrgico segue aproximadamente as estações da natureza. A desolação da quaresma em março dá lugar ao renascimento da primavera, geralmente perto da Páscoa. No Advento, os dias escurecem mais cedo e, em torno do Natal, as horas de luz começam a se estender novamente. Nestes longos dias de dezembro, tudo na natureza — incluindo os nossos corpos — quer desacelerar e ficar num canto, encolhidinho. Os ursos hibernam, as árvores perdem as folhas, o canto dos pássaros silencia. E nós, que estamos cansados, precisamos de descanso.

No entanto, ao iniciarmos este novo ano eclesiástico e nos prepararmos para a vinda do Rei, também precisamos de arrependimento.

Nós, cristãos, não apenas lamentamos o pecado e a condição caída que vemos no mundo, mas também [os que sentimos] em nós mesmos. Tenho de parar, identificar e me arrepender das maneiras como contribuí para essa falta de paz no mundo — mesmo que em meu âmbito pessoal diminuto, corriqueiro. Juntos como igreja reconhecemos e proclamamos que não somos observadores inocentes do que está errado com o mundo; estamos implicados em seu mal. Sua violência, seu ódio e sua escuridão partem nossos corações, mas então, com horror, encontramos essa violência, esse ódio e essa escuridão bem vivos, dentro de nós — no tratamento que dispensamos a inimigos e a entes queridos, em nossa falsa adoração e auto-obsessão.

Isaías nos diz que “No arrependimento e no descanso está a salvação de vocês, na quietude e na confiança está o seu vigor” (Isaías 30.15). Para mim, a dor e os rigores do arrependimento parecem estar em desacordo com o consolo e a tranquilidade do descanso; nas Escrituras e no Advento, porém, encontramos essas coisas entrelaçadas. Após este ano difícil, podemos descansar na certeza da vinda do reino de Deus, mesmo enquanto nos arrependemos das maneiras pelas quais falhamos em viver de acordo com a visão desse reino.

No [livro] Liturgia do Ordinário, examino como o calendário litúrgico nos lembra que “estamos voltados para nossa esperança futura; ainda assim, não tentamos escapar da nossa realidade presente, da condição caída e do sofrimento deste mundo, que são reais e avassaladores”. Por mantermos arrependimento e descanso lado a lado, não menosprezamos nem ignoramos o que foi sombrio, distorcido e decepcionante no ano que passou. Pelo contrário, somos chamados a encarar isso de frente, com honestidade, enquanto confiamos em um Deus que prevalecerá no final.

Em sua descrição do chamado de Isaías ao arrependimento e ao descanso, Christopher Seitz escreve:

Salvação e força são a consequência de uma firme convicção e de uma tranquila confiança na atenção e na preocupação constantes de Deus por [seu povo] (…) Em meio às alegações turbulentas de políticos astutos, profetas enganosos, sacerdotes ensandecidos e governantes injustos, resta outro caminho, e o profeta nunca se cansa de insistir que este é o único caminho.

Seitz está se referindo aqui às realidades políticas e culturais do antigo Israel, mas sua descrição soa assustadoramente contemporânea. Ele prossegue, dizendo que arrependimento, descanso, quietude e confiança eram “disposições opostas” ao tempo de Isaías. Em nosso momento histórico particular, sinto algum consolo em saber que, ao longo da história, o povo de Deus foi reiteradamente chamado ao arrependimento e ao descanso em meio à dor, à injustiça e à turbulência.

Vivemos em uma cultura repleta de ruídos, na qual muitas vezes sentimos que temos de gritar só para sermos ouvidos, na qual o alarde da indignação das mídias sociais supera o chamado de nossas comunidades como corpo, na qual parece impossível ouvir uma voz mansa e suave. O Advento nos convida a nos aquietarmos, a nos arrependermos e a nos inclinarmos para esse anseio. A redenção está apontando na esquina do universo, da mesma forma foi anunciada a alguns pastores desavisados, ​​na noite do nascimento de Cristo. Voltar a Cristo e descansar nele não significa fugir das trevas do mundo. Significa proclamar que, mesmo em meio às trevas, ainda resta outro caminho — o único caminho.

Tish Harrison Warren é pastora na Igreja Anglicana, na América do Norte, e trabalha com a iniciativa Women in the Academy & Professions da InterVarsity. É autora de Liturgia do Ordinário: Práticas Sagradas na Vida Cotidiana (IVP, dezembro de 2016). Mais informações em TishHarrisonWarren . com.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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Books

Com pequena mudança nos votos evangélicos, Brasil elege Lula

O candidato de esquerda abordou diretamente preocupações cristãs nos últimos dias da campanha para o segundo turno.

Luiz Inácio Lula da Silva comemora vitória apertada na eleição presidencial.

Luiz Inácio Lula da Silva comemora vitória apertada na eleição presidencial.

Christianity Today November 9, 2022
Alexandre Schneider/Getty Images

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e seus aliados trabalharam para conquistar eleitores evangélicos até o último minuto da campanha para o segundo turno, realizado em 30 de outubro.

Influenciadores cristãos postaram fotos com Bolsonaro no Instagram, anunciando com orgulho que apoiariam a sua candidatura para um segundo mandato. E a primeira-dama Michelle Bolsonaro cerrou fileiras com mulheres da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, no Rio de Janeiro, uma das maiores igrejas do país.

“Amados, seria bom se tivéssemos ganhado no primeiro turno”, disse ela. “Mas a gente precisava desse segundo turno para acontecer o despertamento da igreja.”

Aos eleitores cristãos não convencidos da fé do próprio presidente — muito embora ele, ex-oficial militar católico, tenha sido rebatizado há seis anos no rio Jordão — Michelle ofereceu sua própria expressão de boa fé evangélica.

“Não olhe para meu marido, olhe para mim que sou uma serva do senhor”, disse ela.

Mas esses esforços acabaram mostrando-se insuficientes. Uma pesquisa confiável, divulgada dias antes da eleição, mostrou que o apoio dos evangélicos mudara ligeiramente — apenas quatro pontos — de Bolsonaro para seu concorrente do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva. Quando os votos foram contados, porém, “Lula”, como é universalmente conhecido, ganhou a eleição por uma diferença de menos de 2%.

Alguns observadores creditam a mudança de decisão em favor de Lula a apelos diretos a algumas das principais preocupações dos evangélicos.

Lula, que é ex-presidente, tornou-se elegível para concorrer à presidência em março de 2021, quando foram anuladas as condenações por corrupção que o sentenciaram a 12 anos de prisão. Na corrida à presidência, porém, seu principal gesto de aproximação [dos evangélicos] veio por meio de citações bíblicas em discursos de campanha. Os evangélicos representam cerca de 30% do eleitorado.

Essa abordagem sutil mudou em uma reunião com representantes de igrejas evangélicas,que aconteceu em São Paulo, no dia 19 de outubro. Lula, então, soltou uma carta, expondo suas posições sobre uma série de preocupações centrais. Sobre o aborto, por exemplo, escreveu que “a vida é sagrada, obra das mãos do Criador” e que as decisões sobre esse assunto caberiam ao Congresso Nacional.

Sobre a educação e os constantes debates acerca do que as escolas devem ensinar às crianças sobre gênero, ele disse que as escolas públicas devem trabalhar junto com os pais, e não contra os pais.

“O lar e a orientação dos pais são fundamentais na educação de seus filhos, cabendo à escola apoiá-los dialogando e respeitando os valores das famílias, sem a interferência do Estado” escreveu Lula em sua carta.

A carta também abordou rumores falsos de que ele perseguiria os cristãos. Em maio, um membro do Legislativo recebeu uma ordem judicial para deletar postagens nas redes sociais que faziam alegações falsas, afirmando que Lula e seu partido apoiavam a invasão de igrejas e a perseguição a cristãos. Outro pastor da Assembleia de Deus admitiu este ano que estava dizendo à sua congregação, sem quaisquer evidências, que sua igreja poderia ser fechada se a esquerda voltasse ao poder.

Lula refutou essas e outras alegações infundadas.

“Eu sei que as pessoas estão dizendo que vou fechar igrejas. Justamente o cara que criou a lei para ter liberdade religiosa”, disse ele. “Alguém dizer que vou fechar igrejas é de uma maldade, é de uma ignorância de tal magnitude, que às vezes a gente não acredita […] Veja, eu jamais fecharia uma igreja, porque eu acho que se tem uma coisa boa que as pessoas fazem na vida é […] fortalecer sua fé e cuidar de sua espiritualidade”.

Na eleição passada, Bolsonaro recebeu 70% do apoio evangélico. Ao longo de sua presidência, ele parecia cultivar apenas uma relação mais próxima com os evangélicos, como a CT mostrou anteriormente, aparecendo ao lado de conhecidos televangelistas e pentecostais, entre eles Silas Malafaia, Marco Feliciano e Edir Macedo, o bispo da maior denominação do país que prega a teologia da prosperidade. O presidente também participou da Marcha para Jesus.

Alguns de seus críticos viam as ações de Bolsonaro como puramente transacionais.

“Bolsonaro cooptou os cristãos, a partir de manipulação, oferecendo-se como a única salvação contra a esquerda, contra o PT. Apresentou-se como um messias. Pegou para si pautas importantes para os cristãos, como as questões do aborto e da família, e fez delas a base de sua campanha”, disse à CT Jacira Monteiro, escritora e estudante de pós-graduação em um seminário, meses atrás. “Também fez (e continua fazendo) um jogo de doisladismos: ‘ou eu sou o presidente e livro vocês do mal, do Satanás — a saber, do PT e da esquerda — ou o Brasil volta para as trevas’. Tudo isso usando em sua campanha um linguajar agressivo e polarizado”.

Apesar de terem dado um impulso significativo a Bolsonaro na última eleição, no entanto, os evangélicos não são todos iguais.

A Frente Parlamentar Evangélica, grupo que se identifica como a voz evangélica oficial no Poder Legislativo do país, disse que tem entre seus membros 196 deputados e 7 senadores de 19 partidos políticos diferentes. Apenas 42 deles eram do Partido Liberal, o partido de direita ao qual pertence Bolsonaro.

Bolsonaro perdeu algum apoio evangélico devido ao tratamento que dispensou à COVID-19 e a questões econômicas. Mas, com o início da corrida eleitoral e, depois, para o segundo turno, ele parecia estar reconquistando apoio. Nos últimos dias de campanha, entretanto, o número de evangélicos que mudou de ideia foi suficiente para fazer diferença.

A decisão de Bolsonaro de “minimizar a pandemia, desprezar informação científica importante” custou muito caro em termos de votos perdidos, disse Guilherme de Carvalho, diretor do L’Abri Brasil.

“Vimos uma atitude de desprezo, de confrontação e de evitar o diálogo. E não só isso, um espírito de irresponsabilidade com a saúde das pessoas, e piadas sobre pessoas que estavam correndo risco de vida. Chegamos a ver bolsonaristas fazendo dancinhas com caixão”, disse Guilherme.

