A política de Putin ameaça o testemunho da igreja

Evangélicos americanos e do mundo inteiro podem aprender com a Rússia a não tratar a religião como uma ferramenta para se manter no poder.

Christianity Today February 24, 2022
Image: Alexei Nikolsky / AP Images

Este artigo é uma adaptação da newsletter (em inglês) de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Como a Rússia de Vladimir Putin é uma ameaça à existência de uma Ucrânia livre, para os evangélicos seria fácil concluir que esta é apenas mais uma questão distante de política externa.

No entanto, o Putinismo é muito mais do que uma ameaça geopolítica; é também uma ameaça religiosa. E a pergunta para os cristãos evangélicos é se o caminho seguido por Vladimir Putin se tornará o caminho seguido pela igreja nos Estados Unidos e no resto do mundo.

A ameaça à Ucrânia paira sobre muito mais do que apenas o povo ucraniano. A OTAN se preocupa com a estabilidade da ordem europeia. O Departamento de Estado dos EUA se preocupa com os americanos que restam por lá, temendo uma repetição do desastre no Afeganistão. Os alemães se perguntam se sua dependência do gás natural russo levará a uma crise energética. E o mundo inteiro se preocupa se esse passo de Putin vai encorajar a China a invadir Taiwan.

E, perdido em meio a tudo isso, está outra figura mundial contemplando seu próximo passo: o Papa.

A independência da Igreja Ortodoxa Ucraniana frente à Igreja Ortodoxa Russa tem estado envolvida em uma tempestade de controvérsias desde 2018. Em The Pillar, mídia católica focada em jornalismo investigativo, JD Flynn e Ed Condon explicam que líderes católicos e ortodoxos ucranianos estão acusando a Igreja Ortodoxa Russa de cumplicidade com a postura militar de Putin em relação à Ucrânia e seu povo.

A questão agora, como observam os autores dessa matéria, é se o Papa Francisco se reunirá em breve com o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa — e, em caso afirmativo, se isso sinalizaria uma tolerância quanto à potencial subjugação da Ucrânia e sua igreja nacional.

Para evangélicos americanos e do mundo inteiro, há questões reais também — não só sobre como responderemos ao uso que Putin faz da religião para fins políticos, mas também sobre se iremos imitar seus passos.

Vários anos atrás, antes da tumultuada era Trump, eu estava participando com outros evangélicos em um programa de notícias secular, de rede nacional, que foi transmitido na manhã de Páscoa. Em certo sentido, naquele fim de semana, estávamos todos unidos — afirmando juntos a verdade mais importante do universo: a ressurreição corpórea de Jesus dentre os mortos.

Mas discordávamos quando o assunto era Vladimir Putin. Eu o vi na época da mesma forma que o vejo agora: como um inimigo. No entanto, alguns dentre os demais tomavam as dores daquela figura forte e despótica, como se ele fosse um defensor dos valores cristãos.

Na época, pensei que apenas discordávamos sobre uma questão de política externa. Mas, agora, olhando para trás, posso ver que, ao menos para alguns dos evangélicos, havia uma discordância maior que ainda nem sabíamos que existia: a questão do que são “valores cristãos”, para começar.

Veja a questão do aborto, por exemplo. A taxa de aborto na Rússia não só é alta, mas, mesmo quando as forças favoráveis ao governo articulam algo semelhante a uma visão “pró-vida”, geralmente o fazem para conter o declínio demográfico, e não para proteger vidas humanas vulneráveis.

O princípio motivador não é a ideia de que “toda vida é preciosa”, mas sim o lema “Façamos a Rússia grande novamente”. Isso fica ainda mais destacado pelo tratamento que o governo russo dispensa às crianças que lotam orfanatos e “hospitais para bebês” em todo o país.

Como não havia uma cultura de adoção vibrante na antiga União Soviética, muitas dessas crianças crescem fora do sistema e enveredam por vidas aterrorizantes, marcadas por abuso de substâncias, exploração sexual e suicídio. Mas isso não impediu Putin de fazer tudo o que estava a seu alcance para acabar com a adoção desses órfãos por casais americanos e de outros países — tudo isso em nome de poupar o orgulho nacional russo que estava ferido e por um jogo de forças geopolítico.