Guilherme de Carvalho afirmou que outra questão importante para alguns evangélicos foi o meio ambiente, e apontou para o aumento do desmatamento e dos incêndios florestais durante o governo de Bolsonaro.

“Quem derrotou o Bolsonaro foi o próprio Bolsonaro”, disse Guilherme.

Dada a apertada margem da vitória de Lula e a reticência de Bolsonaro em reconhecê-la, alguns líderes evangélicos agora estão preocupados com a unidade da igreja nos próximos meses.

“A vitória do Lula, estenderam (sic) mais 4 anos de ainda mais polarização, e o sonho de mais opções políticas ficaram para daqui 8 anos (sic)”, tuitou Filipe Duque Estrada, pastor da Onda Dura Global. “Porque daqui 4 anos as únicas opções, (sic) serão novamente Bolsonaro e Lula. Se Bolsonaro tivesse ganho, esse ciclo teria terminado.”

Alguns líderes clamam por paz.

“Sei que nestas eleições muitos vínculos foram rompidos, pessoas feridas, ofensas ditas, mas para cada erro cometido há a bondade de Deus para nos conduzir ao arrependimento e à reconciliação”, escreveu no Instagram Zé Bruno, um importante criador de conteúdo cristão. “Busque ver onde você errou e arrependa-se. Busque ver onde erraram com você e perdoe. Não leve adiante o mal, antes ponha um fim a ele através do bem, do amor e da misericórdia, pois ela triunfará sobre o juízo.”

Traduzido por Marisa Lopes

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O dano colateral do pecado

A pior consequência de “errar o alvo” não é a que afeta o próprio pecador, mas sim o seu próximo.

Christianity Today November 6, 2022
Illustration by Paige Vickers

A pequena Aryanna Schneeberg, uma criança de oito anos, estava brincando no quintal, quando foi atingida nas costas por uma flecha. Um vizinho estava tentando acertar um esquilo, mas errou o alvo pretendido e, em vez deste, atravessou o pulmão, o baço, o estômago e o fígado da criança. Ela carrega as cicatrizes que acompanham a sobrevivência de uma lesão como essa. Devemos nos lembrar de Aryanna toda vez que ouvirmos um pregador explicando a palavra em grego para designar pecado, hamartia, que significa “errar o alvo”.

Como a maioria dos clichês usados no púlpito, este aponta para algo que está parcialmente correto. O problema, porém, é que a imaginação da maioria dos cristãos ocidentais, moldada por Robin Hood, vai além da sua experiência real com o arco e a flecha. Pensamos em um cenário bucólico, onde atiramos nossas flechas em direção a um alvo pregado a um fardo de feno. A metáfora é quase reconfortante: não nos vemos como criminosos nem transgressores, mas como alguém que está fora de forma. Alcançamos nossa aljava e pegamos outra flecha, para mais uma tentativa de acertar o alvo.

Mas não é assim que a Bíblia descreve o pecado. A Bíblia diz que pecado é transgressão (1João 3.4). Quando a Escritura categoriza pecados, consistentemente o faz em termos que implicam tanto perpetradores quanto vítimas: inimizade, dissensão, opressão de órfãos e viúvas, adultério, cobiça.

Sob essa luz, o pecado tem menos a ver com praticar para acertar um alvo em algum recanto bucólico e isolado, e mais a ver com atirar flechas em plena calçada da cidade, em meio a uma multidão esmagadora. Ao nosso redor, há corpos para todos os lados, contorcendo-se ou mortos, atingidos por nossas flechas errantes.

Em um sermão sobre o pecado, um pregador também pode citar o puritano John Owen: “Mate o pecado ou ele matará você”. Isso é verdade também. E, no entanto, ainda não diz o suficiente: nosso pecado também pode estar matando aqueles ao nosso redor. “O salário do pecado é a morte”, a Bíblia nos diz (Romanos 6.23). E essa morte pode não ser apenas a nossa, mas também a de nossos próximos.

O Apocalipse é uma carta circular para igrejas muito diferentes. Algumas delas foram ativamente perseguidas por Roma, enquanto outras se sentiam confortáveis e capitularam perante Roma. Os pecados e as tentações de cada uma diferem, mas a promessa é a mesma: Deus julgará. O restante do livro mostra como esse julgamento recai sobre o mundo, descrito como a Babilônia. Mas ele começa com a igreja. E a questão para o povo de Deus é se seremos uma prévia da Babilônia ou da Nova Jerusalém.

Uma razão pela qual Apocalipse parece um livro tão estranho para muitos é por seu uso de imagens muitas vezes enigmáticas — uma besta que saía do mar, uma prostituta que está sentada sobre sete colinas (13.1; 17.9). No entanto, a seu modo mais enigmático, este livro não descreve os dilemas enfrentados por todos nós, aqui e agora?

Roma — a cidade das sete colinas — era, na época, a cidade opulenta, rica e idólatra montada em uma besta monstruosa e poderosa — um império vasto e opressor. A besta controla pelo medo de sofrer. A prostituta controla por meio da sedução baseada em luxo e conforto. A besta diz: Juntem-se a mim e eu lhes darei acesso ao poder. A prostituta diz: Juntem-se a mim e eu lhes darei acesso ao prazer. Por trás de tudo isso, porém, há uma falsificação. A besta é uma tentativa de imitar o Cordeiro que é ferido, vence e separa um povo para si. A Babilônia é uma distorção do reino de Deus.

Não são apenas impérios, no sentido literal da palavra, que podem se tornar bestiais. Ministérios também podem. Podemos pensar que estamos apontando para o Cordeiro, quando estamos apenas repetindo os caminhos da besta. Podemos pensar que estamos servindo ao reino, quando na verdade estamos apenas construindo Babilônias que cairão em apenas uma hora (Apocalipse 17.12).

O que devemos identificar e erradicar não é apenas um único ídolo — a iconoclastia sexual, a supremacia branca, o nacionalismo cristão, o sincretismo religioso ou apenas os bons e velhos pecados da inveja, da rivalidade e da ganância — mas sim todos eles. Não devemos nos dividir entre aqueles que justificam certos pecados “pessoais” e aqueles que justificam certos pecados “sociais”.

Será que acreditamos realmente que nosso pecado de fato machuca as pessoas? Acreditamos que nossos ministérios podem machucar pessoas, e de fato já machucaram? Se a resposta é sim, vamos nos lembrar do que nos torna “evangélicos” em primeiro lugar. Somos aqueles que dizem ao mundo, e a nós mesmos, não simplesmente “Creiam nas Boas Novas”, mas sim “Arrependam-se e creiam nas Boas Novas”.

Deus é um Deus de graça, que perdoa a nós, pecadores, por meio do sangue de seu Filho. Mas ele também é um Deus de julgamento — o Deus que sabe diferenciar entre Jerusalém e Babilônia, entre um cordeiro e uma besta. Neste tempo de revelações, devemos ouvir o que o Espírito está dizendo às igrejas, mesmo quando nossas metáforas errarem o alvo.

Ted Olsen é editor-executivo na CT.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Books

Bonhoeffer: o Advento é como uma cela de prisão

Em meio à resistência nazista, esse mártir cristão ofereceu três modelos para o tempo de espera.

Christianity Today November 4, 2022
Illustration by Rick Szuecs / Source image: Lightstock

Em 21 de novembro de 1943, Dietrich Bonhoeffer escreveu uma carta da prisão de Tegel. “Uma cela de prisão como esta é uma boa analogia para o Advento”, disse ele. “Espera-se, confia-se, faz-se isto ou aquilo — em última análise, coisas insignificantes —, a porta fica trancada e só pode ser aberta pelo lado de fora”.

A comparação entre o Advento e uma cela de prisão pode parecer estranha. Evoca impotência, talvez até desesperança. No entanto, Bonhoeffer acredita ser esse tipo específico de espera a que melhor nos prepara para a vinda de Cristo.

Embora uma prisão nazista tenha lhe rendido essa metáfora, os sermões que ele escreveu durante seu período de ministério ativo também apresentam uma visão semelhante da espera do Advento. Nesses sermões, Bonhoeffer vê a época que antecede o Natal como uma expressão litúrgica aguçada da tensão que informa toda a nossa vida como cristãos. Celebrar isso nos prepara para viver como pessoas que romperam radicalmente com a presente era de pecado e morte, e que também estão se preparando para o futuro redimido que Deus já alcançou, em certo sentido. Por meio do Advento, aprendemos a viver nessas duas realidades simultâneas: já fomos libertos, embora nossa libertação ainda esteja por vir.

Os sermões de Natal e de Advento escritos por Bonhoeffer destacam três figuras que retratam a vida em meio a essa tensão e, por seu exemplo, podem nos guiar neste período. Aprender como esperar com essas figuras não será uma experiência calorosa nem aconchegante, mas sim profunda, perigosa e permeada de tristeza e dor.

A primeira figura é Moisés. Mas não o triunfante Moisés que conduz o povo de Israel a atravessar um Mar Vermelho que milagrosamente se divide ao meio; nem o Moisés das leis, que carregou as tábuas de pedra montanha abaixo. Em vez disso, o Moisés do Advento é aquele que encontramos em Deuteronômio 32.48-52. Ele sabe que a promessa de Deus será cumprida, mas também sabe que não se cumprirá em seu tempo de vida. Antes, ele morrerá no monte Nebo, contemplando a visão da terra do outro lado do rio. Este Moisés parece, a princípio, a própria antítese do Advento, pois é aquele para quem a promessa nunca se cumpre.

No entanto, Bonhoeffer encontra na experiência de Moisés uma expressão de nossa própria espera do Advento. Assim como Moisés, sabemos que a promessa foi cumprida — Jesus veio — mas ainda não plenamente. Por meio do castigo de Moisés — a sua morte, antes de entrar na Terra Prometida — também somos lembrados de que o Advento é tempo de morte, de julgamento e de arrependimento. Em uma inversão da ordem do mundo, passamos da morte para o nascimento e uma nova vida. Essa consciência de nossa própria morte e de nosso próprio julgamento é crucial para entendermos que só entramos na Terra Prometida devido à vitória de Deus, não pela nossa. Como Bonhoeffer coloca, “Deus está conosco e não somos mais um povo sem lar. Um fragmento do lar eterno é enxertado em nós.”

A segunda figura é José. Assim como Moisés, José, em certo sentido, viu o cumprimento da promessa de Deus. Ele confia em Deus e toma Maria, grávida, como sua esposa. Em resposta, Deus lhe promete o impossível: que “o que nela foi gerado procede do Espírito Santo” (Mateus 1.20) e que o filho que ela carrega “salvará o seu povo dos seus pecados” (Mateus 1.21). O nascimento da criança é acompanhado por anjos. No entanto, apesar da chegada do Salvador prometido, o anjo, então, ordena a José que corra de volta para o Egito, a terra da escravidão de seu povo. José, estão, espera no Egito. E mesmo quando Deus lhe diz para voltar, ele não o envia para Jerusalém, a terra da promessa, mas sim para o lugar mais insignificante da Judeia — a cidade de Nazaré. Como Bonhoeffer escreve: “Foi incompreensível para José, bem como para todos, que a tão pouco estimada Nazaré fosse o destino do Salvador do mundo”.

Toda a vida de José é marcada pela espera, e é por meio de sua fiel espera que as promessas de Deus são cumpridas de maneira mais plena. Quando deixa o Egito, Jesus incorpora a libertação do povo de Deus em sua própria vida e em seu próprio resgate salvífico final de todo o povo de Deus. Em sua vida entre os pobres, humildes e obscuros de Nazaré, Jesus vive as vidas de todos os que são humildes e obscuros, as vidas de todos aqueles que, assim como seu pai humano, esperam sem sequer saber que a consumação de Deus vem.

A terceira figura é Maria. Bonhoeffer a descreve como a pessoa que “sabe melhor do que ninguém o que significa esperar por Cristo”. Como indivíduo, “ela experimenta em seu próprio corpo que Deus faz coisas maravilhosas com os filhos dos homens, que seus caminhos não são os nossos caminhos, que ele não pode ser objeto de previsão humana nem pode ser circunscrito por razões ou ideias humanas”. Nesse sentido, Maria encarna literalmente uma tensão teológica fundamental: grávida do Salvador, ela espera por sua vinda radical, mas, ao mesmo tempo, sente profundamente em seu próprio corpo como a promessa de Deus já foi cumprida.

Maria também exemplifica a espera coletiva da igreja pela redenção do povo de Deus e pela restauração de toda a criação. No Magnificat [cântico entoado por Maria em louvor à grandeza de Deus, utilizado na liturgia cristã], ela descreve como o bebê que ela dará à luz realizará a derrubada de todos os sistemas de poder opressores, a deposição dos poderosos de seus tronos e a vindicação dos pobres e esquecidos. Maria passa a vida antecipando essa conclusão redentora. Ela espera durante a gravidez, o ministério de Cristo, a crucificação, até o Pentecostes. Mesmo depois do Pentecostes, ela ainda espera na casa do apóstolo João, sabendo que a culminação que ela anteviu — na qual toda a criação é renovada — ainda está por vir.

Essas três figuras do “Advento” levantam questões difíceis sobre o estado de nossos corações, à medida que nos aproximamos desse período.

Primeiro, temos que reconhecer a ruptura radical da vinda de Cristo, enquanto também esperamos no “agora”. No entanto, não somos livres para trazer à completude a promessa de Deus por nossa própria força de vontade nem durante nossa própria linha do tempo. Na verdade, não somos livres sequer para esperar como deveríamos. Cristo “está vindo para nos resgatar das prisões de nossa existência, da ansiedade, da culpa e da solidão”, escreve Bonhoeffer, mas, para estarmos prontos para esse resgate, primeiro temos que ver o quanto somos escravizados. (Aqui, sua analogia da prisão volta à mente.) O Advento, portanto, é definido por um movimento duplo: primeiro, por saber que ainda somos escravizados e segundo, por saber que Cristo já nos libertou.

Em segundo lugar, por quem estamos esperando? Jesus vem no Natal como uma criança, mas, no final dos tempos, ele vem com terror e poder para trazer julgamento. Com Moisés, aprendemos que o Advento exige que morramos antes de podermos renascer. Da mesma forma, só podemos acolher a criança e estar sob seu reinado depois de aceitarmos o julgamento de Deus e, de certa forma, a nossa própria morte. No entanto, enquanto aguardamos o julgamento, também temos a certeza de que já fomos levados à paz de Deus. Sempre vemos a nós mesmos “no momento” e no horizonte escatológico de Cristo. No Advento, portanto, é importante lembrar o que significa esperar por uma criança, e não apenas por um rei.

Quando consideramos este segundo movimento duplo do Advento — a vinda do Senhor em julgamento e a vinda do menino Jesus — percebemos que Deus exige mais do que jamais poderíamos imaginar ou alcançar. Também percebemos que, ao se tornar um de nós na Encarnação, Cristo já realizou tudo.

Por fim, o que fazemos durante essa espera? Bonhoeffer identifica os cristãos com os servos em Lucas 12, que mantêm suas candeias acesas enquanto esperam pelo noivo. Por sabermos que o noivo virá, nossa espera não é passiva nem resignada. Pelo contrário, assim como José e os servos, aprendemos a esperar ativamente que as promessas de Deus sejam cumpridas.

Também aprendemos a viver a liberdade radical que vem do fato da promessa de Deus já se ter cumprido. Mais fundamentalmente, somos libertos do cativeiro que há dentro de nós mesmos. Essa liberdade, diz Bonhoeffer, nos liberta de “pensar apenas em mim mesmo, de ser o centro do meu mundo, e do ódio pelo qual desprezo a criação de Deus. Significa ser para o outro: [ser] pessoas para os outros. Somente a verdade de Deus pode me capacitar a ver o outro como ele realmente é”.

Bonhoeffer viveu este Advento esperando em sua própria cela de prisão. Embora a porta estivesse trancada e sua vida desmoronasse em escombros ao seu redor, ele ainda se agarrava ao conhecimento de sua liberdade em Cristo, e fez isso através da prática do Advento. Em uma carta enviada a seus pais, ele descreveu como uma pintura de Altdorfer, que retrata a cena do nascimento de Jesus, “na qual se vê a sagrada família e a manjedoura em meio aos escombros de uma casa em ruínas […] é particularmente atemporal”. Em meio a um mundo de pernas para o ar, ao medo da morte e ao reconhecimento de nossas próprias falhas e de nosso próprio cativeiro, “mesmo aqui podemos e devemos celebrar o Natal”.

Elisabeth Rain Kincaid é professora assistente de teologia moral no Aquinas Institute of Theology. Sua pesquisa se concentra em questões ligadas à formação moral, ao desenvolvimento da virtude e à interseção entre direito, negócios e teologia.

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Estratégias para pregar aos polarizados

Como nossos sermões podem ser pontes para unir lados divididos por este momento conflituoso?

Christianity Today November 3, 2022
Illustration by Daniel Liévano

Enquanto eu fazia musculação em uma academia local, minha atenção foi atraída para a TV pendurada na parede. Apresentadores de notícias que eu não conhecia, de um canal que eu quase nunca assistia, levantaram pontos de discussão que eu não entendia, sobre assuntos dos quais eu estava apenas vagamente ciente. Tenho a sensação de que nem conheço mais o mundo em que estou vivendo, pensei.

Esse sentimento enervante também surge no ministério. Às vezes me pergunto: Será que ainda conheço a congregação que estou pastoreando?

Com toda a polarização política, ressentimentos que ainda persistem sobre como as igrejas lidaram com a exigência de máscaras, pessoas tomando partido em relação à vacinação contra a COVID-19 e questões ligadas a profundas feridas, como tiroteios em massa, aborto ou questões raciais, estamos pastoreando comunidades que vivem em um estado contínuo de elevada tensão. Essas realidades atuais se somam às complicações que nós, pastores, normalmente já enfrentamos, quando pregamos para congregações compostas por pessoas de diferentes gerações, com diferentes visões políticas, origens teológicas e relacionamentos com Jesus (que vão desde cristãos comprometidos a outros que buscam uma espiritualidade e aqueles que contemplam uma desconstrução).

É uma dificuldade pregar pensando em tantas divisões e diferenças. Recentemente, durante a preparação de um sermão, fiquei tão distraído com todas as opiniões e os argumentos do momento, que parecia que eu estava desenvolvendo minha mensagem dentro de um sala de espelhos tomada por neblina, enquanto andava em um daqueles brinquedos de parque de diversão que giram sem parar! Exageros à parte, no fim, acabei pouco confiante no sermão que havia escrito e me senti ainda mais desafiado pela realidade de que eu realmente tinha que amar aqueles a quem pregava. Pensei na frase do pastor John Ames, personagem do romance Gilead, de Marilynne Robinson: “Os profetas amam as pessoas a quem disciplinam”. Eu me senti disciplinado.

Como pastores, enfrentamos um tremendo desafio hoje: como podemos pregar de forma eficaz em nosso momento conflituoso, muitas vezes para congregações divididas e polarizadas?

Sermões que constroem pontes

No lugar em que sou pastor, há um rio de um quilômetro e meio de largura que corre pelo centro da cidade. Como temos várias pontes que atravessam esse rio, incorporamos uma das pontes mais icônicas ao logotipo da nossa igreja. Quando nossa congregação se sente dividida, e me deixa confuso sobre como proceder em um sermão, tento lembrar que a imagem é bem mais do que apenas um logotipo. Representa o chamado do pregador: edificar sobre a ponte que Cristo edificou para nós, a qual atravessa uma separação cuja largura é bem maior do que apenas um quilômetro e meio.

Compartilho a seguir algumas maneiras pelas quais fui ajudado na preparação e na pregação de sermões que buscam ser pontes para unir lados divididos em minha congregação:

Desenvolva uma equipe de pregação composta de rivais

Um livro famoso sobre a “equipe de rivais” de Abraham Lincoln fala das pessoas que este líder reunia ao seu redor — entre as quais havia aquelas antagônicas a ele —, a fim de fortalecer suas decisões e o país que estava dividido. Desenvolver um tipo semelhante de equipe tem sido uma das práticas mais importantes para melhorar a qualidade da pregação em nossa igreja.

Por muitos anos, tivemos uma pequena reunião regular para discutir nossos sermões. Mas o crescimento da igreja e mudanças na equipe pastoral criaram uma oportunidade para repensarmos o propósito das reuniões e quem seriam as melhorres pessoas para participar dessa equipe de discussão. Ao longo de vários anos, montamos uma equipe de nove pessoas: uma mescla de pessoas que trabalhavam na igreja, voluntários, homens e mulheres, jovens e idosos, pregadores experientes e pessoas que nunca farão uma pregação na vida. Somos todos muito diferentes, mas temos em comum o amor pela ortodoxia e o compromisso com a declaração de missão da nossa igreja.

Os membros da equipe de discussão recebem uma cópia do sermão quando chegam à igreja, nas manhãs de domingo, para ter um lugar fácil para fazer suas anotações. (E sim, às vezes eles até usam uma caneta vermelha literal, quando não metafórica.) Então, nós nos reunimos às segundas-feiras, ao meio-dia, para discutir o sermão do dia anterior e planejar o próximo.

Eu não considero a “equipe de rivais” como algo no sentido de que qualquer um de nós sinta o desejo ser antagônico ou contrário. Mas é um grupo intencionalmente composto por diversas perspectivas, e o feedback sincero é incentivado. Juntos, trabalhamos pelo bem uns dos outros e da Palavra de Deus pregada entre o seu povo. Normalmente, discutimos o que correu bem no sermão e o que ficou confuso ou mesmo o que não foi útil. Tocamos em todas as principais questões sobre como compartilhar corretamente a Palavra, a clareza do evangelho, a qualidade das ilustrações e aplicações, bem como o tom, os gestos usados, os maneirismos e assim por diante. Às vezes também consideramos como diferentes grupos dentro de nossa igreja podem ouvir um tópico particularmente espinhoso ou sensível.