A situação é ainda pior quando olhamos para a resposta de Putin ao próprio evangelho. Ele dedicou cuidadosa atenção à Igreja Ortodoxa Russa — a ponto de aprovar mosaicos de si mesmo, de Stalin e da invasão da Crimeia que seriam montados em uma catedral ortodoxa russa dedicada aos militares.

Além disso, o regime russo tem buscado incansavelmente acabar com as liberdades das religiões minoritárias — especialmente daquelas pertencentes ao grupo relativamente pequeno de protestantes de viés evangelical e missionários evangélicos oriundos do exterior.

Por que Putin — um ex-funcionário da KGB, que disse que o fim da União Soviética foi um desastre terrível — desejaria fazer parceria com uma igreja? Talvez seja porque ele acredita, juntamente com Karl Marx, que a religião pode ser uma ferramenta útil para a manutenção do poder político.

E, de fato, as religiões são bem úteis, quando se concentram em proteger o nacionalismo e a honra nacional. Elas podem transformar sentimentos já passionais de tribalismo e de ressentimento dirigido a pessoas de fora da cultura em sentimentos transcendentes e inquestionáveis. E tudo isso faz perfeito sentido em termos maquiavélicos — a menos que Jesus tenha, de fato, ressuscitado dos mortos.

Se essa tendência se limitasse à antiga União Soviética, poderíamos nos dar ao luxo de ignorá-la. Preste atenção, porém, em qualquer um que olhe por trás da antiga Cortina de Ferro, na tentativa de adivinhar o futuro.

Muitos religiosos conservadores — principalmente católicos romanos, mas também alguns protestantes de viés evangelical — aliaram-se ao homem forte e despótico da Hungria, Viktor Orbán. Como observa o comentarista libertário Matt Welch, o primeiro-ministro húngaro “se torna um estranho defensor da cristandade ao estilo americano”.

“O aborto é legal na Hungria, sem controvérsias, as pessoas não são particularmente religiosas, e Orbán exerceu um controle cleptocrático sobre igrejas que ousaram discordar de suas políticas”, argumenta Welch. A principal razão para a atração exercida por esses homens fortes do Leste Europeu, conclui Welch, é que eles lutam contra os inimigos certos e “vencem”.

Se isso fosse apenas uma questão de conflito entre aqueles de nós que acreditam na democracia liberal e aqueles que a consideram dispensável, isso seria uma coisa. Mas há outro problema maior com essa tentação despótica: o próprio evangelho.

Se a igreja for simplesmente um veículo cultural para a estabilidade e o orgulho nacionais, dificilmente se pode esperar que ditadores façam outra coisa senão manipulá-la. Mas, se a igreja é composta, como a Bíblia diz, de “pedras vivas”, trazidas à tona por corações regenerados mediante a fé pessoal em Jesus Cristo (1Pe 2.4-5), então, a conformidade exterior a um conjunto de valores em prol da civilização fica lamentavelmente aquém do cristianismo.

Isso seria verdade mesmo em um lugar que promovesse valores mais ou menos cristãos. No entanto, é ainda mais verdade quando a igreja está abençoando um líder despótico, como é Putin, conhecido por seu próprio povo como alguém que envenena seus inimigos.

Neste último caso, o testemunho da própria igreja está em jogo — porque uma religião que faz vista grossa para comportamentos sanguinários não crê nem mesmo em seus próprios ensinamentos sobre moralidade objetiva, e muito menos no juízo vindouro de Cristo. Por que alguém ouviria o que uma religião assim tem a dizer sobre como encontrar paz com Deus e entrar na vida futura?

Nós, cristãos evangélicos, devemos observar os passos de Vladimir Putin — e devemos reconhecê-los, sempre que nos disserem que precisamos de um faraó, de um Barrabás ou de um César para nos proteger de nossos inimigos reais ou presumidos.

Sempre que isso acontecer, devemos nos lembrar como se diz, em qualquer língua, esta palavra: “Não”.

Russell Moore lidera o Projeto de Teologia Pública da Christianity Today.

Traduzido por: Mariana Albuquerque

Editado por: Marisa Lopes

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