Por exemplo, recentemente uma passagem das Escrituras se prestou a comentários sobre raça. Um de nossos pastores associados estava pregando naquela semana e sentiu que suas observações poderiam ser controversas. Então, durante a preparação do sermão, ele buscou meu feedback, me chamando para repassar os pontos de sua aplicação. Talvez por causa de meus próprios pontos cegos ou talvez porque não ouvi com atenção suficiente, não fui capaz de antecipar o modo que suas palavras poderiam ser mal interpretadas por alguns em nossa igreja. Mas, pode ter certeza de que, quando discutimos o sermão, a equipe de pregação não deixou que nosso erro passasse despercebido.

Todos temos nossos pontos cegos. Ter uma “equipe de rivais” para discutir a pregação é como ter um sofisticado sistema de câmeras em seu carro, quando você estaciona de ré. A equipe me propicia a bênção de enxergar o que não consigo ver sozinho e, pouco a pouco, meus instintos de pregação vão sendo refinados, ao mesmo tempo em que minha perspectiva se amplia.

Do ponto de vista emocional, pode ser difícil estar preparado para receber o feedback de segunda-feira. Às vezes, recebê-lo exige de mim naquele momento mais humildade do que a que tenho para oferecer. Há semanas em que meu coração só quer ouvir “Você é um grande pregador”, e não “Você falou muito rápido na introdução”.

Mas, por mais que me sinta infeliz, devo me lembrar que, embora doloroso, ampliar a consciência dos meus pontos cegos e ouvir diferentes perspectivas me torna um pregador melhor e faz de nossa igreja uma igreja melhor. Como diz o sábio ditado: “Quem fere por amor mostra lealdade, mas o inimigo multiplica beijos” (Provérbios 27.6).

Confie na pregação expositiva (e mantenha por perto uma lista dos tópicos mais divisivos da sua igreja)

Não sou contra sermões tópicos — na verdade, muitas vezes prego algumas séries de sermões tópicos a cada ano. Mas descobri que a prática de pregar regularmente séries expositivas de livros da Bíblia é algo mais útil em nossa era de divisões do que sermões tópicos. Há muitas razões para isso, mas uma em particular é que uma série de pregações expositivas sobre um livro da Bíblia requer menos explicação — ou menos justificativas, se você preferir — dos motivos pelos quais um pastor cobriu ou não determinado tópico.

Já no caso de uma série de sermões tópicos que um pastor ou a equipe pastoral tenha escolhido, implicitamente damos às pessoas da igreja a impressão de que achamos que precisam ouvir esses tópicos e precisam ouvi-los agora. Nossa avaliação pode ser correta, é claro, mas essa abordagem pode parecer mais confrontativa para os ouvintes do que o necessário.

As pessoas “têm ouvidos para ouvir” com mais frequência quando não sentem que o subtexto da série de sermões é “Não acho que vocês sejam muito bons nesse ponto, portanto, estou lhes dizendo isso agora”. Em contrapartida, aplicações do sermão são frequentemente recebidas com corações mais calorosos (especialmente no caso de questões controversas), quando as pessoas têm a sensação de que “Deus nos fez concentrar nesta passagem esta manhã, quando isso ou aquilo está acontecendo em nosso país; portanto, vamos discutir esse assunto.” Abordar assuntos controversos por meio da pregação expositiva (em vez de usar sermões tópicos) tende a neutralizar as polarizações, ao juntar ouvintes potencialmente divididos em um terreno comum, o amor pela Palavra.

Há momentos, no entanto, em que, como pastores, queremos que nossas igrejas sintam o aguilhão. Por exemplo, no outono deste ano, fizemos uma das séries mais longas de sermões tópicos que já tivemos — voltada para o propósito e a beleza da igreja local. E sim, em certo sentido, estamos enfatizando que nossos líderes escolheram esta série temática, entre outras infinitas possibilidades, porque achamos que o povo da nossa igreja tem uma eclesiologia subdesenvolvida. (Pergunte-me no Natal como essa série se saiu.)

Algumas críticas à pregação expositiva são a percepção de uma falta de relevância e de imediatismo e a tendência de gravitar em torno de aplicações meramente pietistas (do tipo “leiam mais a Bíblia”, “orem mais”, “amem mais a Deus” e assim por diante). Certa vez, recebi um feedback de nossos presbíteros de que minha pregação tendia a não preparar nosso povo para o motivo pelo qual Deus inspirou as Escrituras: “para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2Timóteo 3.16-17). Preparar plenamente as pessoas para toda boa obra requer sermões que as preparem para mais do que apenas aquilo que elas possam fazer nas manhãs de domingo ou durante seus momentos devocionais privados.

Uma abordagem que me ajudou a mudar foi fazer uma lista por tópicos de pecados, dificuldades e dissensões que percebi entre nossas ovelhas. Digitei a lista e pedi a outros crentes e membros da equipe que fizessem seus acréscimos a ela. E consulto essa lista frequentemente, quando preparo um sermão.

Ter uma lista como essa em mente, durante a preparação de um sermão, não mudará a exegese do texto bíblico. Mas ter pronta a exegese adequada de sua audiência ajuda os pregadores a conectar as dificuldades particulares das pessoas da congregação com a graça particular de Deus. Eu não sou capaz de dizer quantas vezes esse tipo de pregação expositiva atenta à sua congregação e dela consciente me ajudou a abordar tópicos controversos do momento de uma maneira que os ouvintes pudessem recebê-los bem.

Assuma posições controversas quando tiver um alto preço, não quando render aplausos

Quando me sinto compelido a virar a mesa, tento me lembrar que Cristo fazia isso muito raramente — e muitas vezes quando fez isso lhe custou um alto preço.

Confesso que me confunde, quando vejo pregadores assumirem uma postura “ousada” e “corajosa” sobre um assunto polêmico e a reação predominante de seus ouvintes é o aplauso. Em contraste, a ousadia de João Batista lhe rendeu o único púlpito que havia para ele: o deserto. A coragem de Cristo o levou à cruz.

O que realmente significa ser ousado? De que modo devemos considerar quando, como e por que assumir uma posição sobre uma questão difícil em um sermão?

Algo que me ajuda nessa reflexão é examinar o pastoreio que Jesus modelou nas cartas às igrejas de Apocalipse. O pastoreio é tremendamente específico para cada igreja e seu momento, tanto no que Jesus louva quanto no que ele desafia. A mesma igreja que ouve “Conheço as suas obras, seu trabalho árduo e a sua perseverança. Sei que você não pode tolerar homens maus” também ouve “Contra você, porém, tenho isto: você abandonou o seu primeiro amor” (Apocalipse 2.2,4).

Mais importante ainda, o desafio ousado e corajoso que a igreja em Éfeso recebeu foi para eles e em prol deles. Jesus não disse: “Igreja de Éfeso, há uma igreja logo mais adiante da estrada, em Pérgamo, que está cometendo imoralidade sexual e se apegando a falsos ensinos”. Em vez disso, Jesus levantou aquelas questões com aquela igreja (Apocalipse 2.14-15).

Sendo claro, não estou dizendo que a maneira como escolhemos os montes certos para morrer é escolhendo apenas aqueles montes nos quais possamos realmente morrer. Como pregadores, seguimos o Espírito e a Palavra para onde quer que eles nos levem. Contudo, quando houver uma oportunidade de fazer uma aplicação intencional do sermão, devemos falar da aplicação que desafiará nossas congregações, e não daquela que alimentará suas paixões — e lembrando sempre que amar disciplinar pessoas não é o mesmo que amar as pessoas que você disciplina.

Certamente, existe espaço para ajudar os membros da igreja a pensarem biblicamente sobre os males da sociedade; isso é uma parte do discipulado. Mas estou aprendendo que é relativamente fácil pregar sobre os pecados da cultura e daqueles que não são da minha congregação. Pode até ser inebriante. Em contraste, quando os membros da igreja ouvem a Palavra sendo pregada a eles, arrependem-se de seus pecados (e não dos pecados de seus próximos), e juntos creem novamente no evangelho, recebem a certeza do perdão de Deus e buscam o poder do Espírito para andar em novidade de vida, essas práticas regulares fazem da igreja uma igreja unida. Em nosso momento tão divisivo, tenho vivenciado a experiência de que membros que se arrependem e creem juntos permanecem juntos.

Descanse no poder da Palavra e do Espírito

Um amigo de nossa igreja era policial da cidade de Nova York, na década de 1980, época em que a taxa de criminalidade era extremamente alta. A taxa de homicídios, por exemplo, era quatro vezes maior do que a de hoje. Ele me contou que essa experiência sempre o lembrava de duas coisas: não apenas que ele tinha um papel a desempenhar na melhoria da cidade, mas também que ele poderia não ser a solução definitiva. Os problemas eram grandes demais para um policial só.

Presumo que, assim como as taxas de criminalidade em Nova York, a macrodivisão que os pastores sentem em nossas congregações irá fluir e refluir, por razões que estão completamente fora do controle de qualquer pastor ou de qualquer igreja isoladamente. Portanto, tento me lembrar dessas mesmas verdades. Nossos sermões têm um papel vital a desempenhar na edificação sobre a ponte do evangelho que Cristo edificou. Mas se, no processo de pregação, nos sentirmos como o apóstolo Paulo sentiu certa vez, — ao dizer “Mas, quem está à altura de tal tarefa?” (2Coríntios 2.16) —, devemos encontrar consolo onde Paulo encontrou: no fato de que nossa competência vem de Deus, que nos faz ministros de uma nova aliança. Pois o Espírito ainda vivifica, mesmo em nossa era de tantas divisões — e, talvez, especialmente nela.

Benjamin Vrbicek é o pastor sênior da Community Evangelical Free Church, em Harrisburg, Pensilvânia, editor-chefe do ministério Gospel-Centered Discipleship e autor de vários livros.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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Download gratuito: Leituras devocionais do Advento 2022

Dos editores e colaboradores da Christianity Today, O Prometido é um devocional de 4 semanas para ajudar pessoas, pequenos grupos e famílias durante a estação do Advento.

Christianity Today November 3, 2022
Christianity Today
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Ídolos: Como a política substituiu a prática espiritual

A formação cristã é central para a renovação cívica, e não o contrário.

Christianity Today October 27, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons / Unsplash

Nota da edição em português: este artigo foi escrito tendo como foco o contexto político norte-americano, mas contém lições importantes para outros contextos, inclusive o brasileiro.

Quando os eleitores forem às urnas para as eleições em novembro, muitos estarão impelidos por uma sensação de que o outro lado procura intimidá-los.

De acordo com uma pesquisa do Instituto de Política da Universidade de Chicago, porcentagens quase idênticas de democratas (74%) e de republicanos (73%) acreditam que adeptos do partido oposto são “geralmente intimidadores que querem impor suas crenças políticas àqueles que delas discordam.”

Da mesma forma, altas porcentagens de americanos em ambos os partidos acreditam que adeptos do outro lado tendem a ser “geralmente falsos e estão promovendo a desinformação”.

Essas estatísticas refletem o que um grupo de cientistas sociais chamou de “sectarismo político” — um “coquetel venenoso de outrização [a saber, fenômeno em que se enaltece um grupo, enquanto se estigmatiza e rebaixa o outro], aversão e moralismo” que “representa uma ameaça à democracia”.

O sectarismo representa uma ameaça à democracia porque o autogoverno só faz sentido em uma cultura em que os cidadãos se importam e pensam em alguém que não seja eles mesmos. De acordo com uma pesquisa recente do Pew Research Center, no entanto, a maioria dos eleitores americanos acredita que os servidores públicos (quanto mais outros eleitores) estão no cargo para promover seus interesses pessoais.

E aqui está o perigo mais profundo: o sectarismo político — e a cultura que ele promove — possibilita um imaginário social destrutivo e sufocante. A política tóxica deforma a pessoa por inteiro, assim como seus relacionamentos e suas práticas. Causa dano espiritual. Nossa cultura cívica não molda somente a governança; ela afeta domínios do social e do emocional em uma constante expansão.

Também precisamos chegar a um consenso sobre o quanto ele se apropria de nossa teologia e a dita.

No primeiro domingo após o trágico massacre a tiros em Las Vegas, em 2017, meu pastor, David Hanke, compartilhou estas duas estatísticas do Barna Group em seu sermão: Primeira, que 57% dos cristãos praticantes acreditam que têm o direito de usar violência para se defender. Segunda, que 11% dos cristãos praticantes acreditam que Jesus concordaria com eles nesse aspecto.

O primeiro ponto tem sido discutido por cristãos praticantes há milênios. O segundo, porém, é de onde brota o principal problema.

“Não se trata apenas de violência; é sobre qualquer coisa”, Hanke nos disse, naquela manhã. “Se você está convencido de algo e acha que Jesus não concordaria com você, isso é um problema. Nossa cultura não seria tão violenta se todos nós pudéssemos reconhecer o quanto a idolatramos. Na verdade, é difícil ver onde a violência pode ser necessária, pois estamos muito entretidos e apaixonados por ela.”

Os cientistas sociais que propõem o conceito de “sectarismo político” nutrem uma preocupação semelhante.

“Democratas e republicanos têm se tornado cada vez mais desdenhosos em relação aos adeptos do partido oposto, há décadas, e em proporções semelhantes”, escrevem eles. “Só recentemente, no entanto, essa aversão excedeu sua afeição por companheiros do mesmo partido […] O ódio pelos de fora do partido tornou-se mais poderoso do que o amor pelos de dentro do partido como fator de previsão do comportamento eleitoral.”

Pense um pouco sobre isso. O ódio pelos de fora do partido tornou-se mais poderoso do que o amor pelos de dentro do partido. Muitos eleitores optariam por deixar de ajudar uns aos outros, se isso significasse perder a oportunidade de prejudicar seus oponentes. Perdemos a capacidade de imaginar uma política que ajuda as pessoas e, em vez disso, compramos uma lógica política que justifica prejudicá-las. E dizemos a nós mesmos: essas são as regras do jogo. Eles farão isso conosco se não fizermos com eles. Mas será que Jesus concordaria com isso?

Apesar das decepções e dos erros do passado, estou convencido de que temos tudo o que precisamos para escrever uma história diferente.

Em primeiro lugar, porque, apesar da ascensão do sectarismo político, os cidadãos americanos, e entre eles muitos cristãos, estão lutando contra esse imaginário antissocial. E lutam principalmente por meio de engajamento local, e não por meio de política nacional. Eles lutam através da ação, e não do simbolismo. Eles lutam por propósitos concretos, e não com uma mudança de cultura abstrata em mente. Precisamos colocar essas ações cristãs práticas (e os recursos que estão por trás delas) em contato com as narrativas distorcidas que dominam nossa vida política.

Em segundo lugar, porque a fé cristã oferece recursos tremendos para combater o sectarismo político e muitas outras coisas que afligem a nossa política, mas temos que conectar esses recursos à nossa vida pública e política. Os cristãos não precisam ser lembrados de coisas como bondade, gentileza e alegria. Mas muitos de fato precisam ser convencidos de que o caminho de Jesus está à altura da tarefa da política. Eles precisam ser convencidos de que a arena pública também é um espaço para a fidelidade.

Isso não significa fazer de cada política uma questão de dogma religioso. Muito pelo contrário! Uma das maiores contribuições que os cristãos podem dar à nossa política hoje é se importar com a política, mas sem fazer dela um ídolo, e, então, lembrar ao nosso país que as decisões políticas muito raramente são uma simples questão de dogma — religioso ou secular — e mais frequentemente dizem respeito a questões prudenciais.

Devemos procurar ser fiéis, mesmo quando algo não puder ser reduzido a uma proposição.

Em terceiro lugar, porque essa fidelidade pode ser oferecida como um serviço de amor para nossas comunidades e nossa nação. A maioria de nós não gosta do que nossa política está fazendo conosco, mas está exausta demais para lutar contra isso e construir algo novo. O público é mais aberto do que pensamos a líderes civis que façam contribuições genuínas, em vez de se imporem aos outros e tomarem o poder à força. É em momentos como esse — quando tudo parece contestado — que vale mais a pena entrar na briga, se tivermos algo a acrescentar. E nós temos.

Essas convicções fundamentam o The Center for Christianity and Public Life [Centro para Cristianismo e Vida Pública], uma nova instituição apartidária, com sede na capital do país, que eu, juntamente com nossa diretoria e funcionários, lançamos esta semana. Nossa missão é lutar pela credibilidade dos recursos cristãos na vida pública e pelo bem público. Levamos adiante essa missão por meio de duas correntes paralelas de trabalho: influência cívica e formação espiritual.

Nenhuma organização ou nenhum líder sozinho resolverá os problemas que enfrentamos. Não existe uma bala de prata para a disfunção social e política que vemos, e devemos ter cuidado com soluções rápidas. Serão necessários muitos líderes, organizações, igrejas e cristãos diferentes, que encorajem uns aos outros e façam parcerias para promover uma visão básica de sermos fiéis a Deus e servirmos em amor ao público. Essa visão é crucial não apenas para nossa visão organizacional, mas para o Corpo de Cristo.

À medida que examinamos nossa vida pública e vemos o que Parker Palmer chamou de nossa “política dos corações partidos”, precisamos ter compaixão. Há tantas pessoas se sentindo assediadas e desamparadas! “A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos” (Mateus 9.37).

Eu anseio por mais trabalhadores.

Dallas Willard definiu a alegria como uma “sensação generalizada e constante de bem-estar”. Quantos de nós diriam que nossa política está repleta dessa sensação generalizada e constante de bem-estar? Quantos de nós diriam que trazemos um espírito de alegria para a nossa política?

As vozes que gritam mais alto estão fomentando a divisão e a exclusão. Elas nos dizem que política é apenas conflito, que política é aquele espaço onde vamos para despejar nossos ressentimentos e ódios. Essas vozes são barulhentas precisamente porque se sentem muito ameaçadas, muito frágeis. Seu bem-estar está sempre sob risco. Sua raiva reflete uma falta, e não abundância, de confiança e de convicções.

Mas a política precisa de pessoas confiantes e alegres, que busquem encontrar segurança não na política, mas em Jesus. Podemos quebrar o círculo vicioso. Existe uma história melhor para contarmos. E devemos contá-la, à medida que a vivermos.

Michael Wear é o presidente e CEO do Center for Christianity and Public Life.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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A democracia está em crise: Como os cristãos podem ajudar a preservá-la

Neste período de eleições, ame o seu próximo apoiando o resultado das eleições, a liberdade de imprensa e uma transição de poder pacífica.

Christianity Today October 26, 2022
Iker Ayestaran

Nota da edição em português: este artigo tem como foco as eleições norte-americanas. Seus argumentos, porém, podem perfeitamente ser aplicados a diferentes contextos, como o brasileiro.

A temporada de eleições de meio de mandato não é o momento mais propício para alguém se sentir bem em relação à democracia.

Somos inundados por propagandas eleitorais de teor negativo, que muitas vezes distorcem informações sobre os candidatos adversários e os retratam da pior maneira possível. Cada lado adverte que eleger o partido adversário significará um desastre para o país em escala apocalíptica.

Será que os cristãos podem realmente defender uma democracia como esta? Sim. Podemos e devemos. E não há melhor momento para fazê-lo do que este que estamos vivendo.

A democracia está atualmente enfrentando uma crise sem precedentes, tanto nos Estados Unidos quanto em todo o mundo. De acordo com o principal grupo de pesquisa do mundo para acompanhamento do progresso democrático, o Instituto V Dem, existem apenas 34 democracias liberais no mundo, o menor número desde meados da década de 1990. E apenas 13% da população mundial vive em um desses países democráticos — nível abaixo dos 18% de 10 anos atrás. (O Instituto V-Dem classifica os Estados Unidos em 29º lugar na lista de democracias liberais, e sua pontuação está caindo rapidamente.)

A democracia permite que haja independência jornalística, eleições livres e justas e transferência pacífica de poder; todos esses, porém, são atributos frágeis e muito fáceis de perdermos. Atualmente, é muito mais comum um país democrático se tornar autocrático do que um país autocrático se tornar uma democracia.

Alguns países que perdem seu status democrático se tornam ditaduras militares totalmente autocráticas. Contudo, o relatório de 2022 divulgado recentemente pelo Instituto V-Dem sugere que a pior e mais potente ameaça à democracia não é a ditadura, mas sim o que o instituto chama de “autocracia eleitoral”.

Sob a égide desse sistema, as eleições continuam a ser realizadas, mas o governo manipula o processo político controlando a mídia, assediando jornalistas que lhe façam críticas e expandindo inconstitucionalmente o Poder executivo.

Estima-se que 44% da população mundial vive atualmente em uma autocracia eleitoral, de acordo com o Instituto V-Dem. Os países que estão nessa categoria (ou que estão se movendo rapidamente em direção a ela) incluem Brasil, Índia, Hungria, Polônia e Turquia, entre muitos outros.

E eis aqui a coisa assustadora para os cristãos que levam sua fé a sério: em todos os países que acabei de mencionar, os conservadores religiosos estão entre os principais defensores desse processo de autocratização. Nos países de maioria cristã, esses conservadores religiosos são cristãos. No Brasil, muitos deles são até evangélicos.

Por que os eleitores — inclusive, em muitos casos, eleitores cristãos — elegem políticos que limitam a liberdade de imprensa e removem alguns dos freios e contrapesos das leis que tradicionalmente protegem a democracia?

De acordo com o exaustivo estudo do Instituto V-Dem em mais de 200 países, o principal motivo é a polarização partidária. Se os temores dos eleitores em relação a um partido de oposição se tornarem fortes o suficiente, eles muitas vezes aceitarão quaisquer medidas que mantenham esse partido fora do poder, mesmo que isso signifique a perda de certas liberdades constitucionais.

Essa dinâmica parece estar ocorrendo nos Estados Unidos. Quanto mais tememos o partido de oposição, maior a probabilidade de desculparmos medidas antidemocráticas que possam ser necessárias para manter esse partido fora do poder. Dito de outra forma: quanto mais acreditarmos que nossa causa é justa, menor será a probabilidade de nos preocuparmos com o processo necessário para alcançar nossos objetivos políticos. Vamos todos agir como se o fim justificasse os meios.

Isso pode explicar por que os evangélicos americanos às vezes têm sido atraídos por movimentos antidemocráticos.

Nos Estados Unidos [e em outros países], os evangélicos muitas vezes estão mais interessados em lutar por questões políticas específicas do que em preservar o próprio processo democrático. E, quando acreditam fortemente na justiça de sua causa, alguns deles demonizam seus oponentes, a ponto de estarem dispostos a lançar mão de medidas antidemocráticas para manter o partido de sua preferência no poder.

Nos últimos 200 anos, as campanhas políticas evangélicas muitas vezes se concentraram em usar o voto para combater o mal. Há muito mérito nessa visão. As Escrituras de fato retratam o governo como um agente da justiça. Romanos 6 e também várias passagens do Antigo Testamento deixam isso claro.

Contudo, se nos concentrarmos apenas no papel do governo em implantar uma ordem justa, podemos perder de vista algo que muitos protestantes têm defendido historicamente: que a preservação do processo democrático é tão importante quanto a criação de leis justas, porque permite que nos certifiquemos de que todas as pessoas sejam tratadas como alguém que é criado à imagem de Deus e cuja voz importa.

Em outras palavras, o processo democrático pode ser uma forma de amarmos o nosso próximo como a nós mesmos.

James Kloppenberg, historiador de Harvard e autor de Toward Democracy, argumentou que a democracia só terá sucesso se os partidos de ambos os lados estiverem “dispostos a permitir que seus piores inimigos governem, se vencerem uma eleição”.

Essa disposição de sacrificar os próprios interesses, escreve ele, muitas vezes se originou de uma “tradição judaico-cristã” que está disposta a “ver o chamado para amar os outros por quem são” como uma oportunidade para “autorreflexão e autotranscendência”.

De acordo com Kloppenberg, há um valor intrínseco em permitir que alguém de quem discordamos veementemente exerça o poder político, mesmo quando acreditamos que esta pessoa está usando o poder para fins horrendos.

Essa abnegação, ele acredita, deve estar enraizada em algo maior do que nós mesmos, e é por isso que as democracias são tão frágeis. A maioria delas entra em colapso total ou, no mínimo, torna-se mera autocracia eleitoral, na quais realizam-se eleições, mas poucos confiam nos resultados e ainda menos gente se atreve a criticar abertamente os que estão no poder.

Para sustentar uma democracia, devemos valorizar mais o processo democrático do que as causas políticas que defendemos. Devemos amar mais nosso próximo do que amamos nossos próprios interesses. Isso significa estarmos dispostos a aceitar o resultado das eleições, mesmo quando não gostamos dele, e estarmos dispostos a fazer tudo que pudermos para defender a liberdade de crítica dos jornalistas, dos quais podemos até mesmo discordar.

Mas também significa que, quando somos nós que estamos no poder, temos a obrigação de ouvir nossos adversários políticos e de fazê-los se sentirem valorizados. Os vencedores de uma eleição devem modelar uma atitude que Abraham Lincoln defendeu em seu segundo discurso de posse: “hostilidade para com ninguém” e “boa vontade para com todos”.

Os cristãos evangélicos têm as ferramentas teológicas para abraçar essa visão. Nós, de todas as pessoas, devemos saber que nossa visão é obscurecida pelo pecado e por interesses pessoais, e que nossas próprias causas políticas às vezes são baseadas em interpretações equivocadas da verdade de Deus. Se a olharmos em retrospectiva, nem toda causa política evangélica parece tão nobre quanto parecia em sua época. A consciência de nossa própria falibilidade nos dá a humildade de ouvir os outros, mesmo enquanto defendemos respeitosamente nossa própria posição.

O reino que buscamos acima de tudo é o reino de Deus — não é a vitória de um partido político específico, nem mesmo o progresso de um país específico. Essa consciência nos permite confiar o governo a pessoas que achamos que possam estar profundamente erradas. Pois sabemos que Jesus continuará a ser o rei, mesmo quando os governantes terrenos falharem conosco.

Com essa percepção, temos a liberdade de usar nosso voto para amar nosso próximo. Embora, é claro, tentemos usar nosso voto para promover causas justas, essas causas em si não são nosso objetivo final. Em vez disso, nossa medida de sucesso é o avanço do reino de Deus, que se baseia em fraqueza, humildade e amor cristão pelos outros.

Enquanto alguns à nossa volta recorrem a ataques partidários, nós, em vez disso, podemos usar este período eleitoral como uma oportunidade para ouvir outros eleitores e demonstrar preocupação genuína em relação a coisas com as quais eles se importam. Em vez de procurarmos defender nossos próprios interesses, procuremos amar os outros. E, se fizermos isso, podemos usar este período eleitoral como uma chance para enaltecer o amor de Jesus, independentemente de o partido de nossa preferência vencer nas urnas.

Deus não ordenou a democracia nem fez do seu processo eleitoral o único modo aceitável de governar. No entanto, preservar a democracia pode ser um dever para os eleitores cristãos. Fazemos isso não porque haja uma virtude inerente em votar, mas porque a democracia é uma maneira de mostrarmos preferência pelos outros e de praticarmos a humildade e a abnegação.

E essas são virtudes que definitivamente merecem ser preservadas.

Daniel K. Williams é professor de história na University of West Georgia e autor de Defenders of the Unborn: The Pro Life Movement Before Roe v . Wade.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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O surgimento do evangélico herege

Mesmo entre fiéis, a ortodoxia cristã está sendo deixada em segundo plano e colocada atrás do tribalismo cultural e político.

Christianity Today October 25, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Unsplash

Como meu colega Stefani McDade escreveu em um artigo publicado pela CT em setembro, a Lifeway Research divulgou uma pesquisa realizada para os Ministérios Ligonier. Nela se conclui que uma porcentagem surpreendentemente alta de evangélicos americanos defende crenças sobre Jesus e a salvação que todas as alas da igreja cristã definiriam como heresia.

Se esses resultados forem precisos, o que isso revela sobre o rumo que o cristianismo evangélico americano está tomando?

Recapitulando um pouco, a pesquisa mostrou que os entrevistados evangélicos expressaram um cojunto confuso e às vezes incoerente de crenças. A maioria afirmou crer na Trindade, mas 73% deles concordaram, ao menos em parte, com a afirmação de que “Jesus foi o primeiro e maior ser criado por Deus Pai”, o que é, naturalmente, o ensinamento do herege Ário.

Geralmente sou um pouco cético em relação a esse tipo de pesquisa, pois muitas vezes ela parece filtrar e deixar de fora aquelas pessoas que creem, mas não conseguem articular suas crenças em termos abstratos. Não tenho certeza se algum dos professores de escola dominical que me deram aulas na infância teria concordado com uma declaração de pesquisa do tipo “a justificação é somente pela fé”, muito embora todos eles acreditassem nisso. Dito isso, a Lifeway parece ter levado em conta e filtrado muitos desses problemas comuns em pesquisas.

Suspeito que a maioria de nós, no entanto, não está surpresa com os resultados. O cristianismo evangélico americano de hoje parece estar mais preocupado em caçar hereges internamente do que talvez em qualquer outra geração. A diferença, no entanto, é que as excomunhões estão acontecendo não por uma questão de visão teológica, mas sim de política partidária ou por causa das últimas discussões nas mídias sociais.

Sempre achei um tanto desconcertante ver colegas evangélicos, por um lado, buscarem a expulsão daqueles que não votam da mesma maneira ou não conseguem fingir indignação com controvérsias de Internet, mas, por outro lado, acolherem líderes cristãos que ensinam visões heréticas da Trindade ou que aderem ao evangelho da prosperidade.

Mas parece que algo mais está acontecendo aqui — algo que envolve uma secularização furtiva e generalizada do evangelicalismo conservador. O que me preocupa não é tanto que os cristãos evangélicos não consigam articular a ortodoxia cristã em uma pesquisa. O que me preocupa é que, para muitos deles, a ortodoxia cristã pareça aborrecida e irrelevante quando comparada à atitude de reivindicar um status de religião para tribos políticas, culturais ou etnonacionais já existentes.

Há vários anos, um ateu combativo escreveu que seus colegas ateus deveriam abandonar a palavra ateísmo porque esta dava muito peso ao teísmo. O objetivo final, segundo ele argumentava, não era difundir o ateísmo, mas sim enfatizar que a crença em Deus carece tanto de credibilidade que não merece ser seriamente considerada.

Seus argumentos incluíam muito sarcasmo sobre a perceptível estupidez do cristianismo, juntamente com estratégias para afastar as pessoas de seus “mitos” sobrenaturais e redirecioná-las para o que ele via como realismo — um mundo sem Deus.

Esse mesmo ateu falou em uma recente conferência para pastores. Ele apareceu em vídeos produzidos por grupos evangélicos, nos quais ele acusa outros evangélicos de serem “woke” [alguém ativo nas lutas contra problemas sociais, em especial o racismo] e — em uma ironia atordoante e inconfessa — de negarem a suficiência das Escrituras. Na opinião desse ateu, a linha que separa as “ovelhas” dos “bodes” é [ter] a visão “correta” a respeito das causas políticas, e não a crença em Cristo ou a fidelidade ao evangelho.

Suponho que a estratégia dele funcione a longo prazo. Não há necessidade de dissuadir as pessoas de acreditarem em Deus nem de pregar a Cristo crucificado, quando se muda o foco para a política. Nesse sentido, o teísmo — e o próprio cristianismo — de fato não podem ser levados suficientemente a sério para que alguém a eles se oponha.

Curiosamente, a pesquisa da Lifeway não revela essa mesma falta de ortodoxia, quando se trata de questões éticas sobre a vida humana ou a sexualidade. Será que isso acontece porque as igrejas fazem um bom trabalho de catequizar as pessoas em uma “visão bíblica de mundo” nessas áreas? Pode ser. Ou talvez essas questões estejam em primeiro plano por serem frequentemente discutidas em um contexto político ou cultural, e não em contextos estritamente teológicos.

Alguns que (com razão) veem tendências preocupantes em pesquisas como essa argumentariam que precisamos de mais livros, de mais conferências de teologia e de mais pequenos grupos que tratem de teologia sistemática em nossas igrejas. Eu me pergunto, porém, se o problema não é maior do que isso. Talvez, em lugar de um problema de informação, tenhamos um problema de afeições. Talvez, antes de termos um problema de teologia, tenhamos um problema de prioridades.

A peça que falta no momento não é tanto a capacidade de articular doutrinas, mas um nível de instrução mais fundamental nas Escrituras. Meus colegas teólogos sistemáticos muitas vezes se irritam com o discurso de que “precisamos voltar à Bíblia”, apontando, em vez disso, para a ignorância em relação à tradição dos credos cristãos e à própria história da igreja.

Vimos esse tipo de desequilíbrio na erudição evangélica há alguns anos, quando a tentativa de interpretar a Bíblia sem refletir sobre o Concílio de Niceia levou alguns teólogos a rejeitarem doutrinas cristãs básicas como a geração eterna do Filho.

Essa preocupação é justa, mas não vai fundo o bastante.

David Nienhuis, um erudito em Novo Testamento, afirma que temos uma geração de “citadores da Bíblia, e não de leitores da Bíblia”. Às vezes, até mesmo as pessoas mais inclinadas para a teologia sabem como usar a Bíblia, dentro e fora da igreja, em debates que giram em torno de controvérsias sobre gênero, predestinação e assim por diante. Mas elas não sabem a diferença entre Melquisedeque e Mardoqueu, entre Josias e Josafá. E veem o enredo real das Escrituras como um detalhe “menor”.

A Bíblia faz muito mais do que responder a questões que lhe são feitas por controvérsias do momento, e faz muito mais do que apenas reforçar a doutrina. A Bíblia molda e forma seus ouvintes e leitores. A Palavra de Deus não volta vazia. Ela reorienta nossas prioridades e nossas afeições — até mesmo antes de sabermos que elas precisam ser ajustadas, reorientadas. Nós, como igreja e como famílias, precisamos de muitos ministérios e dons diferentes — mas, talvez, aulas de memorização da Bíblia ou competições na escola dominical para ver quem é capaz de encontrar versículos bíblicos mais rápido sejam mais importantes do que conferências sobre cosmovisão.

Quando Jesus foi tentado pelo Diabo no deserto, ele respondeu com as Escrituras. Mas ele não estava apenas usando textos-prova contra falsos ensinos. Ao citar essas passagens específicas de Deuteronômio, Jesus mostrou que sabia o que o Diabo estava querendo — ele o estava tentando a buscar alimento, proteção e glória em outro lugar que não em Deus, do mesmo modo que os israelitas foram tentados a fazer, no tempo de Moisés.

O povo de Deus havia falhado no deserto antes; o Filho de Deus não falharia.

Jesus — o unigênito de Deus, gerado e não criado, Luz da Luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, da mesma essência do Pai, encarnado pelo Espírito Santo e a virgem Maria — conhecia sua Bíblia e sabia o que importava. Se não seguirmos sua liderança, podemos acabar com nossos “valores” de cabeça para cima e nossa teologia de cabeça para baixo.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Os cristãos devem possuir armas para defesa pessoal? Líderes cristãos ao redor do mundo respondem

Líderes de nove nações explicam sua visão teológica e bíblica sobre segurança pessoal, na medida em que tiroteios em massa assolam o mundo.

Christianity Today October 20, 2022
Carlos Osorio / AP Images

No começo de outubro, um ex-policial matou 36 pessoas, muitas delas crianças, em uma creche no nordeste da Tailândia. O ataque a tiros e esfaqueamentos ocorreu semanas depois que um atirador matou 17 pessoas em uma escola, no centro da Rússia. Em julho, terroristas empreenderam um ataque a um culto de domingo, no sudoeste da Nigéria, matando dezenas de fiéis.

Os Estados Unidos sofreram muitos tiroteios em massa este ano, inclusive um deles ocorrido em um desfile de 4 de julho, no subúrbio de Chicago, no qual sete pessoas foram mortas; outro, em uma mercearia situada em Buffalo, Nova York, no qual 10 pessoas foram mortas; e outro ainda, em uma escola primária em Uvalde, Texas, que terminou com 21 pessoas mortas.

Nos EUA, os evangélicos brancos eram mais propensos do que os membros de outros grupos religiosos americanos a possuir uma arma (41%), e mais propensos a dizer que isso os fazia se sentirem mais seguros (77%), de acordo com o Pew Research Center. Mais da metade dos evangélicos brancos (57%) diziam que proteção era a razão mais importante pela qual eles possuíam uma arma.

Um estudo de 2017 do Pew Research Center descobriu que 38% dos evangélicos brancos se preocupam em ser vítimas de um tiroteio em massa, 61% se preocupam em ser vítimas de crimes violentos e 66% se preocupam em ser vítimas de um ataque terrorista.

O estudo também descobriu, no entanto, que os americanos que frequentavam cultos religiosos semanalmente eram menos propensos a possuir uma arma do que aqueles que os frequentavam com menor frequência (27% contra 31%). E que os americanos com altos níveis de envolvimento com a religião eram menos propensos a possuir uma arma do que aqueles cujo envolvimento era baixo (26% vs. 33%).

A CT recentemente procurou líderes de igrejas de nove países para aprender mais sobre a posse de armas em seus contextos e o que eles pensam sobre o assunto, a partir de um ponto de vista teológico ou bíblico. Suas respostas estão ordenadas (de cima para baixo) desde aqueles que acreditam que os cristãos podem possuir armas para segurança pessoal até aqueles que acreditam que isso viola sua fé:

Nigéria | Steve Dangana, presidente do Capítulo do estado de Plateau da Pentecostal Fellowship of Nigeria:

Os cidadãos nigerianos podem possuir armas, desde que as armas sejam licenciadas pelas autoridades.

Os cristãos são chamados a ser vanguarda em prol da paz e pacificadores, em um mundo cheio de violência e maldade. O contraste entre aquilo que somos chamados a representar e a realidade do nosso mundo de hoje representa um desafio para o fato de possuir uma arma para defesa pessoal, bem como para outros propósitos de não violência. Pessoalmente, acredito que é certo um cristão possuir armas para fins de defesa pessoal.

O nível de aumento da violência em nossas comunidades assumiu proporções preocupantes hoje em dia. A desfaçatez com que vidas inocentes são mortas diariamente, por indivíduos sem a menor consciência, levanta dúvidas no coração de muitos cristãos sobre os desafios éticos da posse de armas. No entanto, uma olhada na Bíblia oferece algumas dicas sobre as práticas que informam essa questão hoje.

Na noite em que foi traído, Jesus incentivou seus discípulos a levarem uma espada. Eles tinham duas espadas, o que Jesus disse ser suficiente (Lucas 22.37-39). Quando ele estava sendo preso, porém, Pedro desembainhou sua espada e cortou a orelha de um dos servos do sumo sacerdote (João 18.10). A reação de Jesus foi curar o homem instantaneamente (Lucas 22.51) e, então, ordenar a Pedro que guardasse sua espada (João 18.11). O fato de Pedro ter em sua posse uma espada não foi condenado. Apenas o uso que Pedro fez dela, naquela circunstância específica, foi que levou Jesus a pedir moderação.

Em outra ocasião, soldados foram a João Batista para serem batizados. Quando perguntaram o que fazer para viver para Deus, João lhes respondeu: “Não pratiquem extorsão nem acusem ninguém falsamente; contentem-se com o seu salário” (Lucas 3.14, NVI). Vemos João parar perto de dizer aos soldados para deporem suas armas.

Deve ser seguro afirmar que a Bíblia nunca proíbe um cristão de possuir uma arma, desde que seja usada em conjunto com nossa fé e prática cristãs, traga honra a Cristo, respeito e valor para a humanidade e glória a Deus.

Os cristãos são encorajados a cumprir a lei, como representantes de Cristo e cidadãos fiéis de sua nação. Romanos 13 nos diz que as autoridades governamentais vêm de Deus e devem ser obedecidas. Portanto, qualquer lei sobre armas, bem como quaisquer outras leis locais, devem ser obedecidas.

Em última análise, vemos que não há nada pecaminoso ou inapropriado em possuir armas de fogo ou outros tipos de armas, desde que seja para defesa pessoal ou para outro uso não violento.

África do Sul | Siki Dlanga, coordenadora de uma campanha contra a violência de gênero da Aliança Evangélica da África do Sul:

Um sul-africano com 21 anos ou mais pode possuir legalmente até quatro armas de fogo. Cada arma de fogo deve ser licenciada, e temos regras rígidas que acompanham a licença.

Se um cristão possui ou não uma arma é uma questão de consciência pessoal. Sobre as armas, as Escrituras ensinam o seguinte: “As armas com as quais lutamos não são humanas; pelo contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas. Destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo. E estaremos prontos para punir todo ato de desobediência, uma vez completa a obediência de vocês” (2Coríntios 10.4-6, NVI).

A Escritura coloca em primeiro lugar a questão de proteger o crente do reino espiritual. Nossas armas não são carnais, mas espirituais. Sabemos que tudo começa espiritualmente, antes de se manifestar no reino físico. Não podemos lutar contra Satanás com as armas que ele inventou e esperar derrotá-lo. Para derrotar o mal, devemos usar armas espirituais que são, segundo nos é dito, “poderosas em Deus”.

Além disso, “Deus não nos deu espírito de covardia, mas de fortaleza, de amor e de moderação” (2Timóteo 1.7). Confiar no poder de fogo em vez de confiar no poder do amor não é o caminho de Cristo. O poder de fogo semeou muito sofrimento no mundo, a ponto de só podermos ter esperança de paz se ameaçarmos uns aos outros com “destruição mutuamente assegurada”. Isso dificilmente é um indicador de uma sociedade civilizada com uma mente sã, moderada.

Coreia do Sul | Kim Seungkyeom, pastor sênior da Graceforest Community Church em Yongin:

Na Coreia, possuir uma arma é algo sujeito a estritas restrições. Apenas rifles de caça são permitidos. Mas o rifle tem que ser registrado na delegacia.

Na minha opinião, não é aconselhável possuir uma arma para segurança pessoal. Se alguém possui uma arma por segurança, outra pessoa tentará se proteger possuindo uma arma mais potente ainda. Podemos ver isso na corrida armamentista das armas nucleares. Termos cada vez mais armas nucleares, armas nucleares mais potentes e uma vantagem comparativa sobre outros países são fatores que podem tornar o mundo um lugar cada vez mais perigoso.

Basicamente, as questões relacionadas à segurança pessoal são uma área que a nação deve assumir. Romanos 13.4 diz: “Pois [a autoridade] é serva de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal” (NVI).

Quanto aos indivíduos, o Senhor disse o seguinte: “‘Mete a tua espada no lugar’, disse-lhe Jesus, ‘porque todos os que desembainharem a espada morrerão à espada’” (Mateus 26.52, NVI). Estritamente falando, esta é uma lição sobre vingança, não sobre segurança pessoal, mas também é uma lição básica sobre o uso de armas.

O cristão não deve depositar sua segurança na posse de uma arma, mas na graça e na proteção de Deus. Ironicamente, no entanto, tenho um taco de beisebol bem ao lado da minha cama, caso algum ladrão invada minha casa de repente.

Suíça | Jean-René Moret, pastor, Igreja Evangélica de Cologny:

Estamos autorizados a possuir armas na Suíça. Ainda temos alistamento militar, e a maioria dos suíços traz para casa seus “rifles de assalto” [nome dado a fuzis de fogo seletivo], com o intuito de conservá-los consigo e para a prática de tiro. Rifles de assalto são permitidos. Os homens que cumpriram seu tempo no exército têm a opção de comprar seu fuzil militar do governo e mantê-lo. Os proprietários de armas devem se registrar.

(Apenas homens são recrutados. As mulheres podem pedir para fazer parte do exército. Aqueles que são objetores de consciência [e não se alistam] prestam serviço comunitário.)

O ensino e o exemplo de Jesus mostram que os cristãos devem, antes, sofrer a perda de suas posses, da honra e da vida do que responder à violência com violência (Mateus 5.38-42; 1Pedro 2.20-23). Paulo, em Romanos 13.4, reconhece o papel do Estado de portar armas para reprimir o mal. Mas este papel não é do indivíduo.

É possível considerar que possuir uma arma para defender outros vulneráveis ​​​​pode ser admissível. Esse pode ser o caso em situações em que o Estado falha e impera a ilegalidade. E, mesmo nesses casos, deve-se perguntar onde os cristãos depositarão sua confiança. Confiarão em Deus ou em suas próprias armas, força e habilidades? (Isaías 30.15-17).

A violência armada é consequência não apenas da posse de armas, mas também de uma cultura em que as armas são vistas como objetos que proporcionam segurança e soluções. Os suíços possuem muitas armas, mas não esperam usá-las para outros fins que não sejam a caça, o tiro esportivo e alguma guerra improvável. Para os cristãos, as armas podem ser um ídolo, no sentido de se tornarem algo que exige de nós a confiança que devemos depositar somente em Deus.

Canadá | Karen Stiller, autora, editora e jornalista, Ottawa:

Podemos possuir armas, embora o Canadá tenha leis rígidas de controle de armas. São necessárias minuciosas verificações de antecedentes criminais. Mais de 1.500 tipos de rifles de assalto militares foram proibidos no Canadá, em 2020. Uma legislação mais rigorosa foi proposta recentemente, para limitar ainda mais a posse de armas.

Meu pai era oficial da Polícia Montada. Eu cresci em um ambiente onde as armas estavam sempre presentes e eram vistas como uma parte do trabalho do meu pai que, embora fosse potencialmente perigosa, era necessária. Respeitávamos meu pai, seu trabalho e o uniforme da Polícia Montada Real Canadense. Eu ficava feliz por ele ter uma arma, pois sabia que isso o ajudava a se defender e a proteger as pessoas a quem ele prometera cuidar em seu trabalho e vocação.

As armas têm seu lugar no mundo, é claro, mas elas simplesmente não fazem parte da vida cotidiana e da cultura no Canadá, diferentemente dos Estados Unidos, ou, como suspeito, de muitos outros lugares do mundo. Canadá e Estados Unidos têm histórias muito diferentes, além de não termos a Segunda Emenda e tudo o que ela representa.

Os diferentes papéis que as armas desempenham na vida das pessoas podem variar nas diferentes partes do Canadá (sou uma pessoa totalmente urbana), mas, ainda assim, não acredito que aqueles que fariam lobby por menos controle de armas no Canadá chegariam perto da paixão que os proprietários de armas têm por esses objetos na cultura dos EUA. Até mesmo a pergunta Os cristãos devem possuir uma arma para segurança pessoal? parece ser algo muito americano. (Da mesma forma que essa minha afirmação parece ser algo muito canadense.)

Não me ocorreria a ideia de que nossa família cristã possuísse uma arma especificamente destinada à segurança pessoal. E, se a possuíssemos e seguíssemos as leis do país (que acreditamos ser obrigados a seguir, pois somos crentes), essa arma ficaria descarregada, trancada em algum lugar e guardada separadamente da munição. Então, de modo geral, [seria] um plano de ação não muito útil para proteção pessoal, independentemente da posição teológica da pessoa.

Austrália | Sam Chan, evangelista do Fórum Bíblico da Cidade em Sydney:

Na Austrália, você pode possuir uma arma, mas deve ter uma licença e registrá-la. Mas você não pode comprar armas automáticas ou semiautomáticas.

Eu estive em uma fazenda e vi o fazendeiro atirar em animais selvagens. Também tenho amigos que praticam tiro como hobby. Mas, em geral, a posse de armas não desempenha um grande papel na cultura australiana.

Um australiano pode sentir necessidade de possuir um carro ou uma casa, mas não uma arma para segurança pessoal. Isso não é uma questão na Austrália. Na Austrália, o que nos faz sentir seguros é a ausência de armas, e não a sua disponibilidade.

Na Austrália, priorizamos a segurança comunitária e esperamos que o governo faça isso acontecer. Acho que fomos o primeiro país a aprovar leis para a obrigatoriedade dos cintos de segurança nos carros, dos capacetes para ciclistas e dos testes aleatórios de bafômetro para motoristas.

Assim, limitamos nossos direitos de posse de armas para a segurança da comunidade. E não tivemos nenhum grande tiroteio em massa desde 1996.

Paulo também apela para isso em 1Coríntios 10.23-24: “Tudo é permitido”, mas nem tudo convém. “Tudo é permitido”, mas nem tudo edifica. Ninguém deve buscar o seu próprio bem, mas sim o dos outros.

Paulo diz que temos direitos individuais, mas também temos responsabilidade pessoal de fazer o que é melhor para a comunidade.

Honduras | Miguel Álvarez, presidente do Seminário Pentecostal Bíblico da América Central em Quetzaltenango, Guatemala:

Em Honduras, as pessoas podem portar armas, mas para isso devem registrá-la, cumprindo os requisitos exigidos pela segurança estatal. Infelizmente, mesmo nesse processo cheio de boas intenções, pode haver sinais de corrupção. No entanto, a lei é dura com aqueles que optam por portar armas.

Não acredito que os crentes em Cristo devam portar armas. O porte de armas é contrário à mensagem do evangelho. Não há razão teológica nem bíblica que justifique o uso de armas. A vocação do crente em Cristo é pacífica, não beligerante. Deus nos deu a capacidade de dialogar como seres civilizados sobre nossas diferenças, a fim de resolver nossas controvérsias por meios pacíficos. Todo crente que carrega uma arma obviamente duvida do poder espiritual que tem em si.

De acordo com Tiago 3.17 (ESV), “a sabedoria do alto é […] pacífica, gentil, aberta à razão, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sincera”. Além disso, de acordo com Romanos 12.18 (NVI), “Se possível, no que depender de você, viva em paz com todos”. Deus nos chama para a paz. A presença de armas é contrária à paz. Não há justificativa bíblica nem teológica para o uso de armas.

As pessoas que insistem em portar armas não conhecem a paz de Deus, nem podem entender a justiça de Deus. Portanto, é importante nos declararmos contra a guerra e o uso de armas para resolver conflitos humanos e nos declararmos a favor da paz e da justiça.

Filipinas | Emil Jonathan Soriano, pastor da Igreja @ Nº 71, San Pedro, Laguna:

Nas Filipinas, as pessoas podem possuir armas legalmente, embora seja difícil. O governo impõe exigências muito rígidas. No entanto, conheço pessoalmente cristãos que têm licença para portar armas para fins recreativos.

Eu não acho que cristãos devam possuir armas para segurança pessoal. A obra de Deus no mundo é trazer vida em toda a sua plenitude (João 10.10) e vencer a morte (1Coríntios 15). As armas vão contra a obra de Deus, pois são instrumentos de morte projetados para matar. Nas Filipinas, armas de fogo sem controle são usadas para crimes e execuções fora da lei, o que levou a assassinatos ao estilo paramilitar no passado. As Escrituras afirmam que ferramentas de morte devem ser desmanteladas e convertidas em ferramentas de produção e de sustento (Isaías 2.4; Miqueias 4.3).

O mais importante, porém, é que Jesus exemplificou a ética da não-violência, a qual ele demonstrou através de um amor que se doa e participa em nosso sofrimento, um amor que nos chama a darmos nossas vidas para que outros possam viver (Mateus 5.38-48; Romanos 12). Em Jesus, vemos que não precisamos de armas para nos defendermos e estarmos seguros. Os primeiros cristãos seguiram seu exemplo; eles não procuraram se defender pegando em armas, mas, em vez disso, deram voluntariamente suas vidas como testemunho do evangelho. Isso não significa que os cristãos devem buscar o martírio e não tomar precauções. Os cristãos são convidados a viver com sabedoria, enquanto trabalham para transformar o mundo em um lugar baseado na paz. Como Clemente de Alexandria, um dos primeiros pais da Igreja, disse certa vez: “Como irmãs singelas e silenciosas, a paz e o amor não requerem armas. Pois não é na guerra, mas na paz, que somos instruídos”.

Singapura | Edric Sng, fundador e editor da Salt & Light e da Thir . st:

Em Singapura, o uso de armas é rigidamente controlado pela Lei de Crimes relacionados a Armas. Além de nossa polícia e das forças armadas, praticamente não se ouve falar de alguém ser visto portando ou usando uma arma. Os casos raros seriam imediatamente manchetes de primeira página.

Trocando em miúdos, isso significa que nós, em Singapura, podemos viver a vida sem nos preocuparmos nem por um segundo sequer com a ameaça da violência armada.

Em Lucas 22, logo após a Última Ceia, Jesus prepara seus discípulos para a fase iminente, quando eles terão que continuar a missão sem seu mestre. “Se você não tem uma espada, venda sua capa e compre uma”, Jesus lhes diz no versículo 36. Uma espada naqueles dias teria sido útil para muitas coisas. Para caçar. Para colher. Era uma ferramenta multiuso.

E, sim, era uma arma — mas essa, evidentemente, não era a intenção de Jesus. Se Jesus quisesse que os discípulos carregassem armas para guerra, ele não teria dito a eles que eram suficientes duas espadas para tantos deles (v. 38). Ele teria dito a eles que conseguissem quantas pudessem! Quanto mais espadas tivessem, mais seguros eles estariam!

Mas fica claro que as espadas não eram para ataque nem para autodefesa. Em poucas horas, em Lucas 22.49-51, Jesus é preso. Pedro desembainha a espada para afastar a delegação liderada pelo traidor Judas. Mas, em vez de um elogio, ele recebe a repreensão de Jesus: “Guarda a tua espada!” (de acordo com João 18.11).

É tolice ficar indefeso em um mundo hostil, no qual todo mundo está carregando uma arma? Pelo raciocínio humano, provavelmente é. Mas, aos olhos de Deus, haveria mais sabedoria em segurar uma arma, que pode tão facilmente tirar a vida de outra pessoa, mesmo que seja para autodefesa? Por que imaginar que a vida de um — a sua ou a de sua família — vale mais do que a vida de outro?

Se o mundo está armado, devemos segui-lo — ou isso nos tornaria iguais ao mundo?

As entrevistas foram feitas com a ajuda de Jennifer Park.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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